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Severo Sales de Barros: obituário

Uma luz se apagou no céu da patologia veterinária brasileira com o falecimento de Severo Sales de Barros aos 90 anos, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, em 26 de agosto de 2022. Até poucas semanas atrás ele ainda trabalhava na profissão escolhida há tantas décadas. Ao homenagearmos Severo, é justo dizer que ele lançou as bases e influenciou positivamente a carreira de numerosos patologistas veterinários que dele se beneficiaram direta ou indiretamente (Fig.1).

Fig.1.
.O Professor Severo está ao centro na foto. À esquerda está um dos co-autores desse obituário (CSLB) e à direita o Prof. Carlos Antononio Mondino Silva. CSLB foi introduzido à patologia veterinária pelo Professor Severo, de quem aprendeu as bases dessa ciência, e foi por ele guiado e apoiado por muitos anos.

Severo nasceu em 18 de março de 1932, em Júlio de Castilhos, Rio Grande do Sul (RS). Recebeu seu diploma em medicina veterinária como o primeiro lugar de sua turma em 1954 na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) (Fig.2). No começo de uma brilhante carreira, trabalhou de maio a outubro de 1954 em duas fazendas de ovinos localizadas na Argentina, Terra do Fogo e Patagônia na província de Chubut. De volta ao Brasil, trabalhou de fevereiro de 1957 a março de 1958 como o veterinário responsável pela inspeção sanitária de animais de criação na municipalidade de Tupanciretã (no cargo de inspetor veterinário), um órgão subordinado à Secretaria de Agricultura do RS. Logo depois, foi o primeiro veterinário a ocupar o mesmo cargo na municipalidade vizinha, em Júlio de Castilhos, sua cidade natal. Em dezembro de 1958, foi transferido para o Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor (IPVDF), outra instituição da Secretaria de Agricultura do RS. No IPVDF, fundou e implementou um laboratório de patologia veterinária.

Fig.2.
O Professor Severo Sales de Barros no dia de sua formatura, em 1954.

A convite do Prof. Edgardo Trein, Severo fez residência na Faculdade de Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), trabalhando com o Professor Wilhelm Brass e Hans Merkt, de abril de 1959 a março de 1961.

Em março de 1964, apesar da incerteza política que abalava o país, ele assumiu a posição de professor de patologia veterinária na Faculdade de Veterinária (então em sua formação) da recém-fundada Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Ali, sozinho, desenvolveu o curso de patologia veterinária e foi o primeiro professor a ministrar este essa disciplina.

Recebeu uma bolsa da Fundação Alexandre von Humboldt para estudar patologia veterinária na prestigiosa instituição alemã Tierärztliche Hochschule Hannover (TiHo) de janeiro de 1969 a abril de 1970. Exceto por esse período em Hannover, a UFSM foi seu único espaço de trabalho até sua aposentadoria em 1991, depois da qual ele se manteve como Professor Emérito, na mesma instituição, por cinco anos. Durante esse período, desenvolveu uma série de projetos de pesquisa.

Foi chefe do Laboratório de Microscopia Eletrônica no Departamento de Patologia da UFSM (Fig.3). O laboratório, fundado e organizado por ele no fim dos anos 1970, se tornou, pelas três décadas seguintes, uma referência na área e suporte para diversos projetos na UFSM e em outras universidades brasileiras.

Fig.3.
Professor Severo Barros, em seu laboratório de microscopia eletrônica (ME). Ele desenvolveu a ME na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e, posteriormente, na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ele não apenas realizou diagnósticos por meio de EM, mas cuidou pessoalmente da manutenção desse delicado equipamento. Foto da segunda metade da década de 1980.

Em 1978, Severo Barros, Jürgen Döbereiner (Fig.4) e outros destacados colegas fundaram o Colégio Brasileiro de Patologia Animal (CBPA), com o objetivo primordial de editar a revista Pesquisa Veterinária Brasileira. De 1996 a 2007, Severo trabalhou na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), onde também criou e organizou um laboratório de microscopia eletrônica similar ao da UFSM. Durante esse período (1996-2007), seu trabalho foi financiado pelas principais agências de fomento à pesquisa do Brasil, a saber, CNPq, CAPES e FAPERGS. Nos últimos anos desse período, foi contratado como docente pela UFPel.

Fig.4.
Severo Barros (esquerda) e Jürgen Döbereiner. Ambos foram patologistas veterinários excepcionais e grandes amigos. Graduaram-se na mesma turma de 1954 na Faculdade de Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

O que foi destacado acima é um resumo da trajetória profissional de Severo Sales de Barros, mas não revela suas inúmeras conquistas e, principalmente, o fator humano. Estes não devem ser esquecidos.

Mais importante ainda, Severo estabeleceu as base para o diagnóstico veterinário e o uso da necropsia para diagnosticar doenças de animais de produção no RS (Fig.5). Esta abordagem permitiu desvendar a causa de diversos distúrbios. Vários estudantes, muitos dos quais se tornaram patologistas distintos hoje por mérito próprio, foram treinados nesse formato. Antes disso, os laboratórios de patologia e institutos de pesquisa do RS abordavam a diagnose como estritamente restrita ao laboratório, examinando tão somente amostras de tecido.

Fig.5.
O deputado estadual, Adão Villaverde entrega ao Prof. Severo Sales de Barros o prêmio “O Futuro da Terra”, edição 2001, em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro no diagnóstico de doenças de animais domésticos.

Outro legado de Severo aos seus estudantes é a noção de que se atinge a excelência profissional através de trabalho árduo e do constante acompanhamento da literatura de sua área de especialidade; é simples assim, e não há atalhos.

Severo se envolveu em diversos eventos históricos importantes no ensino e pesquisa da medicina veterinária - não somente na patologia. Foi essencial na introdução da microscopia eletrônica para aprimorar a pesquisa veterinária no RS. Também foi um participante chave na reunião de esforços para dominar a técnica de transferência de embriões no Laboratório de Reprodução e Fisiopatologia na UFSM.

Prof. Severo também estudou longamente as alterações no endométrio de éguas estabelecendo parâmetros para biópsias endometriais. Essa técnica ainda é valiosa para clínicos de equinos e, recentemente, foi publicado um atlas detalhando as lesões (Barros & Masuda 2009Barros S.S. & Masuda E.K. 2009. Biopsia Endometrial na Égua: diagnóstico e prognóstico. 1ª ed. Santa Maria, [s.n.]. 312p.).

Um dos muitos interesses de pesquisa de Severo envolveu a intoxicação por plantas em gado. Ele diagnosticou, pela primeira vez, em 1968, uma forma de calcinose induzida por planta em ovinos no RS. Chamou a doença de “calcinose enzoótica em ovinos” (Barros et al. 1970Barros S.S., Pohlenz J. & Santiago C. 1970. Zur Kalzinose beim Schaf. Dtsch. Tierärztl. Wschr. 77:321-356.), e dedicou grande parte de sua prolífica carreira a estudar esta doença e outras formas de mineralização sistêmica de tecidos moles. Isso evoluiu e ele continuou a estudar os intrincados mecanismos patogênicos da mineralização dos tecidos moles, fazendo importantes contribuições originais ao assunto, muitas publicadas em revistas prestigiosas como Veterinary Pathology, Journal of Comparative Pathology, e Pesquisa Veterinária Brasileira.

Este foi o estudo de uma vida. No ano de sua morte, Severo também publicou um trabalho no assunto (Machado et al. 2022Machado M., Castro M.B., Wilson T.M., Gonçalves A.A.B., Portiansky E.L., Riet-Correa F. & Barros S.S. 2022. Poisoning by Nierembergia veitchii: effects on vascular smooth muscle cells in the pathogeny of enzootic calcinosis. Vet. Pathol. 59(5):814-823. <https://doi.org/10.1177/03009858221098430> <PMid:35587717>
https://doi.org/10.1177/0300985822109843...
).

Dentre seus mais amados prazeres estavam os bons vinhos, os bons livros e viagens, muitas viagens (Fig. 6)!

Fig.6.
Professor Severo em 2007, em uma de suas muitas viagens. Ao fundo está a geleira Perito Moreno em El Calafate na Patagônia Argentina. Viajar foi um dos grandes prazeres do Prof. Severo e, acompanhado de sua esposa Elenora, visitou praticamente todos os cantos do mundo.

Hoje estamos de luto por Severo Sales de Barros, nosso amigo, professor e mentor.

Requiescat in pace, velho amigo.

References/Referências

  • Barros S.S. & Masuda E.K. 2009. Biopsia Endometrial na Égua: diagnóstico e prognóstico. 1ª ed. Santa Maria, [s.n.]. 312p.
  • Barros S.S., Pohlenz J. & Santiago C. 1970. Zur Kalzinose beim Schaf Dtsch. Tierärztl. Wschr. 77:321-356.
  • Machado M., Castro M.B., Wilson T.M., Gonçalves A.A.B., Portiansky E.L., Riet-Correa F. & Barros S.S. 2022. Poisoning by Nierembergia veitchii: effects on vascular smooth muscle cells in the pathogeny of enzootic calcinosis. Vet. Pathol 59(5):814-823. <https://doi.org/10.1177/03009858221098430> <PMid:35587717>
    » https://doi.org/10.1177/03009858221098430

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2022
  • Aceito
    10 Set 2022
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