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Adolescência: da Cena Familiar à Cena Social

Adolescence: From The Familial Scene to The Social Scene

Adolescence: de la Scène Familiale à la Scène Sociale

Resumos

Este trabalho tem por objetivo problematizar a relação entre adolescência e estrutura, discutindo as possibilidades de que um acontecimento na adolescência modifique a constituição subjetiva do jovem. Aborda a questão a partir de reflexões sobre as operações subjetivas e sociais necessárias à passagem da cena familiar à cena social, trabalhando, mais especificamente, a relação identificação, ato e inserção no grupo social. Desta forma, aponta o encontro problemático entre os processos subjetivos dos adolescentes e de certos atos ditos delinqüentes em uma sociedade ancorada no neoliberalismo.

Adolescência; Família; Sociedade; Laço social; Identificação


This work attempts to problematize the relationship between subjectivity and adolescence by discussing the extent to which a pubescent event modifies the adolescent subjective structure. The question is tackled by reflecting on the social and subjective operations required for the passage from the familial scene to the social one. To this purpose the relationship among identification, act and social insertion is more thoroughly examined. The work thus points to the problematic meeting point between adolescent subjective processes and a few so-called "delinquent" acts in a society anchored in neoliberalism.

Adolescence; Family; Society; Social link; Identification


Ce travail a pour objectif d'étudier les relations entre l'adolescence et la structure, en discutant les possibilités qu'un événement pendant l’adolescence modifie la constitution subjective du jeune. Il aborde la question à partir de réflexion sur les opérations subjectives et sociales nécessaires au passage de la scène familiale à la scène sociale, en travaillant plus spécifiquement la relation d'identification, acte et insertion dans le groupe social. De cette manière il met le doigt sur la rencontre problématique entre les processus subjectifs des adolescents et de certains actes dits de délinquance dans une société ancrée dans le néolibéralisme.

adolescence; Famille; Société; Lien social


ADOLESCÊNCIA: DA CENA FAMILIAR À CENA SOCIAL1 1 Trabalho apresentado na mesa redonda Adolescência e Estrutura, em 20 de Novembro de 2001, nas Reuniões Psicanalíticas.

Miriam Debieux Rosa2 2 Endereço eletrônico: debieux@mt2net.com.br

Instituto de Psicologia - USP

Este trabalho tem por objetivo problematizar a relação entre adolescência e estrutura, discutindo as possibilidades de que um acontecimento na adolescência modifique a constituição subjetiva do jovem. Aborda a questão a partir de reflexões sobre as operações subjetivas e sociais necessárias à passagem da cena familiar à cena social, trabalhando, mais especificamente, a relação identificação, ato e inserção no grupo social. Desta forma, aponta o encontro problemático entre os processos subjetivos dos adolescentes e de certos atos ditos delinqüentes em uma sociedade ancorada no neoliberalismo.

Descritores: Adolescência. Família. Sociedade. Laço social. Identificação.

Entre os vários caminhos para problematizar a relação entre adolescência e estrutura, optei por abordá-la pelo questionamento da possibilidade de que um acontecimento na adolescência modifique a constituição subjetiva da criança. Proponho contribuir com algumas reflexões sobre os efeitos na subjetividade da entrada do jovem na cena social, mais especificamente, utilizando a escuta de adolescentes na entrada na cena dos grandes centros urbanos brasileiros.

Adolescência é um termo utilizado usualmente como contraponto à condição da criança inocente ou à do adulto caracterizado pelo ideal de maturidade e equilíbrio. A psicanálise aborda o sujeito adolescente de outros ângulos, como os processos de luto - seja dos pais, da infância, do corpo infantil; a partir do encontro com o sexo; como passagem que reafirma ou põe a constituição subjetiva à prova e aponta para o momento de sua conclusão...

Examinemos brevemente esta última questão em Freud.(195/1972) Nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, não há dúvidas: a vida sexual infantil pré-determina o jogo das transformações presentes na puberdade, que põe o jovem na direção da genitalidade. Freud afirma: "Não só os desvios da vida sexual normal, como também sua forma normal são determinados pelas manifestações infantis da sexualidade"(Freud, 1905/1972). O termo utilizado é puberdade e não adolescência; o subtítulo da terceiraLição é As Transformações da Puberdade, ou seja, nesse texto o ponto de partida dos processos psíquicos parte do impacto do jovem frente ao incremento libidinal e à excitação sexual, visto como fruto de excessos hormonais, diante dos quais sobrevém a reatualização de fantasias incestuosas, o que, no confronto com a Lei, exige do jovem o doloroso desligamento dos pais. Tais mudanças e a necessidade de reordenações e composições põem à prova os processos anteriores, com possíveis perturbações patológicas.

Outros trabalhos no decorrer da obra prosseguem na discussão mas, para discutir o aspecto da adolescência que tematizo neste trabalho, considero que o texto fundamental de Freud é A Psicologia das Massa e a Análise do Eu(1921/1972). Destaco também questões levantadas pelo autor em Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914/1972) e em Luto e Melancolia (1917/1972). Neste último é discutida a elaboração do luto articulada à identificação e à transferência do investimento libidinal para outros objetos –aspecto importante para tematizar o luto do pai imaginário e ideal, além do reinvestimento libidinal no objeto.

No texto de 1921, Freud recusa a divisão indivíduo-sociedade assim como uma concepção bio-psico-social. O que tem em vista é "a descoberta da explicação psicológica dessa alteração mental que é experimentada pelo indivíduo no grupo" (Freud, 1921/1972, p. 113), considerando que a entrada na vida social impõe modificações ao sujeito: "se assim, nos grupos, o amor narcisista a si mesmo está sujeito a limitações que não atuam fora deles, isso é prova irresistível de que a essência da formação grupal consiste em novos tipos de laços libidinais entre os membros do grupo" (p. 130). O tema da identificação é introduzido para discutir a natureza desses laços. O capítulo VII, no qual a identificação é trabalhada de forma integrada à formação do ideal do eu e ao funcionamento do sujeito nos grupos e instituições, é um dos mais importantes na obra sobre o assunto, e sistematicamente retirado desse contexto. Nele Freud apresenta o sintoma compartilhado3 3 Freud (1917/1972) assim se expressa: "algumas de suas amigas... pegarão a crise, assim por dizer, através de uma infecção mental, e sofrerão, por sua vez, um ataque igual" (p. 135). que fornece a base das identificações histéricas na instituição de moças, fornecendo reforço narcísico para cada uma e para o grupo, assim como referenciais para as identificações imaginárias mútuas. Afirma, o "outro" está presente na constituição do sujeito, seja como "um modelo, um objeto, um auxiliar ou um oponente de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, neste sentido ampliado porém inteiramente justificado das palavras, é, ao mesmo tempo e desde o princípio, também psicologia social" (p. 91).

Ou seja, este trabalho demonstra que o narcisismo é rearticulado na construção de laços que possibilitem a entrada nos grupos sociais, entrada que modifica o sujeito e seu sintoma, particularmente na dimensão dos ideais.4 4 "A diversidade das identificações, assim como a base narcísica e de desejo sobre as quais sustenta-se o ideal, fazem do homem um ser regido ora pela antecipação estruturante, ora pela significação retroativa que o recoloca em posição de saber. O seu movimento, próprio da condição desejante, torna sua apreensão de si e do mundo marcada pelo desconhecimento e reconhecimento e, portanto, tornando sucessiva e concomitantemente, alienação e verdade, identidade e subjetividade, presentes em sua condição de ser. Subjetividade que sempre escapa e identidade predicativo. Desta forma, a identidade referida ao ideal de ego pode ser sempre relançada a um outro patamar" (Rosa, 1998, p. 126). O ideal do ego, embora fundado narcisicamente e pelo desejo do Outro (passamos aqui para concepções lacanianas), traduz-se pela possibilidade de produzir e buscar objetos fálicos e lugares que tomam a forma de ideais que orientam os laços com o Outro, os laços sociais sustentados pelo desejo e pelas identificações. Identificações, desejo e ideais articulam o sujeito ao grupo social, inserindo-o na cena social através da formação de grupos de amigos, de nova família, inserção no trabalho, em grupos religiosos... Estão aqui os temas básicos da adolescência.

Os dois pontos se articulam: a constituição subjetiva engendrada no complexo de Édipo e as considerações freudianas sobre a transformações no sujeito, quando enlaça-se nos grupos sociais. Acrescente-se mais um aspecto: a inserção dos agentes do grupo familiar na sociedade. O exercício das funções materna e paterna opera-se a partir dos lugares (materno, paterno, fálicos) atribuídos ou não aos membros de determinada família, classe social e ao momento cultural. A sua eficácia não é independente de tais fatores, uma vez que a família é, ao mesmo tempo, o veículo de transmissão dos sistemas simbólicos dominantes e a expressão, em sua organização, do funcionamento de uma classe social, grupo étnico e religioso em que está inserida. Com estes elementos, pode-se considerar a adolescência como a operação que expõe a cena social presente na base da cena familiar, até então encarregada das operações referentes às funções materna e paterna para a constituição subjetiva.

Na adolescência, novas operações se processam para fazer valer outro discurso, além discurso do pai: operações que possibilitam o pertencimento e o reconhecimento do jovem como membro do grupo social e que dependem das formas, condições e estratégias oferecidas pelo grupo social. A este respeito, Aulagnier (1979, p. 146) afirma que o discurso social projeta sobre o infans a mesma antecipação que é própria do discurso parental; o grupo pré-investirá o lugar que o sujeito ocupará, na esperança de que ele transmita, de forma idêntica, o modelo sociocultural. O sujeito deve encontrar nesse discurso referencias que lhe permitam se projetar no futuro para que o afastamento desse primeiro suporte não se traduza em perda de todo suporte identificatório. Rassial (1997) aborda estas operações como inscrição e validação do grupo social.

Reatualiza-se nessa passagem a cena da sedução, que encena o assujeitamento ao desejo do Outro, agora não mais tematizado pelo desejo da mãe ou pela Lei do pai, mas pela organização social (nova versão do pai), poderosa, visto que desencarnada, mas ainda discurso, com seus ditos e não-ditos. A construção da subjetividade fica articulada aos laços sociais possíveis em dados grupos sociais, podendo promover mudanças estruturais e/ou vinculações a laços sociais perversos. Diante do encontro faltoso com a cena social lembramos Freud (1921/1972) quando afirma que "abandonado a si mesmo, o neurótico vê-se obrigado a substituir as formações coletivas de que se acha excluído por suas próprias formações sintomáticas" (p. 103). Ou seja, no constrangimento da entrada na cena social emergem processos psíquicos característicos da adolescência. Nesta medida, penso, com Ruffino (1998), a adolescência como a produção de um processo subjetivo tecido na modernidade para suprir as falhas nas estruturas sociais em atribuir ao adolescente um lugar em harmonia com sua condição de sujeito desejante. Tais falhas favorecem a sua exclusão da estrutura social, especialmente na sociedade brasileira, em que a diferença nas classes sociais significa diferentes direitos quanto a saúde, educação, direitos, profissão, etc e exclusão dos modos de gozo deste momento social.

Examinemos o jovem na atualidade, particularmente nos grandes centros urbanos brasileiros. O adolescente depara-se com uma organização social regida pelo discurso neoliberal que, embora regida pela lei do mercado, propaga uma presumida liberdade e igualdade de direitos e oportunidades, através da qual acena com uma plena realização para todos a partir de formas massificadas de consumo. No entanto, como demonstra Calligaris (1991) em A Sedução Totalitária, mesmo tendo dissimulada sua aparência ditatorial, o princípio atual que rege nossa vida social é totalitário ou fundamentalista. Totalitário no sentido de que pretende ser regido por um aparente sentido: a democracia e o interesse coletivo, deixando obscurecido o imperativo do funcionamento do capitalismo, no qual o funcionamento da máquina satisfaz os indivíduos, ao mesmo tempo que - e isto é particularmente importante para os adolescentes - os exime de responder por suas ações.

Abre-se uma cena: diante da ausência do pré-investimento do grupo social em construir um lugar para o sujeito, com consequente suspensão deste lugar de gozo viável, abre-se um impasse para o adolescente subjetivar-se articulado ao Nome-do-Pai. Abre-se também uma alternativa: a adaptação à modalidade do sujeito anônimo deste modelo social, forjando uma identidade imaginária na qual o jovem pode colar-se como um modo de existência no desejo do Outro. Este impasse move para agir - questão central da adolescência - que, por sua vez, promove acontecimentos que tem efeitos para o sujeito.

Tomemos alguns fragmentos clínicos para ilustrar esses processos. Apresento-lhes Nelson, rapaz de 17 anos, porte atlético, boa aparência. Ele fala baixo, pouco, com esforço seguido de silêncio, desanimado mas disposto a deixar-se conduzir. Vai à Clínica Psicológica da USP por ordem do juiz. Chega algemado, trazido pela FEBEM - fizera assaltos a mão armada. Em seguida, vem trazido pela mãe e, finalmente, passa a vir sozinho. Aos poucos vai trazendo trechos de sua história: as espinhas, a revolta contra o pai, sua mudança - não liga prá mais nada - e o envolvimento com os que sabem fazer acontecer.

Nelson já desistiu de ser o advogado que queria, figura idealizada, homem culto estudado - ele queria (ou sua mãe?) ser muito diferente de seu pai bruto, grosseiro, que faz trabalhos pesados (pedreiro), que deixa insatisfeita sua mãe, obrigada também a trabalhar muito, abrigando esperanças nele, único "filho-homem".

Ele conta que, com o crescimento, chegam as espinhas: dor insuportável. Instado a falar, vai descrevendo experiências de deformação, horror e vergonha diante do espelho, das pessoas. As pessoas dizem: são apenas espinhas! Mas ele vive-as diferente - das espinhas saem coisas nojentas, excrementos, o sangue do pai, sangue amaldiçoado. Rasga as fotografias da infância, do futuro advogado. Esconde-se de todos, tranca-se no quarto, abandona a escola e vê crescer o ódio pelo pai. Atraca-se com ele tentando matá-lo e é expulso de casa. Posteriormente, é acolhido pela mãe, mas já havia mudado! Não liga mais para nada. Passa a andar armado e com pessoas armadas. Depois, rouba carros e assalta.

Pode-se pensar essa "escolha" de Nelson de duas formas. A falta de reconhecimento, pela mãe, dos atributos fálicos do pai, suficientes para dar-lhe um suporte identificatório, dificulta a transmissão e deixa em suspensão a identificação paterna, configurando um estado de carência simbólica que adia o confronto com a castração - fica fixada a identificação ideal com o falo materno; há de se fazer o luto da identificação imaginária, ou seja, fazer do falo da mãe um objeto perdido. Outra hipótese possível é a de que a transmissão do sistema simbólico dominante tenha sido efetivada, mas que o acesso a tal sistema permaneça impossibilitado, inclusive pelo lugar marginal de sua família na estrutura social. A apreensão do universo simbólico denuncia o lugar marginal do pai e, às vezes, no caso de filhos de imigrantes ou no racismo, produz um discurso que condena o pai à morte. A distância entre o discurso do mestre e o discurso do pai, afirma Rassial (1997, p. 52), pode ter conseqüências catastróficas e pode até legitimar o assassinato do pai da realidade.

Esse efeito disruptivo é descrito por Aulagnier como uma quebra do contrato narcísico. Esse contrato se estabelece graças ao pré-investimento do infans pelo meio, que antecipa o investimento do grupo pela criança, que nele ocupará um lugar independente do veredicto parental. O discurso do meio oferece, sobre a origem, uma certeza necessária à dimensão histórica, essencial na identificação. A ruptura no contrato pode ter conseqüências diretas sobre o destino psíquico da criança. Quando a realidade social é responsável pela ruptura, afirma a autora, configurando situações de exploração e exclusão, reforça fantasias de rejeição, ódio, despossessão, o que acontece é que

no momento em que o Eu descobre o extra-familiar, em que seu olhar procura um sinal dele que lhe confira direito de cidadania entre os seus semelhantes, ele só pode encontrar um veredicto que lhe nega este direito, propondo-lhe um contrato inaceitável, pois respeitá-lo implicaria a renúncia, na realidade de seu tornar-se, a ser qualquer coisa que não uma mera engrenagem sem valor, a serviço de uma máquina, a qual não esconde sua decisão de explorá-lo ou excluí-lo (Aulagnier, 1979, p. 153).

Nelson nem sempre odiara o pai. Lembra-se de uma cena: a sua bola cai na casa de um vizinho e ele tenta pegá-la. Ameaçado, clama pelo pai, que enfrenta o vizinho, com seu modo hostil e grosseiro, mas não o suficiente para aplacar o seu medo diante do vizinho-bandido-armado. Chega a imaginar ambos mortos, ele e seu pai-desarmado.

Fragmentos de uma história que se pode re-montar: uma desmontagem da transformação do ideal narcísico em ideal do eu (fundado em ideais culturais, nos quais está perdida a esperança de neles se inserir), seguida da dificuldade de identificação com atributos masculinos (referenciados a um pai no qual não encontra os atributos fálicos a partir dos quais poderia incluir-se na ordem social preservando-se narcisicamente). Mas o processo identificatório processa-se nele, à revelia, e é sentido como uma deformação, uma agressão à bela imagem prometida - o sangue paterno toma conta, deformando a imagem do futuro advogado. Identificação odiosa, uma vez que o submete a um lugar desprezível e a uma dupla condenação: frente aos olhos da mãe e à ordem social.

E vem o ódio ao pai.Calligaris (1991)5 5 Vários outros autores que discutem os efeitos da modernidade na subjetividade. aborda o ódio ao pai para além da rivalidade com o pai. Considera que o fundamento da civilização ocidental está na separação indivíduo e sociedade, que determina a primazia do indivíduo como valor social e, por conseqüência, em oposição à sociedade. Ora, se o prioritário na cultura é o indivíduo, e este se afirma recusando a cultura transmitida, a conseqüência é que o tornar-se indivíduo gera ódio ao outro, ao que faz a mediação simbólica. O paradoxo da civilização é este: que a herança simbólica produz o ódio a ela mesma. As conseqüências manifestam-se nas dificuldades intergeracionais, pela recusa à herança na afirmação como indivíduo: o ódio ao Outro leva ao ódio ao outro, disruptivo do tecido social. Renegar as heranças históricas e culturais tem outro efeito: promove a igualdade, abole as diferenças. As diferenças recalcadas retornam, não mais como simbólicas, mas como identidades imaginárias, caricaturas das referências culturais, convenientes à vida em um mundo paranóide.

Nelson renega os ideais sociais e, instado à identificação, renega seu pai-rude-desarmado, deslocando a identificação para outra versão do pai, o vizinho-bandido-armado, para enfrentar e evitar o medo. Agora, ele não liga para nada, e adquire novo formato: passa a armar-se e a assaltar. Nova identificação, nova forma de gozo. Encontra uma identidade, um êxito do eu - acima da Lei, livre do Outro.

Nessa linha, Birman (1998) demonstra que novas formas de sociabilidade tecem novas modalidades de subjetividade - Débord denominou-as sociedades do espetáculo, enquanto Lach interpretou-as segundo a cultura do narcisismo. Agindo de acordo com essas novas formas de sociabilidade, os atores se inserem na vida social pela exibição e teatralidade, reenviando para a exterioridade a economia subjetiva que resulta na exaltação do Eu e na estetização da existência, em que os gestos são voltados à sedução do Outro, objeto de gozo e de enaltecimento do eu. A imagem é condição para o espetáculo e a captação narcísica do outro. É a imagem que seduz e fascina, realizando o ideal de captura do outro para o deleite do momento, sem nenhuma implicação com o efeito de sua sedução no outro. O sujeito se transforma em uma máscara para a exterioridade, para a exibição fascinante e captura do outro.

Esse contexto prioriza as identificações imaginárias, nas quais o sujeito pede à imagem o que ela não pode lhe dar: ser, para si mesmo, uma referência autônoma e independente da maneira como é visto pelos outros. "A valorização do emblema unicamente pelo sujeito despoja, neste caso, o emblema de seu valor identificatório...única possibilidade, oferecida ao sujeito, de suportar o seu não reconhecimento por um semelhante...sem precisar por isso destruí-lo ou aceitar ser por ele destruído" (Aulagnier, 1979, p. 153).

Nelson adquire uma identidade da qual precisa dar provas de que não é ilusória. Encontra uma saída, solução freqüente entre os jovens de hoje: produzir atos para provar a existência - faço, logo sou. Declaração inútil, pois o ato não prova a existência, pelo contrário, demonstra a divisão do homem, instado a agir ali onde ele não está como sujeito, e instado, a posteriori, a tomar o ato como seu, como um significante que o representa, atribuindo-lhesentido.

Na questão da adolescência estão presentes dois protótipos do ato: oato sexual e o suicídio. O ato sexual é protótipo porque é ato na direção do outro, imerso no mais íntimo encontro com o outro e no mais radical mal entendido. O encontro com o real do sexo é sempre traumático, uma vez que porta um a mais de gozo que a criança não antecipa nas teorias sexuais infantis. Nessa medida, o jovem dá-se conta da impossibilidade da relação de completude entre os sexos. Faz-se necessário um banho de símbolos, expressão de Alberti (1996), para a manutenção do jovem no simbólico, mediatizando a face da angústia. Os ritos de passagem, iniciáticos, tinham esta função: recentrar o encontro com o real do sexo na própria estrutura cultural e na tradição da comunidade, procurando dar ao adolescente uma significação para o que a priori, não há significação. O suicídio é também protótipo do ato, na direção inversa. Como diz Lacan, é o único ato bem sucedido, no qual nada mais dita ao sujeito os seus caminhos. Fora disto, o sujeito sempre é determinado pelo Outro. O adolescente recorre muitas vezes ao suicídio, direta ou indiretamente, expondo-se a riscos. Ato heróico (Antígona) ou o máximo da alienação? Ato extremo de quem quer autodeterminar-se ou mais um apelo ao pai? Apelo ao pai, tomado como função simbólica, na tentativa de dar conta do impacto do gozo que o invade. Pai, que sempre está aquém desta função - revolta-se então contra o Outro da Lei (Lacan, 1962).

Santiago distingue o acting out do ato, levando em conta que este primeiro não contribui para que o sujeito possa dar prosseguimento à conduta heróica de seu destino. O autor afirma: "Neste ponto, faz-se necessário considerarem-se os termos da inibição e do acting out de forma articulada, tomá-los como uma variação de uma modalidade de resposta do sujeito diante do enigma do desejo do Outro. A meu ver, essa presença de actings out no curso da inibição poderia mesmo ser tomada como a expressão da neurose na atualidade da clínica psicanalítica, que faz de Hamlet um verdadeiro paradigma para se pensarem as formas assintomáticas da inibição e das patologias do ato" (Santiago, 2000, p. 337).

A inibição intelectual está presente em Nelson e em muitos jovens da atualidade que não se apropriam dos saberes constituídos socialmente. A relação fracasso escolar e atuação é freqüente.

O ato depende do luto. Luto que não se opera no ato delinqüente, simbólico de uma falta de acesso ao objeto de gozo fálico, como diz Melman (1992). Nesse caso, não há culpa, uma vez que responde à omissão do Outro, que faltou em seu dever para com ele. Não admite a falta no Outro, não admite a castração do Outro - que supõe pleno - nem a renúncia ao objeto que parece sustentar o desejo. Enquanto se recusa a receber do meio, posto que rejeita a aquiescência, o engajamento e o comprometimento, esforça-se para se fazer por si próprio, por buscar as insígnias do pai e tomar posse do que lhe falta.

O reencontro com o outro, seu semelhante

Nelson relata um assalto que teve um grande impacto sobre ele. Ligara-se a um assaltante experiente e à sua namorada. Desta vez, assaltam uma mulher e sua filhinha. Entram no carro que irão roubar mas, antes, levam as duas a um caixa eletrônico. Ela diz: Este é o meu dia de sorte! Ele não entende e precisa esclarecer: Mas estamos te assaltando! Ela responde, então, que a sua sorte é que eles não são violentos, que apenas levarão seu carro e um pouco de dinheiro e que... Bem, o carro tem seguro... E ela logo estará com outro. Ele pensa: Ela não sabe que meu amigo pode se irritar e dar-lhe um tiro.

O que choca, o que traumatiza Nelson, nesse episódio? A cena que ele tinha em mente, e da qual pensava ser protagonista, era a de um homem-bandido, transgredindo os mais elementares valores sociais; impingindo medo; submetendo pela força uma mulher e uma criança - sinais de covardia e revolta, se ele preservasse os valores da sociedade. Acontece que não é como vítima de um bandido perigoso que a mulher se dirige a ele. Ela não o reconhece na identidade imaginária com que ele procura viver e a partir da qual consegue se fazer ver pelo outro; ele é só isto - um assaltante que não provoca medo (um medo como o que teve do vizinho), não é uma ameaça, nem existe, nem tem a menor importância. Seria preciso um ato a mais, uma violência física, para que ele fosse reconhecido no lugar almejado. Ao invés disto, ela compartilha a cena com ele, iguala-se a ele na imagem construída, na indiferença à sociedade, aos valores: o que interessa é se dar bem: Você leva o carro, eu arranjo outro. Trata-o como igual, desconsiderando todo o difícil e doloroso processo que implicou para ele abrir mão de sonhos, ideais preciosos, para que pudesse estar ali, indiferente, assaltando. Para retornar ao lugar conquistado, uma mínima existência e consideração do Outro por sua existência como bandido perigoso... Ela lhe parece pedir mais, e ele é instado a ser mais violento, mas não está disposto e desloca para o outro assaltante essa disposição.

É possível ver/escutar nessa cena uma constatação do que Calligaris (1986) conceitua como "perversão como uma forma de laço social", em que o discurso perverso apresenta-se sempre de duas maneiras: uma, no registro do desafio; a outra, no da cumplicidade. Ou seja, "de um destes dois lugares - do instrumento e do saber – ele nos fala como se fôssemos o outro lugar, como se estivéssemos com ele no mesmo fantasma". No discurso da cena do assalto, a mulher passa de vítima a cúmplice. Eles têm o mesmo saber, são peças da mesma engrenagem. Discurso sem implicação com o ato - aconteceu porque as coisas funcionam assim, fui mero instrumento e não agente da engrenagem.

O efeito desse acontecimento em Nelson é que passa a querer morrer. Tenta matar-se, mas, sem coragem, desafia a polícia, a morte - Deveria estar morto, diz. A sua previsão não se cumpriu - é levado à Febem.

Finalizo dizendo que se deve levar em conta que os processos do adolescente não se referem apenas a uma certa estruturação subjetiva - fixada e a priori, mas revisitada a partir da cena social -, em que os discursos constituem formas de laços sociais, alguns perversos ou perversores. O adolescente reinscreve-se, superando, conservando e revelando o histórico do sujeito e conferindo-lhe novas significações. As ações ou acidentes, realizações, frustrações, encontros, desencontros, promovem reorganizações estruturais importantes. Nessa medida, a constituição subjetiva e os sintomas que produz estão vinculados à inserção social, campo do Outro em que o adolescente busca inscrever-se. A sociedade atual, em que predomina a busca do triunfo do Eu, construído como se pudesse prescindir do investimento do outro, impossibilidade que o individualismo ofusca: impossibilidade de autoconstituir-se.

O discurso que preconiza a autoconstituição do sujeito apresenta-se em contraposição ao modelo do percurso subjetivo indicado na tragédia e que faz relação entre o desejo e os valores da cidade (serviço de bens), inaugurando a responsabilização pelos atos e a cidadania. Cidadania que implica uma pertinência que possibilita ao sujeito reconhecer e ser reconhecido nos âmbitos de participação em sua "cidade". Implicado, responde por seus atos - em sua dimensão de castrado - o que não significa resignação ou indiferença, mas a experiência da falta de um significante que lhe garanta seja o poder, o sucesso, ou mesmo a felicidade. Constata a insuficiência do Outro e da sociedade na proteção e apoio esperados, mas, ainda assim, a direção tomada pelo sujeito vai supor sempre uma aposta, sem vacilação e sem conformismo com a exclusão, produzindo atos que fundam e legitimam a subjetividade em nome do desejo, articulada à herança cultural que produz o enigma que sustenta o sujeito cidadão inserido em uma história, na história dos homens - falo aqui de uma posição ética e política.

Rosa, M. D. (2002). Adolescence: From The Familial Scene to The Social Scene. Psicologia USP, 13 (2), 227-241.

Abstract: This work attempts to problematize the relationship between subjectivity and adolescence by discussing the extent to which a pubescent event modifies the adolescent subjective structure. The question is tackled by reflecting on the social and subjective operations required for the passage from the familial scene to the social one. To this purpose the relationship among identification, act and social insertion is more thoroughly examined. The work thus points to the problematic meeting point between adolescent subjective processes and a few so-called "delinquent" acts in a society anchored in neoliberalism.

Index terms: Adolescence. Family. Society. Social link. Identification.

Rosa, M. D. (2002). Adolescence : de la Scène Familiale à la Scène Sociale. Psicologia USP, 13 (2), 227-241.

Résumé : Ce travail a pour objectif d'étudier les relations entre l'adolescence et la structure, en discutant les possibilités qu'un événement pendant l’adolescence modifie la constitution subjective du jeune. Il aborde la question à partir de réflexion sur les opérations subjectives et sociales nécessaires au passage de la scène familiale à la scène sociale, en travaillant plus spécifiquement la relation d'identification, acte et insertion dans le groupe social. De cette manière il met le doigt sur la rencontre problématique entre les processus subjectifs des adolescents et de certains actes dits de délinquance dans une société ancrée dans le néolibéralisme.

Mots-clés : adolescence. Famille. Société. Lien social.

Recebido em 17.07.2002

Aceito em 08.08.2002

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  • Rosa, M. D. (1998). A psicanálise frente à questão da identidade. Psicologia e Sociedade, 10, 126.
  • Rassial, J. J. (1997). A adolescência como conceito psicanalítico. In Adolescência: Entre o passado e o futuro (p. 52). Porto Alegre, RS: Artes e Ofício, Appoa.
  • Santiago, A. L. (2000). A inibição intelectual na psicanálise Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • 1
    Trabalho apresentado na mesa redonda Adolescência e Estrutura, em 20 de Novembro de 2001, nas Reuniões Psicanalíticas.
  • 2
    Endereço eletrônico:
  • 3
    Freud (1917/1972) assim se expressa: "algumas de suas amigas... pegarão a crise, assim por dizer, através de uma infecção mental, e sofrerão, por sua vez, um ataque igual" (p. 135).
  • 4
    "A diversidade das identificações, assim como a base narcísica e de desejo sobre as quais sustenta-se o ideal, fazem do homem um ser regido ora pela antecipação estruturante, ora pela significação retroativa que o recoloca em posição de saber. O seu movimento, próprio da condição desejante, torna sua apreensão de si e do mundo marcada pelo desconhecimento e reconhecimento e, portanto, tornando sucessiva e concomitantemente, alienação e verdade, identidade e subjetividade, presentes em sua condição de ser. Subjetividade que sempre escapa e identidade predicativo. Desta forma, a identidade referida ao ideal de ego pode ser sempre relançada a um outro patamar" (Rosa, 1998, p. 126).
  • 5
    Vários outros autores que discutem os efeitos da modernidade na subjetividade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2003
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Aceito
      08 Ago 2002
    • Recebido
      17 Jul 2002
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