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Respondências: análises (online) em confinamento

Responses: (online) analysis during social distancing

Correspondencias: análisis (en línea) durante el confinamiento

Réponses : analyse (en ligne) pendant la distanciation sociale

Resumo

Este artigo compreende oito cartas trocadas entre as autoras ao longo do mês de abril de 2020, tendo por eixo norteador o tema das análises online. Em uma retomada metodológica da produção teórica pela via das correspondências, amplamente utilizada entre Freud e seus interlocutores, propõe uma tessitura em ato de conceitos-acontecimentos em torno do atendimento mediado pelas tecnologias da informação e da comunicação, bem como dos deslocamentos no estatuto da escuta clínica, que reverberam especialmente sobre o inconsciente, a presença do analista e a questão do registro. A escrita epistolar possibilitou uma elaboração afetuosa e desinstitucionalizada, rompendo com a lógica academicista, sem perder o rigor conceitual do campo freudo-lacaniano na interlocução com outros autores. As discussões apresentadas refletem sobre quais vidas são passíveis de escuta nas análises, online ou não, em variados desdobramentos que circunscrevem uma clínica do contemporâneo.

Palavras-chave:
análise online; clínica; inconsciente; psicanálise; tecnologias da informação e da comunicação

Abstract

This essay consists of eight letters exchanged between the authors over the course of April 2020, on the topic of online analysis. Resuming the methodological approach of theoretical production via correspondence, widely used by Freud and his interlocutors, the article weaves concepts-events regarding psychological care mediated by information and communication technologies, as well as shifts in the status of clinical listening, which reverberate especially on the unconscious, the presence of the analyst and issue of recording. The epistolary writing enabled an affectionate and deinstitutionalized elaboration, breaking with academic logic, without losing the conceptual rigor of the Freudian-Lacanian field in dialogue with other authors. The discussions presented reflect on which lives can be heard in analysis, online or otherwise, in varying unfoldings that circumscribe a contemporary clinic.

Keywords:
online analysis; clinic; unconscious; psychoanalysis; information and communication technologies

Resumen

Este artículo consta de ocho cartas intercambiadas entre las autoras durante el mes de abril de 2020, teniendo como eje central el tema de los análisis en línea. En una retomada metodológica de la producción teórica a través de las correspondencias, ampliamente utilizadas entre Freud y sus interlocutores, se propone una costura en acto de conceptos acontecimientos sobre la atención mediada por las tecnologías de la información y la comunicación, así como de los desplazamientos en el estatuto de la escucha clínica, que repercute especialmente en el inconsciente, la presencia del analista y la cuestión del registro. La escritura epistolar posibilitó una elaboración afectuosa y no institucional, rompiendo con la lógica academicista, sin perder el rigor conceptual con el campo freudo-lacaniano en la interlocución con otros autores. Las discusiones que se presentan aquí reflexionan sobre cuáles vidas son susceptibles de escucha en los análisis, en línea o no, en diversos desplazamientos en materia de una clínica de la contemporaneidad.

Palabras clave:
análisis en línea; clínica; inconsciente; psicoanálisis; tecnologías de la información y de comunicación

Résumé

Cet essai comprend huit lettres échangées entre les autrices au cours du mois d’avril 2020, sur le thème de l’analyse en ligne. Reprenant l’approche méthodologique de la production théorique par correspondance, largement utilisée par Freud et ses interlocuteurs, l’article tisse des concepts-événements concernant le soin psychologique médiatisé par les technologies de l’information et de la communication, ainsi que des déplacements du statut de l’écoute clinique, qui se répercutent notamment sur l’inconscient, la présence de l’analyste et la question de l’enregistrement. L’écriture épistolaire a permis une élaboration affectueuse et désinstitutionnalisée, en rupture avec la logique académique, sans perdre la rigueur conceptuelle du champ freudo-lacanien en dialogue avec d’autres auteurs. Les discussions présentées réfléchissent sur les vies qui peuvent être entendues en analyse, en ligne ou non, dans des déroulements divers qui circonscrivent une clinique du contemporain.

Mots-clés :
analyse en ligne; clinique; inconscient; psychanalyse; technologies de l’information et de la communication

As implicações atuais da pandemia da covid-19 podem ser lidas sob a perspectiva de ruptura nos modos de vida até então existentes. Com uma incisão precisa na malha do tempo, o vírus inscreveu sua marca - um antes e um depois -, que repercutiu diretamente no eixo da práxis de psicanalistas. A proposta deste artigo foi tecida no justo ponto de “corte” epistêmico (e epidêmico), o qual nos convocou a construir um inusitado espaço de elaboração teórica sobre o tema das análises online. Por meio de e-mails, as duas autoras se lançaram no desafio de avançar as reflexões sobre o tema em torno de perguntas formuladas passo a passo, cujas respostas foram reordenadas posteriormente, até a formatação final deste artigo.

A investigação de um problema teórico pela via da correspondência não é novidade metodológica na história do movimento psicanalítico. Porge (1998Porge, E. (1998). Freud e Flies: Mito e quimera da autoanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), por exemplo, ressalta o quanto as cartas de Freud a Flies contribuíram para a criação da própria psicanálise: “participamos, lendo as cartas de Freud, de sua efervescência criadora, com suas incertezas, suas antecipações, seus recuos e seus projetos” (p. 17). Mais adiante na cronologia, as cartas trocadas por Jung e Ferenczi com Freud adquiriram um papel fundamental à atualização dos problemas transferenciais, em uma zona de endereçamento simbólico que tornou possível avançar no difícil manejo clínico da transferência: “somos difamados e causticados pelo amor com que operamos”, confidencia Freud a Jung, em 1909, alguns anos antes do surgimento dos artigos sobre a técnica (Freud & Ferenczi, 1994Freud, S., & Ferenczi, S. (1994). Correspondências. Rio de Janeiro, RJ: Imago ., p. 49).

Tais cartas constituem uma espécie de arquivo histórico sub-reptício que se monta por detrás dos textos freudianos canônicos. E é justo por seus efeitos posteriores de ordenação da teoria que elas atravessaram o século, mantendo-se como importantes testemunhos de que ali houve um trabalho, em processo: trabalho de transferência de Freud a Flies, que Lacan (1967/2003)Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 248-264). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1967) e Mannoni (1973Mannoni, O. (1973). A análise original. In O. Mannoni, Chaves para o imaginário (pp. 117-134). Petrópolis, RJ: Vozes.) chamaram de análise originária, e também transferência de trabalho, ao modo das supervisões clínicas que Freud, Jung e Ferenczi realizavam entre si por cartas. Esses dois exemplos nos indicam o quanto aquilo que hoje se difunde sob a popular nomenclatura trabalho remoto já era realizado por Freud, há mais de cem anos, com seus amigos, supervisionandos e analisandos, todos geograficamente separados.

Não é no mesmo contexto ou sob as mesmas condições que reinvestimos na aposta metodológica freudiana das correspondências: de um século para cá, a superfície espacial de inscrição do texto se deslocou do papel para a tela, e o tempo das respondências tornou-se muito mais vertiginoso, da lentidão dos correios para a rapidez dos e-mails. Alterações irreversíveis no eixo do espaço e do tempo, agenciadas pelo avanço tecnológico, que Derrida (2001Derrida, J. (2001). Mal de arquivo: Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.) sabiamente apontou enquanto fator decisivo para a produção do texto teórico, chegando mesmo a afirmar o quanto “no passado, a psicanálise não teria sido o que foi se o e-mail tivesse existido” (p. 29).

No entanto, algo permanece, desde Freud, como um registro impossível de ser apagado: as correspondências nos remetem a uma modalidade de elaboração teórica que jamais dispensará o afeto, impossível de ser subjetivamente esvaziada. No cuidado da leitura, na delicadeza das respostas, as cartas (freudianas, nossas e de outros) conservam a dimensão corpórea da escrita, pulsional, viva, seja em letra cursiva ou nas formatações do Word. Em nosso caso, trata-se de uma presença corpórea que se atualiza em meio a laços de amizade e de confiança previamente existentes, favorecendo o desbloqueio dos caminhos da escrita, em um genuíno processo de endereçamento transferencial.

Foram oito cartas trocadas em abril de 2020, cujo pontapé inicial se deu por meio do convite, de uma para outra, para uma live intitulada “Por uma política freudiana da vida”. A proposta de falar psicanaliticamente da vida nos encaminhou em direção a uma pergunta: afinal, quais vidas deixamos de escutar nas análises online? Do Instagram para o e-mail, tal pergunta foi retomada, retorcida, conduzindo ambas a caminhos outros, distantes e próximos do originário.

A dimensão da torção torna-se um operador de muita importância no eixo epistolar, subvertendo os limites entre privado e público, entre o que é da ordem da intimidade e o que pode ser amplamente comunicado. Essas fronteiras são, mais do que nunca, passíveis de problematização, principalmente diante da recente explosão de híbridos territoriais que conjugam os ambientes domésticos e de trabalho, das aulas a distância ao teletrabalho. Paradoxalmente, é a situação de confinamento que nos convida a (re)situar os paradigmas do “dentro” e do “fora”, que tanto contribuíram para a concepção privatista de subjetividade, cara aos saberes psicológicos.

Nossas cartas passaram por um trabalho posterior de seleção, recorte e reescritura. De fato, perdas fazem parte da história de toda correspondência tornada pública: queimadas, destruídas, extraviadas, perdidas, as cartas que chegam ao leitor são os fragmentos arqueológicos editados de antigos registros. No entanto, registros virtuais não se rasgam, nem se pode queimá-los; as perdas, antes inscritas pela ação do tempo ou do acaso, agora demandam uma ação voluntária: excluir arquivos, ou deixar de salvá-los. Resistências ao apagamento resultam em um excesso de vídeos, lives, blogs e textos, dificultando o tempo de elaboração, o tratamento simbólico.

O que se segue, portanto, é fruto de um trabalho editorial de refinamento teórico dos registros deixados pelos e-mails, e incluem uma dimensão positiva da perda e do esquecimento, relançando sempre mais adiante, no futuro, o debate sobre as análises online.

Trocas iniciais: inquietações sobre uma escuta possível

Cara amiga,

Escrevo instigada pela conversa de hoje para falar sobre a inquietação em torno das condições de possibilidade do atendimento psicológico/psicanalítico mediado pelas tecnologias da informação e da comunicação (TICs). Comecei a discutir essa questão em 2010, quando defendi essa modalidade de atendimento como consulta transformada, visto que o deslocamento das interações tête-à-tête para as interações mediadas produz tensionamentos à episteme da consulta (Xavier, 2014Xavier, M. P. (2014). A consulta transformada: Experimentações de dispositivos interacionais “psi” na sociedade em midiatização (Tese de doutorado). Recuperado de https://bit.ly/3HBmVMo
https://bit.ly/3HBmVMo...
). Na época, essa modalidade de atendimento era regulamentada em termos experimentais pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que sabemos não abrigar o fazer analítico, mas, para fins de estudo, tomou a questão da consulta psi e as epistemes, lógicas e regularidades em circulação entre os espaços de formação e prática vinculados a profissionais de psicologia e psicanálise, por entender que a consulta em psicologia tem uma matriz na discussão freudiana que subverte o exame para a escuta.

De 2010 até hoje, assistimos a várias mudanças contextuais e a um amplo desenvolvimento das tecnologias, que passaram a habitar nossas vidas de forma tão mais intensa que muitas vezes lidamos com elas como organizativas do cotidiano, como no caso dos aplicativos com as mais diversas funcionalidades, que também passaram a se dedicar a “causas psicológicas”, e já são realidade os aplicativos de atendimento psicológico.

Em 2018, com a Resolução nº 11, de 11 de maio de 2018Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução nº 11, de 11 de maio de 2018. Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP nº 11/2012. Recuperado de https://bit.ly/3y1y5a9
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, o CFP regulamentou a atuação mediada pelas TICs, e houve grande ampliação no número de profissionais com cadastro no e-psi, ou seja, aptos a realizar atendimentos psicológicos mediados pelas tecnologias. Apesar dessa regulamentação, esse tipo de atendimento permaneceu alvo de inúmeras e persistentes críticas. Agora, em tempos de pandemia, em que o distanciamento social figura como principal medida de enfrentamento, essa prática tão criticada adquire centralidade.

No contexto de pandemia, as clínicas e consultórios de psicologia e psicanálise suspendem o atendimento, já que não foram incluídas na lista de serviços essenciais, definida pelo Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. (2020). Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Recuperado de https://bit.ly/3bdFt9E
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. Contudo, ao mesmo tempo que essas clínicas e consultórios fecham as portas, nos deparamos com duas questões principais: (1) as tensões, cobranças, medos e distanciamento social e diversos outros atravessamentos da pandemia que têm intensificado o sofrimento e o adoecimento psíquico; e (2) a ameaça à fonte de renda de profissionais em virtude do fechamento dos espaços de atendimento presencial. Ressurge então a consulta mediada como uma salvação diante dessas demandas principais. Em prol de um suposto compromisso prioritário com as vidas e a saúde mental, psicólogos e psicanalistas aderem ao atendimento mediado, ofertando amplamente consultas - aqui falamos em consultas para diferenciar a oferta de consulta da oferta de escuta.

Pouco tempo após o registro oficial dos primeiros casos de covid-19 no Brasil, o CFP disponibilizou a Resolução nº 4, de 26 de março de 2020Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº 4, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do covid-19. Recuperado de https://bit.ly/3b85DdL
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, que dispõe sobre o atendimento psicológico em tempos de covid-19. Imediatamente parece haver uma conciliação acrítica dos profissionais com a modalidade mediada de atendimento. Os analistas, tradicionalmente mais relutantes à adesão ao funcionamento mediado pelas TICs, mesmo com certo delay, também se lançam ao atendimento remoto sob a justificativa de que a escuta não pode cessar (no duplo sentido de uma economia da escuta).

Interrogamo-nos: quais as escutas possíveis nessa modalidade de atendimento? A pergunta já aponta encaminhamentos que, neste momento, não problematizam ainda a questão do acesso às tecnologias - condição sine qua non para essa modalidade de atendimento. O que nos dispomos a escutar? O que nos leva a transitar tão rapidamente do lugar da crítica ferrenha à mediação das tecnologias para a adesão a elas? O que esse deslocamento produz na relação analítica? Que processos de subjetivação habitam o outro polo da enunciação na relação analista-tecnologia-analisando?

Carta 2: tradições teórico-políticas

Querida amiga,

Agradeço a tua carta e a proposta de abrir essa via de interlocução, que me instiga e põe a trabalho. Começo retomando o que penso ser um ponto nevrálgico do debate: a reconciliação acrítica de alguns analistas com uma prática até então rechaçada por eles. À diferença da psicologia, o exercício da psicanálise não tem estatuto profissional em nosso país e, portanto, nada impediria a priori que esses eles exercessem a análise online antes do advento da pandemia. Nada, exceto a força da tradição, que adquire o estatuto de lei para muitos de nossos colegas.

O problema do peso da tradição freudo-lacaniana interroga a que - ou a quem - o exercício da nossa escuta se deixa referenciar. Na psicologia e demais profissões são os currículos que cumprem tal função de referência, e cabe ao Estado fornecer as diretrizes curriculares mínimas que servirão de base a toda e qualquer formação em psicologia. Já no caso da psicanálise, é possível que tenhamos radicalizado uma desconfiança que - arrisco dizer - todo professor de graduação em psicologia já experimentou: como recrutar-se a partir de um saber previamente ordenado, o universal da teoria, quando a prática sempre aponta para o que é da ordem do particular e do surpreendente?

A delicadeza da formação do analista está na extração de um ato profissional, não exatamente a partir de um saber curricularizado (embora ele tenha lá sua importância), mas de um não saber radical, o inconsciente. Será que isso significa uma recusa da teoria e, consequentemente, da transmissão ampla da experiência clínica? Não é o caso: os analistas não estão desobrigados de prestar contas de seus saberes/práticas ao Outro social, e é justo nesse ponto que se produz o apelo à tradição freudo-lacaniana. Retomo a ideia de tradição em uma concepção arendtiana do termo, referida ao estatuto do mundo comum, que “preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa permanência” (Arendt, 1991Arendt, H. (1991). A condição humana. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 65).

O campo freudo-lacaniano pode ser alçado à categoria de mundo comum, importante ponto de ancoragem teórico-conceitual, ainda mais diante do desmoronamento vertiginoso da realidade tal qual conhecemos, do universo pré-pandêmico. É a tradição que situa cada novo sujeito, ou cada novo analista, em um mundo simbólico anterior, humanizado, permitindo-nos encontrar um lugar entre aqueles que viveram antes de nós, e assim nos posicionar mais amplamente em uma ordem anterior, de filiação teórica, no caso.

No entanto, em nome da tradição, enormes resistências foram levantadas contra as análises online, introduzindo a questão de como aquilo que antes era apenas uma referência simbólica pode ganhar contornos tão obscuros, ressurgindo sobre os sujeitos com o peso de uma lei não dialetizável, com a força do supereu. Há um belo texto de Alain Didier-Weil (2006Didier-Weil, A. (2006). A questão da formação do analista para Lacan. In M. A. C. Jorge (Org), Lacan e a formação do analista (pp. 15-28). Rio de Janeiro, RJ: Contracapa.) sobre esse assunto. Na posição de analista, ele é tomado de surpresa diante do contraste entre dois estilos de fala, agenciadas por um mesmo sujeito: seu analisando, extremamente criativo no divã, ao falar em público numa instituição psicanalítica consagrada, parece perder toda potência inventiva, repetindo monotonamente os mesmos e velhos clichês freudo-lacanianos. O caso leva Didier-Weil (2006)Didier-Weil, A. (2006). A questão da formação do analista para Lacan. In M. A. C. Jorge (Org), Lacan e a formação do analista (pp. 15-28). Rio de Janeiro, RJ: Contracapa. à seguinte constatação: “não me parece exagero dizer que a teoria age como supereu sobre o analista, já que, sem que ele mesmo o saiba, reduz nele ao silêncio a presença do sujeito do inconsciente” (p. 23).

Seja pelo acossamento do sofrimento psíquico dos analisandos em quarentena, seja por razões de reserva de mercado, o fato é que o poder superegóico da teoria de uma hora para outra arrefeceu, e os analistas enfim descobriram as análises online, mesmo sem fazerem a menor ideia de qual doutrina poderia embasá-las. Em certa medida, vejo com muito gosto as possibilidades que se abrem. Mas, na contrapartida, me inquieto com uma espécie de refundação de uma nova ortodoxia, que passa pela prescrição da análise online para todo e qualquer sujeito, independentemente das variações singulares. É nesse sentido que insisto na questão: a que/quem serve a nossa prática?

Cultivo séria desconfiança ante a difusão indiscriminada das análises online, recusando-me a aproximar os (com)fins de uma análise aos da biopolítica, de manutenção e maximização da produtividade de analisandos e também de analistas. Talvez uma forma de fazer enfrentamento a essa cooptação generalizada da força vital pelos smartphones seja levar à sério o debate sobre o acesso na psicanálise: afinal, quais vidas (não) estão sendo escutadas nas análises online?

Sobre as mudanças na enunciação e na subjetivação diante de um aparelho eletrônico entre um analisando e um analista, levanto uma hipótese: a tela duplica os dois corpos em questão, produz duas imagens, a do analista e a do analisando, quando nas análises presenciais não temos acesso à nossa própria imagem no momento em que falamos. Será que esse ver-se vendo-se não incide também sobre a enunciação de cada sujeito? Teríamos boas condições de desenvolver essa pergunta recorrendo à tradição conceitual freudo-lacaniana…, mas com o custo de reinventá-la.

Carta 3: o inconsciente e as redes

Amiga querida,

Nosso diálogo desperta em mim um gosto particular há muito esquecido do prazer da escrita e dos enfrentamentos teóricos. Fazer isso pensando a clínica tem sido interessante também como tentativa de reaproximação dessa clínica da qual por um tempo abdiquei por considerá-la limitada em fazer aquilo a que se presta: escutar. E essa mesma questão das possibilidades da escuta - e, logo, da possibilidade mesmo de uma clínica que não opere como tecnologia de modelização/normalização de pessoas - agora retorna de forma curiosa e me atiça a pensar.

Concordamos que o ponto nevrálgico do debate, como você bem argumenta, é a reconciliação acrítica com uma prática há muito rechaçada. Diante isso, imediatamente lembro que os discursos psicológicos adentraram nas mídias brasileiras via psicanálise, em meados da década de 1960, quando as mulheres passaram a ocupar espaço nos meios de comunicação e “questões psicológicas” adentraram a pauta. Como expressão desse momento, cito a psicanalista feminista Carmen da Silva e suas colunas na revista Cláudia (Civitta, 1994Civitta, L. (Org.). (1994). O melhor de Carmen da Silva. Rio de Janeiro, RJ: Mundo das Letras.). Elas me vem à memória pois é essa mesma psicanálise que inaugura o flerte com a mídia que também trata de rechaçar a ocupação desse espaço com tanta veemência. Das mídias da década de 1960 para as tecnologias do século XXI.

Interessante que na psicanálise, como você aponta, isso se faz em detrimento de um olhar regulatório institucionalizado. Tão bem o modelo de subjetivação panóptico operou sobre os psicanalistas que esse olhar regulatório bem figura - me parece até que de forma mais eficiente - internalizado, habitando cada um entre eles que nomeia essa introjeção de força da tradição, em uma fidelidade ferrenha aos escritos do grande pai. Isso tem sua beleza. O problema é o que essa beleza oculta, apaga… são sábias e belas as palavras de Freud, de Lacan, mas práticas que permanecem amarradas a eles não me parecem tão sábias assim. Penso que Freud ficaria feliz de nos ver tomando suas construções como conceitos operativos, a caixa de ferramentas da qual nos fala Deleuze (Deleuze & Foucault, 2008Deleuze, G., & Foucault, M. (2008). Os intelectuais e o poder: Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 69-78). Rio de Janeiro, RJ: Graal.), para falar da vida… da vida real e de viés, para caetanear nossa conversa.

Falar da vida creio que seja falar do que nos acontece no momento contemporâneo. E chamo aqui Agamben (2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.) a se fazer presente, com sua metáfora da besta fera que, sangrando, volta-se sobre o próprio dorso para enxergar suas fraturas. Com isso, quero dizer que falar da vida é falar dos seus destinos, é falar do nosso tempo a partir de referentes que antes não conseguíamos enxergar e, consequentemente, operar, mas que agora gritam para se fazerem vistos. É assim que tenho percebido a relação da consulta/análise com a mediação tecnológica. Não é de hoje que essa modalidade de atendimento, mesmo com severas críticas e insistentes recusas, vem sendo praticada e, mais que isso, demandada. E negada. Foi preciso uma pandemia para deslocar o polo da recusa ferrenha para a aceitação acrítica. Essa rápida passagem de um polo a outro sem passar pelo caminho entre eles me parece favorecer a perpetuação de questões pendentes de enfrentamento, que passa pela biopolítica capilarizada no nosso fazer, nos inúmeros silenciamentos de determinadas vidas ou ainda no modelo de inconsciente no qual devemos caber para sermos passíveis de análise, eleitos como sujeitos do inconsciente, quase como uma medalha perseguida para ascender à existência.

Enfim, há certo ranço aí que eu atribuiria a uma decepção acumulada ao longo de 14 anos de atuação profissional que bem têm mostrado que a realidade das vidas vulneradas não consegue ser falada em análise. Será porque essas vidas, essas pessoas, não têm inconsciente? O inconsciente não foi feito para elas? Pois bem, a limitação é muito bem conferida às pessoas, quando me parece ser uma limitação da escuta, da clínica, que se atualiza na interrogação que você lança: afinal, quais vidas (não) estão sendo escutadas nas análises online?

Arrisco afirmar que são as mesmas vidas que não estão sendo escutadas nas análises presenciais também, porque temos limitações em escutá-las, não construímos aparato teórico-reflexivo que nos permita escutá-las quando permanecemos amarradas a Freud ou Lacan. E a questão aqui é: de que modos o deslocamento da clínica para o espaço da mediação tecnológica perpetua lógicas e regularidades prévias a esse deslocamento, afirmando uma suposta normalidade não mais existente? “Calma, está tudo bem, vamos ficar em casa, em distanciamento social, mas o nosso normal continua funcionando.” Não! Não está tudo bem. Faz-se urgente o reconhecimento de que não está tudo bem, de que esse normal não existe mais. E também nos cabe enxergar que esse normal não foi implodido pela pandemia. Ele já agonizava muito antes dela. E nossas práticas e apego à força da tradição pareciam salvá-lo.

Ando fugindo do ponto… E o bom da carta é isso, nos permite ser flâneur nos nossos próprios pensamentos. Vamos pensar a novidade que se abre apologeticamente com a pandemia, mas vamos lembrar que esse novo não é tão novo assim e, por isso, nos ocuparmos do caminho, do trajeto de construção até a afirmação do atendimento online como lugar possível de escuta.

Quanto à duplicação dos corpos na tela e a replicação da nossa imagem para nós mesmas, que sacada interessante! Somos nós narcisos lutando contra o embevecimento ante nossa própria imagem? Ou desejando permanecermos embevecidos diante do nosso reflexo? Por quais caminhos podemos pensar isso incidindo sobre a enunciação de cada sujeito, sobre os modos de subjetivação?

Carta 4: a retomada do inconsciente freudiano (e do nosso)

Amiga,

Contive o impulso de responder imediatamente à tua última cartinha. Queria lê-la, relê-la e deixá-la incidir sobre os meus pensamentos à noite, durante o sonho, quando as amarras da racionalidade se mostrassem menos sufocantes. Aprendi a confiar no trabalho do meu inconsciente, e dele me servir, nas análises que conduzo e nas teorias que produzo. Isso foi o que de melhor a minha análise me proporcionou.

Faço esse primeiro resgate da potência da experiência analítica para então dar tratamento a esse ranço, que compartilho com você e que, no meu ponto de vista, gira em torno do engessamento teórico, com efeitos à escuta clínica. Sob o olhar vigilante e paralisador do supereu, muitos se mantêm estritamente dentro dos limites do pensável, obedientes às amarras da racionalidade, o que os impede de operarem com seus próprios inconscientes com mais liberdade e criatividade. A história do movimento psicanalítico sempre esteve às voltas com essa mesma questão: como pode a teoria do inconsciente ser utilizada justamente para promover a recusa do inconsciente? Modo de resistência à psicanálise no campo da cultura que não pôde ser contabilizado por Freud (1914/1996)Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 13-111). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914), o qual apostava suas fichas na institucionalização, supostamente capaz de resguardar a lâmina cortante do nosso campo conceitual: “deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: ‘todas essas tolices nada tem a ver com a análise; isto não é psicanálise’” (p. 52). Já Lacan (1967/2003)Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 248-264). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1967) foi bem mais cético: ele apontava as relações entre a forte hierarquia institucional e uma produção teórica normativa, conservadora e fundamentalmente incapaz de se deslocar: “existe uma solidariedade entre a pane ou os desvios mostrados pela psicanálise e a hierarquia que nela impera” (p. 250), mas isso jamais impediu alguns analistas lacanianos de se apegarem ao conservadorismo.

Mesmo que os modos de recusa se reeditem ao longo da história, ainda assim há uma insistência do inconsciente em se dizer, ontem e hoje, fazendo frente a qualquer tentativa de calá-lo. “O inconsciente não opõe nenhuma resistência”, dizia Freud (1920/2006)Freud, S. (2006). Além do Princípio do prazer. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Luiz Alberto Hanns, Trad., Vol. 2, pp. 123-199) Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1920) há exatos cem anos, “ele apenas se esforça para livrar-se do peso que o oprime” (p. 145). O debate sobre as análises online evidencia essa insistência, atualizando o inconsciente nas ondas da rede, nas plataformas, nas telas, deixando como rastro um estranho modo de registro: algo do dizer que fica esquecido por detrás do dito. O inconsciente não é capturável, gravável, fotografável, não dá para lançá-lo no YouTube. Ele é muito mais da ordem do fogo fátuo, da faísca, que aparece e desaparece no instante de sua formulação.

Continuamos às voltas com um mesmo problema: se há um inconsciente operativo pela via das análises virtuais, estruturando-se na rede dos significantes cibernéticos, o que será feito do inconsciente real, não capturável pela web? O que dizem os que não podem prantear seus mortos? Como escutar o grito das mulheres violentadas, das crianças abusadas, das periferias historicamente mortificadas? Você tem certa razão ao apontar que esses já não eram escutados pelos analistas, e muito antes do advento das análises online. Por outro lado, venho acompanhando atentamente variadas iniciativas de colegas em modificar tal realidade, sensibilizados a toda e qualquer forma de sofrimento psíquico, que foi exatamente como a psicanálise surgiu em nosso mundo. Penso que precisamos positivar um pouco mais essas iniciativas, na mesma medida em que rechaçamos uma psicanálise normativa.

Tinha ainda muito mais a te dizer, mas tenho que parar por aqui: as compras do supermercado chegaram. Como diria Charcot, “teoria é bom, mas não impede que as coisas existam” (Freud, 1893/1996Freud, S. (1996). Charcot. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 21-37). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1893), p. 23).

Carta 5: que inconscientes são passíveis de escuta?

Amiga,

Como é revigorante esse diálogo nesses tempos de quarentena. Hoje retomei Deleuze e Guattari, e eles, por quem tenho nutrido certo distanciamento seguro, hoje me reencantaram. Pareciam falar dos dias atuais e da situação sociopolítica do nosso país.

Gosto de te ouvir falar do inconsciente em ato. Paro para pensar: será esse nosso movimento também, o inconsciente querendo se dizer? Em ato, certamente… pulsante, desejante e encontrando o gozo dos bons encontros em momento de distanciamento social.

Tuas palavras muito me instigam, como sempre, e nesse momento me fazem pensar em dois grupos de operadores da subjetividade: aqueles conservadores algemados ao campo conceitual e outros, como você bem pontua, que estão buscando escutar os que gritam suas existências vulneradas e sequer conseguem fazer eco no silêncio ensurdecedor que os circunda. Vamos sim positivar tais iniciativas, reconhecê-las e afirmá-las. Há outros possíveis… Por crermos nisso estamos nesse diálogo insistente - no melhor sentido do termo -, para inventarmos esses possíveis, mas sem nos deixarmos ludibriar pela falsa crença de que em nível individual rompemos as amarras epistemológicas ao mesmo tempo que permanecemos nas mesmas teorias. A permanência não comporta a diferença. Quando afirmamos uma política de escuta das vulnerabilidades, esgarçamos os laços que nos ancoram e assumimos o risco de fazermos nada. Deixa-me explicar. O nada ao qual me refiro não quer dizer a ausência de qualquer coisa, mas aquilo que carece de referência. Será isso a linha de fuga? Enfim, quero dizer que, quando nos perguntamos “será que todos os inconscientes podem se dizer?”, isso já esgarça o próprio inconsciente. Essa não é uma afirmação de sua inexistência ou legitimidade, de forma alguma. Não se trata de ser contra o inconsciente ou a psicanálise, de negá-los. Diz mais sobre não ser partidária deles. Pelo menos aprioristicamente. Recusá-los para talvez depois encontrá-los… ou não. E se não, nos perguntarmos por que não. Obviamente o inconsciente não é trans-histórico. Precisamos ser marcadas com ele - como aquela marca de batismo - para assim nos constituirmos sujeitas do inconsciente. Mas essa marca não chega a todos, pois é uma marca moderna-ocidental. Encontrei em meu trânsito profissional existências que, arrisco dizer, eram carentes de inconsciente. Serão essas pessoas também carentes de existência? Senti-me muitas vezes como que chamada a fundar um inconsciente nessas existências, batizá-las, para assim criar condições de escuta. Não funcionou. E o que fazer, minha amiga? Venho batendo cabeça com isso há anos em busca de alcançar o momento de dizer: sim, há escuta possível para uma pessoa sobrevivente à situação de rua, que cresceu nas ruas e assim vive há 29 anos. As mulheres violentadas, as crianças abusadas, as pessoas periféricas - algumas delas, obviamente - são subjetivadas nesse modelo de inconsciente. Por mais vulneradas que estejam, há uma referência de fundação subjetiva. E uma existência que se inaugura em situação de rua? Há inconsciente possível para lhe oferecermos?

Afirmo que não se trata de não positivar as inúmeras iniciativas que bem avançam na escuta das mazelas sociais, das violências, das vulnerabilidades. Mas quais os limites dessa escuta? Que movimentos/rompimentos são necessários para essa escuta não ser forjada a partir do ato de conferir um inconsciente colonial-capitalístico (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo, SP: n-1.) a essas pessoas? Leia-se, atuar numa instância de normatização subjetiva.

E a clínica diante disso? Tradicional ou mediada, me parece que a urgência maior é compreendermos as possibilidades de nossas escutas e os rompimentos, aqueles cortes na carne necessários para enfrentarmos os desafios da invenção de escutas possíveis.

Penso que fujo ao tema originário desta nossa troca, que é o atendimento mediado pelas TICs. Mas, amiga, não inventamos ainda nem o atendimento presencial voltado à escuta do inconsciente se esse inconsciente não é previamente modelado entre um leque até vasto de inconscientes possíveis. Não podemos simplesmente deslocar isso para a ambiência tecnológica, pois aí já temos inúmeros outros desafios ao concordarmos que dessa ambiência são excluídos muitos inconscientes… o rapaz que nasceu na rua tão cedo não vai habitar esse lugar nem se forjar enquanto existência numa tópica de exterioridade (Bruno, 2013Bruno, F. (2013). Máquinas de ver, modos de ser: Vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre, RS: Sulina.). Então a realidade é que mantemos como público aquela parcela que assumimos inicialmente como passíveis de se dizer - os inconscientes coloniais-capitalísticos. Mas nesse recorte, que já é uma seleção daqueles autorizados aos espaços de escuta, vamos ter mais afunilamentos no atendimento online. Eles podem até emitir palavras, sons, mas daí a serem escutados tem tão grande distância…

Carta 6: entraves (e destraves) da presença do analista

Amiga,

Foram dois dias difíceis esses em que estive ausente da nossa correspondência. Quis o destino que eu atravessasse o momento mais difícil da minha longa experiência de análise remotamente, se tivermos por crivo a distância geográfica. E, no entanto, experimento uma proximidade da minha analista, talvez mais que em sua presença física.

Divago em torno de um exemplo tão íntimo para dialogar contigo sobre a questão - lúcida e provocativa - surgida na última carta: sujeitos que não são subjetivados pelo inconsciente. Essa pergunta introduz uma acepção do inconsciente como uma hipótese, a ser ou não confirmada em cada experiência singular de análise. Vou te dar um exemplo: certa vez me chegou ao consultório uma moça, jovem, que creditava suas frequentes dores de cabeça a um diagnóstico médico recebido na infância. As dores não faziam enigma, eram descritas estritamente em termos médicos, dificultando o endereçamento de uma pergunta ao Outro transferencial. E como a análise não foi adiante, ouso dizer que se tratava de um caso de não confirmação da hipótese do inconsciente. Talvez ela tenha consultado um neurologista, sustentando a refutação da hipótese. Ou quem sabe outro analista tenha feito o inconsciente existir para ela, em uma nova análise, em outro momento da vida. Quem sabe?

Então, o analista faz parte do conceito do inconsciente, conforme indicou Lacan (1960/1998)Lacan, J. (1998). Posição do inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 843-864). Rio de Janeiro RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1960), e essa é uma ideia potente, que nos permite refletir sobre o acesso à experiência de análise para além dos limites restritos do consultório privado. Será que conseguimos fazer o inconsciente existir ao escutar aqueles que historicamente foram silenciados? Será que isso não poderia produzir transferências inéditas ao discurso analítico? Há tantas formas diferentes, variadas, de fazer um analista existir no mundo, atualizando a hipótese do inconsciente em sua escuta. Para tanto, será preciso um esforço de reinvenção do bom e velho inconsciente freudiano, em ato, insistentemente. Pois, para fazer parte do conceito do inconsciente, a cada vez, para cada sujeito, uma condição precisa ser satisfeita: que o conceito se desloque, inclusive no eixo histórico, como você bem acertadamente pontuou.

Voltando às análises online, tenho colhido muitos exemplos que têm me lançado em um grande trabalho de elaboração teórica. Um analista querido contou uma história interessante: ele usa a plataforma Hangouts com um único analisando, diferentemente de mim, que sempre uso o WhatsApp ou a chamada telefônica. O caso é que o Hangouts permite ao sujeito se ausentar de sua própria imagem, fazendo outras coisas no celular, por exemplo, enquanto escuta a voz do outro. Nesse momento, o aplicativo registra apenas uma foto padrão, escolhida pelo usuário. Pois não é que o tal jogo de presença/ausência da imagem entrou na cena transferencial? O analisando aprendeu a fazer uso de sua própria “desaparição”, em momentos decisivos, para retornar à cena quando lhe convinha. E o analista entrou na dança, retirando-se por vezes do vídeo, sem deixar de sustentar a escuta. Esse caso é interessante uma vez que a imagem parece ter sido usada como uma espécie de significante primordial, o qual marca a distinção basilar da presença e da ausência do outro. Exemplo de muito frescor clínico, que bem demonstra o quanto qualquer coisa, qualquer plataforma, pode servir de pretexto para fazer o inconsciente existir, atualizar-se, dizer-se em ato.

Agradeço a oportunidade de elaborar esses pequenos (e grandes) fragmentos clínicos, amiga, nossa conversa tem sido bastante produtiva (e pacificadora) para mim.

Carta 7: o jogo da presença-ausência e o deslocamento de registro para tornar a escuta possível

Amiga,

Estava ansiosa para te escrever e falar um pouco da minha experiência que hoje operou uma positivação no que venho pensando, elaborando… e coincidentemente bem dialoga com as questões que você levanta. Tivemos supervisão no grupo de profissionais de psicologia do projeto que estou coordenando como estratégia de enfrentamento à covid-19. Foi tão interessante! Faço triagens das pessoas inscritas e encaminho para atendimento. Daí hoje, dentre as questões pontuadas, apareceu o desafio de atender pessoas que não dispõem das tecnologias ou não as manejam bem. Pessoas humildes, moradores de favelas, uma senhora idosa, tendo acesso pela primeira vez a um atendimento psicológico, segundo ela, o primeiro momento em que foi escutada em toda sua vida. Ela não tem celular com câmera e mora em um pequeno espaço com outras pessoas, o que impossibilita a privacidade. Então ela propôs escrever mensagens de texto para a psicóloga e a psicóloga falar por áudio com ela. Olha que lindo. Se tomarmos como modelo nossas teorias de condições de escuta, estaríamos bem limitadas na possibilidade de realizar uma escuta clínica. Em meio a esse caos a pessoa inventa uma forma de se fazer escutada. E pela primeira vez na vida. Com todos os desafios, foi possível garantir escuta a uma pessoa cujas vivências sempre foram silenciadas. E sim, ela já teve contato prévio com profissionais de psicologia de serviços psicossociais, mas nunca conseguiu constituir um direcionamento de fala a um Outro. Essa modalidade em invenção de atendimento trazendo tensionamentos tão primários à escuta tradicional. Isso ficou martelando na minha cabeça. Gerando incômodo também. E deslocando minhas questões, porque um dos principais questionamentos/desafios que levantei no início do projeto foi o receio de um atendimento mediado por TICs ser excludente e classista. Isso não está descartado, mas outros possíveis vão tomando corpo, aliás, ganhando voz.

O relato do analista que você conta também é bastante interessante. Assim como o caso da senhorinha da supervisão bem mostra as invencionices, a potência criativa, os desvios no uso dos dispositivos; desvios na normatividade como forma possível de se dizer. Bem me parece inconsciente em ato, maquínico, produzindo agenciamentos, extensões do próprio corpo, das manifestações de linguagem - ou seriam extensões do inconsciente? Se o inconsciente se constitui na relação com o analista, como a mediação das tecnologias incide sobre/afeta essa produção de sujeitas do inconsciente?

Sim, há sempre modos possíveis de se dizer! Paro para pensar… também essas cartas, tão cheias de afetos, de confiança e de admiração, para mim figuram como invenção de modos de dizer. Contextualizo em contraponto a um silenciamento há muito presente na minha prática acadêmica, na escrita travada e forçosa. Agora recupero o prazer de escrever, de discutir conteúdo acadêmico, de movimentar as ideias. Essas cartas são um convite para me dizer, mas não de mim - se há possibilidade de distinção - e sim de minhas ideias, do meu trabalho. Recupero o fôlego e o prazer de dialogar em torno desse tipo de conteúdo. Sou grata a ti pela disponibilidade.

Carta 8: novos registros

Querida amiga,

Tua última carta me despertou uma espécie de urgência epistêmica, o forte desejo de investigar a problemática do registro, que já havia exposto brevemente numa de nossas correspondências. O exemplo que você traz, extremamente sensível do ponto de vista da oferta de escuta, também põe em cena um curioso processo de produção de enunciados, em uma báscula entre dois registros que não são de mesma ordem: a escrita e a voz. Achei muito interessante a invenção de um lugar transferencial de conjugação da escrita e da voz, e adoraria que você trouxesse mais elementos sobre a condução desse caso. Antes disso, coloco algumas perguntas: qual seria a diferença entre se presentificar em grafia e em som? Será que a senhorinha se lê depois de escrever à terapeuta? Será que a terapeuta se escuta após responder à senhorinha?

Formulei essas questões propositadamente em tempo futuro, segundo em relação ao momento em que a analisanda escreve e sua analista responde em áudio, porque tanto a escrita como a voz deixam rastros, produzem arquivos, que podem (ou não) ser apagados. Os Conselhos de Psicologia recomendam que se apaguem os registros das sessões realizadas na modalidade assincrônica, por razões de sigilo, o que não é suficiente para eliminar o rastro de que ali houve uma sessão. Aliás, não há metáfora mais pertinente para descrever o aparelho psíquico: esforçamo-nos em excluir um conteúdo qualquer, apagamos a mensagem no WhatsApp, e, no entanto, o traço do que foi apagado persiste: “essa mensagem foi apagada”. Será que as análises online estão produzindo uma nova modalidade de arquivo psíquico? Impressões visuais, auditivas, traços que não existiam antes da inserção das tecnologias no dispositivo analítico.

Com essas perguntas em mente, cheguei a um ensaio de Derrida chamado “Mal de Arquivo”, publicado em 2001Derrida, J. (2001). Mal de arquivo: Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.. Dentre outras coisas, Derrida nos lembra o quanto Freud concebeu o aparelho psíquico como uma máquina de escritura, e o modelo do bloco mágico é o que melhor exemplifica essa questão. Freud (1925/2007) Freud. S. (2007). Uma nota sobre o bloco mágico. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Luiz Alberto Hanns, Trad., Vol. 3, pp. 135-145) Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1925) retomou o bloco mágico - aquela espécie de lousa em que a gente escreve, apaga, mas ainda assim consegue ler os resquícios do apagado - para ilustrar de que maneira os traços são psiquicamente registrados, em uma dupla operação de inscrição e apagamento. Fiquei pensando nisso e no que você falava outro dia sobre o inconsciente maquínico. Talvez seja preciso avançar na ideia de que o aparelho psíquico não é uma interioridade, e que hoje os dispositivos eletrônicos cumprem uma importante função de memória, de arquivamento. Creio que sua supervisionanda fez surgir uma espécie de topologia do psíquico, tanto ao acolher o que se presentificava em escrita quanto ao se tornar presente pela voz.

Vou terminar esta correspondência com um trecho de Derrida (2001Derrida, J. (2001). Mal de arquivo: Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.) que toca diretamente nesse dispositivo epistolar que estamos inventando juntas. Ele diz: “No passado, a psicanálise não teria sido o que foi se o e-mail, por exemplo, tivesse existido. E no futuro, não será mais o que Freud e tantos psicanalistas anteciparam, desde que o e-mail se tornou possível” (p. 29).

Considerações finais

O dispositivo correspondência - cartas e-mail - funcionou como uma experimentação para nós que há muito estabelecemos diálogos informais sobre nossas práticas, de modo a viabilizar elaborações teóricas possíveis a partir de uma tessitura de conceitos-acontecimentos que ora seguem uma linearidade, ora se dissipam em divagações outras até novamente retornar. A escrita epistolar possibilitou uma elaboração leve, afetuosa e desinstitucionalizada que fratura a cobrança academicista e faz advir o processo continuado de elaboração reflexiva e construção conceitual, fazendo avançar determinados problemas como no compasso de uma dança.

A partir desse formato, questões contemporâneas das diversas faces da clínica e de suas modulações possíveis são retomadas, especialmente a partir do atravessamento da quarentena e do distanciamento social decorrentes da pandemia da covid-19 e da teoria tensionada/torcida na multiplicidade de existências que transbordam a clínica. Com isso, assumimos a tarefa de “pôr em análise” a clínica, a fim de produzir movimentos e reinvenções.

Apontamos para uma reinvenção da clínica e de seus modos de escuta como forma de constituir uma clínica efetivamente implicada nas existências, em suas singularidades, e comprometida com o questionamento contínuo sobre “quais vidas são passíveis de escuta nas análises, online ou não”.

Assim, nos mobilizamos na busca de enunciações possíveis para esse fazer que é a clínica do contemporâneo. Não é na quarentena que as experiências de vida são forjadas e enunciadas pela mediação dos smartphones e outras tecnologias. Tampouco a clínica em sua modalidade mediada por tecnologias é novidade. A novidade está no amplo interesse em fazer disso questão agora, menos por uma compreensão de suas transformações e mais por uma necessidade de afirmar a sobrevivência da própria clínica, obviamente em dispositivos outros.

A clínica de hoje certamente é diferente daquela feita pré-pandemia, assim como difere também da que será feita pós-pandemia. Processos e dispositivos são outros. Nem melhores nem piores, potentes a seus modos. Cremos que o desafio do momento seja nos apropriarmos dessas potências e pô-las a serviços das lacunas da clínica diante de determinadas vozes/existências.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2020
  • Revisado
    17 Ago 2021
  • Aceito
    09 Jun 2022
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