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Arthur Bispo do Rosario além dos muros da Colônia1 1 Como procedimento metodológico, assumo a data de nascimento imprecisa e o nome do artista Arthur Bispo do Rosario sem acento gráfico, conforme estabelecidos por (Hidalgo, 1996).

Arthur Bispo do Rosario au-delà des murs de l’asile

Arthur Bispo do Rosario más allá de los muros del asilo

Resumo

Este trabalho propõe um olhar sobre a obra de Arthur Bispo do Rosario, que secundariza a patologia e prioriza o vivido. É frequente o cotejamento com Marcel Duchamp por conta da similaridade formal sustentada por algumas de suas obras. Mas a heterogeneidade dos percursos desafia a recepção a uma reflexão mais detida sobre suas respectivas experiências. Em Arthur Bispo do Rosario, a condição de recluso notadamente incorre em fortes restrições materiais e contextualiza a obra. Em seu inventivo e inusitado projeto, funda tanto menos uma estética da feiura e tanto mais - por sua força de verdade - o belo artístico, não como lei formal e plástica, mas como resultado ou êxito de uma experiência estética que se torna experiência artística. Espera-se adotar um ponto de vista que, prescindindo dos caminhos usuais - como a reincidente aproximação entre esses dois artistas -, busque ver além dos limites discerníveis do volume das obras, evidenciando uma verdade interposta como “quase-sujeitos”, nos termos de Georges Didi-Huberman. Examinar a obra têxtil de Arthur Bispo do Rosario pelos vãos da percepção é assumir sua indeterminação e considerá-la na categoria de instável a que pertencem os objetos de arte mediadores de realidades vividas. Evidenciar sua magnitude é também evidenciar sua importância como um possível instrumento de descontaminação e despreconceitualização do olhar que categoriza e penaliza artistas e obras, diagnosticando-as.

Palavras-chave:
Arthur Bispo do Rosario; outsider artist; fenomenologia; recepção estética; Marcel Duchamp

Résumé

Cet article propose un regard sur le travail d’Arthur Bispo do Rosario, en mettant la pathologie dans un second plan et priorisant l’expérience vécue. La comparaison avec Marcel Duchamp est fréquente en raison de la similitude formelle entre certaines de leurs œuvres. Mais l’hétérogénéité des leurs chemins défie la réception à une réflexion plus déténue sur leurs respectives expériences. Chez Arthur Bispo do Rosario, sa condition de reclus notamment entraîne de fortes restrictions matérielles et contextualise son ouvrage. Dans son inventif et incroyable projet, il fonde moins une esthétique de la laideur que bien plus encore - en raison de sa force de vérité - le beau artistique, non pas comme une loi formelle et plastique, mais comme le résultat ou la réussite d’une expérience esthétique qui devient l’expérience artistique. En adoptant un point de vue qui méprise les formules usuelles - comme le récurrent rapprochement entre ces deux artistes - nous cherchons voir au-delà des limites discernables du volume des œuvres, en montrant la vérité interposée comme «presque-sujets», concept proposé par Georges Didi-Huberman. Dans notre perspective, nous regardons l’œuvre textile d’Arthur Bispo do Rosario par les lacunes de la perception, en assumant son indétermination et la considérons dans la catégorie d’instable à laquelle appartient les objets d’art médiateurs des réalités vécues. Mettre en évidence sa magnitude est également prouvé son importance comme possible instrument de décontamination et comme moyen d’éradication des préjugés du regard qui catégorise et pénalise les artistes bruts et leurs œuvres, en les diagnostiquant.

Mots-clés:
Arthur Bispo do Rosario; l’Art Brut; phénoménologie; réception esthétique; Marcel Duchamp

Resumen

En este trabajo se propone a reflejar sobre la obra de Arthur Bispo do Rosario, dejando en segundo plano la patología y priorizando lo vivido. Es frecuente la comparación de su produción con la de Marcel Duchamp, debido a la similitud formal con base en algunas de sus obras. Sin embargo, la heterogeneidad de los caminos por ellos vividos desafía la interpretación a una reflexión más contenida sobre sus respectivas experiencias. En Arthur Bispo do Rosario, su condición de recluso notadablemente incurre en fuertes restricciones materiales y contextualiza su obra. En su inventivo e inusitado proyecto funda mucho menos una estética basada en la fealdad, y mucho más -por su fuerza de verdad- lo bello artístico no como ley formal y plástica, pero como resultado, éxito de una experiencia estética que se convierte en una experiencia artística. Teniendo en cuenta lo anterior, se espera adoptar un punto de vista inusitado, prescindiendo de los caminos usuales, como la proximidad entre los dos artistas, y busque ver más allá de los límites del volumen de sus obras, evidenciando una verdad que se ha interpuesta como “casi-sujetos” em los términos de Georges Didi-Huberman. Examinar la obra textil de Arthur Bispo de Rosario por los vacíos de la percepción es assumir su indeterminación y considerarla como categoría inestable, es decir, a la que pertenecen los objetos de arte mediadores de realidades vividas. Evidenciar la magnitud de su obra es igualmente evidenciar su importancia como un posible instrumento de descontaminación y desprendimiento de los prejuicios de la mirada que categorizan y penalizan a artistas y obras, diagnosticándolas.

Palabras clave:
Arthur Bispo do Rosario; outsider artist; fenomenología; recepción estética; Marcel Duchamp

Abstract

This article proposes a perspective on Arthur Bispo do Rosario’s work that assigns a secondary role to the pathology and prioritizes his experience. The comparison with Marcel Duchamp is usually made due to the formal similarity among their works of art. However, the heterogeneity of their trajectories challenges the audience to reflect carefully about the experiences of each one. In Arthur Bispo do Rosario, his status as an inmate clearly entails heavy constraints of the material and contextualizes his work. In his inventive and unusual project, he establishes less an aesthetics of ugliness but much more - by its strength of truth - one of artistic beauty, not as a formal and plastic law, but as a result or achievement of an aesthetic experience that becomes an artistic experience. The standpoint pursued in this article does not follow the usual paths - like the recurrent comparisons between these two artists -, and it searches to see beyond the discernible limits of the work volumes, highlighting a truth interposed like “almost-subjects”, in accordance with Georges Didi-Huberman’s theoretical framework. To examine the textile work of Arthur Bispo do Rosario by the gaps of perception is to assume its indeterminacy and to put it into the category of the unstable, in which stand the objects of art that mediate the lived realities. To emphasize its magnitude is also to emphasize its importance as a possible tool to decontaminate and eradicate the prejudice on the look that categorizes and penalizes artists and their works of art by diagnosing them.

Keywords:
Arthur Bispo do Rosario; outsider artist; phenomenology; aesthetics reception; Marcel Duchamp

Qual a cor da minha aura?

(Arthur Bispo do Rosario)

O que nos atrai na obra de arte e justifica que algumas das mais exuberantes e ricas formas de expressão artística surjam das mais miseráveis condições humanas? Estaria a beleza supostamente fundada em uma mórbida atração pela ruína? Aderir a essa posição, fatalmente implicaria um sentido determinista de obra de arte, fundamentando seu vigor como se fosse emergir de episódios explícitos de decadência, inabilidade técnica ou tropismo psíquico. Talvez o que nos intrigue nas expressões artísticas é um índice de humanidade imprimido na obra por força da penúria ou do gozo das experiências vividas, sempre pronto a habitá-la. Em alguns casos, é a própria “fuga do mundo humano, a alienação de sua humanidade” (Merleau-Ponty, 1984Merleau-Ponty, M. (1984). A dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, Textos selecionados (Marilena de Souza Chauí, Nelson Alfredo Aguilar e Pedro de Sousa Moraes, trads., 2a ed., pp. 113-126). São Paulo, SP: Abril Cultural., p. 114). Algumas obras se constituem com uma completude tal de sentidos, paradoxalmente em meio a uma incompletude, existente nas inúmeras possibilidades adiadas, plenas de indecisão, entre o êxito e o fracasso, nas várias tentativas fadadas ao abandono ou nas retomadas que se oferecem à indeterminação que surge em novas investiduras. De certa maneira, minha visão do mundo faz o mundo, diz (Merleau-Ponty, 1984Merleau-Ponty, M. (1984). A dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, Textos selecionados (Marilena de Souza Chauí, Nelson Alfredo Aguilar e Pedro de Sousa Moraes, trads., 2a ed., pp. 113-126). São Paulo, SP: Abril Cultural.), assim, a obra de arte é uma visão, uma posição bastante particular, é o modo como imprimo minha marca pessoal, desenhando os passos de meu percurso pelo mundo. O empenho entre a minha exploração do mundo e as respostas sensoriais solicitadas resulta em uma medida das coisas que ampara um pensamento puro, de ver ou de sentir. Talvez o brilhantismo de alguns artistas resida justamente na capacidade surpreendente de encontrar beleza em lugares onde a maioria das pessoas simplesmente sequer põe os olhos.

Gosto: entre a opinião e o exame

Quando Marcel Duchamp pensou os ready-made, esforçou-se por encontrar objetos anônimos, que, esvaziados de sua função original sob o gesto do artista, unicamente pelo fato de elegê-los, converteria em obras de arte. Seu interesse era muito mais filosófico e irônico que plástico. Marcel Duchamp, um dos maiores pensadores de arte dos últimos séculos, não necessariamente se opunha à beleza, porém a questionava. Buscando precisão conceitual dizia que seus objetos eram a-Rtísticos, pois falar em antiartístico é recusar algo que, por contraste, afirma seu duplo. Considerava que o objeto artístico transborda a noção de belo tradicional: obras não são belas ou feias, são signos, instrumentos cuja negação ou interrogação recai sobre crenças irrefletidas. Transitar entre o bom e o mau gosto é quase como modismo ou receita. O gosto é mera opinião, recusa-se ao exame, é

noção epidérmica da arte, no sentido sensual e no social: um prurido e um signo de distinção. Pelo primeiro se reduz a arte à sensação; pelo segundo introduz uma hierarquia social fundada em uma realidade tão misteriosa e arbitrária como a pureza do sangue e a cor da pele. (Paz, 1977Paz, O. (1977). Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, SP: Editora Perspectiva., p. 23)

Até o Romantismo, a lei da arte foi a beleza, diz (Pareyson, 2001Pareyson, L. (2001). Os problemas da estética (p. 138). São Paulo, SP: Editora Martins Fontes.). Depois, a beleza canônica foi gradativamente sendo substituída pela beleza da expressão de um verdadeiro sentimento de interioridade. Com o despontar da modernidade, o conceito de belo permitiu a incorporação de objetos feios e repugnantes e foi ganhando consideração menos estrita no campo da arte, além de descolar-se cada vez mais de um saber leigo e subjetivo do termo. Aderiu-se a uma enorme gama de predicados que tendem mais para uma doutrina da sensibilidade que da plasticidade: “… a beleza não é lei, mas resultado da arte: não seu objeto ou fim, mas seu efeito e êxito, não que a obra de arte seja artística porque bela, mas é bela porque artística” (Pareyson, 2001Pareyson, L. (2001). Os problemas da estética (p. 138). São Paulo, SP: Editora Martins Fontes., p. 138). Se por um lado o belo foi aderindo à verdade das experiências vividas, por outro, a compreensão desses conceitos se complexificou e muito.

O regime de consumo atingiu o campo da arte e, em grande medida, exasperou a problematização. Foi no período moderno, em meados do século XX, que artistas e público passaram a ser mais intensamente mediados. Arte Moderna surge em meio a uma economia industrial em uma sociedade que, diante da onipresença do consumo que atinge todas as instâncias da vida, acata essa dinâmica incondicionalmente. E, assim, produtores e consumidores, cada um em seu papel, colaboravam para azeitar a máquina do capital:

as posições desses atores, responsáveis pela aura da obra, por seu poder de sedução e, portanto, por seu valor tanto no plano do julgamento estético quanto no plano econômico, são elas próprias dependentes daquilo que uma sociedade atribui como valor à sua produção, da maneira pela qual essa sociedade pretende utilizá-la, do lugar que seu sistema hierarquizado de distribuição de bens estabelece para a arte. (Cauquelin, 2005Cauquelin, A. (2005). Arte contemporânea. Uma introdução (R. Janowitzer, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 28)

Aos poucos, o marchand - e, mais tarde, a crítica especializada e o mercado de arte - foi se consolidando como um elo indispensável à circulação da produção artística. Formador de opinião, colaborava na lapidação da imagem tanto do artista quanto da obra. Tinha poder para integrar ou insular artistas e atrair o público. Juiz do gosto, passou a figurar como elemento central nos salões atuando, sempre que necessário, na separaração, na distinção e na hierarquização. A crítica ganhava teor ideológico quando disparada na direção de artistas independentes legatários do viés romântico, ou de artistas transgressores e marginais que, em muitos casos, sequer consideram artísticos seus projetos.

Não obstante a arte marginal, com toda a beleza de seu fazer liberto, democratiza o gesto criador a todo homem, ainda assim, uma prática introjetada - temos sido educados nesse sentido - faz que o primeiro ímpeto ao deparar com um trabalho muitas vezes desconcertante seja buscar linhagem. O fato de que algumas obras apresentem semelhanças formais - exlusivamente formais, importante salientar - nos conduz ao conforto do caminho mais fácil: uma leitura relacional, que enfraquece a real vocação e se estabelece pela aproximação ou pelo cotejamento de obras e de artistas, a exemplo do que ocorre com a familiaridade entre Roda da Fortuna e Vaso Sanitário, de Arthur Bispo do Rosario, e Roda de Bicicleta, La Fontaine e os ready-made, de Marcel Duchamp. Também as obras do sergipano onde a ênfase é o inventariado seguem alinhadas com a Pop art, devido ao colecionismo, quando este não contabiliza a fatura da esquizofrenia. Em uma entrevista, disse Marcel Duchamp: “O pintor se integrou completamente na sociedade atual, já não é mais um pária...” (Paz, 1997Paz, O. (1977). Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, SP: Editora Perspectiva., p. 54), mas a história mostrou que alguns artistas parecem desafiar suas palavras.

O eleito, os eleitos...

Arthur Bispo do Rosario consumiu cinquenta de seus oitenta anos vividos dentro de uma instituição diagnosticado com esquizofrenia paranoide. A experiência como grumete da Marinha de Guerra parece ter sido relevante na constituição da obra, a exemplo do testemunho de uma sociabilidade improvisada pela pecha de excluídos que circulavam pela elegante Rio de Janeiro, então capital da República, e que buscavam insistentemente transgredir o padrão imposto pelo recém-chegado capitalismo. Mas, de fato, são as práticas de sua cidade natal, Japaratuba, Sergipe, que protagonizam o projeto. Cada fio destecido e bordado está impregnado pela memória dos folguedos sacros e profanos, da artesania local e do “catolicismo rústico” (Sevcenko & Novais, 1998Sevcenko, N. (Org.), & Novais, F. A. (Coord.). (1998). História da vida privada no Brasil (Vol. 3). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) - paradigmático na conformação de Sergipe. Esse repertório é posto em situação no traçado de sua mitologia pessoal e missionária, materializada no processo de destecimento dos uniformes e lençóis azuis da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, cujo material arrematado servia de insumo para assemblages, túnicas e fardas.

Uma trajetória dura o vitimou, asilado dentro e fora dos muros manicomiais pela exclusão econômica e social. Mesmo diante de um enorme desconforto material e psíquico, soube arremessar-se e produzir uma obra acima de qualquer questionamento - até mesmo sob referenciais intelectuais hegemônicos. Arthur Bispo do Rosario faz surgir novas e inusitadas acepções em seus “dejetos feiosos” (Coutinho, Carvalho, & Moreira, 2007Coutinho, F., Carvalho, M., & Moreira, R. (2007). A vida ao rés do chão: artes de Bispo do Rosario. Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras.), dos quais lança mão em seu inventário. A vida que levou não foi fácil, e a retomada de seus passos também não é. A constrangedora beleza das obras ganha um sentido reinventado em suas mãos e nos assalta quando em contato com uma linguagem que não é óbvia, como a arte não é. Produzem intermitentemente a infinitude do conhecimento, o significado renovado. Nós vivemos com as coisas e elas vivem em nós. A obra exige o outro, integral e implicadamente.

Arthur Bispo do Rosario é desafiado a empenhar seus punhos de pugilista a destecer, bordar e rebordar delicadamente, mas também a coletar restos e sobras do mundo para sua transformação em artefatos a serviço do divino. A obra segue o roteiro de um rito de passagem e de reconstrução do mundo a partir de uma normativa que tomou para si. Nunca se pretendeu artista, e como mensageiro que era, se pronunciou.

O ponto alto de sua produção é o Manto da apresentação (Figura 1), pelo qual tinha enorme apreço e tratou de envolvê-o em uma aura de sacralidade. A antropometria de algumas de suas obras indicia uma evidência ótica como evidência presencial, o que traz inelutavelmente à luz seu traço antropomórfico. Vários são os registros - fotos e vídeos - nos quais aparece trajando-o, ou um de seus uniformes. Foi escolhido por Deus para o Dia do Juízo, quando vestiria o Manto2 2 Arthur Bispo do Rosario destecia os fios dos uniformes e dos lençóis azuis da Colônia, colecionava os fios para depois utilizá-los nos bordados de suas peças sacras, rememorando práticas da tradição artesanal de Japaratuba/SE, sua cidade natal e auxiliaria os também escolhidos a fazer a travessia para o mundo onde tudo seria igualado, vales e montanhas.

Figura 1
Manto da apresentação (detalhe), Arthur Bispo do Rosario, s/d. Tecidos (algodão e lã), linha, papelão e metal. 118,5 x 141,2 cm. Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

O receptáculo de dimensões volumétricas é construído a partir de um cobertor bordado e modulado como vestimenta. A face interior é completamente recoberta por uma espiral de nomes bordados com os fios azuis provenientes do destecimento de lençóis e uniformes da colônia manicomial. A concretude espacial do Manto tem volumetria de estojo, sudário, cerca e envolve em uma experiência de esvaziamento do lugar, de ausência, extensiva aos indivíduos cujos nomes povoam a face interna e também os demais nomes, ocultos pelo franjado do outro lado, na bainha externa do Manto:

morte como figura iconográfica, é de fato a ausência que rege esse balé desconcertante de imagens sempre contraditas. A ausência, considerada aqui como motor dialético tanto do desejo - da própria vida, ousaríamos dizer, a visão da visão - quanto do luto - que não é “a morte mesma” (isso não teria sentido), mas o trabalho psíquico do que se confronta com a morte e move o olhar com esse confronto. (Didi-Huberman, 2010Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., pp. 128-129)

Uma experiência corpórea tem amplitude para descortinar um universo de significações picturais que (Frayze-Pereira, 2010Frayze-Pereira, J. (2010). Arte, inquietudes entre a estética e a psicanálise (2a ed.). São Paulo, SP: Ateliê.) diz existir desde os primórdios. O homem mantém uma relação incerta com a própria imagem, retocando, mutilando ou ornamentando o corpo através da tatuagem, da maquiagem ou de cirurgia:

o homem nasce prematuramente, com uma pele muito fina, muito frágil, muito pura e que, por isso, pede uma proteção artificial, esta não é apenas física, mas, sobretudo, simbólica. Quer dizer, ao nascer, o homem fica exposto num duplo sentido: aos perigos, mas também aos olhares (p. 62).

É através do corpo que é possível perceber-se e perceber os outros. O corpo é reflexivo e é - ao mesmo tempo - vidente e visível, “o corpo é a expressão concreta de uma existência ambígua” (Frayze-Pereira, 2004Frayze-Pereira, J. (2004). A dimensão estética da experiência do outro. Revista Pro-posições, 15(I, 43), 19-25. Recuperado de http://www.proposicoes.fe.unicamp.br/proposicoes/textos/43-dossie-pereirajaf.pdf
http://www.proposicoes.fe.unicamp.br/pro...
, p. 22), e essa reflexão se espraia para as coisas ao redor como se elas fossem seu prolongamento ou seu anexo.

Em meio à dialética dos olhares, a aura dos objetos - religiosos ou artísticos - é desafiada. Dela depende a inacessibilidade da imagem cultual, que tem essencialmente de ser inatingível. O valor do culto é o que dá à aura seu poder de experiência, concentrando a convergência dos olhares que os crentes dedicam ao objeto, diz (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (primeira versão). In W Benjamin, Magia e técnica, arte e política: - obras escolhidas (3a ed., Vol. 1). São Paulo, SP: Brasiliense.). Aquele que crê não se atreve a olhar por sentir-se observado, manifestando a lembrança de todas as imagens que apelam para o Memorial da Paixão.

Recusando a sacralidade da arte, Marcel Duchamp desde cedo travou uma cruzada contra a aura atribuída às obras artísticas. Ele foi um dos primeiros a perceber e a se sensibilizar denunciando, em suas obras e atitudes, a capacidade destruidora da atividade mecânica moderna. Em seu brilhante cálculo, Octavio Paz explica como esse processo destruidor fez com que o homem moderno se afastasse gradativamente de sua infância histórica, dos deuses antigos e da natureza, renegando-os. O gesto de desafio e a negatividade estão na eleição de inutilidades domésticas, de objetos manufaturados, os ready-made:

Para os antigos a natureza era uma deusa e, mais ainda, um viveiro de deuses - por sua vez manifestações da energia vital em seus três tempos: nascimento, copulação e morte. Os deuses nascem e seu nascimento é o do próprio universo; enamoram-se (às vezes de nossas mulheres) e a terra se povoa de semideuses, monstros e gigantes; morrem e sua morte é o fim e a ressureição do tempo. Os objetos não nascem: nós os fabricamos; não têm sexo; e tampouco morrem: gastam-se, tornam-se inúteis. Seu túmulo é a lixeira ou o forno de refundição. A técnica é neutra e estéril. A técnica é a natureza do homem moderno: nosso ambiente e nosso horizonte. Certo, toda obra humana é negação da natureza; do mesmo modo, é uma ponte entre ela e nós. A técnica transforma a natureza de uma maneira mais radical e decisiva: desalojando-a... o ready-made é uma dupla negação: não só do gesto mas o próprio objeto é negativo. Embora Duchamp não tenha a menor nostalgia dos paraísos ou infernos naturais, tampouco é um adorador da técnica. A injeção de ironia nega a técnica porque o objeto manufaturado se converte em ready-made: uma coisa inútil. (Paz, 1977Paz, O. (1977). Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, SP: Editora Perspectiva., pp. 26-27)

Em um gesto de recuperação desses valores e crenças, Arthur Bispo do Rosario busca nos dejetos urbanos a fonte de inspiração de seu trabalho. Percorre o caminho em sentido oposto, refaz os passos de Marcel Duchamp na contramão. Busca recuperar a divindade natural resgatada dos objetos técnicos que se tornaram dejetos. Devolve esses objetos à sua natureza divina. Transporta-os da lixeira-túmulo realojando-os e superando as barreiras entre humanidade e divindade. As experiências vividas em obra por esses artistas são absolutamente heterogêneas: um objetiva o diálogo com a recepção de maneira irônica, sarcástica, enquanto o outro é um silencioso solilóquio: consigo, com Deus e com seus fantasmas.

A recepção crítica usualmente aproxima suas obras que são reiteradamente cotejadas, mas a que custo? Um artista transforma objetos vulgares em obras de arte pelo simples ato de escolha; o outro, mergulhado na vulgaridade dos objetos cotidianos, resgata-os de sua vida mundana e os sacraliza. A insistência em inscrever Arthur Bispo do Rosario na “tradição da ruptura” (Paz, 2014Paz, O. (2014). Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda (2a ed.). São Paulo, SP: Cosac Naify.) ou na pós-modernidade por força desse tipo de paralelismo, só é possível sob o requisito do alheamento ou da contingência que o vitima - e que, aliás, só o faz participar da negatividade crítica da vanguarda que o persegue em uma condição que lhe é inelutável.

Uma maneira de relacionar-se com o mundo é pela experiência preestabelecida. E essa é uma prática muito frequente nos comentários sobre obras de arte, onde há prerrogativa da razão sobre a expressão. Esse procedimento releva o gesto desencarnado e afronta a relação estreita que há entre linguagem e pensamento. Nem a História da Arte nem os depoimentos sobre obras autorizam o acesso à sua expressão. O sentido de uma obra não é determinado pela vida do artista ou pelo seu contexto, mesmo que estes sejam elementos imprescidíveis para que exista como obra. O sentido não está em algum lugar colocado, nem a concepção pode preceder a execução da obra (Merleau-Ponty, 1984Merleau-Ponty, M. (1984). A dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, Textos selecionados (Marilena de Souza Chauí, Nelson Alfredo Aguilar e Pedro de Sousa Moraes, trads., 2a ed., pp. 113-126). São Paulo, SP: Abril Cultural., pp. 120-121). O sentido exige da obra a sua existência. O poder do artista está em suas mãos, em seu modo próprio de viver a obra e despertar as experiências que se enraizarão em outras consciências.

A abordagem muitas vezes percorre um caminho fácil e se enraíza se valendo de teorias que enquadram obras e artistas em categorias prévias, justificando-os de modo determinista, como ocorreu até mesmo com Marcel Duchamp, pois houve quem se aventurasse a diagnosticar o Grande Vidro:

Entre todas as interpretações a da Psicanálise é a mais tentadora e a mais fácil: onanismo, destruição (ou glorificação) da Mãe-Virgem, castração (as Tesouras), narcisismo, retenção (sintoma anal), agressividade, autodestruição, etc. Um conhecido psiquiatra termina o seu estudo, não carente de brilho, com o esperado diagnóstico: autismo e esquizofrenia. A desvantagem destas hipóteses é que seus autores consideram as obras unicamente como sintomas ou expressões de certas tendências psíquicas; a explicação psicológica converte a realidade (o quadro) em sombra e a sombra (doença) em realidade... As realidades psicológicas e as da arte vivem em níveis distintos de significação: Freud nos oferece uma chave para entender Édipo, mas a tragédia grega não se reduz às explicações da Psicanálise. (Paz, 1997Paz, O. (1977). Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, SP: Editora Perspectiva., pp. 34-35)

Se leituras equivocadas atingem a grande arte, o que esperar em relação aos outsider artists? A produção dos internos, em nossa história pregressa, já foi vista sob avaliações elitistas e preconceituosas, subestimadas suas qualidades expressionais e plásticas. Arthur Bispo do Rosario mal poderia supor que proporcionaria importantes contribuições em benefício de outros tantos que, como ele, não se viam como artistas, mas delimitaram caminhos nas artes. Sob certo aspecto, por não ter integrado o movimento iniciado pela Drª Nise da Silveira, sua obra foi rigorosamente reconhecida por seu valor expressivo, sem nenhum lenitivo suprido pela situação de segregado manicomial. É inegável que essa condição a impactou profundamente, no entanto, acreditamos que não é lícito basear nessa perspectiva quaisquer julgamentos ou análises, senão como circunscrição e contextualização, criando parâmetros e pistas sobre a obra, o artista e seus processos criativos. Tomando emprestadas as palavras de (Merleau-Ponty, 1984Merleau-Ponty, M. (1984). A dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, Textos selecionados (Marilena de Souza Chauí, Nelson Alfredo Aguilar e Pedro de Sousa Moraes, trads., 2a ed., pp. 113-126). São Paulo, SP: Abril Cultural.) sobre Cézanne: a arte, quando bem-sucedida, transmite-se per si. Não obstante a vida não explique a obra, certamente se comunicam. As experiências vividas e os contextos, ainda que não imponham suas diretrizes, oferecem elementos e possibilidades criativas de reinvenção, um exercício desregrado de beleza liberta:

Há um intercâmbio entre a constituição esquizoide e a obra de Cézanne porque a obra revela um sentido metafísico da doença - a esquizoidia como redução do mundo à totalidade das aparências estáticas e suspensão dos valores expressivos -, porque a doença não mais é, pois, um fato absurdo e um destino para se tornar uma possibilidade geral da existência humana, quando enfrenta de maneira consequente um de seus paradoxos, o fenômeno da expressão, e já que neste sentido, enfim, não há diferença entre ser Cézanne ou esquizoide. (Merleau-Ponty, 1984Merleau-Ponty, M. (1984). A dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, Textos selecionados (Marilena de Souza Chauí, Nelson Alfredo Aguilar e Pedro de Sousa Moraes, trads., 2a ed., pp. 113-126). São Paulo, SP: Abril Cultural., p. 122)

Cada objeto artístico constrói um vão, um espaço de atuação em que a indeterminação desafia a infinitude que somente grandes obras despertam. E tão mais potente é uma obra quanto mais possibilidades solicitar e tantas mais puder atender. Segundo (Escoubas, 2005Escoubas, E. (2005). Investigações fenomenológicas sobre a pintura. Kriterion, 46(112), 163-173.), é uma espécie de fronteira simbólica entre a percepção de duas experiências vividas: “a coisa enquanto coisa e a coisa enquanto quadro” (p. 164), que determina o “ver segundo” ou o “ver com”. Em outras palavras, o espaço pictórico não reproduz um real simplesmente, ele se constitui em um espaço de manifestação, e não de representação. Na obra, o artista põe em situação, em movimento e põe em obra um sentido do ser, fazendo-o aparecer. Aqui, pois, a arte não é mais ilustração de alguma coisa, nem embelezamento da existência - não é “cópia” da natureza, nem “alegoria” de uma sobrenatureza, nem manifestação sensível do belo (Escoubas, 2005Escoubas, E. (2005). Investigações fenomenológicas sobre a pintura. Kriterion, 46(112), 163-173., p. 167). A obra deve ser vivida para além de coisa e indivisível em partes (forma vs. conteúdo; sensível vs. espiritual). Deve ser buscada como unidade e verdade desvelada.

O estabelecimento de vínculos entre as obras de Arthur Bispo do Rosario e de Marcel Duchamp é frequente, resta saber se também é lícito. Uma inelutável provocação se interpõe: relacionar as obras ignorando o vivido de artistas pertencentes a mundos tão diversos seria, talvez, olhar para os outsider artists sob um referencial estrangeiro. Assemelhá-las apenas pelos seus atributos formais, subordinando-as, pode assentar uma percepção encurtada e parcial. Por outro lado, as obras de Arthur Bispo do Rosario e de tantos outros artistas alheios ao sistema da arte teriam ganhado tamanha visibilidade? Os herdeiros da alta cultura e da grande arte teriam “olhos” para obras tão inquietantes, senão sob paradigmas de visualidade proporcionados pela passagem desse artista-pensador que foi Marcel Duchamp, abalando o status quo definitivamente?

Em todo caso, somos perpassados por dada cultura ou tradição. Estamos constantemente nos relacionando com ela. Não precisamos dar-lhe as costas mas, tampouco, é preciso solicitá-la para regular campos a que escapam. Isso seria igualmente temerário. Evidente que esses trabalhos dizem coisas diferentes, para pessoas diferentes, em diferentes momentos histórico-sociais. Evidente que esses significados são desconstruídos e reconstruídos com base nessas diferenças. Arthur Bispo do Rosario reinterpreta os objetos banais, cotidianos, e nós os reinterpretamos. O que inicialmente era apenas um objeto técnico se torna estigma sacro. O olhar do espectador contemporâneo devolve a obra à laicidade e, finalmente, transforma-se em objeto artístico, mas há de se observar o respeito à vida dessa obra e não traí-la, pois a arte “ao revelar o sentido das coisas, o faz de modo particular, ensinando uma nova maneira de perceber a realidade. Esse novo olhar é revelador porque é construtivo, isto é, formador. Nessa medida é um olhar que se prolonga no fazer” (Frayze-Pereira, 2010Frayze-Pereira, J. (2010). Arte, inquietudes entre a estética e a psicanálise (2a ed.). São Paulo, SP: Ateliê., pp. 56-57) A arte, o mais democrático de todos os eventos, não tem significado. É um significado e um conhecer.

A imagem que escapa pela fresta da porta

Tomando emprestadas as palavras de (Didi-Huberman, 2010Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34.): o que se vê nessas obras de arte e o que nos olha? Vê-se para além do concreto das linhas e dos tecidos e nos olha das paredes da Colônia Juliano Moreira, de suas pedras impregnadas da dor dos internos e do calçamento de Japaratuba, dos muros das missões e das tramas do tecimento do artesanato local. Porém, podemos permanecer em uma zona aquém do visível e nos ocuparmos somente do que é visto, desprezando o resto, acreditando que é só isso. Podemos, inclusive, ignorar o residual que nos olha e negar o que solicita cada obra de arte: “mas há também nessa atitude um verdadeiro horror e uma denegação do vazio: uma vontade de permanecer nas arestas discerníveis do volume, em sua formalidade conexa e simples” (Didi-Huberman, 2010Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., pp. 38-39). A rica experiência do ver deve ser um exercício mais amplo da crença. Em Arthur Bispo do Rosario, sua condição, sua dor:

Seja como for, o homem da crença verá sempre alguma coisa além do que vê, quando se encontra face a face com uma tumba… O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrefatas, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confrontar e informar - ou seja, fixar - nossas memórias, nossos temores e nossos desejos. (Didi-Huberman, 2010Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha (2a ed.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 48)

Fazer do exercício do olhar uma verdade rasa é recusar a memória. Recusar-se ao trabalho em que o tempo talhou os objetos ou à obsessão do olhar. Em O visível e o invisível, (Merleau-Ponty, 2000Merleau-Ponty, M. (2000). O visível e o invisível (pp. 13-56). São Paulo, SP: Perspectiva.) inicia propondo uma reflexão sobre a crença comumente disseminada de que vemos as coisas mesmas, e só. De certa forma, essa fé não está de todo equivocada, o mundo é realmente o que vemos, no entanto, precisamos aprender a vê-lo. Não somente buscando meras palavras que o preencham de sentido, mas acreditar que existe algo para além da materialidade aparente, que há algo que resgata um sentido metafísico. O que vemos, portanto, é plasmado por nossas expectativas, crenças e anseios, e nos olha - no caso de Arthur Bispo do Rosario, com a força da memória da Colônia. Neles estão impregnados os vazios de sua história, os vários abandonos e as várias exclusões. Esses sentidos estão obsessivamente impregnandos em cada fio desfiado e bordado. Os objetos se colocam para além das evidências de seu volume, nos olham e nos perturbam a capacidade de vê-los. Objetos são variáveis, de igualmente variadas situações (Didi-Huberman, 2012) - carregam consigo um modo de ser e de se apresentar como quase-sujeitos, no sentido de que a obra de arte uma vez interposta é verdade instaurada.

O milenar I Ching (Wilhelm, 1982Wilhelm, R. (1982). I Ching: o livro das mutações. São Paulo, SP: Editora Pensamento.), no hexagrama Contemplação, diz que através de uma brecha na porta se tem uma visão restrita. Sugere que toda contemplação é limitada por um perspectivismo. A fresta muda tudo: a situação, os contornos, o olhar. A fresta edita a cena. A visão é deformada pelo vão mas é também conformada pela experiência pessoal. Dar a ver é sempre inquietar-se e, como é operativo do sujeito, é operação fendida, aberta, pois cada olhar carrega sua própria névoa. Quem observa percebe a manifestação e percebe também quem se manifestou, em uma leitura bastante particular. É a apreensão da manifestação. Mas essa percepção é externa, já que o observador não viveu, ele próprio, essas experiências. É asssim que as obras de arte são constantemente recriadas no olhar de cada observador, uma recriação que é a fatura da mediação entre a proposta, a proposição, o proponente e o intérprete.

O sentido surge nos vãos, na intersecção e no intervalo, e a obra se realiza verdadeiramente não como coisa, mas na sua capacidade de atingir o espectador, convidando-o a retomar o gesto criador. Para além do mundo cultural, se a palavra satisfaz, é por conta de um equilíbrio oculto, definido no seio de sua própria coerência. Se procuramos sempre correspondência entre elementos, se nos recusamos a fazer brotar o sentido espontâneo das coisas a partir da experiência renovada, então o espetáculo do mundo foi denegado, e as relações bilaterais do sujeito com o mundo, fundantes de uma unidade primordial, foram enfraquecidas ou desintegradas. A expressão não é um ajustamento. A análise reflexiva abandona o poder constituinte prévio, essencial, e institui-se em uma subjetividade inabalada, mas também ingênua, pois perdeu a consciência de seu próprio início. É curioso refletir sobre a maneira como a palavra crítica foi gradativamente ganhando preponderância sobre obras de arte. Seria a palavra mais suscetível a ser aprisionada por um sentido reto, a ser estritamente mental? Não seria possível, a arte da literatura está aí, desfilando sua beleza e desmentindo essa conjectura. Em todo caso, a irrefutável palavra crítica, senhora do hábito da tradução - e traduzir é essencialmente trair -, conquistou abrangência e amplitude no protagonismo da tradição que se estabeleceu após a modernidade.

Todas as manifestações expressivas - como a fala, as artes - não repousam sobre um conceito ou uma reflexão em particular que as adornam, mas carregam um sentido que se impõe ao objeto e, em dado momento, o consuma. Naturalmente, existe distinção entre uma fala primeva, que é espontânea e autêntica porque desperta uma experiência primordial que ultrapassa qualquer tradição, e a outra, que se estabelece como uma fala sobre falas - retomada do pensamento segundo outrem, que abdica de pensá-la com um pensamento próprio. A primeira é essencialmente idêntica ao pensamento. (Merleau-Ponty, 1999, nota VI. 4, p. 636)

E essa é a condição do artista, para representar-se na obra deve simplesmente fazê-la. No caso de uma obra de caráter essencialmente mnemônico, como a de Arthur Bispo do Rosario, o que está expresso é antes uma operação constituída nas estrias de um tempo passado a partir de suas implicações no presente, tendo a experiência corpórea integral, o vivido, como um meio de pôr em relação todos esses elementos e que, no nosso modo de compreendê-la, tem uma ressonância peculiar em cada um que diante dela se coloca para perfazê-la, e o faz em um acordo com seu modo próprio de experienciá-la, como se houvesse possibilidade de essa obra instalar-se quase que como um órgão de sentidos em todos que se propuserem a vivê-la.

A liberdade que o artista desfruta ao colocar em situação suas experiências em obra, na obra de arte, é pessoal e intransferível, é seu estilo, nos termos de (Merleau-Ponty, 1991Merleau-Ponty, M. (1991). Signos. São Paulo, SP: Martins Fontes.). A respeito da liberdade, há duas coisas a se considerar. Diz o filósofo que garantidamente não somos determinados, mas que também nunca mudamos”... poderemos sempre encontrar em nosso passado o prenúncio do que nos tornamos. Cabe-nos entender as duas coisas ao mesmo tempo e como a liberdade irrompe em nós sem romper nossos elos com o mundo” (Merleau-Ponty, 1984Merleau-Ponty, M. (1984). A dúvida de Cézanne. In M. Merleau-Ponty, Textos selecionados (Marilena de Souza Chauí, Nelson Alfredo Aguilar e Pedro de Sousa Moraes, trads., 2a ed., pp. 113-126). São Paulo, SP: Abril Cultural., p. 123). Se vida e obra são um todo coeso, se esta obra exigiu esta vida para que pudesse existir, chegamos à inelutável constatação de que estilos não coincidem. O que é passível de coincidência é a linguagem, e só (Merleau-Ponty, 1991Merleau-Ponty, M. (1991). Signos. São Paulo, SP: Martins Fontes.).

Sobre o frequente cotejamento das obras de Marcel Duchamp e de Arthur Bispo do Rosario, resta a nós, espectadores, observar o difícil - mas fascinante - exercício de equilíbrio entre a liberdade e a fidelidade no perfazer das obras quando diante delas nos colocamos, usufruindo dessa autonomia com parcimônia. O ônus para que o espetáculo infinito da arte se realize integral e honestamente está na medida de nosso empenho e de nossa implicação (Figura 2).

Figura 2
Vista do corredor do pavilhão da Colônia Juliano Moreira, no qual Arthur Bispo do Rosario permaneceu cinquenta anos

A inspirada sensibilidade de Arthur Bispo do Rosario independe de sua condição clínica. É fator secundário. Tanto isso é fato que inúmeros foram os artistas reclusos que não conseguiram projeção sequer aproximada ou comparável à de Arthur Bispo do Rosario, ainda que todos esses indivíduos continuem, infelizmente, à margem da sociedade e da cultura.

Sua inventividade não é diagnóstica, resultado de um delírio ou de uma febre. E é justamente no ato da escolha, da eleição de dejetos, lixo, em que reside o valor do processo de reinvenção, de reconstrução e de ressignificação de seu mundo na criação do inusitado, que carrega sua marca pessoal, seu estilo. Em seu modo particular de colocar em situação, busca coerência com a incumbência divina a que se destina esse trabalho. Só os eleitos têm esse poder. E Arthur Bispo do Rosario é um deles.

O negro reminiscente de uma população de escravos recém-libertos, asilado manicomial, só encontrou uma saída para a reorganização de um mundo mais justo. As leis dos homens não foram suficientes para salvá-lo, então recorreu às divinas. Escolheu bordar seu caminho, embelezá-lo com talento e dedicação. Cada um desses objetos escolhidos, pelas mãos de Arthur Bispo do Rosario, ganha novas cores, nova vida. É um bordado minucioso, em que coisas aparentemente insignificantes convivem harmoniosamente dividindo o espaço em um mundo perfeito. Como ele próprio, seus objetos abandonam a posição que lhe impuseram e assumem um posto nobre e digno. O diagnóstico de esquizofrenia paranoide é contextual e cenário de questões sociológicas. Em todas as categorias de exclusão se enquadrava, e seu quadro clínico soma-se às demais. De todas as formas de escape lançou mão. Sua vida, sua obra e sua luta foram um genial tratado. Tomando emprestadas suas palavras: o “Registro de sua passagem pela Terra”, bordado em louvor a Deus, em memória dos tantos excluídos que esse país fez e, infelizmente, continua fazendo. A obra de Arthur Bispo do Rosario é pedido de socorro e grito de denúncia, mas, sobretudo, brilhante estratégia de sobrevivência. Debelou-se como pôde, gentilmente se recusando a ser conivente com todas as categorias a que o impuseram. E o fez de formas das mais nobres e sublimes que o homem já experimentou: pelo esporte, pela religiosidade e pela arte. Discordamos dos que diagnosticam a obra. Ela o salvou. É um legado inigualável, no sentido religioso é um relato memorial de salutar salvação e no laico, de sobrevivência. Eis sua beleza.

Arthur Bispo do Rosario, um quase anônimo diagnosticado esquizofrênico-paranoide no início do século passado, nos ensina com sua simplicidade como é possível com recursos escassos, material restrito e condições precárias criar o sublime. Cabe a nós, também, nos tornamos homens da crença.

Referências

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  • Paz, O. (2014). Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda (2a ed.). São Paulo, SP: Cosac Naify.
  • Sevcenko, N. (Org.), & Novais, F. A. (Coord.). (1998). História da vida privada no Brasil (Vol. 3). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Wilhelm, R. (1982). I Ching: o livro das mutações. São Paulo, SP: Editora Pensamento.
  • Erratum

    No artigo Arthur Bispo do Rosario além dos muros do asilo Colônia publicado no periódico Revista Psicologia USP, volume 27, número 3, onde se lia:
    “Arthur Bispo do Rosario além dos muros do asilo Colônia”
    leia-se:
    “Arthur Bispo do Rosario além dos muros da Colônia”
    Em FRANCÊS:
    “Arthur Bispo do Rosario au-delà des murs de l’asile Colônia”
    leia-se:
    “Arthur Bispo do Rosario au-delà des murs de l’asile”
    Em ESPANHOL:
    “Arthur Bispo do Rosario más allá de los muros del asilo Colônia”
    leia-se:
    “Arthur Bispo do Rosario más allá de los muros del asilo”
  • 1
    Como procedimento metodológico, assumo a data de nascimento imprecisa e o nome do artista Arthur Bispo do Rosario sem acento gráfico, conforme estabelecidos por (Hidalgo, 1996Hidalgo, L. (1996). Arthur Bispo do Rosario, o senhor do labirinto. Rio de Janeiro, RJ: Rocco.).
  • 2
    Arthur Bispo do Rosario destecia os fios dos uniformes e dos lençóis azuis da Colônia, colecionava os fios para depois utilizá-los nos bordados de suas peças sacras, rememorando práticas da tradição artesanal de Japaratuba/SE, sua cidade natal
  • 3
    As a methodological procedure, I assume the date of birth as imprecise and the name of the artist Arthur Bispo do Rosario without the accent mark, as established by (Hidalgo, 1996Hidalgo, L. (1996). Arthur Bispo do Rosario, o senhor do labirinto. Rio de Janeiro, RJ: Rocco.).
  • 4
    Arthur Bispo do Rosario unweaved the threads of uniforms and blue sheets from the institution; he collected the threads for then use them to embroider his sacred pieces, recollecting the traditional handicraft practices from Japaratuba, Sergipe, his hometown.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2013
  • Revisado
    22 Maio 2015
  • Aceito
    01 Out 2015
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