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A Influência de Carolina Bori no Cenafor: uma Semente que Germinou

A INFLUÊNCIA DE CAROLINA BORI NO CENAFOR: UMA SEMENTE QUE GERMINOU

Raul Albino Pacheco Filho

Faculdade de Psicologia

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

O objetivo deste meu relato é documentar a importância da influência de Carolina Martuscelli Bori na implantação e desenvolvimento da Análise Comportamental e do Ensino Programado Individualizado no Centro Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal para a Formação Profissional (CENAFOR). E, para reconduzir minha memória às primeiras lembranças que tenho dessa incansável lutadora pelo desenvolvimento da psicologia brasileira, devo remeter-me aos tempos da minha formação na Faculdade de Psicologia.

Na época da minha graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Carolina foi aquela personagem importante de uma outra instituição (USP), professora dos meus professores, admirada à distância, vista apenas nos congressos e conferências. Lembro-me da satisfação experimentada e até de uma certa dose de vaidade quando, na ocasião da minha admissão no curso de pós-graduação na USP, em 1977, ela aceitou-me como seu orientando. Daí para a frente, o relacionamento mais próximo serviu apenas para confirmar a impressão anterior favorável que tinha a seu respeito, esclarecendo em maiores detalhes as razões da reputação que ela adquirira tanto no interior, quanto além dos limites do campo da psicologia brasileira.

Meu débito com ela não é apenas individual - pela ajuda que recebi como aluno e orientando - mas também como membro da comunidade de psicólogos e de pessoas interessadas na produção de conhecimento, por toda a sua atividade em favor da Psicologia, das Ciências Humanas e, mais amplamente, da pesquisa científica de uma forma geral. Ela detém para mim, ainda hoje, aquela aura algo mística das personalidades de reconhecimento público merecido, que a cordialidade no relacionamento e a afabilidade no trato dispensado aos seus alunos e orientandos não conseguem diminuir.

Meu contato profissional direto com Carolina iniciou-se em 1975, quando, a convite do cientista social, o Professor José Reginaldo Prandi, participei como docente em um curso de metodologia da pesquisa científica para pesquisadores em educação da cidade de Goiânia, promovido pelo CENAFOR. O CENAFOR era uma fundação vinculada ao Ministério da Educação e Cultura, tendo por

... objetivos a formação, especialização e aperfeiçoamento dos docentes, dirigentes e especialista das diversas modalidades em exercício nas áreas da educação técnica, da formação profissional e do treinamento empresarial, na agricultura, na indústria, no comércio e em serviços. (CENAFOR, 1974).

Confome já relatei em outro lugar (Pacheco Filho,1996) logo após a realização do referido estágio, fui convidado a participar da equipe responsável pela elaboração de um curso programado individualizado para o ensino da técnica survey de pesquisa. Nessa equipe, Carolina participava como consultora em técnicas de ensino individualizado. A minha formação em um projeto de graduação de psicólogos com especialização em modificação de comportamento, coordenado por Maria do Carmo Guedes, na PUC-SP, instrumentalizava-me adequadamente para poder participar da equipe responsável pelo empreendimento. Além do mais, os elos de ligação entre Carolina e Maria do Carmo criavam, a priori, uma base favorável para o meu relacionamento pessoal e profissional com Carolina.

Elaborado o curso e testados os módulos, em uma primeira aplicação em Florianópolis, em 1976, surgiu a possibilidade de minha contratação para o quadro dos funcionários efetivos do CENAFOR. Fui efetivado em setembro desse mesmo ano e ali tive a oportunidade de tomar pleno conhecimento de toda a extensão da relevância e da influência de Carolina na disseminação dos conhecimentos aplicados da Análise Experimental do Comportamento e do Ensino Programado Individualizado no CENAFOR e, mais amplamente, no Brasil.

Entrei no CENAFOR indicado para ocupar o lugar de um colega com quem eu travara um breve mas muito satisfatório contato, durante uma curta temporada nas Faculdades Objetivo e também no mencionado projeto de curso programado individualizado de técnica survey: Jefferson Machado Pinto. Ele, juntamente com Luiz Pimenta Neves Júnior e outros companheiros, coordenavam no CENAFOR uma série de projetos de aplicação dos conhecimentos da Análise Experimental do Comportamento (AEC) no desenvolvimento de novas metodologias educacionais. A competência e a iniciativa empreendedora de Pimenta, Jefferson e esses outros colegas, além da influência avalizadora de Carolina, eram responsáveis pelo prestígio que a AEC e o ensino programado individualizado desfrutavam no interior da instituição. Para mim, nessa ocasião, o ingresso no CENAFOR dava continuidade coerente a uma trajetória de formação iniciada na graduação, já que seria apenas posteriormente que a reflexão teórica sobre a minha prática profissional definiria a minha aproximação à Psicanálise e o meu distanciamento em relação à AEC (Pacheco Filho, 1996).1 1 Conforme relato em Pacheco Filho, Raul A. A Formação Histórica, Social e Pessoal de um Interesse, op. cit.

Naquela época, Pimenta, Jefferson e vários outros membros do CENAFOR faziam pós-graduação na Psicologia Experimental da USP e muitos deles estavam sob orientação de Carolina. Como já era atuante e disseminada a influência de Carolina nessa década de 70! A extensão do seu trabalho ampliava-se para bem além dos limites do estado de São Paulo, com a recepção de alunos de outros estados na pós-graduação em Psicologia Experimental, na USP. Pude constatar, através dos meus contatos e viagens a diversos estados do Brasil, pelo CENAFOR, a amplitude de alcance do trabalho vigoroso e entusiasmado da comunidade constituída pelos psicólogos experimentais dessa época. E, com certeza, uma considerável parcela dessa vibração devia-se à consistente liderança de Carolina.

Foi só mais tarde que vim a ter completa ciência do fato de que Carolina fora um dos criadores da metodologia de ensino individualizado, conforme nos lembra o depoimento de Fred S. Keller no seu artigo em que conta a história da idealização dessa forma de ensino, difundida por todo o mundo:

The teaching plan with which this book concerns itself had its beginings on an evening in late March, 1963, in front of the fireplace in my Englewood, New Jersey, home. It came at the end of a long brainstorming session in which four psychologists took part: Rodolpho Azzi and Carolina Martuscelli Bori, then at the University of São Paulo, Brazil; J. Gilmour Sherman, who had accompanied them to the United States during his tenure of a Fullbright-Hayes Professorship at their institution; and myself, then still teaching at Columbia University. (Keller, 1974, p.6, grifos meus).

E Carolina esteve presente não apenas no momento da criação do ensino programado individualizado, mas também na sua posterior difusão:

PSI [personalized system of instruction] is not limited to the United States. As reported in Chapter Two the method had its initial tryout in Brazil, developed in response to a request from the University of Brasília. Our Brazilian colleagues have not been inactive since these early days. Under the leadership of Professor Carolina Martuscelli Bori, PSI has had an independent but largely parallel development in Latin América (...) The achievements of the Brazilians were recognized in February 1973 when UNESCO sponsored a two-week worshop in Brasília attended by teachers from eleven Latin American countries. (Sherman, 1974, p.63-64, grifos meus).

A atuação pioneira de Carolina possibilitou a expansão do ensino programado individualizado por todo o Brasil, onde passou a ser utilizado nos diferentes níveis de ensino e de treinamento. E, como em muitos outros lugares e instituições, também no CENAFOR ela esteve à frente da sua implantação e desenvolvimento. Aí, a contribuição de Carolina iniciou-se em 1973, através de atividades de assessoria e treinamento em ensino programado individualizado e em análise comportamental para coordenadores, técnicos e docentes da fundação. Em um primeiro momento, participaram dessas atividades os membros da Divisão de Tecnologia Educacional. Nos anos seguintes, esse pessoal inicialmente treinado por ela, juntamente com alunos e orientandos de Carolina da pós-graduação da USP, contratados para outros setores da instituição, expandiram decisivamente o ensino programado individualizado e a análise comportamental no CENAFOR, tornando-os, ali, tecnologias dominantes.

Um dos primeiros projetos envolvendo a utilização do ensino individualizado no CENAFOR foi o Projeto "Ensino de Física Aplicada". Carolina e sua colega da USP, Maria Amelia Matos, assessoraram a equipe do projeto, que desenvolveu um conjunto de materiais instrucionais para utilização nos cursos de Física para o ensino de 2º. Grau. Foram elaborados cadernos-textos de leitura, exercícios para o aluno resolver, avaliações, livros de instrução programada, equipamentos de laboratório e recursos áudio-visuais auxiliares de ensino. Também foi elaborado material de treinamento, para os professores de 2º. Grau que viessem a utilizar os recursos do projeto com seus alunos. Mais de 40 técnicos do CENAFOR - professores de Física, educadores, psicólogos e encarregados da construção de equipamentos de laboratório - participaram do projeto.

Dezenas de projetos envolvendo o ensino programado individualizado e a análise comportamental germinaram no CENAFOR, a partir do impulso inicial dado por Carolina. Alguns contaram com sua participação direta. Outros, foram coordenados por ex-alunos seus, contratados pela fundação, ou por técnicos que dela tinham recebido treinamento. Alguns desses projetos utilizaram-se das referidas tecnologias em programas de formação e aperfeiçoamentos de docentes e pessoal das instituições de ensino de 2º. Grau. Outros, mais ambiciosos, relacionaram-se a pesquisas visando aperfeiçoar e desenvolver as próprias tecnologias comportamentais de ensino e o ensino individualizado. Um a Reunião Latino-Americana de Grupos de Estudo sobre o Sistema de Instrução Personalizada, chegou a ser promovida pela instituição, em convênio com a UNESCO e outras entidades.

No CENAFOR, os projetos envolvendo ensino programado individualizado e a análise comportamental concentraram-se especialmente em duas de suas quatro divisões: a Divisão de Tecnologia Educacional e a Divisão de Pesquisa e Desenvolvimento. Foi em uma unidade desta última divisão - a Seção de Novas Metodologias - que inúmeros projetos de aplicação e de desenvolvimento da análise comportamental e do ensino individualizado vieram a ser realizados sob a liderança de Luiz Pimenta. Aliás, todos os profissionais dessa seção, incluindo eu mesmo e Hebe Mancini Nicolau (que substituiu Pimenta na chefia da seção, após a sua saída), contaram com a contribuição de Carolina, de algum modo, em suas formações: seja como orientadora ou como professora no curso de pós-graduação na Universidade de São Paulo.

Um dos primeiros trabalhos desenvolvidos pela Seção de Novas Metodologias relacionou-se com a Análise Comportamental de uma importante parcela das atividades de um professor: a ação de programar eficazmente um curso ou treinamento. O estímulo para a realização desse projeto veio das idéias inovadora de Carolina, transmitidas em seu curso de pós-graduação, que todos os membros da equipe encarregada do projeto haviam cursado. Com base em uma análise comportamental, elaborou-se um curso programado individualizado que ensinava os seguintes comportamentos a professores e responsáveis por treinamento de mão-de-obra: definir os objetivos de ensino, analisa-los e descrevê-los comportamentalmente, planejar os procedimentos didáticos para ensiná-los e coletar e analisar dados referentes à realização do curso. Participaram da elaboração da cadeia comportamental e da programação do material instrucional os seguintes psicólogos: Hebe M. Nicolau, Jefferson Machado Pinto, Lígia Maria Marcondes Machado, Lizete F. Onesti, Luiz Pimenta Neves Junior Mário L. V. da Silva e Sandra M. Bettoi.

Além da influência fundamental sobre a formação da equipe de técnicos da Seção Novas Metodologias, Carolina também atuou pessoalmente como assessora e coordenadora em projetos ali desenvolvidos, como o já mencionado curso programado individualizado de técnica de pesquisa survey. Em outro projeto envolvendo programação de ensino - Processo de Ensino-Aprendizagem: Curso Programado Individualizado para Treinar Professores a Programar suas Disciplinas, - Carolina e Maria do Carmo foram contratadas para coordenar a equipe de psicólogos responsáveis pela elaboração dos três módulos do curso: aula expositiva, exercício escrito e programação da disciplina. Maria do Carmo e quatro dos cinco membros da equipe pertenciam à PUC-SP. Todos os cinco, contudo, além da própria Maria do Carmo, haviam sido alunos de Carolina na pós-graduação da USP: Célia Maria Miraldo Idoeta, Maria Elisa Mazzili, Maria Luiza Guedes, Teresa Maria Sério e Valdir Bettoi.

Diversos outros projetos foram realizados a partir das necessidades apontadas pelos trabalhos iniciais, utilizando-se dos dados fornecidos pelas aplicações desses primeiros cursos. O ensino agrícola de 2º. Grau foi um dos importantes focos de atenção da equipe da Seção de Novas Metodologias. O projeto Modelo Experimental de Curso para Programação do Funcionamento de uma Escola de 2º. Grau - por nós chamado Projeto Bambuí (nome da cidade de Minas Gerais escolhida para uma" aplicação-piloto") procurou responder ao seguinte conjunto de necessidades diagnosticadas:

ensinar o conjunto dos professores, diretor, técnicos e alunos de cada escola-fazenda, da área agrícola de 2º. Grau, a estudar as necessidades da região da sua escola e a elaborar o currículo da mesma com base nessas necessidades; ensinar o conjunto dos professores da escola a integrar os objetivos das diferentes disciplinas, a partir da definição do conjunto de comportamentos, habilidades e conhecimentos necessários à atuação do técnico agrícola de 2º. Grau da região.

Da equipe de 14 técnicos responsáveis pelo Projeto Bambuí, apenas três psicólogos e dois sociólogos não haviam sido alunos de Carolina na pós-graduação da USP. Foram os seguintes, os técnicos do projeto: Célia Maria Capeletti Gonçalves, Fábio Barbosa Ribes Júnior, Hebe Mancini Nicolau, Ivany Botura Areias, Jane Margareth de Castro, Jefferson Machado Pinto, Lizete Freire Onesti, Luiz Pimenta Neves Júnior, Mário Lúcio Vieira da Silva, Odair Prescivalle, Raul Albino Pacheco Filho, Rosane Lourdes Silva, Sandra Macedo Bettoi e Sônia Maria Padalino.

Outros projetos envolvendo o ensino agrícola de 2º. Grau relacionaram-se aos cursos do esquema emergencial de formação de professores de disciplinas especializadas: o, na época, chamado Esquema II, do Ministério da Educação e Cultura. Esses cursos, com mais de 1200 horas de duração, equivaliam à licenciatura de nível superior, habilitando portadores de diplomas de nível médio de técnico agrícola ao magistério de 2º. Grau. Tinham, como objetivo, suprir a carência de pessoal docente de nível superior em diversas regiões do país. Equipes de professores universitários das disciplinas propedêuticas (Matemática, Química e Biologia) e das disciplinas específicas (Agricultura, Zootecnia e Economia e Administração Rural) foram coordenadas por psicólogos especializados em análise comportamental e em ensino individualizado, para elaborarem o material instrucional (textos de leitura, instruções, exercícios e avaliações) das diferentes disciplinas que compunham os referidos cursos. Dois cursos distintos foram elaborados: um para professores das disciplinas especializadas relacionadas à Agricultura e outro para professores das disciplinas específicas relacionadas à Zootecnia. Nos dois casos, a coordenação das equipes de professores que elaboraram os cursos esteve a cargo de orientandos de Carolina na pós-graduação da USP: eu próprio e Sílvio P. Botomé.

Como se pode constatar por todos estes exemplos, a presença de Carolina no CENAFOR foi o fato fundamental para a importância que a AEC e o ensino individualizado vieram a ter nessa instituição; seja por sua atuação direta, seja pela influência exercida sobre a formação dos que ali trabalharam. E a sua participação nesse contexto constitui apenas uma parte das diversas atividades que Carolina Bori vem desenvolvendo ao longo de toda a sua carreira, que transcende largamente o limite das suas contribuições à disseminação da AEC no Brasil. A verdade é que os psicólogos não podem considerar-se os únicos beneficiários da sua dedicação à produção de conhecimento, já que a abrangência de sua influência estende-se por todo o campo mais amplo da Ciência, como um todo. A sua liderança na presidência da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - no período 1987 a 1989, talvez seja o exemplo mais representativo dessa amplitude de horizonte de atuação. Neste sentido, se aplicada à totalidade da sua contribuição, a frase do título exigiria uma retificação:

"A Influência de Carolina Bori na Ciência Brasileira ... uma semente que germinou!".

  • CENAFOR. Relatório de Atividades de 1974 Săo Paulo, 1974
  • KELLER, F.S. The history of PSI. In: KELLER, F.S.; SHERMAN, J.G. (Orgs) The Keller Plan Handbook Menlo Park, CA, W. A. Benjamin, 1974, p.6-13.
  • PACHECO FILHO, R. A. A formaçăo histórica, social e pessoal de um interesse. In: CAMPOS, R. H. F. (Org.) História da psicologia: Pesquisa, Formaçăo e Ensino Săo Paulo, EDUC-ANPEPP, 1966.
  • SHERMAN, J. G. PSI Today. In: KELLER, F. S.; SHERMAN, J. G. (Orgs.) The Keller Plan Handbook. Menlo Park, CA, W. A. Benjamin, 1974.
  • 1
    Conforme relato em Pacheco Filho, Raul A.
    A Formação Histórica, Social e Pessoal de um Interesse, op. cit.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1998
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