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A psicologia como ciência empírica1 1 Muitas das ideias aqui presentes nos foram apresentadas pela professora Eda Tassara (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) em contatos pessoais e comunicações orais compiladas pelo primeiro autor. Os eventuais erros são, evidentemente, de nossa responsabilidade.

A proposta para o presente texto partiu de comentários dirigidos à política editorial da revista Psicologia USP, segundo os quais era ambígua a formulação de que:

a revista publica artigos e ensaios, que têm na reflexão de seus autores e da literatura utilizada o seu elemento essencial; essa reflexão implica que não devem ser meramente descritivos, quer de conceitos ou dados empíricos. Deve haver interpretação que tenha como referências teorias filosóficas e científicas.

Em que consistem tais teorias? O que permite distinguir um relato de pesquisa empírica de um trabalho com ênfase teórico-conceitual? Este texto busca avançar algumas respostas. Em segundo plano, tem por objetivo defender o valor da pesquisa empírica em uma época de aparente “crise” da psicologia. Temos a esperança de, em outro momento, tratar diretamente da forma ensaio.

Não temos a pretensão de demonstrar aquilo que, de todo modo, é largamente sabido, mas de lembrarmos, justamente, isto que todos sabem, mas parece não comparecer, nem como crítica, nos debates travados no campo da psicologia a respeito das distinções entre empiria e teoria, algo que pode ser notado na (im)possibilidade de replicação das pesquisas, o que veremos a seguir.

A “crise da replicação”

Um ambicioso trabalho publicado na revista Science em 2015 avaliou a replicabilidade de cem pesquisas em psicologia, num esforço coletivo de 270 autores (Open Science Collaboration, 2015Open Science Collaboration. (2015). Estimating the reproducibility of psychological science. Science, 349(6251), aac4716-1-aac4716-8. doi: 10.1126/science.aac4716
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). As pesquisas originais haviam sido publicadas no ano de 2008 em três periódicos de grande impacto na área e foram desenvolvidas nos campos da psicologia cognitiva e da psicologia social. O protocolo para a replicação foi descrito em detalhes e procurou cercar-se dos cuidados possíveis. Os dados foram publicados em plataforma aberta, visando a aumentar a transparência e permitir novas interpretações.

Foram utilizados cinco diferentes indicadores para avaliar se os resultados das pesquisas originais concordavam com suas replicações. Esses resultados variaram ligeiramente, mas mostraram grande coerência: entre 36% e 47% das pesquisas concordaram com as originais, mesmo considerando-se critérios amplos para “concordância”, como os dados apontarem na mesma direção, mas com intensidades diferentes.

Outro resultado consistia em uma avaliação subjetiva dos pesquisadores - que foi utilizada especialmente para pesquisas cujo conjunto de testes era complexo demais para permitir uma interpretação quantitativa unívoca − a respeito do quanto a replicação concordava com a pesquisa original. Mesmo assim, essa avaliação foi aplicada em todas as pesquisas, resultando numa concordância muito alta com os testes quantitativos, ou seja, indicando baixa concordância entre pesquisas originais e replicações. Encontrou-se maior concordância para pesquisas no campo da psicologia cognitiva perante a psicologia social. Quanto mais fortes os efeitos encontrados na pesquisa original, maior a probabilidade de que a replicação obtivesse concordância. Essa é uma das hipóteses para as diferenças observadas entre as duas áreas, visto que as pesquisas originais em psicologia cognitiva haviam encontrado efeitos mais precisos que aquelas desenvolvidas em psicologia social. Também pode ser resultado “da maior frequência de manipulações inter-sujeitos mais poderosas e dos desenhos que envolvem repetição de medidas em psicologia cognitiva, como ocorre com o uso de amostras mais poderosas, conquanto relativamente pequenas, de participantes” (Open Science Collaboration, 2015Open Science Collaboration. (2015). Estimating the reproducibility of psychological science. Science, 349(6251), aac4716-1-aac4716-8. doi: 10.1126/science.aac4716
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, p. aac4716-5).

A reprodutibilidade é, de acordo com os autores, “um princípio central do progresso científico” (Open Science Collaboration, 2015, p. aac4716-1) − apesar de uma falha na replicação poder ser devida a inúmeros fatores − e evidencia claramente sua possibilidade empírica. Ela indica comumente, porém, “uma compreensão teórica incompleta” do fenômeno (Open Science Collaboration, 2015Open Science Collaboration. (2015). Estimating the reproducibility of psychological science. Science, 349(6251), aac4716-1-aac4716-8. doi: 10.1126/science.aac4716
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, p. aac4716-1), o que é pouco compreensível quando se menciona a replicação: uma teoria é replicável ou reencontrável? Os autores, no entanto, alertam que é muito fácil concluir que uma replicação bem-sucedida indica uma compreensão teórica correta dos resultados originais e que uma falha indica que o resultado original é um falso positivo, mas essa interpretação está equivocada: “a compreensão [understanding] é conquistada por meio de múltiplas e diversas investigações que promovem um apoio convergente para uma interpretação teórica e afastam explicações alternativas” (Open Science Collaboration, 2015Open Science Collaboration. (2015). Estimating the reproducibility of psychological science. Science, 349(6251), aac4716-1-aac4716-8. doi: 10.1126/science.aac4716
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, p. aac4716-6). Dessa forma, a teoria é refém da empiria; deve provir de resultados recorrentes, sendo constatativa e não abrigando a possibilidade de interpretações, tais como insiste Adorno (1931/1991Adorno, T. W. (1991). Actualidad de la filosofía. Barcelona: Paidós. (Trabalho original publicado em 1931), p. 89), para quem se a precisão vem dos dados obtidos, o pensamento permite combiná-los de diversas formas para dar-lhes um sentido que responde às perguntas formuladas:

Y así como las soluciones de enigmas toman formas poniendo los elementos singulares y dispersos de la cuestión en diferentes órdenes, hasta que cuajen en una figura de la que salta la solución mientras se esfuma la pregunta, la filosofía ha de disponer sus elementos, los que recibe de las ciencias, en constelaciones cambiantes o, por decirlo con una expresión menos astrológica y científicamente más actual, en diferentes ordenaciones tentativas, hasta que encajen en una figura legible como respuesta mientras la pregunta se esfuma.

A psicologia, nesse sentido, enfrenta dificuldades semelhantes às de outras áreas do conhecimento (Open Science Collaboration, 2015Open Science Collaboration. (2015). Estimating the reproducibility of psychological science. Science, 349(6251), aac4716-1-aac4716-8. doi: 10.1126/science.aac4716
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, p. aac4716-6). O artigo citado enfatiza, porém, que práticas culturais da comunicação científica podem ser responsáveis pela baixa concordância, aliando desenhos metodológicos fracos a um viés das publicações científicas que favorecem resultados positivos e surpreendentes (Open Science Collaboration, 2015Open Science Collaboration. (2015). Estimating the reproducibility of psychological science. Science, 349(6251), aac4716-1-aac4716-8. doi: 10.1126/science.aac4716
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, p. aac4716-6) - o que é de fundamental importância para os autores. Claro que a fragilidade aludida pode se referir à dificuldade de replicação, o que tornaria o resultado do estudo de replicações tautológico: “o que é frágil não seria replicável”. Mas a posição apresentada naquele artigo permite supor que estudos de replicação, que não estão sujeitos à pressão da publicação, encontrarão resultados mais fracos, o que foi, precisamente, encontrado nesse estudo, e ao que se deve acrescentar a confusão entre método e resultados, como se o controle sobre o primeiro fosse absoluto e como se resultados imprevistos não pudessem ocorrer justamente devido a métodos mais “frágeis”.

Por fim, o artigo argumenta que não se deve dar tanta importância às falhas na replicação: é esperado que uma área do conhecimento comece com resultados díspares que vão aos poucos sendo elaborados e tornam-se mais bem definidos. Se houvesse concordância plena entre os resultados das investigações, argumentam os autores, não haveria, afinal de contas, necessidade de pesquisas, ao que se deve acrescentar: se a necessidade de pesquisas é devida à possibilidade de replicação, ela depende por demais do acaso, e como forma de saber, está, de início, reconhecendo seu fracasso. A ciência, segundo os autores, deve ser vista como um esforço cumulativo, e qualquer interpretação que extraia deste artigo conclusões derrotistas sobre a psicologia, ou a ciência em geral, deve ser rechaçada (Open Science Collaboration, 2015Open Science Collaboration. (2015). Estimating the reproducibility of psychological science. Science, 349(6251), aac4716-1-aac4716-8. doi: 10.1126/science.aac4716
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, p. aac4716-7) - a própria pesquisa deveria ser vista como uma demonstração de como a psicologia deve operar a fim de cumprir sua promessa de criar conhecimento cada vez mais rigoroso sobre o comportamento humano, como se a ideia do rigor pudesse ser avaliada dentro de um contínuo que avaliasse se o método é mais ou menos rigoroso. Ora, a princípio, o método deve ser o mais rigoroso possível.

Apesar do cuidado dos autores, esses resultados foram recebidos com espanto pela grande mídia: “Na área da psicologia, 61% dos estudos científicos são frágeis” (Alves, 2015Alves, G. (2015, 28 de agosto). Na área da psicologia, 61% dos estudos científicos são frágeis. Folha de S. Paulo, São Paulo, Caderno Ciência. Recuperado de www1.folha.uol.com.br/ciencia/2015/08/1674716-na-area-da-psicologia-61-dos-estudos-cientificos-sao-frageis.shtml
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), afirmou a Folha de S. Paulo. O jornal The New York Times declarou, por sua vez, que “os últimos anos têm sido dolorosos para a credibilidade das ciências sociais” (Carey, 2015Carey, B. (2015, de August 27). Many psychology findings not as strong as claimed, study says. The New York Times, New York. Recuperado de http://www.nytimes.com/2015/08/28/science/many-social-science-findings-not-as-strong-as-claimed-study-says.html?_r=0
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) e entendeu que a pesquisa publicada na Science “confirmou os piores medos dos cientistas”. O artigo reacendeu na grande mídia o debate sobre a chamada “crise da replicação” (Yong, 2016Yong, E. (2016, março 4). Psychology’s replication crisis can’t be wished away. The Atlantic. , Washington. Recuperado de http://www.theatlantic.com/science/archive/2016/03/psychologys-replication-crisis-cant-be-wished-away/472272/
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) que parece agora estar centrada na psicologia (Gelman, 2016Gelman, A. (2016b, 3 de outubrob). Why the replication crisis seems worse in psychology. Recuperado de http://www.slate.com/articles/health_and_science/science/2016/10/why_the_replication_crisis_seems_worse_in_psychology.html
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a, 2016b; Keats, 2016Keats, J. (2016, 25 de agosto). Debating psychology’s replication crisis. DiscoverMagazine.com. Recuperado de http://discovermagazine.com/2016/sept/2-the-replication-crisis
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).

Nos meios acadêmicos, os debates trataram de questões técnicas relacionadas aos procedimentos estatísticos utilizados (Maxwell, Lau, & Howard, 2015Maxwell, S. E., Lau, M. Y., & Howard, G. S. (2015). Is psychology suffering from a replication crisis? What does “failure to replicate” really mean? American Psychologist, 70(6), 487-498. doi: 10.1037/a0039400
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) que produziram algumas críticas duras ao trabalho (Gilbert, King, Pettigrew, & Wilson, 2016Gilbert, D. T., King, G., Pettigrew, S., & Wilson, T. D. (2016). Comment on “Estimating the reproducibility of psychological science”. Science, 351(6277), 1037-1037. Recuperado de http://doi.org/10.1126/science.aad7243
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), prontamente respondidas (Anderson et al., 2016Anderson, C. J., Bahník, Š., Barnett-Cowan, M., Bosco, F. A., Chandler, J., Chartier, C. R., … Zuni, K. (2016). Response to comment on “Estimating the reproducibility of psychological science”. Science, 351(6277), 1037. Recuperado de http://science.sciencemag.org/content/351/6277/1037.3.abstract
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).

Barrett (2015Barrett, L. F. (2015, September 1). Psychology is not in crisis. The New York Times, New York. Recuperado de www.nytimes.com/2015/09/01/opinion/psychology-is-not-in-crisis.html
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), professora da Northeastern University, pronunciou-se publicamente destacando o papel do contexto na obtenção de dados em psicologia, criticando o fato de que “muitos cientistas ainda pressupõem que os fenômenos podem ser explicados por leis universais e que por isso o contexto não importa” e comparando os resultados em psicologia aos da física:

quando os físicos descobriram que partículas subatômicas não obedeciam às leis do movimento de Newton, eles não bradaram que essas leis haviam “falhado na replicação”. Ao invés disso, perceberam que as leis de Newton eram válidas apenas em certos contextos, em lugar de serem universais, e assim a ciência da mecânica quântica nasceu. Na psicologia, encontramos muitos fenômenos que falham na replicação se mudarmos o contexto. (Barrett, 2015Barrett, L. F. (2015, September 1). Psychology is not in crisis. The New York Times, New York. Recuperado de www.nytimes.com/2015/09/01/opinion/psychology-is-not-in-crisis.html
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).

De início, pode-se mencionar que o tido como universal é expresso por meio de diversos contextos, e é por meio deles que se pode vislumbrar aquele universal, assim, quer a Física, quer a Psicologia podem e devem buscar o universal por meio de diversos contextos; a história dos meios técnicos, não dissociada da história dos homens, permite cada vez mais precisão. A história humana é constituída de diferentes contextos que rompem e prosseguem o anterior, o que resulta na apreciação de Marx (1978Marx, K. (1978). O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In J. A. Giannotti (Org.), Manuscritos econômicos-filosóficos e outros textos escolhidos (2a ed., J. C. Bruni, trad.). São Paulo, SP: Abril Cultural.) que a história só se repete como farsa, do que se pode pensar que toda replicação indica uma paralisia do objeto estudado que poderia já não existir.

Em seguida, Barrett (2015Barrett, L. F. (2015, September 1). Psychology is not in crisis. The New York Times, New York. Recuperado de www.nytimes.com/2015/09/01/opinion/psychology-is-not-in-crisis.html
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) dirige uma crítica ao estudo publicado pela Science: “Ao contrário do que está implicado no Projeto de Reprodutibilidade, não há uma crise da replicação em psicologia. A ‘crise’ pode simplesmente ser o resultado de uma má compreensão do que é a ciência”. Tal como mencionado, temos que considerar como um problema importante - quiçá um erro grave - a opinião de que a física não pretende estabelecer leis universais ou a de que a diferença entre física newtoniana e mecânica quântica possa ser adequadamente abordada em termos de “contextos” distintos.

A pesquisa aqui discutida entrou em ressonância com inúmeros trabalhos e reflexões sobre os limites da psicologia como ciência. Smedslund, por exemplo, que vinha publicando artigos sobre o assunto desde os anos 1990, defendeu num artigo recente, com argumentos parcialmente inspirados na epistemologia genética de Piaget, que a “psicologia não pode ser uma ciência empírica” (Smedslund, 2016). Nesse trabalho, que se aproxima parcialmente de nosso ponto de vista, ele dirige severas críticas tanto ao “paradigma empírico da pesquisa em psicologia” quanto ao próprio “projeto da psicologia” (Smedslund, 2016, p. 185). Deve-se observar que a expressão ‘paradigma’ implica, sobretudo, a lógica científica e não necessariamente a configuração do objeto, e, dessa forma, a discussão se distancia da empiria duplamente: por julgar que a teoria não é empírica e por não estabelecer a relação necessária entre ambas: a teoria, assim como todo pensamento, surge de necessidades empíricas. Sua tese fundamental, de que, parafraseando Piaget, “não se pode acomodar ao que não se assimilou” (Smedslund, 2016, p. 185) merece aqui atenção, indicando uma primazia das teorias explicativas sobre as observações empíricas, ou seja, indicando que um mero acúmulo de observações não constitui uma teoria. Seus principais argumentos contra a psicologia como ciência empírica são fundamentados nos seguintes elementos:

  1. A irreversibilidade dos processos psicológicos: ou seja, uma vez alterados pela experiência, esses processos jamais retornam inteiramente ao estado anterior - isso indica que não é possível criar leis gerais explicativas, uma vez que tais processos se alteram com o tempo, ou, em outras palavras, apresentam caráter histórico. Se a história, contudo, é síntese de continuidades e rupturas (Adorno, 1966/2009Adorno, T. W. (2009). Dialética negativa (M. A. Casanova, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1966)), aqui a continuidade é negada, isto é, o passado permanece no presente.

  2. A infinidade de contextos possíveis para cada processo psicológico: se levarmos em conta o primeiro elemento, podemos defender que é impossível conceber de antemão o sentido que cada ação (ou comportamento) pode apresentar para um indivíduo em dado momento. A ação de levantar um braço e estender o dedo, por exemplo, pode ser descrita, fora do âmbito psicológico, com um número finito de alternativas: fisicamente, geometricamente, fisiológica ou neurologicamente, entre outras. Mas, psicologicamente, as possibilidades são infinitas, podendo indicar proibição, atenção ou muitos outros sentidos. A consequência é a de que a linguagem científica em psicologia deveria ser rica o suficiente para descrever todos os possivelmente infinitos cenários existentes (se são infinitos, não podem ser todos descritos) e, por consequência, a incerteza nas explicações psicológicas é de nível mais alto que nas ciências exatas (mas como o acaso se apresenta em todas ciências, cabe pensar se o termo “exatas” é preciso). Uma consequência disso está nas dificuldades relativas à elaboração de teorias:

Uma teoria científica só pode incluir um pequeno número de variáveis e, assim, teorizar força-nos a excluir muito do que influencia cada pessoa individualmente. Portanto, as descrições teóricas em psicologia podem, na melhor das hipóteses, levar apenas a previsões probabilísticas e têm utilidade muito limitada no trabalho prático. (Smedslund, 2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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, p. 189).

Nesse caso, parece que se confunde estudo científico, que pode ter poucas variáveis, com teoria científica, que deve abrigar diversos estudos, e, nesse sentido, muitas variáveis.

  1. O caráter pseudoempírico de muitos trabalhos em psicologia: muitos achados em psicologia são falsamente atribuídos à pesquisa empírica. Se observamos que uma pessoa se assustou e investigamos o que produziu o susto, temos que supor que algo inesperado foi por ela observado. Isso é logicamente necessário. Se não encontrarmos nada de inesperado, temos que concluir que ela, de fato, não se assustou. Não faz sentido surpreender-se com nada. Os achados de uma investigação como essa poderiam ser falsamente atribuídos à empiria quando, em realidade, são logicamente necessários − e isso pode ser conhecido sem o acesso a dados empíricos. Este, segundo o autor, é um problema muito importante em psicologia, levando este campo do conhecimento a raramente formular hipóteses que não façam sentido. O autor então formula o seguinte princípio: “tendo em vista o que é dado como certo, hipóteses que fazem sentido são verdadeiras e hipóteses que não fazem sentido são falsas” (Smedslund, 2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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    , p. 190).

Dado que os exemplos não são meramente exemplares, a pessoa em questão pode ter se assustado com algo que não foi detectado pela observação.

  1. A “interatividade” social: muitas pesquisas em psicologia baseiam-se em respostas dadas por indivíduos desconhecidos pelo pesquisador por meio de instrumentos que geram resultados a partir de medidas estatísticas centrais e de desvios relativos a grupos sociais, mas o interesse central da psicologia está no indivíduo e “não se pode fazer inferências válidas sobre indivíduos a partir de médias” (Smedslund, 2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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    , p. 192). Além disso, respostas únicas ignoram um fato essencial, que é o de que “as partes mais importantes da vida humana são as interações com outras pessoas e o que ocorre nessas interações” (Smedslund, 2016, p. 192). Na vida cotidiana, nossas primeiras respostas são moduladas pelas reações de outras pessoas e podem alterar-se posteriormente. O uso de médias ignora este fato. Muita informação sobre quem somos só é compartilhada com aqueles em quem confiamos, e o psicólogo teria que ser alguém de confiança para ter acesso a tais informações (Smedslund, 2016, p. 192). Isso pode ser alcançado por meio de pesquisas qualitativas que envolvam longas entrevistas, mas tais procedimentos “distanciam-se do paradigma dominante pois os critérios de generalidade e objetividade são abandonados” (Smedslund, 2016, p. 192). É especialmente difícil estudar o comportamento individual de inimigos e oponentes em interação com outros, pois eles resistem a ser compreendidos. Uma alternativa seria os psicólogos estudarem amigos e aliados, mas, nesse caso, o psicólogo certamente influencia o que é observado e encontra-se imerso na singularidade da relação (Smedslund, 2016, p. 192): “só é possível conhecer muitos processos psicológicos importantes se estivermos pessoalmente engajados e se estivermos focados no concreto e no único”. Na vida cotidiana, em interações sociais reais, a previsibilidade do comportamento individual e a confiança são obtidas por meio de acordos, ou seja, por meio de instâncias ativas. Isso entra em forte contraste com as instâncias do conhecimento científico, que buscam tal previsibilidade mediante respostas médias de pessoas desconhecidas, as quais geram previsões que raramente excedem o acaso e, por isso, são inúteis na vida social. Deve-se ponderar, no entanto, que um estudo como o de Durkheim (1897/2011Durkheim, É. (2011). O suicídio: estudo de sociologia (2a ed., M. Stahel, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1897)) sobre o suicídio ou o de Adorno, Frenkel-Brunswik e Levinson (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., & Levinson, D. J. (1950). The authoritarian personality (part 1). Recuperado de http://www.amazon.com/dp/B001NIQMIC
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    ) sobre a personalidade autoritária podem constatar como os indivíduos podem ter ações a tal ponto tipificadas que dependem menos de decisão individual ou de interações sociais do que de determinações sociais, e, dessa forma, falsa, no sentido de falsa consciência, atribuível, à ideologia, seria a crença de que as pessoas, em uma sociedade como a nossa, seriam, predominantemente, capazes de ser donas de seu próprio destino, isso é, ter ações não previsíveis.

É interessante notarmos, pela semelhança com nosso argumento, que Smedslund dirige suas críticas ao “paradigma empírico dominante”, o qual se caracteriza por “teorizações a respeito de pesquisas empíricas de [resultados obtidos a partir de] médias [de respostas] de pessoas desconhecidas” (Smedslund, 2016, p. 186), defendendo, ao contrário, que a “psicologia parte de - e consiste de - reflexões e análises sobre pessoas em termos da linguagem ordinária” (p. 186) ou cotidiana (ou natural). Tal linguagem seria a única capaz de abarcar a infinidade de contextos psicológicos possíveis. Em consequência, a tarefa da psicologia está limitada “à explicação e à análise do que é implicitamente familiar” (Smedslund, 2016, p. 186).

Não é possível chegarmos, por meio do “paradigma” empírico, à identificação de “princípios válidos eternamente”, pois as estabilidades observadas em nível individual são apenas temporárias e, por isso, não se pode entender a pesquisa empírica em psicologia como criadora de “uma disciplina científica cumulativa sobre os indivíduos” (Smedslund, 2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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, p. 187). O autor argumenta, por fim, que as descobertas feitas pela psicologia a partir desse paradigma são inúteis para a prática psicológica, que exige uma compreensão profunda do comportamento individual:

Tentei mostrar aqui que, como vejo, o paradigma de pesquisa empírico dominante atualmente não pode ser bem-sucedido por causa das limitações impostas pela natureza dos processos psicológicos. Portanto, ele não pode fornecer a ‘base de evidências’ necessária para a prática psicológica. (Smedslund, 2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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, p. 194).

Claro que se aceitarmos a interpretação da psicanálise sobre a determinação do que é considerado irracional sobre os próprios atos racionais, a ideia de indivíduo e de sua variabilidade é posta em questão; mais ainda, caso se considere como Freud que, em geral, toda psicologia é psicologia social.

Devemos fazer aqui algumas críticas já de início: o uso do termo “paradigma” encontra-se muito distante daquele proposto por Kuhn (2013Kuhn, T. S. (2013). La estructura de las revoluciones científicas (4a ed., C. Solís, trad.). Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica.), e deve ser dele distinguido a fim de evitar-se confusões. Pensamos, ao contrário, que este termo, justamente, não se aplica à psicologia: Smedslund (2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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) usa “empírico” quando talvez devesse ter usado “empirista” - o contato com a empiria, ou a experiência, é um dos pressupostos de toda ciência moderna, mas nem toda ela se baseia na ideia de que as teorias provêm diretamente da empiria; sua reflexão está bastante voltada para a prática psicológica que, como ele reconhece, relaciona-se com a pesquisa psicológica da mesma forma que a prática médica relaciona-se com a pesquisa médica - a diferença é o grau de sucesso explicativo da pesquisa em medicina, impossível de ser obtido pela psicologia (Smedslund, 2016, p. 194). Sua concepção da relação entre história e psicologia se baseia no caráter transformador das experiências individuais e não considera os processos históricos coletivos; ele suspeita de críticas à psicologia que não questionem o próprio “projeto da psicologia” (Smedslund, 2016, p. 185), mas não está claro se ele identifica esse projeto com aquele da “psicologia empírica” (ou empirista). Portanto, não é possível saber exatamente o que significa a afirmação do fracasso da psicologia “como ciência empírica”, tendo em vista que mesmo o encontro pessoal do psicólogo com um paciente envolve contato com a experiência social e, nesse sentido, é “empírico”.

O artigo da Science, ademais, despertou novamente o interesse por trabalhos como o de Ioannidis (2005Ioannidis, J. P. A. (2005). Why Most published research findings are false. PLoS Medicine, 2(8), e124. doi: 10.1371/journal.pmed.0020124
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) que havia argumentado, a partir da lógica bayesiana, pela falsidade da maior parte dos resultados de pesquisa publicados em periódicos científicos (inclusive na área médica). Stroebe (2016Stroebe, W. (2016). Are most published social psychological findings false? Journal of Experimental Social Psychology, 66, 134-144. doi:10.1016/j.jesp.2015.09.017
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) avalia que o trabalho de Ioannidis (2005) produziu um enorme impacto (1.619 citações até setembro de 2015) e é apropriado por psicólogos, especialmente sociais, quando, preocupados com a reprodutibilidade de suas descobertas, defendem-se dizendo que “estamos no meio de uma crise da replicabilidade” (Stroeb, 2016, p. 134). Stroebe (2016) argumenta que um erro fundamental no argumento de Ioannidis está em supor que se os dados de uma pesquisa original estiverem corretos, eles deverão ser replicados nas pesquisas futuras - um problema já apontado pelo estudo do Open Science Collaboration (2015) - e defendendo que esse tipo de julgamento só pode ser feito a partir do acúmulo das pesquisas; cabe ressaltar que já foram indicadas críticas, neste texto, a ambas posições.

O artigo de Stroebe (2016Stroebe, W. (2016). Are most published social psychological findings false? Journal of Experimental Social Psychology, 66, 134-144. doi:10.1016/j.jesp.2015.09.017
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) ataca ainda dois problemas importantes: a importância da teoria e o caráter histórico da ciência (nesse caso, da psicologia social). Quanto ao primeiro, o autor parte da premissa de que o teste empírico de hipóteses derivadas de teorias provê informações sobre a validade da teoria, ao mesmo tempo que hipóteses derivadas de teorias bem corroboradas em um campo têm maior possibilidade de ser, elas próprias, corroboradas. Isso impõe um problema aos pesquisadores. Por um lado, é melhor escolher hipóteses derivadas de teorias bem testadas que escolher hipóteses derivadas de “intuições” (hunchs) ad hoc. Por outro, corre-se o risco de apenas produzir conhecimento “já sabido” ou trivial. Stroebe (2016) defende, porém, que a trivialidade do conhecimento produzido por tais testes não é um resultado do procedimento, mas da trivialidade da teoria testada. Teorias ousadas que façam predições contraintuitivas promoverão, caso suas hipóteses derivadas sejam comprovadas, conhecimento ousado e contraintuitivo. Assim, o receio de produzir conhecimento trivial não passa de uma confusão. Sua conclusão merece ser transcrita:

ao conduzir testes cada vez mais rigorosos de uma teoria, é sempre possível que surjam resultados empíricos inconsistentes com a teoria. Se outros pressupostos fundamentais de uma teoria tiverem sido empiricamente apoiados, isso levará inicialmente a uma modificação da teoria para acomodar as conclusões inconsistentes. No entanto, o não-apoio estendido deve persuadir os pesquisadores a abandonar sua teoria e tentar desenvolver uma nova teoria que seja consistente com as evidências existentes, mas também permita gerar novas previsões (Popper, 1959). Uma vez que este é o único caminho pelo qual uma ciência pode se desenvolver, estudos únicos baseados em teorias ad hoc contribuem pouco para o nosso conhecimento. (Stroebe, 2016Stroebe, W. (2016). Are most published social psychological findings false? Journal of Experimental Social Psychology, 66, 134-144. doi:10.1016/j.jesp.2015.09.017
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, p. 137)

Essa ponderação, talvez, só seja pensável para uma concepção de teoria que compreende o objeto de seu estudo como a-histórico, somente repetitivo − se houver a compreensão de que esse objeto é histórico, a própria teoria não pode ser posta a prova, pois ela é testemunha de uma época. Dados da história podem ser revistos, modificando a teoria, mas não dados empíricos contextualizados no presente. Para o que Horkheimer (1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural.) nomeou de “teoria tradicional”, a replicação é cabível; para o nomeado como “teoria crítica”, não. Quando os comportamentos humanos se repetem é porque sua determinação não se alterou, o que já deveria ser posto como crítica a essa não mudança, no quanto implica obstáculo à liberdade possível.

Quanto ao segundo ponto destacado, Stroebe (2016Stroebe, W. (2016). Are most published social psychological findings false? Journal of Experimental Social Psychology, 66, 134-144. doi:10.1016/j.jesp.2015.09.017
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) cita o clássico trabalho de Gergen (1973Gergen, K. J. (1973). Social psychology as history. Journal of Personality and Social Psychology, 26(2), 309-320. doi: 10.1037/h0034436
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), publicado quando outra “crise” abateu-se sobre a psicologia social na década de 1970, motivada também em parte por problemas de replicação. Naquele momento, porém, um intenso debate surgiu sobre o próprio status epistemológico da psicologia social. Gergen (1973) defendeu que a aparente crise era causada pelo fato de a psicologia social constituir-se como uma forma de investigação histórica - os campos fenomênicos menos suscetíveis à transformação histórica, como os fenômenos de percepção, poderiam ser mais facilmente replicados seguindo o modelo das ciências naturais, ao passo que fenômenos que sofrem profundas modificações históricas, como aqueles relacionados às formas de interação humana, dificilmente teriam as pesquisas realizadas para estudá-los replicados. Segundo o autor, “a tentativa contínua de construir leis gerais de comportamento social parece mal direcionada, e a crença associada de que o conhecimento da interação social pode ser acumulado de uma maneira semelhante às ciências naturais parece injustificada” (Gergen, 1973, p. 316). Cabe lembrar que Marx não deixou de indicar que mesmo os sentidos humanos são históricos.

Em outro artigo, Stroebe e Strack (2014Stroebe, W., & Strack, F. (2014). The alleged crisis and the illusion of exact replication. Perspectives on Psychological Science, 9(1), 59-71. doi:10.1177/1745691613514450
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, p. 60) sugeriram a existência de duas formas de replicação, a exata e a conceitual.

Replicações exatas são replicações de um experimento que operacionalizam a variável independente e a dependente exatamente da mesma maneira que o estudo original. (Em contraste, as replicações conceituais tentam operacionalizar as variáveis teóricas subjacentes usando diferentes manipulações e/ou diferentes medidas).

É difícil compreender o que seja uma variável “teórica”, mas, de todo modo, Stroebe (2016Stroebe, W. (2016). Are most published social psychological findings false? Journal of Experimental Social Psychology, 66, 134-144. doi:10.1016/j.jesp.2015.09.017
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) então conclui que fenômenos sociais suscetíveis a transformação histórica podem ser objetos de replicação conceitual, pois a necessidade de operacionalizar conceitos de maneira diferente em razão das transformações históricas “não invalida as conclusões gerais” (Stroebe, 2016, p. 140) de uma pesquisa.

O problema das abordagens teóricas em psicologia

Temos aqui um pequeno exemplo de concepções sobre a psicologia difundidas por alguns dos principais meios de comunicação de massa e por alguns dos principais periódicos científicos do mundo.

Um dos problemas dessa discussão decorre do uso da palavra “teoria”. Sem irmos longe, podemos dizer que é adequada a essa discussão a concepção presente em um manual de psicologia, segundo o qual teoria é “um conjunto integrado de princípios que explicam e predizem eventos observados” ou que é formada por “ideias que resumem e explicam fatos”; além disso, “não apenas resumem, mas também implicam predições testáveis, chamadas hipóteses” (Myers, 2009Myers, D. G. (2009). Social psychology (10a ed.). New York, NY: McGraw Hill., p. 17-18). Essas concepções, que se aproximam do que se denomina de método hipotético-dedutivo, não representam adequadamente, porém, o campo da psicologia em algumas de suas mais importantes características. Uma delas diz respeito à diversidade de perspectivas teóricas na área.

Quando usamos a expressão “perspectivas teóricas” não a utilizamos no sentido de autores como Myers (2007Myers, D. G. (2007). Exploring psychology (7a ed.). New York, NY: Worth Publishers.), que defendem a existência, atualmente, de abordagens como a neurociência, a psicologia evolutiva, a psicodinâmica, a psicologia cognitiva e o comportamentalismo, e afirmam que “diferentes perspectivas... complementam-se umas às outras” (Myers, 2007, p. 6). Essa visão da área tem sido cada vez mais comum nos países centrais, em que a formação dos alunos apresenta tristemente uma ênfase no contato com pesquisas empíricas desvinculadas da discussão sobre seus arcabouços teóricos, em busca daquilo que a American Psychological Association tem chamado de ciência “baseada em evidências”.

Abbagnano (2007Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia (5a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 809), por outro lado, afirma sinteticamente que do “ponto de vista da formulação conceitual (que interessa à filosofia) podemos distinguir as seis correntes fundamentais seguintes”: a psicologia racional ou filosófica, a psicologia psicofísica (primeira forma científica da área do conhecimento), a psicologia da forma, o behaviorismo e as psicologias abissais ou do profundo. Para cada uma delas, ele descreve um conjunto de princípios. O terceiro princípio da psicofísica, por exemplo, é a “tendência a resolver o fato de consciência por elementos últimos (sensações, emoções elementares, reflexos ou instintos elementares) e explicar os fenômenos mais complexos com a combinação de tais elementos (atomismo, associacionismo)” (Abbagnano, 2007, p. 810). Cada nova corrente é apresentada a seguir a partir dos princípios que ataca em suas antecessoras. Assim, a psicologia da forma é apresentada como aquela que “concentra seus ataques no 3o princípio fundamental da Psicologia psicofísica, o atomismo e o associacionismo” (Abbagnano, 2007, p. 810). Esta maneira de entender teoria corresponde grosso modo ao que Horkheimer (1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural.) denomina “teoria tradicional”.

Stroebe (2016Stroebe, W. (2016). Are most published social psychological findings false? Journal of Experimental Social Psychology, 66, 134-144. doi:10.1016/j.jesp.2015.09.017
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), ao discutir o papel da teoria em psicologia, apresenta o trabalho de Festinger e Carlsmith (1959Festinger, L., & Carlsmith, J. M. (1959). Cognitive consequences of forced compliance. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 58(2), 203-210. doi: 10.1037/h0041593
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) sobre dissonância cognitiva como um exemplo de teoria. Pensamos que seria mais adequado reservar a palavra “teoria” àqueles sistemas conceituais que apresentam a forma destacada por Abbagnano, ou seja, um conjunto de princípios articulados que orientam a criação de conhecimento em uma área, ainda que caiba mencionar que essa criação implica também descoberta.

Nesse sentido, o conhecimento derivado dos princípios da psicanálise (uma das “psicologias abissais”) terá um caráter heterogêneo perante aquele derivado dos princípios comportamentais, pois partem de princípios distintos e definem campos referenciais distintos para as observações. Enquanto os princípios da psicanálise identificam certos eventos como “resistência” e só nesse sentido podem ser incluídos em suas observações e teorizações, os princípios comportamentalistas não incluem a possibilidade desse evento − o que traz um caráter altamente heterogêneo para as observações realizadas nas diversas teorias psicológicas. Dessa forma, as diversas escolas ou abordagens não entram em acordo sequer quanto à descrição dos eventos. Assim, a dissonância cognitiva pode ser um teorema, mas não uma teoria.

Sobre teoria

Essa forma de entender teoria deriva da compreensão de que as duas formas metodológicas mais significativas ao longo da história do ocidente (quiçá as únicas2 2 Eda Tassara, comunicação pessoal, 28 de novembro de 2016. ) são constituídas pelo método de demonstração geométrico e pelo método experimental. O método de demonstração geométrico recebeu esse nome por ter sido aplicado de forma bem-sucedida em Os elementos, de Euclides (século IV a.C.), livro que primeiro sistematizou a geometria ocidental como um campo do conhecimento. Bicudo (2009Bicudo, I. (2009). Prefácio. In Euclides, Os elementos (pp. 11-94). São Paulo, SP: Unesp., p. 77) afirma sinteticamente a importância desse livro como sendo a de haver aplicado o conhecimento matemático desenvolvido pelos gregos à geometria empírica herdada de egípcios e babilônios: “com os matemáticos da Grécia, a razão suplanta a empeiria como critério de verdade e a matemática ganha características de uma ciência dedutiva”, processo relacionado à “transformação do primitivo conhecimento matemático empírico de egípcios e babilônios na ciência matemática grega, dedutiva, sistemática, baseada em definições e axiomas” (Bicudo, 2009, p. 83). A estrutura do livro organiza-se a partir de afirmações iniciais dadas como autoevidentes e atualmente chamadas de axiomas ou postulados. Esse procedimento é apresentado por Platão em A República (510 c 2 − d 3. A tradução a seguir encontra-se em Murachco, 1998Murachco, H. G. (1998). Platão República VI 506 d 6 − VII 515 d 9: proposta de uma tradução linear. Letras Clássicas, (2), 171-186., p. 178-9):

Então vamos de novo e tu entenderás mais facilmente do que as coisas anteriormente ditas. Na verdade, eu acho que tu sabes que os que se ocupam da geometria, dos cálculos e coisas que tais, que supõem o par e o ímpar e as figuras e as três visões dos ângulos e outras coisas irmãs dessas, segundo o método de cada uma, eles, como sabedores, tendo feito delas hipóteses, não acham importante dar mais nenhuma razão delas nem a eles mesmos nem aos outros, por evidentes a qualquer um e, começando a partir dessas coisas e passando [d] pelas restantes, eles concluem coerentemente naquilo que eles buscam para observação.... Então tu sabes também que eles se aproveitam dessas visões que são vistas e constroem seus discursos em torno delas, não raciocinando a respeito delas mas sobre aquelas às quais elas se parecem.

Em outras palavras, a demonstração geométrica é aquela que parte de pressupostos não demonstrados, por serem considerados autoevidentes, e de definições iniciais simples (“ponto é uma figura sem partes” ou “ponto é aquilo de que nada é parte”, primeira definição de Os elementos) também evidentes, para deles deduzir consequências logicamente necessárias. Os axiomas ou postulados não são, eles mesmos, questionados na demonstração − a isto se denomina “demonstração geométrica”. Aristóteles definiu assim esse tipo de demonstração: “o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. O raciocínio é uma ‘demonstração’ quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras” (Aristóteles, 1973Aristóteles. (1973). Tópicos. In V. Civita (Org.), Aristóteles (L. Vallandro & G. Bornheim, trads., Vol. 4, pp. 7-158). São Paulo, SP: Abril Cultural., p. 11).

Como indica Bicudo (2009Bicudo, I. (2009). Prefácio. In Euclides, Os elementos (pp. 11-94). São Paulo, SP: Unesp., p. 81), criar demonstrações desse tipo tornou-se central para a matemática contemporânea. Em suas palavras:

Comecemos descrevendo, sucintamente, em que consiste, depois de Cauchy, Weierstrass, Bolzano, Dedekind, Cantor, Frege, Hilbert, Bourbaki, e outros grandes do século XIX e XX, uma teoria matemática. No seu trabalho, o que compete ao matemático é definir os conceitos de que se servirá e demonstrar as propriedades desses conceitos.

Como só se pode definir conceitos usando outros conceitos, num círculo infinito, a solução do matemático “(de conveniência, é verdade) consiste em tomar alguns conceitos sem definição” (Bicudo, 2009Bicudo, I. (2009). Prefácio. In Euclides, Os elementos (pp. 11-94). São Paulo, SP: Unesp., p. 82). Nas palavras de Bertrand Russell (1903Russell, B. (1903). The principles of Mathematics (2a ed.). New York, NY: W. W. Norton & Company., p. xv), “toda matemática pura lida exclusivamente com conceitos definíveis em termos de um número muito pequeno de conceitos lógicos fundamentais e... suas proposições são dedutíveis de um pequeno número de princípios lógicos fundamentais”. Neste sentido, lógica e matemática constituem contemporaneamente um campo único: “A tese fundamental das páginas a seguir, de que matemática e lógica são idênticas, é uma que eu desde então nunca vi qualquer razão para modificar” (Russell, 1903, p. v). A matemática, contemporaneamente, relaciona-se com a lógica por meio do esforço de formalização dos processos de dedução, e esse esforço talvez seja o mais importante da matemática no século XX. Em grande medida, ele resultou em profundas reformulações na compreensão contemporânea da dedução a partir de axiomas, sem levar, contudo, ao abandono do espírito dedutivo fundamental herdado dos gregos. Ao menos, é essa a interpretação de Eves (2008Eves, H. (2008). Introdução à história da matemática. Campinas, SP: Unicamp., p. 655) sobre esse campo:

O exame dos fundamentos e da estrutura lógica da Matemática constitui grande parte do trabalho desenvolvido nesta ciência no século XX. Isso, por sua vez, levou à criação da axiomática, ou o estudo dos sistemas de postulados e suas propriedades.... A própria lógica, como instrumento usado pela matemática para obter conclusões a partir de hipóteses aceitas, foi esquadrinhada minuciosamente vindo a nascer daí a lógica matemática.... E o que é bastante curioso, como grande parte da Matemática, a maioria dessas considerações modernas tem suas raízes no trabalho dos gregos antigos, muito em particular nos Elementos de Euclides.

Ética, a monumental obra de Espinosa (1983Espinosa, B. (1983). Ética demonstrada à maneira dos geômetras. In M. de S. Chauí (Org.), Espinosa (3a ed., J. de Carvalho, J. F. Gomes & A. Simões, trads., pp. 69-299). São Paulo, SP: Abril Cultural.), tem o significativo título completo de “Ética demonstrada à maneira dos geômetras” e parte do princípio de que: “Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente” (p. 75); e termina, numa longa cadeia dedutiva sistemática, pela proposição XLII do livro V, segundo a qual: “A felicidade não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não gozamos dela por refrearmos as paixões, mas ao contrário, gozamos dela por podermos refrear as paixões” (p. 298).

Quando se fala sobre o caráter matemático do conhecimento, é a essa concepção de dedução lógica, a partir de axiomas que se faz referência. Ou seja, não faz sentido reduzir a matemática à quantificação ou à medida, como fazem muitos autores, como o próprio Smedslund (2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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, p. 191), que afirma:

Pode-se provar logicamente a formulação “quanto mais inesperado, mais surpreendente”, mas não a forma matemática exata da relação entre medidas de duas variáveis em settings específicos. Teorias quantitativas exatas em psicologia, porém, tendem a não se generalizar para além de instrumentos de mensuração específicos e condições especiais.

Ora, a demonstração lógica é exatamente o caráter matemático do conhecimento. Para que a essa afirmação seja tomada rigorosamente, assim, torna-se necessário estabelecer como a quantificação pode auxiliar na demonstração lógica do conhecimento psicológico.

Uma questão fundamental aqui é a de que os axiomas de que tratamos até agora são objetos ideais, podem ser conhecidos de forma intuitiva (sem demonstração), e não estão, em princípio, submetidos à experiência. Seriam, nos termos de Kant, verdades analíticas e não sintéticas. Nas palavras de Quine (1975Quine, W. van O. (1975). De um ponto de vista lógico. In O. P. de A. P. da Silva (Org.), Ryle, Austin, Quine, Strawson (B. B. Filho, trad., Vol. 52, pp. 221-264). São Paulo, SP: Abril., p. 235):

O empirismo moderno foi em grande parte condicionado por dois dogmas. Um deles é a crença em uma certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em significados independentemente de questões de fato, e verdades sintéticas, ou fundadas em fatos.

O problema agora reside nas questões de fato.

Teorias científicas

A demonstração geométrica serviu por milênios como estrutura demonstrativa fundamental, mas sua aplicação à realidade empírica constitui um problema distinto. Sob inspiração de leituras de textos aristotélicos e bíblicos, a ciência no mundo medieval deduzia de ideias a priori as explicações para o mundo empírico, assim como Euclides deduziu de ideias a priori o campo da geometria.

No pensamento aristotélico, tais ideias estão expressas, entre outros lugares, em sua metafísica, e, assim, pode-se dizer que “a cosmologia de Aristóteles tem um duplo fundamento: é impossível analisá-la sem compreender suas articulações lógicas primordiais com a Metafísica aristotélica; ao mesmo tempo, o Cosmos aristotélico constitui uma síntese das percepções empíricas acumuladas até então pela vivência humana” (Porto, 2009Porto, C. (2009). A física de Aristóteles: uma construção ingênua? Revista Brasileira de Ensino de Física, 31(4), 4602-4609. doi: 10.1590/S1806-11172009000400019
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, p. 4601-4604). A física aristotélica relaciona-se com o pensamento aristotélico como um todo, de tal modo que “a ciência aristotélica constitui um esforço complexo de compreensão racional da realidade material, perfeitamente integrada a um sistema de pensamento orgânico e abrangente” (Porto, 2009, p. 4601).

Pode-se afirmar que esse problema da relação entre matemática e empiria sofreu uma inflexão radical quando da publicação dos trabalhos de Copérnico, inicialmente, e de Galileu Galilei a seguir, nos séculos XVI e XVII. Galileu sistematiza o que conhecemos como a ciência moderna, e sua oposição ao espírito teológico e metafísico reinante tornou-se evidente quando, após assumir a cátedra de matemática na Universidade de Pisa em 1589, passou a realizar pesquisas em mecânica “tentando descrever os fenômenos em linguagem matemática” (Pessanha, 1983Pessanha, J. A. M. (1983). Galileu: vida e obra. In Os pensadores: Bruno, Galileu, Campanella (H. Barraco, N. Deola, & A. Lôbo, trads.). São Paulo: Abril Cultural., p. 6). Ele sofreu violenta oposição dos seguidores de Aristóteles, representantes da ciência oficial, “que discordavam da aplicação da matemática aos domínios da física” (Pessanha, 1983, p. 6), mas, mesmo assim, seguiu suas pesquisas, pondo-se sob o escrutínio do tribunal do Santo Ofício, que por pouco não o condenou à morte.

A aplicação da matemática aos fenômenos estudados pela física “seria a maior contribuição de Galileu à história das ideias” (p. 6). Pode-se afirmar mesmo que Galileu “é mais importante pelas contribuições que fez ao método científico do que propriamente pelas revelações físicas e astronômicas encontradas em suas obras” (Pessanha, 1983Pessanha, J. A. M. (1983). Galileu: vida e obra. In Os pensadores: Bruno, Galileu, Campanella (H. Barraco, N. Deola, & A. Lôbo, trads.). São Paulo: Abril Cultural., p. 6-7). Além disso, representou uma característica do espírito do Renascimento pelo qual diversas áreas do conhecimento voltaram seus esforços para o estabelecimento de conhecimentos derivados logicamente das características de seus próprios objetos, desvinculando-os de pressupostos oriundos de outros campos, como a metafísica e a teologia. Além da física de Galileu, interessada, sobretudo, no fenômeno do movimento dos corpos, o mesmo processo pode ser observado na política de Maquiavel.

Em que consiste o método científico desenvolvido por Galileu? Em três princípios fundamentais: na “observação dos fenômenos, tais como eles ocorrem, sem que o cientista se deixe perturbar por preconceitos extracientíficos, de natureza religiosa ou filosófica” (Pessanha, 1983Pessanha, J. A. M. (1983). Galileu: vida e obra. In Os pensadores: Bruno, Galileu, Campanella (H. Barraco, N. Deola, & A. Lôbo, trads.). São Paulo: Abril Cultural., p. 7-8); na experimentação, ou seja, na produção dos fenômenos a serem observados em condições específicas e controladas que permitam verificar a veracidade das afirmações feitas sobre os fenômenos naturais; na defesa de que “o correto conhecimento da natureza exige que se descubra sua regularidade matemática” (Pessanha, 1983, p. 8). Ao fazê-lo ele “demonstrou o engano do espírito puramente lógico-dedutivo da filosofia aristotélico-escolástica” e “mostrou, finalmente, que o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos” (Pessanha, 1983, p. 9).

Segundo Assis (1993Assis, J. de P. (1993). Kuhn e as ciências sociais. Estudos Avançados, 7(19), 133-164. doi: 10.1590/S0103-40141993000300004
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, p. 158), valor da obra de Galileu é reconhecível até hoje: “Galileu foi um cientista natural refinado, o primeiro a equacionar eficazmente o balanço entre teoria e experimentação, autor de uma obra filosófica que permanece viva”. Mas mesmo Kant distingue o entendimento do mundo fenomenal e não os torna indissociáveis; a experiência é a relação das categorias do sujeito com o objeto; dessa forma, a percepção matemática da natureza é o não conhecimento do “em si” do objeto tornado “para-si”; dessa forma a natureza só é repetitiva, replicável na lógica do sujeito, mas não como natureza propriamente dita; que esta não se repete é algo constatável para além da existência do homem, pois, desde sempre está se modificando.

Vale ressaltar que o esforço de representar matematicamente os fenômenos físicos (ou empíricos em geral) pode exigir o uso de técnicas de medição, mas propositalmente não fizemos referência a isso até o momento. É possível imaginar representações estruturadas segundo princípios lógicos ou matemáticos em campos de fenômenos que não permitem ainda, ou não permitam jamais, sua medição ou quantificação, o que, segundo o que foi desenvolvido anteriormente, no limite, sempre é o caso: nunca a medida será plenamente adequada ao campo de fenômenos.

As tentativas feitas por Kurt Lewin (1973Lewin, K. (1973). Princípios de psicologia topológica. São Paulo, SP: Cultrix.) de representar matematicamente os fenômenos das interações sociais utilizaram predominantemente o campo da topologia, nascente em sua época, e que estuda as propriedades das figuras geométricas que permanecem invariantes sob transformações chamadas de topológicas. Em seus estudos, medidas precisas das intensidades dos fenômenos psicossociais, como a atratividade de uma região do espaço social, mostram-se secundárias (mesmo não sendo desnecessárias ou inúteis) perante o estabelecimento das relações lógicas entre as partes estruturadas do próprio campo social.

Essa discussão aparece posta de formas inadequadas na longa e infrutífera polêmica a respeito das pesquisas quantitativas e qualitativas. Pesquisas qualitativas não são menos ou mais rigorosas que as pesquisas quantitativas. Podem, dados certos campos fenomênicos, constituir representações lógicas de grande rigor mesmo nos contextos em que a medida, ou a quantificação, é impossível. Pereira (2001Pereira, J. C. (2001). Análise de dados qualitativos: estratégias metodológicas para as ciências da saúde, humanas e sociais (3a ed.). São Paulo, SP: Edusp., p. 21-2) o expressa quando contrasta o dado qualitativo (que permite quantificar eventos qualitativos) com a pesquisa qualitativa:

[o dado qualitativo] constitui-se em alternativa à chamada pesquisa qualitativa, que também se ocupa da investigação de eventos qualitativos mas com referenciais teóricos menos restritivos e com maior oportunidade de manifestação para a subjetividade do pesquisador. Essas duas abordagens alternativas, não raro, são confrontadas numa falsa oposição que busca uma ordem de precedência entre elas, a qual carece de pertinência e só encontra abrigo na intolerância, inimiga da ciência e da verdade.

Essa breve digressão tem por objetivo argumentar que a representação matemática de fenômenos empíricos pode ser buscada mesmo em campos que não permitem sua quantificação precisa. Visa ponderar criticamente, além disso, sobre a opinião de que os dados quantitativos indicam diretamente uma intenção de alienação ou dominação. Pelo contrário, a ciência tem se relacionado contraditoriamente tanto com movimentos de emancipação quanto com processos de dominação − o que exige que a constante crítica ao conhecimento científico se realize sem desprezar seu caráter libertador:

As pesquisas que mostram, por meio de métodos científicos - os mais diversos - a falsidade de diversos estereótipos sociais, por exemplo, são importantes para o combate à ideologia. Quando uma opinião é verificada por meio de uma enquete, e suas frequências e porcentagens são expostas, há um conhecimento importante que deveria ser interpretado por meio de uma sólida teoria; desprezar esses dados, porque são frutos de medidas quantitativas, é perder graus de liberdade que o conhecimento proporciona (Crochík, Massola, & Svartman, 2016Crochík, J. L., Massola, G. M., & Svartman, B. P. (2016). Ciência e política. Psicologia USP, 27(1), 1-5. doi: 10.1590/0103-656420162701
https://doi.org/10.1590/0103-65642016270...
).

A representação matemática dos fenômenos físicos constituiu tema fundamental da filosofia moderna a partir de Galileu, tema expresso em obras como Meditações, de Descartes: “[na árvore do conhecimento cartesiana] a Matemática não se acha representada. Estranha lacuna, dir-se-á, se se pensar nas afirmações de Descartes sobre a importância desta ciência, cujos raciocínios ele queria que penetrassem toda a sua Física” (Gaston-Granger, 1973Gaston-Granger, G. (1973). Introdução. In V. Civita (Org.), Descartes (Vol. 15, pp. 11-30). São Paulo, SP: Abril Cultural., p. 16). Ademais, a ideia de representação traz implícita uma separação entre o mundo físico e as representações que dele podemos ter, ou seja, há uma distância entre observador e observado, entre o mundo e as representações. A dificuldade das Meditações encontra-se em fundamentar a correção de tais representações e, nisso, Descartes assemelha-se a Galileu, quando considera que a mais adequada representação dos fenômenos físicos apresenta caráter matemático:

Considerar inicialmente que os dados dos sentidos são signos das coisas, como é expressamente dito no início do Tratado do Mundo, e construir modelos matemáticos dos fenômenos é o que já fizera Galileu, o que fará Newton e o próprio Descartes, quando é estritamente fiel a seu desígnio. (Gaston-Granger, 1973Gaston-Granger, G. (1973). Introdução. In V. Civita (Org.), Descartes (Vol. 15, pp. 11-30). São Paulo, SP: Abril Cultural., p. 20).

Pode-se dizer que está implícito na busca intelectual desse período o projeto de desenvolver conhecimento sobre o mundo empírico que apresente rigor matemático semelhante ao encontrado nas demonstrações de Euclides. Isso significa elaborar ou eleger princípios racionais a partir dos quais se pudesse demonstrar com rigor matemático as características dos fenômenos observados no mundo empírico (neste caso, físico). A crítica de Gaston-Granger permite vislumbrar o perigo de eleger tais princípios a partir de pressupostos puramente racionais que limitem a compreensão dos fenômenos físicos em vez de sustentá-los.

De todo modo, é importante destacar no século XVII essa busca pelas possibilidades de representar adequadamente por meio da matemática o mundo empírico:

Houve [no século XVII] um esforço, bastante diverso em suas formas, de matematização do empírico; constante e contínuo para a astronomia e uma parte da física, foi esporádico em outros domínios − às vezes tentado realmente (como em Condorcet), às vezes proposto como ideal universal e horizonte da pesquisa (como em Condillac ou Destutt), às vezes também recusado em sua possibilidade mesma (em Buffon, por exemplo). (Foucault, 1966/2000Foucault, M. (2000). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. (8a ed., S. T. Muchail, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1966)).

Mesmo que se possa afirmar o surgimento de inúmeros domínios do conhecimento (como a história natural) alheios a essa busca: “Em nenhum desses domínios ou em quase nenhum é possível encontrar vestígios de um mecanicismo ou de uma matematização” (Foucault, 1966/2000).

Nenhum pensador, porém, havia conseguido desenvolver um sistema explicativo com rigor e simplicidade comparáveis a Os elementos aplicado ao mundo empírico. Considera-se, geralmente, que esse mérito coube a Isaac Newton (1687/2012), que elaborou, ainda no século XVII, o primeiro livro de física teórica no sentido moderno, Princípios matemáticos de filosofia natural. Nesse livro, ele aplicou a estrutura demonstrativa geométrica, partindo de definições (em número de oito) e axiomas (suas três famosas leis do movimento) e demonstrando com rigor lógico as características fundamentais de parte importante dos fenômenos mecânicos conhecidos na época.

Roger Cotes (2012Cotes, R. (2012). Prefácio de Cotes à segunda edição. In Princípios matemáticos de filosofia natural (2a ed., T. Ricci, L. G. Brunet, S. T. Gehring & M. H. C. Célia, trads., Vol. 1, p. 19-35). São Paulo, SP: Edusp.), em seu célebre prefácio à segunda edição de Princípios matemáticos de filosofia natural, distingue três classes de pessoas que trataram da filosofia natural no período. Ao fazê-lo, o autor sintetiza bem a novidade presente nesta obra.

A primeira classe é constituída por aqueles que “atribuíram qualidades específicas e ocultas a várias espécies de coisas, de acordo com as quais se supõe que os fenômenos de corpos particulares aconteçam de uma forma desconhecida” (Cotes, 2012Cotes, R. (2012). Prefácio de Cotes à segunda edição. In Princípios matemáticos de filosofia natural (2a ed., T. Ricci, L. G. Brunet, S. T. Gehring & M. H. C. Célia, trads., Vol. 1, p. 19-35). São Paulo, SP: Edusp., p. 19) - trata-se dos aristotélicos.

A segunda classe, por sua vez, é formada por aqueles que rejeitam os erros da primeira e “corretamente”, partem das coisas mais simples para as mais complexas, atribuindo toda a “variedade de formas que é vista nos corpos” a algumas “relações bem simples e claras das partículas componentes” (Cotes, 2012Cotes, R. (2012). Prefácio de Cotes à segunda edição. In Princípios matemáticos de filosofia natural (2a ed., T. Ricci, L. G. Brunet, S. T. Gehring & M. H. C. Célia, trads., Vol. 1, p. 19-35). São Paulo, SP: Edusp., p. 20). Trata-se dos cartesianos. Segundo Cotes (2012, p. 20), os cartesianos “quando tomam a liberdade de imaginar à vontade formas e grandezas desconhecidas... incorrem em sonhos e quimeras e descuidam da verdadeira constituição das coisas, que certamente não deverá ser derivada de conjecturas falaciosas”3 3 Vale lembrar que a física cartesiana gozava de enorme reputação e popularidade nesse momento. . O autor também dirige a eles uma crítica avassaladora: “Aqueles que tomam as hipóteses como princípios primeiros de suas especulações, embora mais tarde procedam com a maior precisão a partir destes princípios, podem realmente construir um engenhoso romance, mas que ainda assim será somente um romance” (Cotes, 2012, p. 20).

A terceira classe, por fim, adota a filosofia experimental, e é formada por aqueles que derivam as causas de todas as coisas a partir dos princípios mais simples possíveis; mas, então, não aceitam nada como princípio, a não ser que tenha sido provado por fenômenos... [e, além disso] não constroem nenhuma hipótese, nem as admitem como filosofia, a não ser como questões cuja verdade pode ser discutida (Cotes, 2012Cotes, R. (2012). Prefácio de Cotes à segunda edição. In Princípios matemáticos de filosofia natural (2a ed., T. Ricci, L. G. Brunet, S. T. Gehring & M. H. C. Célia, trads., Vol. 1, p. 19-35). São Paulo, SP: Edusp., p. 20).

A derivação empírica dos princípios ou axiomas é uma das distinções fundamentais da obra de Newton perante a de Descartes. Segundo Cotes (2012Cotes, R. (2012). Prefácio de Cotes à segunda edição. In Princípios matemáticos de filosofia natural (2a ed., T. Ricci, L. G. Brunet, S. T. Gehring & M. H. C. Célia, trads., Vol. 1, p. 19-35). São Paulo, SP: Edusp., p. 28),

Há quem não goste dessa física celestial [proposta por Newton] porque contradiz as opiniões de Descartes e parece dificilmente reconciliável com elas... O tema da verdadeira filosofia é derivar as naturezas das coisas a partir das causas verdadeiramente existentes, e indagar depois pelas leis que o Grande Criador realmente escolheu para assentar as bases desta maravilhosa Estrutura do Mundo.

A simplicidade, coerência e rigor do sistema newtoniano definiram as pesquisas no campo da física por mais de dois séculos (sendo, evidentemente, importante ainda hoje) e estabeleceram os problemas, as questões, os princípios e os procedimentos a serem adotados pelos físicos em geral. O conhecimento em mecânica constitui-se, assim, a partir de argumentos estruturados logicamente em forma de dedução geométrica, cujos axiomas, porém, têm a pretensão (grandemente justificada) de derivarem da própria empiria.

Segundo Horkheimer (1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 31), a questão do que é uma teoria:

parece não oferecer maiores dificuldades dentro do quadro atual da ciência. No sentido usual da pesquisa, teoria equivale a uma sinopse de proposições de um campo especializado, ligadas de tal modo entre si que se poderiam deduzir de algumas dessas teorias todas as demais. Quanto menor for o número de princípios mais elevados, em relação às conclusões, tanto mais perfeita será a teoria. Sua validade real reside na consonância das proposições deduzidas com os fatos ocorridos.

Pode-se aplicar à teoria newtoniana, com rigor, além disso, o termo paradigma:

Uma determinada atividade com pretensões ao conhecimento atinge a fase paradigmática quando para de haver debate em torno de princípios. As diversas escolas que estudam determinado conjunto de fenômenos concordam com ser o enfoque de uma delas o mais promissor. Antes desse acordo, o que existe é um debate desorganizado entre diferentes escolas, partidárias de diferentes fundamentos, baseados em diferentes ontologias e que enfocam um mal definido conjunto de problemas, cada uma a sua maneira. (Assis, 1993Assis, J. de P. (1993). Kuhn e as ciências sociais. Estudos Avançados, 7(19), 133-164. doi: 10.1590/S0103-40141993000300004
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, p. 136).

A imagem tipicamente difundida da física a partir dessa teoria é a de um campo do conhecimento no qual não apenas as demonstrações ganharam forte grau de matematização, mas no qual as próprias desavenças teóricas tendem a matematizar-se, a ponto de, no momento histórico adequado, constituírem-se as condições necessárias para a realização de grandes experimentos capazes de resolver tais desavenças. Um caso exemplar é o de Galileu apondo à Torre de Pisa um plano inclinado para investigar a queda livre dos corpos. Mas o caso emblemático é o do experimento de Michelson-Morley, realizado em 1887, e que constituiu a primeira evidência forte contra a existência do éter, que promovia intensos debates na física da época, levando, por fim, ao abandono dessa ideia.

Paradigmas na psicologia

A teoria de Newton constitui um exemplo de um momento em que a mecânica entrou no período que Kuhn (2013Kuhn, T. S. (2013). La estructura de las revoluciones científicas (4a ed., C. Solís, trad.). Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica.) classifica como de ciência normal, no qual os cientistas concordam com os princípios de seu campo e o trabalho consiste em articular esses princípios e aplicá-los a campos mais abrangentes de fenômenos. Não se discute aqui uma decorrência da proposta deste autor, que é a de que a escolha por uma ou outra opção teórica apresentada pelas escolas em momentos não paradigmáticos não depende de escolhas logicamente necessárias.

Entre teorias distintas, pode-se afirmar, seguindo o autor, não há um padrão externo de racionalidade que garanta o êxito de uma sobre a outra. Segundo Assis (1993Assis, J. de P. (1993). Kuhn e as ciências sociais. Estudos Avançados, 7(19), 133-164. doi: 10.1590/S0103-40141993000300004
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), “não existe, portanto, padrão que se possa chamar racional, ao qual seja sempre possível recorrer no caso de dúvida entre duas teorias propostas para explicar dado conjunto de fenômenos”. Mesmo assim, Kuhn (2013Kuhn, T. S. (2013). La estructura de las revoluciones científicas (4a ed., C. Solís, trad.). Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica., p. 133) afirma que “os paradigmas alcançam sua posição porque têm mais êxito que seus competidores na hora de resolver alguns problemas que o grupo de cientistas praticantes considera urgentes”, e assim o espírito (ou a falta de espírito) darwiniano sobrevive. Como afirma Hacking (2013Hacking, I. (2013). Ensayo preliminar. In La estructura de las revoluciones científicas (4a ed., C. Solís, trad.,pp. 9-51). Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica., p. 42), “enquanto alguns âmbitos adoravam Kuhn como o profeta do novo relativismo, outros círculos o acusavam de negar a racionalidade mesma da ciência. Ambas as posturas são absurdas”. E de maneira enfática, Assis (1993, p. 144) afirma:

A ciência natural é o empreendimento humano mais bem-sucedido. Isso é uma observação prática. Nenhuma outra atividade, até hoje, foi capaz de reunir em teorias simples e harmoniosas tamanha capacidade de predição. Os resultados práticos da ciência - suas derivações tecnológicas - são evidentes. Assim, se alguma atividade humana é racional, certamente essa atividade tem de ser a científica. A ciência natural é eleita de saída como exemplo mais acabado da racionalidade humana. Logo, não tem sentido dizer que Kuhn a nivela com outras atividades.

Cabe acrescentar que, segundo Marcuse (1973Marcuse, H. (1973). A ideologia da sociedade industrial (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), a engenharia comportamental tem tido muito êxito no controle do comportamento humano, quando o homem é considerado como ser que deve obedecer às leis da natureza.

Apesar disso, com esse sentido de paradigma, as ciências humanas e sociais jamais atingiram o momento paradigmático e não se sabe se chegarão a atingi-lo. Esse uso “um tanto surpreendentemente [do trabalho de Kuhn], como um manual para descobrir, de modo mecânico, ciências paradigmáticas ou ciências em vias de paradigmatização” (Assis, 1993Assis, J. de P. (1993). Kuhn e as ciências sociais. Estudos Avançados, 7(19), 133-164. doi: 10.1590/S0103-40141993000300004
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, p. 146) é, de forma bastante evidente, contrário a seus esforços para criticar quer uma visão positivista da ciência, quer o estabelecimento de critérios unívocos que sustentem a racionalidade da ciência. Como a proposta de Kuhn está centrada nas ciências naturais, pode-se, talvez, a partir de sua obra, considerar que as ciências humanas ou sociais não sejam propriamente “ciência”, mas não se pode usá-la para definir o estatuto científico específico desses campos. Portanto, não se pode sequer considerá-las definitivamente “pré-paradigmáticas”, “pós-paradigmáticas” ou “multiparadigmáticas”.

É bastante adequado pensar que a obra de Kuhn não deve ser adotada como padrão para outras áreas do conhecimento avaliarem sua proximidade com as ciências da natureza: Assis (1993Assis, J. de P. (1993). Kuhn e as ciências sociais. Estudos Avançados, 7(19), 133-164. doi: 10.1590/S0103-40141993000300004
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, p. 157), refletindo sobre as ciências sociais, afirma que “Kuhn não diz como as ciências sociais (e as humanidades) poderiam tornar-se ciência e também não diz que isso poderia ser sequer interessante ou útil”, e arremata: “Enfim, pouco se pode esperar de Kuhn para a sociologia.”

Na psicologia, que nesse sentido se aproxima das ciências sociais, a avaliação pode ser tão devastadora quanto nas próprias ciências sociais:

A literatura psicológica... não revelou muita consciência e apuro na recepção das teses de Thomas Kuhn, quer afirmando a existência de paradigmas sucessivos e revoluções no desenvolvimento histórico da psicologia, quer afirmando uma multiplicidade de paradigmas coexistentes no estado atual dessa ciência. Em ambos os casos, as teses de Kuhn não foram criticadas ou postas em dúvida. Elas foram “obedecidas” como se fossem verdadeiras ordens para possuir paradigmas. (Carone, 2003Carone, I. (2003). A psicologia tem paradigmas? São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 110)

Carone (2003Carone, I. (2003). A psicologia tem paradigmas? São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 110) lembra que Kuhn “não teve dúvidas em negar a existência de consenso paradigmático na Psicologia e nas ciências sociais” e se pergunta sobre os motivos pelos quais a recepção “ingênua, descurada e superficial das teses de Kuhn” (p. 111) mantiveram-se ao longo das décadas de 1980 e 1990 (seguramente, adentrando os anos 2000). Entre tais razões, encontram-se uma defesa ideológica do patrimônio científico da psicologia, sob o medo de vê-lo jogado no limbo da pseudociência; a defesa ideológica de territórios no interior da psicologia, “quando seus autores se referem, por exemplo, a um ‘paradigma experimental’ ou a um ‘paradigma psicanalítico’” (Carone, 2003, p. 112); e o uso do termo “revolução” com o propósito de “enterrar” os rivais, como no caso do cognitivismo em relação ao behaviorismo.

Carone (2003Carone, I. (2003). A psicologia tem paradigmas? São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 112) extrai dessa discussão uma conclusão importante ao afirmar que as mudanças ou alterações teóricas na psicologia não constituem “revoluções”, porque tais teorias têm “coexistido e se mantido como tradições paralelas na história da Psicologia”, mas é difícil negar que os conceitos freudianos foram revolucionários e os do behaviorismo, conservadores, quando se considera que o indivíduo se tornou quase que alguém que age à base de reflexos (Adorno, 2015Adorno, T. W. (2015). Ensaios sobre psicologia geral e psicanálise (V. Freitas, trad.). São Paulo, SP: Unesp.).

De modo geral, pode-se comparar a psicologia e as ciências naturais por negação, indicando que a psicologia jamais constituiu paradigmas e que, além disso, é curioso que queira constitui-los. Se o caráter rigorosamente matemático da resolução de discordâncias teóricas na física foi criticado por Kuhn (que, como se afirmou, não lhe negou o caráter de ciência ou de empreendimento racional), causa espécie que se queira defender que a psicologia, em seu momento atual, seja capaz de resolver problemas teóricos com base exclusivamente em pesquisas empíricas ou experimentos.

Ainda mais espantosa é essa pretensão se considerarmos que as diversas abordagens da psicologia (que agora hesitamos em designar como teorias) sequer podem entrar em acordos gerais sobre os quadros de referência que permitem descrever os fenômenos observados, de tal modo que psicanalistas, humanistas, comportamentalistas, fenomenólogos, podem estar, de fato, observando eventos distintos ao estudarem o mesmo campo empírico de observação ou podem estar cumprindo, em comum, uma função ideológica ao criarem teorias de um indivíduo tornado natural ou, o que é o mesmo, sem natureza.

Teorias e pesquisas em psicologia

A psicologia é uma área do conhecimento constituída, à semelhança das ciências humanas e sociais em geral, por escolas de pensamento cuja busca tem sido, desde meados do século XIX, a de se orientar pelo modelo das ciências naturais em busca da matematização, ou estruturação lógico-matemática, de seu conhecimento:

Certamente, não há dúvida de que essa forma de saber empírico que se aplica ao homem (e que, para obedecer à convenção, pode-se ainda chamar de “ciências humanas” antes mesmo de saber em que sentido e dentro de que limites podem ser denominadas “ciências”) tem relação com as matemáticas: como qualquer outro domínio do saber, elas podem, sob certas condições, servir-se do instrumental matemático (Foucault, 1966/2000)

Abbagnano (2007Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia (5a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.) nos ofereceu uma breve tentativa de apresentação dos postulados de algumas de suas escolas, mas não se deve tomar tal tentativa como exaustiva ou mesmo abrangente. O que caracteriza essas diversas escolas é a busca por estabelecer postulados derivados parcialmente da empiria, parcialmente de princípios lógicos ou filosóficos, com o maior rigor possível, e estabelecer a partir deles procedimentos e objetos de estudo que permitam o aprofundamento do conhecimento psicológico dentro dos quadros de referência de cada uma das escolas. Nas palavras de Horkheimer (1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 33)

as ciências do homem e da sociedade têm procurado seguir o modelo das bem sucedidas ciências naturais. A diferença entre as escolas da ciência social que se dedicam mais à pesquisa de fatos, e outras que visam mais os princípios, não tem nada a ver com o conceito de teoria como tal.

Uma consequência é a de que a adoção de distintos princípios dificulta o diálogo entre as escolas e cria obstáculos para que discordâncias teóricas sejam resolvidas por pesquisa empírica tout court. Essas dificuldades são inerentes ao campo do conhecimento, jamais foram superadas e não parece haver qualquer indício de que o sejam no futuro próximo. Isso significa que a preocupação com a crise de replicabilidade da psicologia posiciona os problemas teóricos dessa área do conhecimento, paradoxalmente, em um contexto argumentativo - relativo a sua identificação com as ciências naturais - inadequado para o atual estágio de desenvolvimento do campo.

Apesar de no interior das diversas escolas podermos, em alguns casos, apresentar testes de hipóteses e replicação de pesquisas como modelo para o desenvolvimento do conhecimento, nem sempre isso se aplica em virtude do baixo grau de matematização obtido pelo conhecimento elaborado e, seguramente, não se pode pretender resolver por experimentos discordâncias cuja própria enunciação não pode ser feita em termos compatíveis com as diversas escolas da psicologia. Assim, o problema está dado antes mesmo da operacionalização dos conceitos a serem testados na forma de variáveis observáveis.

A questão de se, afinal de contas, tal área do conhecimento pode receber o título de científica parece igualmente descabida. Certamente, não se pode equipar as ciências humanas e sociais às ciências exatas ou da natureza e supor que suas diferenças indiquem qualquer hierarquia em termos de sua importância. É muito difícil comparar o impacto social das diversas áreas do conhecimento, especialmente quando se considera o quanto o conhecimento elaborado pela psicologia e pela sociologia podem ser relacionados às profundas mudanças de comportamento observadas nos países ocidentais (e em todo o planeta) ao longo dos séculos XX e XXI.

O aumento nas taxas de divórcio, a crítica crescente aos padrões sexuais heteronormativos, as transformações nas formas de cuidado e educação dadas às crianças - não há virtualmente qualquer âmbito cultural em que as ciências humanas e sociais não se tenham imiscuído e produzido alterações. E esse conhecimento, ademais, guarda distinções frente aqueles elaborados no âmbito da filosofia pura por sua preocupação fundamental com o estabelecimento de critérios rigorosos (a partir dos princípios adotados pelas diversas escolas) pelos quais confrontar o desenvolvimento teórico com as observações empíricas. Ao discorrer sobre os “sonhos embaraçosos de estar despido”, por exemplo, Freud (1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In J. Strachey, Título (J. Salomão & W. I. de Oliveira, trads., Vol. 4). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)) afirma:

Sua essência (em sua forma típica) está num sentimento aflitivo da ordem da vergonha e no fato de que se deseja ocultar a nudez, em geral pela locomoção, mas se constata estar impossibilitado de fazê-lo. Creio que a grande maioria de meus leitores já terá estado nessa situação em sonho.... Pois o contexto em que esse tipo de sonhos aparece durante minhas análises de neuróticos não deixa dúvida de que eles se baseiam em lembranças da mais tenra infância. Somente na nossa infância é que somos vistos em trajes inadequados, tanto por membros de nossa família como por estranhos − babás, criadas e visitas; e é só então que não sentimos vergonha de nossa nudez. Podemos observar como o despir-se tem um efeito quase excitante em muitas crianças, mesmo em seus anos posteriores, em vez de fazê-las sentir-se envergonhadas. Elas riem, pulam e se dão palmadas, enquanto a mãe ou quem quer que esteja presente as reprova e diz: “Uh, que escândalo! Vocês nunca devem fazer isso!” As crianças frequentemente manifestam um desejo de se exibirem. É difícil passarmos por um vilarejo do interior em nossa parte do mundo sem encontrarmos uma criança de dois ou três anos levantando a camisinha diante de nós − em nossa homenagem, talvez. Um de meus pacientes guarda uma lembrança consciente de uma cena de seus oito anos quando, na hora de dormir, quis ir dançar no quarto ao lado − onde dormia sua irmãzinha −, vestindo seu camisão, mas foi impedido por sua babá.

É difícil encontrar um exemplo mais significativo de articulação entre observação empírica e desenvolvimento teórico. Nesse caso, poderíamos arriscar dizer, sem querermos tratar tão brevemente de um assunto que já mereceu longas e detalhadas reflexões (Coelho, 2012Coelho, D. M. (2012). Exemption of science, neutrality of psychoanalysis. Psicologia USP, 23(3), 455-466.), que o rigor da observação decorre do setting analítico ou clínico, que estabelece as condições para uma adequada observação dos fenômenos sobre os quais o pensador irá teorizar. Não interessa essencialmente aqui, ademais, se a pesquisa é quantitativa ou qualitativa, se há ou não medição.

Por isso, ao mesmo tempo, apontar as falhas de replicação como o fracasso da psicologia como ciência empírica é retirar-lhe aquilo que lhe é essencial, que é sua busca por articular o desenvolvimento teórico com a observação empírica. Considere-se, por outro lado, que o “paradigma dominante” seja empirista, ou seja, proponha que a teoria seja induzida diretamente a partir da empiria, e pode-se aceitar que tal “paradigma” tenha-se mostrado falho tanto em seu projeto de constituir ciência social rigorosa quanto no privilégio que ele dá à observação de constantes “matemáticas” nos fenômenos, expresso pela importância central da replicação.

Não se deve esquecer, ademais, que correlações altamente significativas entre variáveis, encontradas nas pesquisas originais − especialmente na área da cognição − indicavam maiores chances de que resultados semelhantes fossem encontrados nos estudos de replicação, no artigo com o qual iniciamos nossa discussão (Open Science Collaboration, 2015). Isso mostra que há campo para avanços nas pesquisas empíricas mesmo quando se toma como certa a identidade entre psicologia e ciências exatas. Não se deve descartar, assim, que parte do fracasso possa ser atribuída a problemas metodológicos nos desenhos das pesquisas, e que o quadro desolador apontado por Smedslund (2016Smedslund, J. (2016). Why psychology cannot be an empirical science. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(2), 185-195. doi: 10.1007/s12124-015-9339-x
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) possa se tornar mais promissor se os pesquisadores se cercarem de maiores cuidados.

Pesquisa empírica e história

Há um problema aparentemente extrínseco a essa discussão e que diz respeito ao papel social do conhecimento científico. Se a ciência nunca foi neutra em termos de seu papel social, o século XX presenciou uma integração jamais vista entre sistemas produtivos e conhecimento científico (Svartman, Crochík, & Massola, 2015Svartman, B. P., Crochík, J. L., & Massola, G. M. (2015). A reestruturação produtiva universitária e suas consequências sobre a produção acadêmica. Psicologia USP, 26(2), 129-132. doi: 10.1590/0103-656420152602
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). Uma de suas consequências foi a quase indistinção existente contemporaneamente entre ciência e tecnologia, que leva boa parte da pesquisa realizada mesmo em universidades a buscar aplicações imediatas para o conhecimento desenvolvido:

O papel das ciências naturais e o desenvolvimento das ciências como força produtiva levaram a uma atenuação da distinção entre ciência e tecnologia, de tal modo que a reestruturação do capitalismo em torno, por exemplo, da microeletrônica, da biotecnologia e de meios cada vez mais sutis de vigilância e controle, levou a uma maior consciência da necessidade de políticas relativas à ciência, à tecnologia e à medicina. (Bottomore, 2012Bottomore, T. (2012). Ciências naturais. In T. Bottomore, Dicionário do pensamento marxista (2a ed., p. 88). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 88).

A exigência de previsibilidade pode incorporar a expectativa de que as humanidades sigam esta tendência, o que, aliás, elas jamais deixaram de fazer, e há aqueles que afirmam que uma análise aprofundada das tendências sociais é capaz de boas previsões (Adorno, 1995Adorno, T. W. (1995). Palavras e sinais: modelos críticos (2a ed., M. H. Ruschel, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. ). A psicologia incorporou-se desde o início do século XX ao sistema produtivo por meio do desenvolvimento de testes de inteligência aplicados a escolas e exército e de seu ingresso no mundo industrial. Suas aplicações tecnológicas vêm se ampliando desde então. Isso não está subsumido, mas relaciona-se aos problemas epistemológicos já apresentados. Entre os processos sociais e o desenvolvimento da ciência se estabelece uma relação necessária:

O manejo da natureza física, como também daqueles mecanismos econômicos e sociais determinados, requer a enformação do material do saber, tal como é dado em uma estruturação hierárquica das hipóteses. Os progressos técnicos da idade burguesa são inseparáveis deste tipo de funcionamento da ciência. (Horkheimer, 1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 35).

Por outro lado, a distinção entre ciências humanas e naturais não pode deixar de considerar o quanto ambos os campos de fenômenos se relacionam. Isso não apenas na medida em que os seres humanos fazem parte do mundo físico e biológico, mas na medida em que a própria cultura, objeto das humanidades, aproxima-se da natureza. O ocidente constituiu uma civilização que apresenta como um elemento cultural fundamental a separação entre cultura e natureza e, consequentemente, entre sujeito e objeto (Guba, 1990Guba, E. G. (1990). The paradigm dialog. Thousand Oaks, CA: Sage.), distinção que marca centralmente as reflexões de Heródoto a respeito da importância das leis (instituídas culturalmente) na compreensão da vida coletiva. A cultura no período clássico “excluía... o trabalho manual que se indicava depreciativamente pelo termo banausia que cabia ao escravo porque não distinguia o homem do animal” (Abbagnano, 2007Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia (5a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 225).

A cultura como âmbito da deliberação distingue-se da natureza como ordem e necessidade, como lei natural, “regra de comportamento que a ordem do mundo exige que seja respeitada pelos seres vivos” (Abbagnano, 2007Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia (5a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 700). A sociedade, porém, ao impor-se sobre os seres humanos como uma exterioridade opressiva, adquire o caráter de necessidade do qual os seres humanos, pelo desenvolvimento da civilização, buscaram escapar, fazendo que aqueles que observam criticamente a vida social descubram “que a sociedade é comparável com processos naturais extra-humanos, meros mecanismos, porque as formas culturais baseadas na luta e na opressão não são a prova de uma vontade autoconsciente e unitária” (Horkheimer, 1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 44).

Essa situação, longe de ser um mero dado, exige ação, na medida em que “o reconhecimento crítico das categorias dominantes na vida social contém ao mesmo tempo a sua condenação” (Horkheimer, 1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 45). A própria natureza, porém, entendida como essa exterioridade, está cada vez mais subsumida pelos processos sociais, de tal modo que a própria separação entre natureza e cultura se transforma historicamente e atualmente, dado o nível de desenvolvimento das forças produtivas, os objetos que temos a nossa volta são crescentemente determinados pela sociedade. Assim,

não é mais possível distinguir entre o que pertence à natureza inconsciente e o que pertence à práxis social. Mesmo quando se trata da experiência com objetos naturais como tal, sua naturalidade é determinada pelo contraste com o mundo social, e nesta medida dele depende. (Horkheimer, 1991Horkheimer, M. (1991). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, A. M. Lorapic, E. A. Malagodi, R. P. Cunha, L. J. Baraúna & W. L. Maar (Orgs.), Textos escolhidos (5a ed., pp. 31-68). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 40).

A importância de considerar a relação entre ciência e sociedade para nossa discussão não está tanto nos usos sociais da ciência, mas na constituição social dos objetos da ciência e de sua forma de operar. Assim, a distinção de Gergen (1973Gergen, K. J. (1973). Social psychology as history. Journal of Personality and Social Psychology, 26(2), 309-320. doi: 10.1037/h0034436
https://doi.org/10.1037/h0034436...
) entre ciências históricas, cujos objetos se alteram com o tempo, e ciências naturais, cujos objetos permanecem, merece ser considerada sob outra perspectiva. Se a mesma teoria ainda se mantém é porque o problema que a suscitou permanece, e mesmo que de formas diversas, pode ser explicado pelos mesmos determinantes: “tudo muda para nada mudar”, por exemplo. Mas isso traria como consequência que as ciências cujos objetos estão na história constituiriam teorias que, a rigor, não poderiam ser postas à prova - não caberia de fato falar aqui em replicação.

O fato de que nenhuma dessas teorias − como mimeses da realidade − pode ser posta à prova, pois a história não se repete, já é uma contraposição às conceituações de teorias que não tenham a história como sua base mais importante. A frase de Marx que indica que a história só se repete como farsa aponta para isso. De outro lado, não parece menos verdadeiro que a formação unilateral − só teoria ou só empiria − conduz também a problemas da replicabilidade, inclusive para sua própria definição. Uma teoria “fechada”, dogmática, irá sempre encontrar seus conceitos nos objetos; uma empiria “sem teoria” pode até reencontrá-los, mas não detecta suas potencialidades de alteração que talvez sejam distintas. Em síntese, uma contraposição a ser destacada é a que ocorre entre as teorias que consideram a história como elemento fundamental para pensar o movimento de seus objetos e as que consideram o objeto contextualizado ou natural, sem relação com determinações extrínsecas, e que operam em seu interior. O caráter histórico dos objetos implica uma relação bastante distinta com a teoria, e que é bem expressa na crítica de Kaufmann a O capital, que Marx tratou de reproduzir:

Para Marx, apenas uma coisa é importante: descobrir a lei dos fenômenos com cuja investigação ele se ocupa. E importa-lhe não só a lei que os rege, uma vez que tenham adquirido uma forma acabada e se encontrem numa inter-relação que se pode observar num período determinado. Para ele, importa sobretudo a lei de sua modificação, de seu desenvolvimento, isto é, a transição de uma forma a outra, de uma ordem de inter-relação a outra. (Marx, 2015).

Se levarmos a sério o caráter histórico do conhecimento científico, não é possível sequer definir de uma vez por todas o caráter natural ou cultural dos objetos, pois é possível que certos objetos naturais estejam submetidos crescentemente à práxis social, tornando-se objetos históricos. Isso deveria levar a ciência a buscar nesses objetos as leis de sua transformação. Por outro lado, é possível que na própria sociedade haja campos fenomênicos que, em virtude do caráter alienado e opressor da vida social, distanciem-se das possibilidades abertas à ação humana transformadora e ganhem o caráter de processos naturais. Os critérios de rigor para a pesquisa empírica em cada um desses casos devem ser, necessariamente, remetidos ao próprio objeto.

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  • 1
    Muitas das ideias aqui presentes nos foram apresentadas pela professora Eda Tassara (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) em contatos pessoais e comunicações orais compiladas pelo primeiro autor. Os eventuais erros são, evidentemente, de nossa responsabilidade.
  • 2
    Eda Tassara, comunicação pessoal, 28 de novembro de 2016.
  • 3
    Vale lembrar que a física cartesiana gozava de enorme reputação e popularidade nesse momento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016
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