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Sobre as práticas tradicionais de cura: subjetividade e objetivação nas propostas terapêuticas contemporâneas

Sur les pratiques traditionnelles de cure: subjectivité et objectivation dans les propositions thérapeutiques contemporaines

Sobre las prácticas tradicionales de cura: subjetividad y objetivación en las propuestas terapéuticas contemporáneas

Resumo

O presente trabalho constitui uma pesquisa de cunho teórico, na qual é traçado um breve percurso histórico das práticas de cura tradicionais e se faz também uma discussão sobre sua permanência e eficácia na contemporaneidade, apesar dos avanços na área da ciência médica. Tendo em vista a importância crescente da subjetividade na medicina contemporânea, nossa hipótese visa salientar que a objetivação do sujeito doente, operada pelas práticas médicas, condena a subjetividade a um segundo plano e representa uma lacuna importante nas propostas terapêuticas do modelo biomédico. Nosso objetivo é interrogar o lugar das práticas tradicionais de cura nessa lacuna deixada pela medicina e no que tais práticas podem contribuir para o modelo médico.

Palavras-chave:
práticas tradicionais de cura; modelo biomédico; subjetividade

Résumé

Ce travail est une recherche théorique où l’on esquisse un bref parcours historique sur les pratiques traditionnelles de cure et on fait aussi un débat sur leur permanence et efficacité dans le monde contemporain, malgré les avancées dans le domaine de la médecine scientifique. En rendant compte l’importance croissante de la subjectivité dans la médecine contemporaine, notre hypothèse souligne que l’objectivation du sujet malade opérée par les pratiques médicales condamne à l’oubli la subjectivité et produit une lacune importante dans les démarches thérapeutiques du modèle biomédical. Notre objectif en est celui d’interroger la place des pratiques traditionnelles de cure dans cette lacune laissée par la médecine et comment ces pratiques peuvent-elles contribuer avec le modèle médical actuel.

Mots-clés:
pratiques traditionnelles de cure; modèle biomédical; subjectivité

Resumen

Este trabajo esboza un camino histórico por las prácticas tradicionales de cura y, junto a esto, una discusión sobre la permanencia y la eficacia de estas prácticas en el mundo contemporáneo, a pesar de los progresos de la medicina científica. Considerando la importancia creciente de la subjetividad en la medicina contemporánea, nuestra hipótesis destaca que la objetivación del sujeto enfermo operada por las practicas medicales impone un olvido de la subjetividad y produce un vacío importante en las terapéuticas del modelo biomédico. Nuestra meta es investigar el lugar de las prácticas tradicionales de cura en este vacío de sentido de la medicina y se ellas pueden enseñar algo al modelo médico actual.

Palabras clave:
prácticas tradicionales de cura; modelo biomédico; subjetividad

Abstract

This article is a theoretical study featuring a brief historical outline of traditional healing practices and also a discussion on their persistence and efficiency in the contemporary world, despite the advances of scientific medicine. Given the increasing relevance of subjectivity in contemporary medicine, our hypothesis aims to emphasize that the objectivation of patients by medical practices eclipses the role of subjectivity and reveals an important deficit in the therapeutics of the biomedical model. Our aim is to understand the role of traditional healing practices and how they may contribute to the medical model.

Keywords:
traditional healing practices; biomedical model; subjectivity

Introdução

Em todas as épocas da humanidade - nos grupos humanos que possuem registros históricos - há algum tipo de menção sobre o sofrimento de pessoas que são acometidas por afecções corporais ou psíquicas, e sua concomitante prática curativa, seja ela espiritual, por meio de rituais que invoquem forças sobrenaturais, seja ela corporal, por meio de rituais de cura utilizando elementos da natureza e intermediados por representantes das divindades (sacerdotes; xamãs). Registros pré-históricos também sugerem que adoecimento e cura sempre estiveram associados a práticas ritualísticas fortemente carregadas de aspectos simbólicos. Sobre isso vale destacar:

A superstição, a magia e o ato de curar eram mesclados e a figura do médico e sacerdote encontrava-se neste amálgama, como atesta o homem (médico) com a máscara de cervo encontrada na caverna de Les Trois-Frères, datada de cerca de 16.000 anos, tida como a mais antiga representação do homem curador de enfermidades. (Calder citado por Castro, Andrade, & Muller, 2006Castro, M. G., Andrade, T. M. R., & Muller, M. C. (2006). Conceito mente e corpo através da história. Psicologia em estudo, 11(1), 39-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a05.pdf
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, p. 39)

A humanidade, em seus primórdios, vivia em maior integração com a natureza, e os processos de cura eram essencialmente empíricos, tendo como pano de fundo uma estrutura mítica, que até hoje se faz presente em algumas populações mais tradicionais e mesmo em meios considerados civilizados. Essas práticas permanecem, nos dias atuais, de um lado, em estreita relação com o aprendizado das diversas forças da natureza transmitidas através da oralidade, e de outro, com as crenças em forças sobrenaturais, advindas das tradições religiosas (Aguiar, 2010Aguiar, E. (2010). Medicina: uma viagem ao longo do tempo (Domínio público). Recuperado de http://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-124108/medicina-uma-viagem-ao-longo-do-tempo
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).

Pode-se dizer que o retrato das práticas tradicionais de cura que permanecem através das gerações, apesar do avanço da medicina científica, é um pequeno reflexo (adaptado à realidade atual) das práticas de outrora, pois compartilham princípios semelhantes: o empirismo na produção de remédios fabricados com matéria-prima natural; rituais específicos; e a intermediação de forças e/ou energias consideradas de diferentes maneiras, de acordo com o tipo de prática e o contexto histórico, para a realização das curas.

(Aguiar, 2010Aguiar, E. (2010). Medicina: uma viagem ao longo do tempo (Domínio público). Recuperado de http://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-124108/medicina-uma-viagem-ao-longo-do-tempo
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) afirma que “a fragilidade do homem primitivo frente à natureza, às doenças e às demais dificuldades de sua existência tornava-o carente do sobrenatural, como forma de proteção em meio a um cenário tão adverso” (p. 8). Porém, o contexto atual da humanidade não apresenta esta mesma hostilidade de outrora, sendo, pois, por causas distintas da apontada pelo autor, que ainda se recorre a forças sobrenaturais.

Aqueles que praticavam as curas, que possuíam conhecimento empírico sobre a fragilidade do ser humano, as virtudes das plantas e dos venenos dos animais eram considerados detentores de poderes, de faculdades fantásticas, sendo diferenciados dos demais homens. Suas práticas de cura, envolvidas em rituais extraordinários, tornavam-nos conhecidos como mediadores entre o homem e os deuses, ou entre o homem e a natureza, pois a capacidade de curar doenças transformava-os em detentores do poder sobre a vida e a morte.

Desta forma, as práticas medicinais encontravam-se envolvidas por uma atmosfera que ia muito além da simples administração de medicamentos, sendo a cura o resultado de um processo não somente fisiológico, mas também simbólico (Hoogasian & Lijtmaer, 2010Hoogasian, R. & Lijtmaer, R. (2010). Integrating Curanderismo into counseling and psychotherapy. Counselling Psychology Quarterly, 23(3), 297-307. Recuperado de http://www.socsci.uci.edu/~castellj/clfm/webdocs/Week%206/Required/Integrating%20Curanderismo%20into%20counselling%20and%20psychotherapy%202010.pdf
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).

Origens do pensamento médico ocidental

Patronos da filosofia e referência intelectual para vários povos, os gregos foram um dos pioneiros no lançamento das bases da racionalidade sobre o saber, baseando-se na razão para conceber suas ideias e realizando uma ruptura com as antigas formas de representação do mundo. Ao romper com as explicações mitológicas sobre as enfermidades, passaram a utilizar um método específico de estudo do corpo humano e da natureza em geral. A observação tornou-se a principal técnica para desvendar relações de causa e efeito nos fenômenos naturais e fisiológicos.

A racionalidade do pensamento grego discretamente provocou um distanciamento das crenças religiosas e apoiou as bases do pensamento médico em explicações advindas da natureza e do próprio homem. A partir de então, as práticas de cura marcadas pela mescla de empirismo e magia, realizadas por sacerdotes e práticos, foram sendo suplantadas por outras práticas que prezassem pela melhor maneira de conviver consigo mesmo e com o meio, sem deixar de pôr em relevo a ideia de uma relação íntima entre homem e natureza. Assim sendo, as bases para uma perspectiva organicista da doença são lançadas.

Neste sentido, os pensadores gregos foram os pioneiros na cultura ocidental a esquematizar seus conhecimentos a partir da observação empírica no formato de leis gerais, e a produzir conhecimentos sobre as concepções de saúde, doença e cura. Estas, que antes eram dominadas pelas crenças religiosas e mitológicas, passaram a ser influenciadas pelo pensamento filosófico e médico, tendo como alguns de seus representantes Pitágoras, seu discípulo Alcméon, Hipócrates e Galeno.

De Pitágoras vem a concepção das paixões da alma, que precisavam ser controladas para se obter a harmonia interna e, por conseguinte, a saúde. Desta forma, a contribuição de Pitágoras deu o impulso inicial para o rompimento com concepções que necessitavam ser ultrapassadas na época - a exemplo das que associavam a causa da doença a algum tipo de castigo divino - sendo, posteriormente, consolidada por seu discípulo Alcméon (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.).

Alcméon herda de Pitágoras a noção de harmonia relacionada à saúde, e desenvolve a importante concepção de saúde como uma bem equilibrada mistura das qualidades, deixando, no entanto, em aberto quantas seriam as qualidades em questão. Filolau de Crotona, por sua vez, dá um passo adiante ao definir o número quatro como princípio estrutural fundamental do equilíbrio do corpo e, por conseguinte, de um corpo saudável (Huffman, 1993/2006Huffman, C. A. (2006). Philolaus of Croton: Pythagorean and Presocratic. Cambridge, UK: Cambridge University. (Trabalho original publicado em 1993); Klibansky, Panofsky, & Saxl, 1964/2002Klibansky, R., Panofsky, E., & Saxl, F. (2002). Saturno e la melanconia. Studi su storia della filosofia naturale, medicina, religione e arte. Torino, Italia: Giulio Einaudi editore. (Trabalho original publicado em 1964)).

Embora a medicina dos pitagóricos esteja intimamente ligada aos princípios filosóficos da Escola de Crotona, ela participa da gradativa consolidação da medicina empírica, que serviu de base para a teoria dos humores. Com efeito, a doutrina dos números, bem como a noção de que a saúde corresponde ao equilíbrio de diversas qualidades, permite afirmar que os pitagóricos forneceram as condições de possibilidade para o posterior surgimento dessa teoria, a qual predominou amplamente na medicina antiga, em modelos distintos, cuja forma mais conhecida foi aquela iniciada pela escola hipocrática (Jouanna, 2005Jouanna, J. (2005). La théorie des quatre humeurs et des quatre tempéraments dans la tradition latine (Vindicien, Pseudo-Soranos) et une source grecque retrouvée. Revue des Études Grecques, 118(1), 138-167.; Klibansky, Panofsky, & Saxl, 1964/2002Klibansky, R., Panofsky, E., & Saxl, F. (2002). Saturno e la melanconia. Studi su storia della filosofia naturale, medicina, religione e arte. Torino, Italia: Giulio Einaudi editore. (Trabalho original publicado em 1964)).

Hipócrates também adota este princípio de equilíbrio como critério de saúde, reafirma a concepção de origem interna da doença e desenvolve sua prática com base na teoria dos humores, para cuja implementação e difusão a escola hipocrática também contribuiu decisivamente. De acordo com (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.), a medicina hipocrática foi “chave central para a medicina ocidental por ter definido o saber médico ocidental e científico, passando a ser vista como uma tékhne” (p. 27).

Galeno, por sua vez, conforme (Castro, Andrade e Muller, 2006Castro, M. G., Andrade, T. M. R., & Muller, M. C. (2006). Conceito mente e corpo através da história. Psicologia em estudo, 11(1), 39-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a05.pdf
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), além de revisitar a teoria dos humores, “ressaltou a importância dos quatro temperamentos no estado de saúde. Também via a causa da doença como endógena, ou seja, estaria dentro do próprio homem, em sua constituição física ou em hábitos de vida que levassem ao desequilíbrio” (p. 40).

As contribuições de nomes-referência da medicina grega corroboraram para a produção de grande quantidade de conhecimentos sobre as concepções de saúde, doença e os processos de cura, de modo que estes assumiram volume tal que começaram a ser fundadas escolas médicas. Começa, desta forma, o despontar dos primeiros raios de uma sutil cientificidade que será fortalecida, posteriormente, com a “fundação oficial” da medicina moderna.

Sendo assim, pode-se afirmar que os alicerces para a constituição de uma medicina científica, racional, com técnicas e tratamentos de bases sólidas e confiáveis, são lançados antes mesmo da exigência de cientificidade preocupar os médicos do século XVIII, data que demarca o nascimento da medicina moderna segundo (Foucault, 1963/2013), em O nascimento da clínica:

A medicina moderna fixou sua própria data de nascimento em torno dos últimos anos do século XVIII. Quando reflete sobre si própria, identifica a origem de sua positividade com um retorno, além de toda teoria, à modéstia eficaz do percebido. (p. X)

Portanto, como aponta o autor, o Iluminismo é o sistema de pensamento que dá as bases para a racionalidade científica da modernidade em detrimento da visão anterior de doença e cura (Foucault, 1963/2013Foucault, M. (2013). O nascimento da clínica (Roberto Machado, trad., (7a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1963)). Essa corrente de pensamento preconiza a soberania da razão, a validade inquestionável das ideias objetivas pautadas no olhar do observável, e rompe com as concepções fundamentadas em pensamentos fantásticos ou baseadas em crenças religiosas. Essa corrente filosófica teve, na época de sua ascensão, grande influência nos métodos e técnicas científicos, exercendo-a até os dias atuais.

As formas da racionalidade médica penetram na maravilhosa espessura da percepção, oferecendo como face primeira da verdade a tessitura das coisas, sua cor, suas manchas, sua dureza, sua aderência. O espaço da experiência parece identificar-se com o domínio do olhar atento, dessa vigilância empírica aberta apenas à evidência dos conteúdos visíveis. O olho torna-se o depositário e a fonte de clareza: tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só recebe à medida que lhe deu à luz; abrindo-se, abre a verdade de uma primeira abertura: flexão que marca, a partir do mundo da clareza clássica, a passagem do “Iluminismo” para o século XIX. (Foucault, 1963/2013Foucault, M. (2013). O nascimento da clínica (Roberto Machado, trad., (7a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1963), p. XII)

Desta forma, o legado Iluminista além de influir sobre o pensamento da época, lançou as bases sólidas para a fundação de um paradigma científico marcadamente empirista, corroborado por autores como René Descartes e Auguste Comte, e o advento do Positivismo. As ciências passaram, desta forma, a seguir um método rigoroso, que dispensa o subjetivismo e a especulação na consecução do conhecimento verdadeiro, só se tornando válido caso fosse enquadrado nestes padrões predeterminados.

A sociedade brasileira

Com a colonização e a posterior tentativa de aproximar as colônias de suas respectivas capitais, os traços da civilização europeia começaram a ganhar espaço no Brasil, sendo instauradas suas raízes, inicialmente, nas grandes aglomerações, a exemplo de São Paulo. A ciência médica, por sua vez, procura ganhar seu espaço e legitimidade diante dos saberes tradicionais relativos à doença e à cura vigentes na colônia. Esse processo, porém, não se deu sem conflitos, pois,

as bases socioculturais da medicina colonial foram forjadas pela convivência e combinação de três tradições culturais distintas - indígena, africana e europeia -, com inexpressiva participação dos profissionais de formação acadêmica. Na verdade, a medicina praticada no dia-a-dia da colônia esteve quase sempre a cargo de curandeiros, feiticeiros, raizeiros, benzedores, padres, barbeiros, parteiras, sangradores, boticários e cirurgiões. O reduzido contingente de médicos disponíveis trouxe como consequência a abolição da rígida hierarquia social da medicina, que, na Europa, impunha um lugar distinto para médicos, cirurgiões e boticários. (Chalhoub, Marques, Sampaio, & Sobrinho, 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp., p. 101-102)

O processo de legitimação da ciência médica defrontou-se inúmeras vezes com o prestígio social dos terapeutas populares, tanto por parte das classes mais simples, quanto pelas elites. A historiografia oficial sobre a institucionalização da medicina científica no Brasil sugere que a hegemonia desta tenha sido alcançada na ausência de conflitos sociais e resistências culturais. Essa interpretação não leva em conta precisamente a influência dos terapeutas e das formas terapêuticas tradicionais. O fato é que o escasso conhecimento acerca das características socioculturais da medicina no período colonial brasileiro deu margem ao engano de que as práticas oriundas de outras tradições não teriam influenciado o tardio processo de institucionalização da ciência médica que se deu ao longo do século XIX (Chalhoub et al., 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp.).

Dois aspectos foram, nesse sentido, de suma importância para o processo de institucionalização e popularização da medicina científica no Brasil: por um lado, o estabelecimento do ensino médico no Brasil. Essa medida, tomada em 1832 pelo governo imperial, e que tinha como objetivo a promoção da “aculturação” da medicina local conforme as novas tendências do saber médico europeu, contribuiu para a distinção entre medicina científica e popular. Por outro lado, os dicionários de medicina popular, ao tratarem dos temas abordados pela ciência médica numa linguagem simples (o que era parte da estratégia de vulgarização da ciência médica) conseguiram estabelecer uma relação de correspondência entre o cotidiano da colônia e o discurso cifrado da medicina acadêmica (Chalhoub et al., 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp.).

Diante disso, a sociedade brasileira foi forçada a repensar seu sistema de relações sociais em prol do progresso e da aproximação com o modelo das sociedades europeias. Com esta premissa de cientificidade, começou-se a empreender uma verdadeira batalha contra as práticas de cura advindas de curandeiros, rezadeiros, benzedores e outros representantes do saber não oficial, adjetivando-as de arcaicas, ultrapassadas e criminosas.

Sendo assim, as justificativas para assumir o discurso científico como possibilidade única de verdade, ao menos desde meados do século XIX, estão profundamente alicerçadas no desenvolvimento da sociedade colonial, por influência europeia, bem como no empenho das elites do país em manter suas condições de controle e privilégio em um contexto no qual os pilares desse modelo social - trabalho escravo, inviolabilidade da vontade dos proprietários de terra e a reprodução de laços de dependência pessoal - estavam entrando em crise (Chalhoub et al., 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp.).

E é nesse quadro que as práticas de cura e benzeção tradicionais, que não faziam parte do rol da medicina científica da época, chegaram a ser relacionadas com o subdesenvolvimento econômico e foram classificadas como insuficientes, escassas e charlatãs pelos cientistas. Assim como aqueles que as praticavam foram qualificados como bárbaros e atrasados, e acusados de não estarem indo ao encontro do progresso civilizatório.

Os artigos compilados na obra Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social, de (Chalhoub et al., 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp.), permitem-nos perceber que as atividades exercidas por parte dos artesãos da cura não científica eram de enorme variabilidade, não apenas em suas práticas, mas também em categorias para aqueles que as exerciam e seu público-alvo. Barbeiros e sangradores, benzedeiros, curandeiros, feiticeiros, boticários, homeopatas, parteiras, receitistas e afins ofertavam curas para os males do corpo e da alma, contando, não raro, com a confiança daqueles que se sentiam receosos com as prescrições da medicina científica, assim como nos mostra o seguinte trecho da obra citada:

Ligados a tradições culturais fortemente enraizadas em diferentes grupos sociais, esses oficiantes muitas vezes tinham a preferência dos doentes. Homens ou mulheres, negros ou brancos, ricos ou pobres, os pacientes tinham lá suas maneiras de lidar com a doença, o que na maioria das vezes os levava para longe dos ditames da medicina científica. (Chalhoub et al., 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp., p. 13)

Conforme afirma Luiz Otávio Ferreira, citado por (Chalhoub et al., 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp.), a partir da análise de periódicos médicos: “não podendo simplesmente denunciar o ‘charlatanismo’ ou a ‘ignorância popular’, os médicos viam-se obrigados a dialogar com a tradição médica popular, disputando, em condições desfavoráveis, a autoridade no campo da arte de curar” (p. 119).

Isto reflete de forma patente o caso contado por Gabriela dos Reis Sampaio, citada por (Chalhoub et al., 2003Chalhoub, S., Marques, V. R. B., Sampaio, G. R., & Sobrinho, C. R. G. (Orgs.). (2003). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Unicamp.), em que Juca Rosa, importante curandeiro negro e líder religioso no Rio de Janeiro do século XVIII, recebia em sua casa mulheres brancas da alta sociedade, ricos, comerciantes e políticos influentes, os quais iam em busca de seus conselhos e prodigiosas curas.

A predominância dos terapeutas tradicionais no Brasil colonial

A predominância de curandeiros, rezadores, sangradores, barbeiros e todas as outras figuras proeminentes da medicina popular foram de suma importância no tratamento das enfermidades nos tempos do Brasil Colônia.

Uma das razões para a predominância destes oficiantes da cura popular era a escassez de instituições comprometidas com o ensino e atendimento médico especializado, como clínicas, hospitais ou escolas para médicos; assim como o desinteresse dos médicos portugueses em se dirigirem para o Brasil, devido aos “baixos salários e as precárias condições de vida”, como explica (Cunha, 2004Cunha, C. A. (2004). A arte de curar nos tempos da colônia: limites e espaços da cura. Recife, PE: Fundação de Cultura do Recife.).

Neste sentido, o conhecimento prático e o uso de plantas medicinais já eram conhecidos e utilizados pelos jesuítas desde o período do Brasil Colônia. Esse conhecimento provinha principalmente das plantas descobertas e utilizadas pelos indígenas com as quais se obtinham excelentes resultados nos processos curativos. Como nos explica o autor citado no parágrafo anterior, os efeitos conseguidos com a manipulação destas plantas no início do século XVIII obtinham melhores resultados que os métodos utilizados pela medicina predominante na Europa que, por sua vez, tinha como base aspectos da medicina galênica juntamente com a teoria dos humores, conforme divulgada pelo Corpus Hipocraticus.

Mesmo com a tentativa de profissionalizar seus agentes de cura, autorizando-os enquanto representantes da ciência, os oficiantes da medicina acadêmica encontraram muitas dificuldades na tentativa de se afirmar como profissionais. Havia certo receio e medo na população (e também nas autoridades religiosas, principalmente católicas) em relação à medicina oficial provinda da Europa.

A concepção de cura assumida pelos curandeiros representou, e ainda representa, uma aceitação e escolha legítimas em articulação com as concepções de cura da população, na medida em que a atividade do curandeiro e sua ação são compostas de um poder simbólico, no qual o próprio pensamento do grupo está presente, investindo valor à representação do curandeiro, assim como ao seu poder de ação. Segundo (Foucault, 1964/2010), a eficácia terapêutica dos valores simbólicos foi:

obstáculo ao ajustamento das farmacopeias às novas formas da medicina e fisiologia. Alguns sistemas puramente simbólicos conservaram sua solidez até o final da era clássica, transmitindo, mais do que receitas, mais do que segredos técnicos, imagens e símbolos surdos que se ligavam a um onirismo imemorial. (p. 336)

Assim sendo, todo um corpo técnico composto por práticas de cura, representado pelas figuras dos rezadeiros, curandeiros e raizeiros, estava rodeado por uma tradição sobre a qual a medicina não tinha controle uma vez que suas técnicas e suas proposições de cura estavam esvaziadas do valor simbólico contido nas práticas tradicionais.

Da Fisicatura-mor ao Código Penal de 1890: o processo de legitimação da prática médica científica

Denominada como charlatanismo, a atividade dos terapeutas tradicionais e sua permanência, anteriormente caracterizadas como mágicas e bárbaras, passaram a ser oficialmente legitimadas através de regimentos, como a Fisicatura-mor, que fornecia uma série de ofícios com atividades bem delimitadas autorizando-os a exercer a “arte de curar”, sobrevivendo até o ano de 1828, época em que a corte portuguesa já havia sido transferida para o Brasil.

Entre os ofícios autorizados pela Fisicatura-mor estavam os de médico, cirurgião, boticário, sangrador, parteira e curandeiro, estes últimos autorizados somente a cuidar de doenças “leves” e/ou aplicar medicamentos feitos com plantas medicinais nativas (Pimenta, 2003Pimenta, T. S. (2003). Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX. Cadernos CEDES, 23(59), 91-102. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a07v23n59.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a...
).

Embora o regimento tivesse o intuito de delimitar quais ofícios de cura eram autorizados a cada classe, era comum que barbeiros, sangradores e cirurgiões conseguissem unir sem conflitos sua prática cirúrgica à benzeção.

Os escravos recém-chegados no Brasil encontraram apoio nas atividades de sangradores, por exemplo, devido a um envolvimento com sua própria cosmologia e na visão de que as doenças, desequilíbrios e infortúnios eram causados pela interferência maléfica de espíritos. Eles, muitas vezes, eram mandados por seus senhores a um mestre régio dos sangradores para aprender o ofício.

A distribuição de títulos aos agentes autorizados pela Fisicatura-mor para exercer suas atividades de forma legal contrastava com o número reduzido de licenças concedidas aos terapeutas tradicionais, que por sua vez gozavam de notória preferência por parte da população. (Pimenta, 2003Pimenta, T. S. (2003). Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX. Cadernos CEDES, 23(59), 91-102. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a07v23n59.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a...
) nos explica que é possível observar, por meio de relatos de viajantes, em periódicos e correspondências entre autoridades, a disseminação de profissionais como sangradores, curandeiros e parteiras por todo o Brasil sem licenças concedidas pela Fisicatura-mor. A autora ainda nos diz que esses profissionais acabavam por oficializar suas atividades quando da proximidade de fiscalização, por alguma denúncia ou por almejarem se sobressair aos demais atuantes, passando ao status de oficializado, sobretudo quando suas atividades eram exercidas nos centros urbanos (Pimenta, 2003Pimenta, T. S. (2003). Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX. Cadernos CEDES, 23(59), 91-102. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a07v23n59.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a...
).

Com o fim da Fisicatura-mor em 1828, uma série de mudanças no regimento trouxe algumas modificações aos ofícios reconhecidos legalmente pelo governo. Boticários, parteiras ou sangradores só poderiam curar e exercer sua prática mediante uma carta de apresentação, e quem não as possuísse atuaria de forma ilegal.

É importante ressaltar que estas mudanças feitas no regimento e a extinção da Fisicatura-mor foram mobilizadas pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, concebendo este antigo regimento como “um tribunal monstruoso, tão nocivo à ciência e aos interesses da humanidade” (Pimenta, 2003Pimenta, T. S. (2003). Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX. Cadernos CEDES, 23(59), 91-102. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a07v23n59.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a...
, p. 96). Os curandeiros não seriam sequer citados no novo regimento, complicando, posteriormente, em 1832, a vida de sangradores com a transformação das academias médico-cirúrgicas em faculdades de medicina, nas quais somente os títulos de doutor em medicina, farmacêutico e parteira seriam concedidos, o que não conseguiu extinguir, porém, a atuação daqueles não mais reconhecidos pela lei (Pimenta, 2003Pimenta, T. S. (2003). Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX. Cadernos CEDES, 23(59), 91-102. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a07v23n59.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v23n59/a...
).

Com a promulgação do código penal de 1890, foi destinada à corporação médica científica a legitimidade inscrita na atuação do Estado. Juntos, corporação médica e Estado iniciaram uma perseguição política, jurídica e policial aos terapeutas tradicionais, com o argumento de que se estaria protegendo a população de crenças ilusórias que se espalhavam pela difusão dos saberes sobre a doença. As alterações na legislação estavam pautadas na concepção de que o exercício de médico deveria se dar pelos homens da ciência, que cumprem os objetivos da Sociedade de Medicina e da Academia Imperial no “controle da população e do exercício profissional” (Montero, 1985Montero, P. (1985). Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 50).

A respeito deste fato, (Montero, 1985Montero, P. (1985). Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) nos explica que

a constituição da Medicina em prática hegemônica não resultou apenas, evidentemente, de medidas punitivas e controladoras. O desenvolvimento das vacinas contra pestes, lepra, tifo, varíola, febre amarela e outras, e o aperfeiçoamento das técnicas de controle sanitário e detecção de focos contagiosos tornou possível, para a Medicina, manter um combate eficaz sobre as doenças contagiosas. O alcance e a real superioridade da Medicina no campo dessas enfermidades tornou cada vez mais fácil sua aceitação, a expansão de seus cuidados para todas as camadas sociais e a posterior extensão de seu monopólio sobre todo ato terapêutico. O fato de as próprias massas trabalhadoras passarem a incluir na pauta de suas reivindicações, a partir dos anos 20, a oferta de cuidados gratuitos de saúde por parte do Estado nos dá, em certa medida, a dimensão da legitimidade que a Medicina passou a ter para as camadas sociais que até então se constituíam em “clientela natural” das terapias tradicionais. (p. 54)

Desde então a prática e o conhecimento de rezadores e curandeiros perderam seu espaço em meio ao movimento de urbanização e avanço da industrialização, no desenvolvimento do ensino escolar, dos avanços tecnológicos e da medicina científica. Este movimento atinge também o contexto rural, no qual as propostas terapêuticas tradicionais tinham maior adaptação. Também neste contexto, sentem-se as interferências da urbanização, por exemplo, com o deslocamento migratório que acaba dificultando a transmissão dos saberes dessa medicina tradicional.

Apesar das tentativas de oficialização que serviram para a propagação da medicina científica, e apesar das dificuldades anteriormente salientadas, as práticas tradicionais de cura resistiram ao enclausuramento e às tentativas de exclusão e permanecem como uma prática ainda atual em determinados contextos, inclusive urbanos.

O sujeito do paradigma médico atual

O lugar do sujeito na medicina contemporânea é um tema atual e constante nas discussões em saúde. Neste sentido, a introdução do mesmo nesse trabalho se pautará na seguinte premissa: a de que a objetivação do sujeito, praticada pela medicina científica no tratamento das patologias, condena ao esquecimento a esfera subjetiva e permite-nos entrever uma lacuna na proposta terapêutica do modelo biomédico.

Herdeiro da racionalidade científica moderna, o modelo biomédico se caracteriza por sua estreita vinculação com disciplinas provenientes das ciências biológicas. Nessa perspectiva, o referencial da clínica médica passa a ser a doença e a lesão, e o objetivo do médico se pautaria em identificar a doença e sua respectiva causa (Guedes, Nogueira, & Camargo Jr., 2006Guedes, C. R., Nogueira, M. I., & Camargo Junior, K. R. (2006). A subjetividade como anomalia: contribuições epistemológicas para a crítica do modelo biomédico. Ciência & Saúde Coletiva, 11(4), 1093-1103 Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232006000400030&script=sci_arttext
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).

Nesse sentido, (Sousa, 2007Sousa, M. F. B. (2007). A superação do dualismo cartesiano em António Damásio e sua contribuição para as concepções e práticas médicas ocidentais (Dissertação de mestrado). Faculdade de Filosofia de Braga, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Portugal.), em sua dissertação de mestrado, aponta um fato que nos permite uma primeira aproximação com nossa premissa, isto é, a ausência da esfera subjetiva no tratamento das diversas patologias:

Há um axioma que continua a influenciar as práticas médicas: a crença de que o corpo é composto de matéria, a doença é causada por alguma forma de matéria (genes, bactérias, vírus), e a melhor opção de tratamento baseia-se na aplicação de matéria (medicamentos) ou remoção de matéria (tumores, órgãos), .... O corpo é compreendido em temos mecanicistas, como um sistema de órgãos e partes, alguns dos quais podem ser consertados, removidos ou suplantados.... Em suma, ataca-se matéria com matéria. Os efeitos secundários são muitas vezes ignorados. (p. 33)

Uma vez que a tradição do corpo prevalece e que as implicações desta se sobressaem no tratamento do sofrimento humano, (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.) nos mostra que “essa racionalidade está na base da medicina científica, cuja visão mecanicista e reducionista vincula cada emoção ou pensamento a um determinado mecanismo” (p. 16).

As argumentações tanto de (Souza, 2007Sousa, M. F. B. (2007). A superação do dualismo cartesiano em António Damásio e sua contribuição para as concepções e práticas médicas ocidentais (Dissertação de mestrado). Faculdade de Filosofia de Braga, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Portugal.) quanto de (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.) também nos direcionam a refletir conforme o pensamento expressado por (Canguilhem, 1978/2007Canguilhem, G. (2007). O normal e o patológico (Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas, trad., (6a ed. rev.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1978)) em O normal e o patológico. Isto porque, se por um lado “a doença é aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer” (Canguilhem, 1978/2007Canguilhem, G. (2007). O normal e o patológico (Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas, trad., (6a ed. rev.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1978), p. 67), por outro, “a anomalia só é conhecida pela ciência se tiver sido, primeiro, sentida na consciência, sob a forma de um obstáculo ao exercício das funções, sob a forma de perturbação ou nocividade” (Canguilhem, 1978/2007Canguilhem, G. (2007). O normal e o patológico (Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas, trad., (6a ed. rev.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1978), p. 104).

O que fica implícito no parágrafo anterior é a impossibilidade de se conceber a doença somente através da figura do doente. É preciso recorrer ao discurso do sujeito que é acometido, levar em consideração a perspectiva que este detém acerca de seu próprio padecimento:

Isto significa que, em matéria de norma biológica, é sempre o indivíduo que devemos tomar como ponto de referência, porque, como diz Goldstein, determinado indivíduo pode se encontrar à altura dos deveres resultantes do meio que lhe é próprio, em condições orgânicas que, para outro indivíduo, seriam inadequadas para o cumprimento desses deveres. (Canguilhem, 1978/2007Canguilhem, G. (2007). O normal e o patológico (Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas, trad., (6a ed. rev.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1978), p. 144)

No que se refere às práticas médicas e à importância da representação do sujeito acerca de sua doença, pode-se perceber que ao desconsiderar fatores como subjetividade e/ou cultura, a relação entre profissional e enfermo instituiu-se, sobretudo, com base em aspectos técnicos. Neste contexto, ao objetificar o sujeito em detrimento do âmbito subjetivo que também o compõe, é possível entrever essa lacuna nas propostas terapêuticas, uma vez que, de acordo com Porto, citado por (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.), a valorização do diagnóstico se sobrepôs à forma terapêutica, implicando numa inversão do que realmente seria o objetivo da ação do médico.

O que podemos perceber é que esse modelo biomédico, centrado na doença, deprecia o interesse pela experiência do paciente. Além disso, com a assimilação da tecnologia, a medicina suprimiu a relação pessoal entre médico e paciente, de modo que, “atualmente, existem recursos para lidar com cada fragmento do homem, mas falta ao médico a habilidade para dar conta do mesmo homem em sua totalidade” (Jaspers citado por Caprara & Rodrigues 2004Caprara, A. & Rodrigues, J. (2004). A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciência & Saúde Coletiva, 9(1), 139-146. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232004000100014&script=sci_arttext
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, p. 140).

A racionalização médica, fundamentada na crença de poder mensurar objetiva e quantitativamente o ser humano, subestima não apenas as dimensões psicológica, social e cultural presentes na relação saúde-doença, mas também os significados que a doença pode vir a assumir para o paciente. Compartilhar com o doente a experiência do adoecer exige que o médico reveja sua compreensão sobre o processo de adoecimento e cura, que doravante não pode ser apreendido apenas na sua dimensão diagnóstica e prognóstica. Noutros termos, o processo saúde-doença passa a ser compreendido como uma dinâmica que envolve aspectos técnicos e também fatores subjetivos, tanto do médico quanto do paciente.

Retomando (Canguilhem, 1978/2007Canguilhem, G. (2007). O normal e o patológico (Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas, trad., (6a ed. rev.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1978)), ainda em O normal e o patológico, quando o autor discute as noções de saúde e doença, a partir da associação entre experiências de fisiologia nos laboratórios, tais noções são instituídas com base em médias obtidas em situações cientificamente controladas - fato este que também é alvo da crítica de Canguilhem -, o que nos permite perceber, de antemão, a distância para com a realidade dos sujeitos.

Tanto saúde quanto doença têm sua existência condicionada aos substratos anatômicos e fisiológicos que contêm ou não algum tipo de patologia e, para além disso, que estão definidos não mais pelo sujeito que sofre, mas pelo médico que diagnostica. A experiência da doença tem sua esfera subjetiva negligenciada e o paciente já não pode relatar aquilo que sente sem que haja um fundamento cientificamente comprovado que defina sua sensação. Assim sendo, em vez de médico e paciente, nos defrontamos com um médico e um doente. Trabalha-se sobre o conhecimento da doença independentemente da compreensão do adoecimento.

Conforme Luz, citado por (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.), diante desse contexto as pessoas têm procurado por outras práticas que proporcionem não apenas uma forma terapêutica, mas também o “ser cuidado”. Diante da ineficiência médica, especificamente em sua concepção de sujeito e método de intervenção, abre-se margem tanto para novas propostas terapêuticas, por vezes pouco fundamentadas, quanto para aquelas ditas tradicionais, que por motivos nem sempre bem estabelecidos foram relegadas à vigarice ou à crendice. Como relata (Guedes, Nogueira e Camargo Jr., 2006Guedes, C. R., Nogueira, M. I., & Camargo Junior, K. R. (2006). A subjetividade como anomalia: contribuições epistemológicas para a crítica do modelo biomédico. Ciência & Saúde Coletiva, 11(4), 1093-1103 Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232006000400030&script=sci_arttext
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)

verificamos no campo da saúde coletiva a emergência de novas abordagens para se pensar o adoecimento, tais como a clínica ampliada, a humanização do atendimento, as discussões sobre a integralidade das ações de saúde e a produção do cuidado com vistas à transformação do modelo tecnoassistencial. Concomitantemente a estas propostas tem-se observado nos últimos anos uma crescente aceitação das medicinas ditas alternativas em nossa sociedade. (p. 1095)

Além disso, Le Fanu, citado por (Caprara & Rodrigues, 2004Caprara, A. & Rodrigues, J. (2004). A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciência & Saúde Coletiva, 9(1), 139-146. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232004000100014&script=sci_arttext
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), ao apresentar algumas das contradições da recente história da medicina, mostra-nos que a eficácia da prática médica moderna deveria ter como implicação o desvanecimento de “outras formas de medicina”, entretanto, percebe-se um aumento significativo do uso das medicinas não convencionais no ocidente.

Retomando o estatuto que compete ao termo “doença”, e levando em consideração os desdobramentos que a prática médica sofreu durante a sua trajetória, temos que ele não traduz apenas uma série de sintomas que atendem as normas de uma determinada cultura. Temos a nossa frente, sobretudo, um sujeito enfermo que, mesmo diante de sua condição, está a expressar parte de sua história de vida e a ressignificar o mal que o acomete.

O ponto central é o de pensar a doença não como uma entidade em si mesma, mas como algo que se concebe dentro de uma relação dialética, na qual a demanda que o paciente faz ao médico não se resume a receber um diagnóstico. Isto porque não seria apenas a necessidade de ser “curado” que está em pauta, mas também a busca pela significação do adoecimento, aspecto que frequentemente escapa ao raciocínio biomédico:

A consulta médica... não se resume nas informações colhidas e no exame objetivo dos sintomas e sinais da queixa principal, bem como aos aspectos a ela relacionados. Envolve a escuta atenciosa do médico em relação ao paciente, buscando a intimidade reveladora do seu jeito único de ser no mundo, através de seus projetos de vida, crenças, sentimentos, pensamentos e lembranças. Precisa ser ampla, promovendo inclusive uma catarse e, ao mesmo tempo, fazendo parte do processo terapêutico. O sintoma trazido pelo paciente, por conseguinte, não é algo a ser eliminado como um incômodo, mas a ser observado como expressão do indivíduo (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., p. 17-18)

Essa fala de (Diniz, 2006Diniz, D. S. (2006). A “ciência das doenças” e a “arte de curar”: trajetórias da medicina hipocrática (Dissertação de mestrado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.) expressa, sobretudo, uma aspiração no sentido da humanização da relação médico-paciente. Todavia, como vimos anteriormente, podemos concluir que a medicina moderna estabelece de fato uma relação objetiva e objetificante tanto com o sujeito quanto com a doença. Além disso, essa medicina que se identifica com o discurso científico tornou sua prática deveras tecnicista, promovendo um esvaziamento do valor subjetivo inerente ao processo de adoecimento e de cura.

A permanência das práticas tradicionais de cura: entrevendo lacunas

Conforme os tópicos explicitados, buscaremos refletir, com base em nossa premissa (isto é, a de que a objetivação do sujeito, em detrimento da esfera subjetiva no tratamento das patologias, permite-nos entrever uma lacuna na proposta terapêutica do modelo biomédico), se as implicações do processo de objetivação poderiam justificar a permanência das práticas tradicionais de cura aqui abordadas.

De acordo com (Luz, 2005Luz, M. T. (2005). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX [Suplemento]. Physis, 15, 13-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf
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), o crescimento das “medicinas alternativas” se encontra tanto em países do Primeiro Mundo quanto nos do Terceiro Mundo a partir da segunda metade dos anos 1970, chegando ao ápice na década de 1980. A autora nos traz ainda um evento importante a ser enfatizado: a emergência de novos paradigmas para cura e saúde na segunda metade do século XX - especialmente com o movimento social chamado “contracultura”1 1 Movimento surgido nos anos 1960 e que se prolongou até os anos 1970 nos Estados Unidos e na Europa. - impulsionada pela importação de sistemas terapêuticos distintos e também opostos à nossa racionalidade médica vigente.

Sobre as medicinas alternativas, a autora (Luz, 2005Luz, M. T. (2005). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX [Suplemento]. Physis, 15, 13-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf
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) nos aponta que é possível perceber três grandes grupos na América Latina, todos com demandas por parte da população, conforme a cultura de cada região: (1) a medicina tradicional indígena; (2) a medicina de origem afro-americana; e (3) as medicinas populares derivadas de sistemas médicos altamente complexos.

Antiga e resistente, apesar dos embates culturais sofridos, a medicina tradicional indígena, xamânica ou não xamânica, é instituída como um sistema que prega a harmonia entre homem e natureza. Esta medicina entende que o adoecer tem sua origem na desproporção dos elementos fundamentais da vida, “e restaurar a saúde através da intervenção de xamãs, brujos ou outros agentes de cura é restabelecer a harmonia entre esses termos nos sujeitos, sempre vistos como um todo sócio-espiritual inserido na natureza” (Luz, 2005Luz, M. T. (2005). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX [Suplemento]. Physis, 15, 13-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf
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, p. 155).

Também originalmente xamânica, porém nitidamente mais religiosa que a anterior, a medicina de origem afro-americana foi inserida nos países da América do Sul e América Central por meio da escravidão praticada no continente entre os séculos XVII e XIX. Ainda que preconize a natureza como elemento fundamental para a cura, (Luz, 2005Luz, M. T. (2005). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX [Suplemento]. Physis, 15, 13-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf
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) nos aponta que a medicina afro-americana é claramente mais espiritualista em seu tratamento dos fenômenos que competem ao adoecimento, tendo a figura do pai ou mãe de santo como agente de cura mais importante, atuando terapeuticamente de modo a intermediar entidades espirituais e divindades de diversas escalas.

Por fim, existem as terapias designadas como “alternativas”, que se instituíram como paralelas ou complementares à nossa medicina. Em geral, elas descendem de sistemas médicos tradicionais atrelados às filosofias altamente complexas, tais como a medicina tradicional chinesa, a medicina ayurvédica e a homeopatia, encontrando no contexto atual uma crescente demanda.

Os grupos descritos, de acordo com (Luz, 2005Luz, M. T. (2005). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX [Suplemento]. Physis, 15, 13-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf
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), ocupam uma posição de interação, competição ou complementação no meio cultural contemporâneo, demonstrando ainda uma forte tendência ao “sincretismo terapêutico”. Neste sentido, os estudos de (Noronha, 2004Noronha, M. (2004). A etnopsiquiatria na sociedade contemporânea. Presença, 3(28), 1-17. Recuperado de http://www.revistapresenca.unir.br/artigos_presenca/28marcosdenoronha_aetnopsiquiatrianasociedade.pdf
http://www.revistapresenca.unir.br/artig...
) salientam alguns fatores de suma importância para compreendermos porque parte da população segue recorrendo às medicinas alternativas:

Na sociedade contemporânea a utilização das medicinas paralelas se estabelece de diversas formas. Algumas pessoas complementam o tratamento alopático já instituído; outras são radicais, procurando se valer exclusivamente das medicinas paralelas, como uma reação (recusa) ao tratamento oficial ou como um ideal de vida, se valendo também de alimentação, habitação e costumes alternativos. (p. 2)

Essas práticas que se tornaram alternativas ainda resistem no movimento de urbanização, concorrendo com a medicina científica e demonstrando um aperfeiçoamento das mesmas nos centros urbanos, representadas através da atuação de centros espíritas, por exemplo, que atuam seguindo preceitos semelhantes às concepções de cura de curandeiros e rezadores tradicionais, como a aplicação de “cirurgias espirituais” e passes, demonstrando uma preocupação com o mundo espiritual.

Num estudo realizado com curandeiros do município de Viçosa (AL) denominado “Medicina popular em Alagoas”, José Pimentel de (Amorim, 1963/2006) explicita alguns aspectos sobre a atuação desses terapeutas tradicionais na cidade, demonstrando a gama de ação dos curandeiros e nuances da atividade desses profissionais:

há curandeiros e curandeiras, elas comumente, que rezam e benzem para doenças, em vezes receitando; eles fazem mais, porque além de remédios de toda espécie, curam de cobra, fecham o corpo e tiram espírito, tarefa mais delicada que elas só excepcionalmente exercitam. Curtos no comum são os ensalmos que elas utilizam; eles conhecem e aplicam longas rezas, e que melhor impressionam (p. 11)

Além disso, mesmo no ambiente urbano, muitas práticas alternativas de cura foram se adaptando e sendo incorporadas no meio social. A resistência dessas práticas e a ampla procura por elas poderiam ser fatores que demonstrariam certa insatisfação com os dispositivos da relação médico-paciente da medicina científica?

A fim de exemplificar a permanência dessas medicinas tradicionais, tomamos como exemplo a produção de (Lins, 2013Lins, D. A. S. (2013). A benzeção em Santa Maria: a permanência de tradições de cura no contexto da contemporaneidade. Revista Latino-Americana de História, 2(6), 569-581. Recuperado de http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/216/170
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) ao apresentar o trabalho que (Ribeiro, 1996Ribeiro, M. G. (1996). As benzedeiras e os benzedores de Três Barras: A concepção do homem sagrado (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio Grande do Sul.) desenvolveu na comunidade de Três Barras, localidade rural próxima à cidade de Santa Maria (RS). Buscando compreender a razão pela qual a população da comunidade recorria aos benzedores a fim de solucionar os males que os acometiam - contemplando saúde física, psicológica e espiritual -, (Ribeiro, 1996Ribeiro, M. G. (1996). As benzedeiras e os benzedores de Três Barras: A concepção do homem sagrado (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio Grande do Sul.) pôde encontrar nos depoimentos daquela população elementos que justificavam a sobrevivência da prática.

Percebeu-se, num primeiro momento, que a distância em que a comunidade se encontrava dos centros urbanos, a dificuldade de conseguir chegar a eles, e problemas com o mau atendimento e superlotação do serviço público eram fatores que justificavam a busca pelo atendimento das benzedoras (Lins, 2013Lins, D. A. S. (2013). A benzeção em Santa Maria: a permanência de tradições de cura no contexto da contemporaneidade. Revista Latino-Americana de História, 2(6), 569-581. Recuperado de http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/216/170
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). Em seguida, (Lins, 2013Lins, D. A. S. (2013). A benzeção em Santa Maria: a permanência de tradições de cura no contexto da contemporaneidade. Revista Latino-Americana de História, 2(6), 569-581. Recuperado de http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/216/170
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) nos revela que a benzeção é um elemento que pertence a um universo de tradições, uma prática que condiz com a cultura da comunidade, de modo que primeiro se procuraria este serviço, e, caso o problema não fosse resolvido, recorrer-se-ia à prática médica.

Ampliando a discussão anterior, (Quintana, 1999Quintana, A. M. (1999). A ciência da benzedura: mau-olhado, simpatias e uma pitada de psicanálise. Bauru, SP: EDUSC.) nos mostra que

O indivíduo poderá aceitar o fato de sua doença se puder outorgar-lhe um sentido. A dor é sempre intolerável enquanto significar algo arbitrário. Mas quando ela adquire um sentido, torna-se suportável. É em busca dessa linguagem que as pessoas procuram uma benzedeira (p. 47)

Isso nos permite pensar numa busca por um paradigma de cura que detenha a forma terapêutica como ponto central e não a diagnose. Além disso, questionamos ainda se fatores como a generalidade e o distanciamento pertencentes ao ideal de neutralidade e objetividade da ciência médica não podem ter instituído entraves para determinados grupos sociais; uma vez que nomear a patologia aparenta não causar o mesmo efeito de saber que se está sendo “cuidado” em vez de “tratado”.

Além disso, há aqui dois pontos importantes: (1) A prática da benzeção enquanto um resquício histórico e cultural que resistiu à implementação da medicina científica; e (2) o papel do benzedor enquanto aquele que, junto ao sujeito-enfermo, possibilitará não uma cura possível, mas um ambiente em que se possa dar um novo sentido para a norma2 2 Aqui o termo “norma” faz referência ao utilizado por Canguilhem (1978/2007) em O normal e o patológico. de vida que não se apresenta favorável.

Se retomarmos a questão da relação médico-paciente, diante de tudo o que já foi explicitado, logo poderemos concluir o quanto ela está, historicamente, implicada numa grande significação simbólica. No entanto, o contexto médico atual prega outra perspectiva: o paciente é um objeto de estudo e, posteriormente, da intervenção tecnológica vigente, é um ser que, visto apenas enquanto matéria, está despido dos símbolos e significados, tanto individuais quantos sociais, que podem estar envolvidos em seu processo de adoecimento. O que nos propomos a reafirmar é que

O aspecto psicológico, além do simbólico, é aqui evidentemente importante, e coloca para a medicina convencional uma questão crucial em face da eficácia médica e da resolutividade de questões de saúde da clientela de serviços públicos: grande parte dessa eficácia e resolutividade resulta da satisfação que os pacientes encontram no seu tratamento. Tal satisfação deriva, por sua vez, de uma relação socialmente complexa (em que estão presentes elementos simbólicos e subjetivos) estabelecida entre os dois termos. A satisfação não deriva, portanto, apenas de uma racionalidade tecnocientífica, que tende, aliás, a ignorar a dimensão humana envolvida na relação terapeuta-paciente. O sucesso das medicinas alternativas nos últimos quinze anos deriva, em grande parte, da maneira como essas medicinas estabelecem a relação com seus pacientes. (Luz, 2005Luz, M. T. (2005). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX [Suplemento]. Physis, 15, 13-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf
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, p. 160-161)

Assim sendo, o objetivo primordial da intervenção médica não deveria se pautar apenas na determinação de um diagnóstico e na escolha de um tratamento, mas também no processo de recuperação e promoção de saúde. De acordo com (Lins, 2013Lins, D. A. S. (2013). A benzeção em Santa Maria: a permanência de tradições de cura no contexto da contemporaneidade. Revista Latino-Americana de História, 2(6), 569-581. Recuperado de http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/216/170
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), existiriam problemas que estariam fora do alcance da medicina científica, e que somente os benzedores poderiam resolver, como se pôde identificar na fala de uma das entrevistadas da pesquisa realizada pelo autor: a benzedeira resolve coisas que o médico não resolve, médico não cura cobreiro (p. 578).

Semelhante a esse fato, a entrevista realizada com o benzedor Paulo, habitante de um bairro de Santa Maria, nos revela muito sobre a diferença entre a atuação dos médicos e dos benzedores:

Existem coisas que são função do médico, se é para tirar um pedaço daquela matéria, ou colocar outro pedaço, pronto, é do médico; quando é espiritual, aí é outro caso. Tem pessoa que vai no médico, o médico faz tudo o que é exame, não acha nada, aí vem aqui e eu digo que só pode ser espiritual. Nós apelemos [sic] para a parte espiritual e a pessoa é curada. (Lins, 2013Lins, D. A. S. (2013). A benzeção em Santa Maria: a permanência de tradições de cura no contexto da contemporaneidade. Revista Latino-Americana de História, 2(6), 569-581. Recuperado de http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/216/170
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, p. 578)

Portanto, cientes de que “medir a eficácia de uma prática de cura não é uma tarefa simples, pois a saúde é algo complexo envolvendo aspectos diversos do ser humano, como sua integridade biológica, psicológica e sociocultural” (Noronha citado por Noronha, 2004Noronha, M. (2004). A etnopsiquiatria na sociedade contemporânea. Presença, 3(28), 1-17. Recuperado de http://www.revistapresenca.unir.br/artigos_presenca/28marcosdenoronha_aetnopsiquiatrianasociedade.pdf
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, p. 6), o relato do benzedor residente em Santa Maria exemplifica uma das questões fundamentais desenvolvidas ao longo deste trabalho, isto é, a busca por um paradigma de cura que esteja para além do diagnóstico e que retome a forma terapêutica como elemento fundamental.

Considerações finais

Neste trabalho procuramos demonstrar que, no decorrer da história, deparamo-nos com distintas formas de lidar com as modalidades de sofrimento humano, sejam elas psíquicas ou corporais. Por meio de rituais que evocam forças sobrenaturais ou fazendo uso de aparatos técnicos e marcadamente empíricos, o ser humano busca incansavelmente lidar com seu sofrimento, mas a humanidade continua a se defrontar com sentimentos de desamparo diante da experiência do adoecimento, das catástrofes naturais e humanas.

No contexto contemporâneo, há uma tendência de o saber médico enfatizar o diagnóstico e tratamento em detrimento de uma visão mais ampla e sistêmica da forma terapêutica. A eficácia deste modelo, no entanto, tem-se resumido aos aspectos materiais deste processo e permitido entrever certo esvaziamento do valor subjetivo inerente à experiência do adoecimento e de sua respectiva “cura”. Desta forma, percebe-se que a unilateralidade da ação médica científica diante do processo saúde-doença, assim como o abandono de uma ótica dualista de sujeito, tem desconsiderado que este processo detém uma dupla natureza, isto é, comporta as esferas somáticas e psíquicas, ou até mesmo, se considerarmos certas linhas de pensamento, somáticas e espirituais.

Neste sentido, a medicina tradicional, como se pôde ver através dos trabalhos de (Luz, 2005Luz, M. T. (2005). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX [Suplemento]. Physis, 15, 13-43. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/physis/v15s0/v15s0a08.pdf
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) e (Lins, 2013Lins, D. A. S. (2013). A benzeção em Santa Maria: a permanência de tradições de cura no contexto da contemporaneidade. Revista Latino-Americana de História, 2(6), 569-581. Recuperado de http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/216/170
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), por exemplo, tem proposto uma forma terapêutica para o processo saúde-doença que trabalhe com a totalidade do sujeito doente, visto que “os curandeiros de modo geral e em diversos continentes, crêem na dupla natureza da doença, ou seja, consideram aspectos materiais e espirituais” (Noronha citado por Noronha, 2004Noronha, M. (2004). A etnopsiquiatria na sociedade contemporânea. Presença, 3(28), 1-17. Recuperado de http://www.revistapresenca.unir.br/artigos_presenca/28marcosdenoronha_aetnopsiquiatrianasociedade.pdf
http://www.revistapresenca.unir.br/artig...
, p. 6). Assim sendo, ao retomar o aspecto simbólico pertencente a este processo, as práticas tradicionais de cura têm a possibilidade de fundamentar a sua permanência, demonstrando que o tratamento de um dos aspectos da doença não consegue abarcar a significação da totalidade do processo de adoecimento. Por isso é preciso distinguir o conhecimento da doença - que permite uma ação da clínica médica sobre esta -, da experiência do adoecimento - que diz respeito à maneira como cada indivíduo entende as causas, os desdobramentos e vivência do processo de convalescença ou morte. É nesse ponto que a medicina científica parece perder sua voz, e talvez esteja exatamente aí o aspecto valorizado pelas práticas tradicionais de cura e que garantem sua vitalidade mesmo num mundo dominado por técnicas refinadas.

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  • 1
    Movimento surgido nos anos 1960 e que se prolongou até os anos 1970 nos Estados Unidos e na Europa.
  • 2
    Aqui o termo “norma” faz referência ao utilizado por Canguilhem (1978/2007Canguilhem, G. (2007). O normal e o patológico (Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas, trad., (6a ed. rev.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1978)) em O normal e o patológico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2015
  • Revisado
    24 Jan 2016
  • Aceito
    09 Maio 2016
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