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A teoria husserliana da doação perceptiva por perfis1 1 Informação sobre financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Processo 2013/11017-1.

La théorie husserliènne de la donation perceptive par esquisses

La teoría Husserliana de la donación perceptiva por perfiles

Resumo

Neste artigo, tratamos da teoria da percepção na filosofia de Edmund Husserl. Apresentamos e discutimos a descrição do modo originário de doação da coisa percebida, que, segundo o filósofo, se dá em meio a horizontes de percepção marcados por uma multiplicidade inesgotável de perfis perceptivos. Nosso problema específico consiste em evidenciar, em meio à descrição do processo perceptivo por parte de Husserl, a conjugação de três elementos da investigação fenomenológica: a unidade intencional da consciência perceptiva, o eu corpóreo e a dinâmica de presença e ausência que caracteriza o campo perceptivo. Orientamo-nos pela hipótese de que a ligação entre esses elementos configura uma condição afetiva da intencionalidade que se sustenta no impercebido.

Palavras-chave:
percepção; fenomenologia; espaço

Résumé

Dans cet article, nous éxaminons la théorie de la perception chez la philosophie de Edmund Husserl. Nous présentons et discutons la description de la façon originale de donation de la chose perçue, qui, selon le philosophe, se fait au milieu des horizons de perception caractérisés par une multiplicité inépuisable de profils perceptifs. Notre problème spécifique, c’est montrer, dans la description du processus de perception par Husserl, la combinaison de trois éléments de la recherche phénoménologique: l’unité intentionnelle de la conscience perceptive, le je corporel et la dynamique de présence et d’absence qui caractérise le champ perceptif. Notre hypothèse, c’est que le lien entre ces éléments configure une condition affective de l’intentionnalité soutenue par l’inaperçue.

Mots-clés:
perception; phénoménologie; espace

Resumen

En este artigo, tratamos de la teoría de la percepción en la filosofía de Edmund Husserl. Presentamos y discutimos la descripción del modo originario de donación de la cosa percibida que, según el filósofo, ocurre en medio de horizontes de percepción marcados por una multiplicidad inagotable de perfiles perceptivos. Nuestro problema específico consiste en evidenciar, en medio a la descripción del proceso perceptivo de la parte de Husserl, la conyugación de tres elementos de la investigación fenomenológica: la unidad intencional de la conciencia perceptiva, el yo corpóreo y la dinámica de presencia y ausencia que caracteriza el campo perceptivo. Nos orientamos por la hipótesis de que la ligación entre estos elementos configura una condición afectiva de la intencionalidad que se sustenta en el no percibido.

Palabras clave:
percepción; fenomenologia; espacio

Abstract

In this article, we focus on the theory of perception in Edmund Husserl’s philosophy. We present and discuss the description of the original form of donation of the perceived thing which, according to the philosopher, occurs amidst perception horizons marked by an inexhaustible multiplicity of perceptive profiles. Our specific problem is to evidence, among Husserl’s description of the perceptive process, the conjugation of three elements of phenomenological research: the intentional unity of perceptive awareness, the bodily I and the dynamics of presence and absence that characterizes the perceptive field. We are guided by the hypothesis that the link among these elements represents an affective condition of intentionality that rest on the unperceived.

Keywords:
perception; phenomenology; space

Introdução

Neste artigo, tratamos da teoria da percepção na filosofia de Edmund Husserl. Nosso propósito, em termos gerais, é apresentar e discutir a descrição do modo originário de doação da coisa percebida, que, segundo o filósofo, se dá em meio a horizontes de percepção marcados por uma multiplicidade inesgotável de perfis perceptivos. A descrição husserliana da percepção imprime uma dinâmica de conjugação de dimensões de presença e ausência, de visibilidade e invisibilidade, que será transmitida e investigada ao longo da tradição fenomenológica, alcançando expressão inclusive nas ciências cognitivas e nas neurociências (Petitot, Varela, Pachoud, & Roy, 1999Petitot, J., Varela, F., Pachoud, B., & Roy, J-M. (Orgs.). (1999). Naturalizing phenomenology: issues in contemporary phenomenology and cognitive science. Stanford, CA: Stanford California Press.; Berthoz & Petit, 2006Berthoz, A. & Petit, J-L. (2006). Phénoménologie et physiologie de l’action. Paris, France: Odile Jacob.). Nosso problema específico consiste em evidenciar, em meio à descrição do processo perceptivo por parte de Husserl, a conjugação de três elementos da investigação fenomenológica: a unidade intencional da consciência perceptiva, o eu corpóreo e a dinâmica de presença e ausência que caracteriza o campo perceptivo. Orientamo-nos pela hipótese, sugerida nos trabalhos de (Montavont, 1999Montavont, A. (1999). De la passivité dans la phénoménologie de Husserl. Paris, France: PUF.) e (Barbaras, 2006Barbaras, R. (2006). Le désir et la distance: introduction à une phénoméologie de la perception (2a ed.). Paris, France: Vrin.), de que a ligação entre esses elementos configura uma condição afetiva da intencionalidade que se sustenta no impercebido. Nossas análises, por certo, não exaurem o problema da fenomenologia da percepção, retomado incessantemente por Husserl ao longo da sua obra, mas devem traçar suas linhas fundamentais, bem como servir para que se identifiquem as possibilidades e dificuldades teóricas que lhe são inerentes.

O primado da percepção no pensamento husserliano

A tradição fenomenológica, em filosofia e em psicologia, revela a experiência perceptiva como um objeto de estudo privilegiado. Isto se deve a razões de princípio. Husserl, filósofo que inaugura essa tradição, rompe com a tese natural do mundo, quer dizer, com o primado do mundo natural na compreensão da nossa relação sensível e de conhecimento com as coisas e com outrem. Conforme o autor, ao invés de nos orientarmos sobre as coisas buscando conhecê-las como elas são, devemos nos obstinar, ao contrário, em interrogar “os modos de sua doação subjetiva” (Husserl, 1954/2004Husserl, E. (2004). La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris, França: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1954), p. 180), as formas pelas quais um objeto qualquer se oferece como sendo, dimensão esquecida pela atitude natural. Nesse exercício, chamado de redução fenomenológica, Husserl revela o caráter fundante da consciência para o aparecer de qualquer objeto que integre a nossa experiência, de modo que “aparecer” significa, aqui, a própria possibilidade de “ser”, inclusive para a própria consciência, a despeito da diferença quanto ao seu modo próprio de doação. Posto que essa descoberta se dá fora do campo naturalista, em que se afirma a presença de tudo que existe apenas como coisa espaço-temporal, “submetida às regras da causalidade universal” ((Husserl, 1954/2004Husserl, E. (2004). La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris, França: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1954), p. 325), a consciência é definida como uma região originária de onde qualquer outra região do ser, inclusive o mundo natural definido pela ciência, retira seu sentido. Essa subjetividade original escapa aos idealismos clássicos na medida em que se considera que a consciência não é nada fora da relação a algo que aparece. O seu sentido de ser é voltar-se para algo, é ter um objeto intencional. Trata-se aqui, portanto, não de um encontro contingente entre sujeito e objeto, mas de uma “relação essencial e universal” (Barbaras, 2009Barbaras, R. (2009). La perception: essai sur le sensible (2a ed.). Paris, France: Vrin., p. 44) entre o sujeito da aparição e aquilo que aparece. Essa consciência, que ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931)) denomina consciência transcendental, e que se apresenta em grande parte de sua obra como tema central de pesquisa, se “nadificaria” na ausência da relação a algo aparecendo. O aparecer de tudo que “é” coloca a percepção no centro dessa filosofia dedicada a investigar o a priori universal da correlação entre a subjetividade e aquilo que aparece.

É preciso considerar que no centro das investigações husserlianas habita a preocupação fundamental de qualquer teoria do conhecimento, a saber, a questão acerca da possibilidade da experiência. Para Husserl, a investigação da essência da experiência passa primeiramente pelo estudo da essência da percepção, dos momentos que a fazem percepção de coisa, do “ser-dado-em-pessoa” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 175), e que levam um objeto a aceder à aparição. Os modos originais de presentificação do mundo a partir da percepção abrem o campo de estudo “dos diferentes modos da presentificação em geral” ((Husserl, 1954/2004Husserl, E. (2004). La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris, França: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1954), p. 182), tais como a lembrança e a imaginação, além de evidenciar as dimensões essenciais da própria atividade perceptiva, como a temporalidade e a corporeidade.

Nas análises que se seguem, voltamo-nos, inicialmente, para trabalhos que antecedem a virada transcendental na filosofia de Husserl: as Investigações lógicas (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901)) e os cursos reunidos em Coisa e espaço (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF.). Neles, encontram-se os elementos essenciais que nos interessam: a corrente de consciência, que se dá na relação entre os vividos intencionais e os vividos sensoriais, o corpo em movimento e a latência do campo perceptivo, configurando, juntos, o transcurso perceptivo. Se considerarmos que as formulações acerca da redução fenomenológica e da consciência transcendental adquirem expressões bem acabadas em Ideias diretrizes para uma fenomenologia e uma filosofia fenomenológica puras ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931)), que denominaremos doravante Ideias I, cumpre destacar a importância das descrições iniciais de Husserl em torno da percepção para o estabelecimento do sentido originário da experiência e do conhecimento, bem como para o delineamento do domínio dos vividos de consciência como objeto fundamental de estudo da fenomenologia. Na sequência do trabalho, focalizamos, justamente em Ideias I, a retomada do problema entre unidade e multiplicidade na intencionalidade perceptiva a partir de uma nova referência conceitual: a estrutura noético-noemática. Por fim, com base nos textos sobre a síntese passiva (Husserl, 1966/1998) e de Filosofia primeira (Husserl, 1959/1972Husserl, E. (1972). Philosophie première, deuxième partie: théorie de la réduction phénoménologique. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1959)), tratamos da questão dos horizontes intencionais, dando acabamento à hipótese de uma dinâmica afetiva da percepção.

A doação perceptiva por Abschattungen: primeiras considerações

No centro da fenomenologia da percepção husserliana, encontra-se a descrição da coisa percebida com base na noção de Abschattung. Incessantemente retomada por Husserl, ela enraíza as principais ambiguidades que a fenomenologia da percepção encerra (Granel, 1968Granel, G. (1968). Le sens du temps et de la perception chez E. Husserl. Paris, France: Gallimard.). A etimologia do termo Abschattung refere-se à ideia da ação de uma sombra que pouco a pouco adquire contornos definidos. Nas versões francesas dos trabalhos de Husserl, referidas por nós2 2 Nossa literatura primária é constituída de versões traduzidas dos originais. Recorremos às versões francesas das obras de Husserl, posto que elas se inserem numa tradição de traduções do filósofo, razão pela qual apresentam um sistema linguístico bastante unificado. Os tradutores franceses das obras, entre eles, G. Granel, A. Kelkel, P. Ricoeur e N. Depraz, são reconhecidos por trabalhos críticos dedicados a Husserl, e apresentam, nas edições pelas quais são responsáveis, importantes comentários e esclarecimentos relativos ao trabalho de tradução, bem como sobre aspectos conceituais centrais da filosofia husserliana. Por estes motivos, tomamos estas versões dos escritos de Husserl como objeto de trabalho passível de análises rigorosas e fieis ao teor dos originais. , o termo tem sido traduzido por “esquisse”, não no sentido de um rascunho, mas “no sentido de um esboço que já se desenha mais ou menos no horizonte” (English, 2002English, J. (2002). Le vocabulaire de Husserl. Paris, France: Ellipses., p. 54, grifo do autor). Em português, conforme o uso corrente nos trabalhos e traduções consagrados a este domínio teórico, utilizaremos, preferencialmente, o termo “perfil” para nos referirmos à doação perceptiva por Abschattungen. Em Husserl, o termo remete “à emergência de um ‘aparecendo’ espacial no domínio originário da percepção” (English, 2002English, J. (2002). Le vocabulaire de Husserl. Paris, France: Ellipses., p. 54, grifo do autor). O termo alude principalmente ao campo da percepção visual, ao fato de que aquilo que aparece “não pode jamais ser dado senão de um certo lado, em perspectiva, através de tais e tais contornos, sem que jamais sua face e seu avesso possam aparecer ao mesmo tempo” (English, 2002English, J. (2002). Le vocabulaire de Husserl. Paris, France: Ellipses., p. 54, grifo do autor). Como veremos, a incompletude das doações perceptivas atuais, presentes em “carne e osso” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 37), será definida como uma característica eidética fundamental do funcionamento intencional perceptivo (English, 2002English, J. (2002). Le vocabulaire de Husserl. Paris, France: Ellipses.).

Na V Investigação lógica, (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901)) apresenta a noção de Abschattung no contexto de uma exposição circunstanciada da consciência mediante o conceito de vivido e da descrição das vivências, no intuito de diferenciá-los dos objetos percebidos. A “psicologia moderna”, representada no texto pela menção a Wundt, é descrita como ciência dos vividos ou conteúdos de consciência. Na perspectiva do “psicólogo moderno” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 146), trata-se de visar acontecimentos reais, eventos mentais, que constituem “por seus múltiplos encadeamentos e interpenetrações a unidade de consciência real do indivíduo psíquico”, escreve (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 146). Ao contrário, a intenção do filósofo é considerar o vivido “em um sentido puramente fenomenológico” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 146), que exclui toda relação com a “existência empírica real” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 147).

Os termos dessa distinção podem ser apreciados a partir de um exemplo dado por Husserl e que diz respeito à percepção externa, ou seja, à percepção de algo exterior à consciência. O autor refere-se ao “momento sensorial cor” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 147) relativo a um fenômeno perceptivo visual qualquer. Ele é um vivido, tanto quanto o caráter de ato da percepção ou quanto o “fenômeno perceptivo completo do objeto colorido” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 147). Por outro lado, o próprio objeto, enquanto coisa objetiva, com sua coloração particular, apesar de percebido, não é um vivido, nem se encontra na consciência. À cor, enquanto propriedade do objeto, corresponde um vivido, um fenômeno perceptivo de sensação de cor, “o momento cor fenomenológico, determinado qualitativamente” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 148), e que será submetido a uma “apreensão objetivante” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 148). Husserl denuncia a identificação corrente entre essas duas coisas: a sensação de cor e a coloração objetiva do objeto. Conforme a epistemologia empirista, elas seriam uma mesma coisa considerada de dois pontos de vista diferentes: o psicológico, que representa o percebido como sensação, e o físico, que o considera como propriedade do objeto.

Contra essa posição naturalista, Husserl nos convida a observar um caráter indubitável e necessário da percepção: a diferença entre o vermelho do objeto, “visto objetivamente como uniforme” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 148) e “a presentação por perfis (Abschattung) das sensações subjetivas de cor” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 148). Isso implica considerar que, na variabilidade de suas apresentações, o conteúdo de cor, o puro data de sensação, tal como dado fenomenologicamente, é apreendido conforme um único sentido objetivo.

O que vale aqui para a cor serve também para o objeto colorido como um todo. Vejo uma única e mesma caixa, ainda que a remexa diversas vezes e mesmo que altere minhas orientações espaciais em relação a ela. Experimentamos a consciência de identidade do objeto. Um mesmo sentido é apreendido na diversidade de conteúdos sensoriais. Essa consciência consiste em um ato intencional cujo correlato objetivo reside na identidade percebida. O ato intencional é um vivido da consciência, tanto quanto os conteúdos de percepção ou sensações presentativas. Há de se notar, todavia, “a diferença entre os vividos intencionais nos quais se constituem intenções objetivas... e os conteúdos que bem podem servir de materiais para os atos, mas que, eles mesmos, não são atos” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 186-187, grifos do autor). Ademais, os vividos “não aparecem objetivamente” (Husserl, 1901/1962Husserl, E. (1962). Recherches logiques, tome second, deuxième partie: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance (H. Élie, L. Kelkel, & R. Schérer, trads.). Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 188), quer dizer, eles não são vistos; de outro lado, os objetos são percebidos, aparecem, mas não são vividos. Nota-se aqui a preocupação de Husserl em distinguir a consciência daquilo do que ela é consciência, em estabelecer, conforme as palavras de (Barbaras, 2009Barbaras, R. (2009). La perception: essai sur le sensible (2a ed.). Paris, France: Vrin.), “uma diferença ontológica cardinal entre o ser como coisa e o ser como consciência” (p. 47).

O problema da incompletude e da indeterminação da doação perceptiva, com o teor que carrega de crítica à pretensa plenitude dos objetos tal como aparecem à percepção, faz-se notar aqui apenas indiretamente. É a questão dos vividos intencionais e dos seus conteúdos o foco desta abordagem inicial ao problema da percepção. Tocamos, contudo, em aspectos que nos serão úteis mais adiante e que nos colocam diante do que (Barbaras, 2006Barbaras, R. (2006). Le désir et la distance: introduction à une phénoméologie de la perception (2a ed.). Paris, France: Vrin.) considera um conflito entre a descrição e a análise da percepção em Husserl. A dimensão dessa análise que configura o ato intencional como ato objetivante não exporia a descrição da percepção a categorias do conhecimento, obnubilando suas especificidades? Ao mesmo tempo, não estaríamos diante de resquícios do sensualismo clássico, na medida em que se admite, nesta análise, a ideia de conteúdos de percepção, ou sensações?

Na VI Investigação lógica, a questão da percepção por perfis se apresenta em meio ao exercício realizado por Husserl para estabelecer as diferenças entre intenções significativas e intenções intuitivas, mediante a descrição das suas propriedades de preenchimento. As intenções significativas referem-se à relação entre um signo e aquilo que é designado por ele, enquanto as intenções intuitivas concernem aos fenômenos da percepção e da imaginação. Grande parte das vezes, um signo qualquer tem pouco em comum com aquilo que ele designa. O perfil perceptivo da coisa percebida não se apresenta como signo da coisa em si mesma. Um signo qualquer, na qualidade de objeto, também “aparece” em termos sensíveis, ou intuitivos, conforme o vocabulário de (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901)). Mas o seu valor expressivo depende de outro ato intencional, que o remeta à outra coisa, ou seja, ao objeto designado. No que diz respeito ao perfil perceptivo, ao contrário, cada face da coisa percebida apresenta nada mais nada menos do que esta coisa mesma, “em pessoa” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 77). Na representação imaginativa, o objeto também se apresenta sob múltiplos aspectos, em “perfis imaginativos” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 77), conquanto o objeto se apresente em imagem, e não corporalmente. Para Husserl, todas essas modalidades intencionais configuram atos objetivantes, na medida em que “sua unidade de preenchimento possui o caráter de unidade de identificação e, eventualmente, o caráter mais restrito de unidade de conhecimento” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 69, grifos do autor).

Atentemo-nos à caracterização da doação perceptiva por perfis. O sentido próprio da percepção é “ser aparição do objeto ele mesmo”, afirma (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 75), e não a aparição de uma imagem, cuja essência é a relação de semelhança com aquilo que é visado por intermédio dela. No caso da percepção, “a coisa se confirma por ‘ela mesma’” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 74); uma mesma coisa se manifesta em seus variados aspectos. Mais do que isso, o objeto aparece apenas “em perspectiva e por perfil” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 75), o que significa que a confirmação do objeto por ele mesmo pode apenas se dar em meio à abertura de novos horizontes de percepção. (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901)) comenta: “O objeto não é dado efetivamente, quer dizer que ele não é dado plena e integralmente tal como ele é nele mesmo” (p. 74). O objeto percebido se apresenta em meio a incontáveis possibilidades perceptivas. A percepção não se configura, pois, como uma “presentação verdadeira e autêntica do objeto nele mesmo” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 75). Se assim fosse, seria necessária apenas uma percepção para cada objeto. A percepção se dá no preenchimento de múltiplas intenções perceptivas. Na qualidade de ato global, a percepção “apreende o objeto ele mesmo, precisamente sobre o modo do perfil (Abschattung)” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 75). O sentido de toda percepção é, pois, um ideal de adequação ao objeto mesmo, que se manifesta mediante múltiplas percepções relativas a este único e mesmo objeto. Apesar da diversidade de aparições, uma mesma coisa é visada. Voltemo-nos a um trecho do texto de (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901)):

É a ele [o objeto] que se refere fenomenologicamente o fluxo contínuo do preenchimento ou da identificação na sucessão contínua de percepções “pertencentes ao mesmo objeto”. Nela, cada uma destas percepções é uma mistura de intenções preenchidas e não preenchidas. Às primeiras corresponde, no objeto, o que é dado nesta percepção singular como um perfil mais ou menos perfeito, às segundas o que ainda não está dado, portanto aquilo que, em novas percepções, acederia a uma presença atual e preenchedora. E todas as sínteses de preenchimento deste gênero distinguem-se por um caráter comum, precisamente enquanto identificações de aparições do próprio objeto com outras aparições do mesmo objeto. (p. 76-77, grifo do autor)

Essas análises podem ser expressas de outra forma. Na percepção, o que é visado é o objeto da percepção, e não o conteúdo atual da doação perceptiva, ou seja, o perfil do objeto percebido. Essa observação também é válida no que diz respeito às intuições significativas e imaginativas, nas quais o conteúdo do signo e dos perfis imaginativos se apresentam em prol da designação e da reprodução por imagem. Mas no caso da percepção, já o dissemos, a confirmação da coisa percebida ocorre na sua própria presença, que, contudo, parece não se esgotar. Ela se confirma como um “ideal de adequação” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 76), que nos leva a considerar tão somente como metáforas as possibilidades de tratar da “plenitude da ‘coisa mesma’” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 86), da progressão intencional na direção “da presentação adequada do objeto de conhecimento nele mesmo” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 86), e, de maneira mais geral, da possível “satisfação” (Husserl, 1901/1963Husserl, E. (1963). Recherches logiques, tome troisième: éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1901), p. 68) no que se refere aos processos de síntese de preenchimento das intuições perceptivas.

A síntese da intenção perceptiva remonta, portanto, à apresentação da própria coisa em seus perfis perceptivos. Essa lógica é garantida pela preservação da transcendência do objeto. Ela evidencia, ademais, a força exercida pelo inacabamento dos objetos da percepção sobre o sujeito perceptivo, aspecto acentuado por Husserl em trabalhos ulteriores.

Das Investigações lógicas, destacam-se, em suma, a distinção entre o ser como coisa e o ser como consciência, diferenciação ontológica fundamental, e uma primeira caracterização da doação perceptiva por perfis. Vimos que, a propósito da percepção, os vividos de consciência dividem-se, essencialmente, entre conteúdos sensoriais e vividos intencionais. A descrição inicial, por parte de Husserl, do preenchimento das intenções intuitivas perceptivas, evidenciou que o objeto, na medida da sua transcendência, apresenta-se, ele mesmo, mediante perfis perceptivos. Já temos, aqui, uma caracterização da insuficiência necessária da percepção.

Incompletude e movimento

Em 1907, Husserl dedica-se a uma série de escritos voltados exclusivamente à percepção. Esse material foi reunido em Coisa e espaço: lições de 1907 (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF.), no qual Husserl delimita o propósito de estudar a constituição da “objetividade empírica na experiência inferior” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 29), ou seja, a unidade da coisa percebida no processo de intuição perceptiva, considerada como forma primordial em relação a atos intencionais superiores. Mais precisamente, o filósofo circunscreve como campo provisório de estudos a percepção de coisas externas, tomadas individualmente como objetos.

Essas investigações permanecem baseadas na distinção entre os componentes reais e os componentes intencionais da percepção, formulada em termos bem semelhantes aos da V Investigação Lógica. Os conteúdos reais da percepção, ou sensações, seriam animados de significação mediante a apreensão. O conteúdo imanente seria, pois, apreendido como algo que aparece na sua apreensão, e que ele mesmo não é: o objeto que aparece. Pela apreensão do conteúdo imanente da percepção, encontramos o perfilamento contínuo de uma cor, de uma textura, de uma forma, de maneira que ao perfil sentido correspondem objetos com suas qualidades uniformes. Essa distinção mantém Husserl longe das confusões clássicas entre o imanente e o transcendente.

O que gostaríamos de destacar, contudo, dos estudos de Coisa e espaço é, primeiro, o aprofundamento, por parte de Husserl, das descrições e análises referentes ao inacabamento essencial da percepção, o que o leva a tratar de um “campo” perceptivo latente, múltiplo e, por isso mesmo, motivador da atividade perceptiva. O filósofo evidencia a indissociabilidade do campo de percepção em relação à posição do corpo do sujeito percipiente e dos seus decursos cinéticos. Nessa medida, realiza importantes considerações acerca do que chama de “corpo do Eu (Ichleib)” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 31), segundo aspecto para o qual devemos atentar. Esses estudos expressam a vinculação entre o inacabamento perceptivo e o movimento que caracteriza o eu corpóreo. Em filigrana, delineia-se a dimensão afetiva da percepção.

Se nos posicionamos diante de uma casa, vemos propriamente apenas a sua fachada. Somente uma complexão limitada de determinidades objetivas de percepção ganha exposição. Trata-se, precisamente, da face aparente da coisa percebida. Dizemos, todavia, ver uma casa, e não a fachada de uma casa. Este é o sentido percebido de forma fenomenológica. Explorações ulteriores podem reforçar esse sentido, ou alterá-lo, caso estejamos, por exemplo, em um cenário cinematográfico e sejamos levados a constatar que estamos tão somente diante de uma fachada, de um simulacro, embora esse objeto ainda constitua uma unidade, com a sua frente, seu verso etc. O fato é que, de qualquer forma, “a percepção de um todo não implica a percepção de todas suas partes e determinidades” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 73). Tal como se dá à percepção, a coisa percebida possui mais do que aquilo que se dá à aparição, ou que aparece no sentido próprio. Este “mais”, afirma (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 74), “é desprovido de conteúdos expositivos que lhe pertençam especialmente”, muito embora ele esteja compreendido na percepção, mesmo sem aceder propriamente à exposição. Daí Husserl afirmar que a apreensão global e a aparição global da percepção se dividem em aparição própria, cujo correlato é a face do objeto propriamente percebida, e a aparição imprópria, apêndice da aparição própria e cujo correlato é justamente o restante do objeto. Acerca da aparição imprópria, o filósofo escreve: “Ela não expõe nada, ainda que, contudo, ela torne seu objeto consciente de uma certa maneira” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 74). Essa consciência do objeto na aparição imprópria é, pois, vazia em termos de conteúdos expositivos, mas não no que se refere ao correlato perceptivo. Se apenas “o exposto é olhado, é dado ‘intuitivamente’” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 74), a aparição imprópria encontra-se indissociavelmente ligada a ele na unidade da aparição.

Toda percepção se estende, portanto, para além do que se apresenta na aparição própria. Esse excesso do percebido em relação a si mesmo é co-visado na aparição própria. A unilateralidade da percepção externa, que nos dá apenas um “relevo de aparição” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 75) a cada momento da exposição, expressa uma “incompletude radical”, afirma (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 75). Nunca deixamos o estado de síntese contínua que conjuga o visto e o não visto a cada instante de exposição das coisas. Trata-se, com efeito, de uma “síntese sem fim, jamais fechada, jamais terminada” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 167). Essa incompletude, vale frisar, não implica jamais um vazio de percepção, mas, justamente, “um fluxo de continuidade ilimitado, um reino ilimitado de possiblidades abertas” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 170), e que contam desde já no processo perceptivo.

A percepção, com efeito, jamais ocorre de forma inalterada. Seja em função do movimento das coisas percebidas, seja em função dos nossos próprios movimentos, desde os mais simples, como o piscar dos olhos e as variações da posição da cabeça, até os mais evocativos, que se dirigem à profundidade dos objetos e do mundo, o que temos é “continuamente qualquer coisa diferente outra vez” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 129). Os momentos de aparição própria transcorrem em séries marcadas por diferenças mínimas, de modo que se opera uma continuidade de perfis, que se transformam sem cessar um no outro. O transcurso da multiplicidade de perfis de um objeto qualquer é regido por uma “unidade de sentido contínua” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 131), na qual o objeto em carne e osso, o objeto que se-mantém-lá-em-pessoa, apresenta-se como identidade na multiplicidade e na continuidade de perfis perspectivos.

A referência a uma natureza temporal do fenômeno perceptivo é explícita. (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 89) fala da “forma perceptiva temporal”, quer dizer, uma unidade que se apresenta como “elemento primeiro” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 89) no jogo de fases e perfis que se destacam continuamente. Cada perfil reenvia desde já à fase perceptiva seguinte, assim como à fase precedente, igualmente ativa na unidade perceptiva. A forma a qual se refere Husserl é justamente esta síntese permanente dos perfis passados e vindouros numa espécie de unidade presente, unidade em perpétua transição. Há de se destacar, todavia, a ligação inextricável dessa “síntese perceptiva” temporal com o movimento, especialmente o movimento do corpo próprio. É mediante o diferencial de movimento que se determina a direção do transcurso perceptivo.

Todo percebido encontra-se em um ambiente de coisas que é co-apreendido. (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 250) refere-se a uma “zona periférica de objetos” que podem aparecer ou permanecer invisíveis. Trata-se de coisas percebidas mesmo sem aceder à exposição, coisas que, assim como as faces não vistas de um objeto, são co-visadas. A esse ambiente, ou campo de percepção, repleto de coisas presentes, ainda que não necessariamente dadas propriamente, pertence, de modo privilegiado, o Eu, mais precisamente, o corpo do Eu. (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 107) escreve:

Ele [o corpo próprio] se encontra como o ponto de relação permanente em referência ao qual todas as referências de espaço aparecem, ele determina a direita e a esquerda fenomenais, a frente e o atrás, o alto e o baixo fenomenais. Ele ocupa, pois, no mundo de coisas que aparecem perceptivamente uma posição excepcional. (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 107)

Atesta-se, portanto, a posição central do “corpo egóico” (Lavigne, 1989Lavigne, J-F. (1989). Notes du traducteur (pp. 435-467). In E. Husserl, Chose et espace: leçons de 1907 (J-F. Lavigne, trad.). Paris, France: PUF ., p. 449), ente que polariza o aparecimento de qualquer coisa em meio ao ambiente global. O corpo é o termo subentendido em cada percepção e que a determina de tal e tal modo. Conforme indicações de (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF.), esta deve ser considerada a dimensão propriamente subjetiva da percepção. “A face é alguma coisa de subjetivo, é ‘minha aparição perceptiva’, que me pertence, posto que assumo tal e tal posição em relação à coisa”, afirma o filósofo (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 182, grifo nosso). Ao mesmo tempo, a face é algo objetivo, dado o seu pertencimento à coisa, que aparece mediante o perfil. É no perfil que o objeto acede à doação como algo em carne e osso.

O “corpo de carne” é também uma coisa, “coisa física como não importa qual outra” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 197), com espaço definido e determinidades específicas e preenchedoras em relação a atos intuitivos de percepção próprios e externos. Por outro lado, essa coisa é “corpo-próprio (Leib)”, “suporte do Eu” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 198).

Se toco minha mão direita com a mão esquerda, a aparição da mão esquerda e [aquela] da mão direita constituem-se reciprocamente com as sensações táteis e cinestésicas, uma movendo-se sobre a outra de tal e tal maneira. Mas, ao mesmo tempo, quer dizer, por conversão da apreensão, o mover-se aparece em um outro sentido, que apenas convém ao corpo-próprio e, em geral, os mesmos grupos de sensações que possuem uma função objetivante são apreendidos, por conversão da atenção e da apreensão, de maneira subjetivante, e, admite-se, como algo que os membros do corpo que aparecem na função objetivante “têm”, localizado neles mesmos. (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 198)

Em outras palavras, o “corpo-Eu (Ichleib)” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 198) distingue-se de qualquer outra coisa física por “determinidades ‘subjetivas’” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 199), tais como as sensações cinestésicas, as sensações táteis e os sentimentos de dor e de prazer. Em Coisa e espaço, as análises de Husserl em torno do corpo próprio são encaminhadas para aquilo que diz respeito à percepção espacial: o entrelaço da constituição da coisidade física e da constituição de um corpo-Eu. Nesse contexto específico, interessa ao filósofo evidenciar a própria relação que co-aparece entre a coisa percebida e o eu da percepção. Husserl fala em sensações com função objetivante e sensações com função de motivação da aparição. As primeiras admitem, por sua vez, duas formas de apreensão: a relacionada ao aparecimento da coisa física e a relacionada ao aparecimento do corpo como sentiente, suporte de diversas sensações. As sensações visual e tátil oferecem perfis da espacialidade, mas não são suficientes para tornar possível a constituição da espacialidade. As sensações com função de motivação da aparição referem-se às sensações cinéticas, ou cinestésicas. Elas não possuem função expositiva em relação às coisas físicas, mas são indispensáveis para que as exposições contínuas sejam possíveis. Dito de outra maneira, elas tornam possível a exposição, sem que elas mesmas exponham algo. Elas participam, além disso, da apreensão subjetivante, quer dizer, do aparecimento do corpo como sentiente, ainda que como termo co-inscrito no campo perceptivo, “ponto-de-relação” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 271) fundamental e impercebido da percepção.

A relação entre o campo visual e os decursos cinestésicos é condicionante. Toda alteração cinestésica (C), desde a mais simples alteração oculomotora, condiciona mudanças na imagem visual (i). Segundo (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF.), entre os termos C e i estabelece-se uma relação de co-pertença: a posição de um motiva a do outro de tal modo que um pertence ao outro, forma uma unidade com ele de modo particular. Mas as cinestesias são descritas como “circunstâncias” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 219) dos perfis perceptivos. A cada alteração das circunstâncias, a cada nova direção ou movimento, dá-se uma alteração dos perfis perceptivos. A consciência de unidade perceptiva perpassa apenas as aparições, ou perfis, e não as sensações cinestésicas. Mas se o transcurso da série de imagens, em que uma imagem é reenviada à outra, é perpassado pela intencionalidade de unidade, essa intencionalidade não é despertada senão em tais e tais circunstâncias cinéticas. A unidade temporal e intencional da série perceptiva é, portanto, motivada pelas circunstâncias cinéticas. Atendo-nos à incompletude perpétua do campo perceptivo, não poderíamos afirmar que o contrário também é verdadeiro? (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF.) evoca em diversas passagens das suas lições uma dinâmica de interesse e satisfação envolvida na percepção. O interesse por uma coisa qualquer se relaciona ao “privilégio da doação explícita” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 235), dos melhores ângulos e perspectivas. Embora a coisa e o campo percebidos jamais se doem por completo, que nenhuma consciência de doação possa ser tratada como acabada, posto que reenvia sempre “para além dela mesma” (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 136), é possível tratar de circunstâncias de crescimento e de diminuição, de complementação ou de empobrecimento da doação perceptiva. “Em geral, o incompleto não nos basta quando já usufruímos uma vez do completo, falta a ele qualquer coisa, ele reenvia ao completo, que, se fosse vivido, nos satisfaria”, afirma (Husserl, 1989Husserl. E. (1989). Chose et espace: leçons de 1907 (J-F Lavigne, trad.). Paris, France: PUF., p. 136). Há aqui uma dinâmica afetiva e desejante, que atrela a falta perpétua da totalidade a uma dinâmica de ignição da intencionalidade e do movimento do sujeito da percepção (Montavont, 1999Montavont, A. (1999). De la passivité dans la phénoménologie de Husserl. Paris, France: PUF.; Barbaras, 2006Barbaras, R. (2006). Le désir et la distance: introduction à une phénoméologie de la perception (2a ed.). Paris, France: Vrin.).

Matéria e forma

Privilegiamos, até aqui, uma leitura mais detalhada do problema da percepção nas Investigações Lógicas e em Coisa e espaço. Ganhamos com isso a possibilidade de destacar temas fundamentais no que diz respeito à percepção por perfis, dando-lhes, ao mesmo tempo, um aprofundamento adequado. Vimos que uma coisa unificada é visada mediante propriedades sensíveis variadas, diferentes apresentações, ou perfis. O excesso referente a toda doação fenomenal é parte constitutiva do percebido na qualidade de aspecto co-visado no perfil exposto. A aparição imprópria das partes invisíveis de um objeto figura como referência a aspectos a serem percebidos propriamente, evidenciando o caráter evolutivo da percepção e sua relação intrínseca com as circunstâncias cinéticas, simultaneamente motivadoras e motivadas em relação ao inacabamento do campo perceptivo. Nessa medida, destacamos, ainda, o co-aparecimento da relação entre o objeto percebido e o corpo sentiente, que estabelece a condição situada da percepção. Gostaríamos, doravante, de apreciar, a título de complemento, certos prolongamentos desses temas em textos subsequentes de Husserl.

Em Ideias I ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931)), que é considerada a primeira grande obra da maturidade de Husserl, a relação estrutural da visada vazia e do preenchimento intuitivo divide espaço com uma teoria das estruturas noético-noemáticas da intencionalidade. Essa teoria começa a ser delineada no momento em que ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931)) reconfigura a dualidade, sempre presente em seus textos, entre data de sensação e atos de apreensão a partir dos conceitos de hylé sensual (matéria) e morphé intencional (forma). Segundo Husserl, a matéria sensual, ou seja, os vividos de sensação, deve ser enformada por vividos intencionais. Estes constituem os momentos noéticos da consciência, aqueles que animam a matéria e configuram a doação de sentido propriamente dita. No caso da percepção sensível de uma árvore, esta é contemplada como “unidade de consciência” ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931), p. 336) a despeito dos “diferentes modos de aparecer” ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931), p. 336) devidos, por exemplo, ao vento, que agita suas folhas, e às nossas variações de posição espacial e corporal. Toda esta “multiplicidade de modificações” ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931), p. 336) figura a título de matéria da atividade noética. A cor constante do tronco e da copa da árvore, ou a fisionomia total da árvore, ascendem à consciência como “o mesmo”. Nos momentos hyléticos do vivido se perfilam a cor e a fisionomia noemáticas, ou objetivas. O noema é, portanto, o sentido unívoco da percepção, que, no momento hylético, se afigura como múltiplo. O noema não faz parte do que Husserl chama de componentes reais da percepção, categoria reservada aos componentes materiais, ou sensíveis, e aos noéticos. Esses vividos fundamentam a constituição transcendental daquilo que acede à consciência como noema. Se o noema participa da ordem dos vividos, é de modo distinto dos constituintes reais de vividos. O noema perceptivo é o que se dá à consciência, a coisa percebida tal como se apresenta à consciência em um ato particular de percepção. Isso quer dizer que o noema perceptivo não deve ser confundido com uma parte do ato perceptivo, o componente real do ato. O noema representa a convergência da multiplicidade perceptiva (Gurwitsch, 1957Gurwitsch, A. (1957). Théorie du champ de la conscience. Bruges, Belgique: Desclée de Brouwer.). Se o noema distingue-se dos elementos que o compõem, ele tampouco se confunde com o objeto natural. O percebido, na qualidade de noema, é o sentido da percepção. No exemplo que demos anteriormente, que se referia à fachada de uma casa ou à fachada representando uma casa num cenário cinematográfico, temos dois noemas, dois sentidos de percepção, que se dão, igualmente, mediante uma multiplicidade de atos perceptivos. ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931)) comenta, nessa direção, que um objeto qualquer, a árvore “pura e simples” (p. 308), pode queimar, mas não o sentido da percepção.

Nos manuscritos reunidos em Da síntese passiva, conjunto de textos elaborados entre 1918 e 1926, Husserl (1966/1998) refere-se ao que em Ideias I foi denominado momento hylético da percepção e noema em termos mais próximos daquilo que consideramos, com (Barbaras, 2006Barbaras, R. (2006). Le désir et la distance: introduction à une phénoméologie de la perception (2a ed.). Paris, France: Vrin.), uma descrição da percepção. Essa reconfiguração não nos retira, contudo, do que (Patočka, 2002Patočka, J. (2002). Qu’est-ce que la phénoménologie? (E. Abrams, trad.). Grenoble, France: Jérôme Milln.) toma por um registro subjetivista da fenomenologia transcendental. Husserl afirma que, mediante uma conversão da nossa atenção, naturalmente absorvida pelo nosso direcionamento para as coisas, somos capazes de descobrir que, em toda percepção externa, “as imagens perceptivas, os modos de aparição, os aspectos do objeto não cessam de mudar” (Husserl, 1966/1998, p.49, grifos nossos). Trata-se, neste caso, da mudança constante no “vivido efetivo da percepção” (Husserl, 1966/1998, p. 49), aquilo que em Ideias I é referido como componente real da percepção. Malgrado o fato de ser consciente, o que se confirma pela sua acessibilidade a partir da conversão da nossa atenção, esta mudança é, de certa forma, encoberta. O que se encobre é o teor de aparição pertencente a cada percepção, ou seja, os vividos, ou “fases da percepção contínua unitária” (Husserl, 1966/1998, p. 50). O que aparece é o próprio objeto. Na diversidade de aparições, ou imagens, uma única e mesma árvore aparece. Esta “mesmidade presumida” (Husserl, 1966/1998, p. 50) é o sentido objetivo dos vividos. Husserl admite a obscuridade do conceito de sentido. “O sentido é, antes de tudo, introduzido enquanto objeto intencional, o visado enquanto tal”, explica o filósofo (Husserl, 1966/1998, p. 52). O transcendente é, pois, o sentido objetivo, aquilo que aparece. A aparição, quer dizer, a imagem ou o vivido, não tem lugar no espaço, no espaço que aparece. “A aparição da casa não está ao lado da casa”, afirma Husserl (1928/1964, pp. 08-09). Que a existência natural de um objeto percebido seja considerada, ou que ela seja colocada em suspenso, nos termos da redução fenomenológica, a todo ato de percepção corresponde um sentido perceptivo, ou noema, o que quer dizer que os objetos naturais são “visados como existentes” (Gurwitsch, 1957Gurwitsch, A. (1957). Théorie du champ de la conscience. Bruges, Belgique: Desclée de Brouwer., p. 151). No caso da percepção, o sentido percebido dá-se como coisa presente em carne e osso.

Percepção e afecção

No que diz respeito à descrição da percepção, gostaríamos de destacar um último elemento, a questão dos horizontes intencionais, presente nos manuscritos sobre a síntese passiva. O tema não é estranho às formulações presentes em Coisa e espaço a propósito das relações entre aquilo que é propriamente percebido e aquilo que é propriamente não-percebido. O tratamento dado a essa relação a partir da ideia de horizonte intencional reforça, todavia, a importância constitutiva do impercebido, da ausência que conta. Esta dimensão de invisibilidade é explicitamente atrelada, ademais, ao que caracterizamos pouco antes como dimensão afetiva da percepção.

(Husserl, 1966/1998) parte da seguinte observação: “A percepção externa é uma pretensão permanente de efetuar alguma coisa que devido à sua essência ela não possui condições de efetuar” (p. 95). Atesta-se, pois, o caráter matricial de uma falta, ou privação, que movimenta a percepção. A cada aparição correspondem diversos invisíveis, ou “numerosos complexos de visibilidade possível” (Husserl, 1966/1998, p. 96). A coisa percebida, por exemplo, uma mesa, não se resume ao seu lado propriamente visto; ela engloba aquilo que seria propriamente percebido em outras percepções. A consciência de um objeto apenas é possível na forma de uma consciência efetiva e de uma co-consciência, afirma o filósofo. Por co-consciência é preciso entender o fato de que os lados invisíveis são “‘co-visados’ como co-presentes pela consciência” (Husserl, 1966/1998, p. 96). Do ponto de vista noético, trata-se de compreender que as exposições efetivas se ajustam a indicações vazias, referentes a novas percepções possíveis. De uma perspectiva noemática, atesta-se a percepção por perfis, ou seja, o fato de que os lados dados reenviam aos não dados na forma de “não-dado de um mesmo objeto” (Husserl, 1966/1998, p. 96). Essas constatações resultam na seguinte formulação por parte de (Husserl, 1966/1998): “tudo aquilo que aparece propriamente não é aparecendo-de-coisa senão porque se encontra envolvido e impregnado por um horizonte intencional vazio, senão porque é cercado por um halo vazio conforme a aparição” (p. 97). Este vazio, observa o filósofo, não deve ser confundido com um nada. Trata-se, sim, de um “vazio a preencher” (Husserl, 1966/1998, p. 97), de uma “indeterminação determinável” (Husserl, 1966/1998, p. 97), que inclusive, na qualidade de horizonte intencional, “prescreve uma regra à passagem de novas aparições atualizantes” (Husserl, 1966/1998, p. 97). Os aspectos, ou perfis, são, portanto, aparição-de em função de seus horizontes intencionais.

O sistema de horizontes configura um sistema de reenvios em torno de um núcleo de aparição. Em seu interior, afirma (Husserl, 1966/1998), o percebido “chama-nos de uma certa maneira” (p. 97). Para descrever esse chamado, o filósofo adota a perspectiva da coisa percebida e escreve:

há mais ainda para ver, vira-me, pois, de todos os lados e percorre-me assim com o olhar, aproxima-se, abre-me, disseca-me. Sempre mais uma vez, olha em torno e vira-me de todos os lados. Assim aprenderás a me conhecer em tudo que sou, em todas as minhas propriedades superficiais, minhas propriedades sensíveis internas etc. (Husserl, 1966/1998, p. 97)

Já está em jogo, aqui, o que Husserl chama de fenômeno da afecção, e que diz respeito, justamente, à “atração específica que um objeto consciente exerce sobre o eu” (Husserl, 1966/1998, p. 217). Segundo o autor, essa atração reverte-se “na aspiração à intuição doadora em pessoa que desvela mais e mais o si do objeto” (Husserl, 1966/1998, p. 217). Cumpre reforçar a ligação entre a afecção perceptiva e o movimento do sujeito percipiente. O chamado perceptivo possui um valor intrinsecamente motor, relativo à aproximação, à exploração e ao manuseio da coisa, ainda que apenas a título de possibilidade, configurando uma consciência carnal.

A propósito do sistema de horizontes, é preciso chamar a atenção para a distinção que Husserl opera entre horizonte interior e horizonte exterior de cada aparição, ou perfil. Essa distinção é mais claramente apresentada em Filosofia primeira (Husserl, 1959/1972Husserl, E. (1972). Philosophie première, deuxième partie: théorie de la réduction phénoménologique. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1959)), obra que congrega cursos ministrados entre 1923 e 1924. Partindo-se da constatação de que jamais temos um percebido sem consciência de horizonte, o horizonte interno refere-se às faces invisíveis, internas ou reversas, do objeto. Não menos necessário, escreve Husserl, é o horizonte externo não intuitivo. Trata-se do “meio de coisas espaciais” (Husserl, 1959/1972Husserl, E. (1972). Philosophie première, deuxième partie: théorie de la réduction phénoménologique. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1959), p. 204) em que se encontra o objeto percebido. O horizonte externo não pode ser definido como um campo perceptivo impercebido em meio ao qual se revela o objeto. Ele é composto por um “domínio de intuitividade ainda perceptível” (Husserl, 1959/1972Husserl, E. (1972). Philosophie première, deuxième partie: théorie de la réduction phénoménologique. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1959), p. 204) e por um “horizonte vazio não intuitivo que o continua” (Husserl, 1959/1972Husserl, E. (1972). Philosophie première, deuxième partie: théorie de la réduction phénoménologique. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1959), p. 204). Esse campo espacial, horizonte vazio, não diz respeito apenas a momentos pré-figurados, imediatamente acessíveis. A rigor, afirma Husserl, o horizonte vazio abarca o mundo inteiro, ou seja, “um horizonte infinito de experiência possível” (Husserl, 1959/1972Husserl, E. (1972). Philosophie première, deuxième partie: théorie de la réduction phénoménologique. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1959), p. 206)3 3 Em sua Filosofia primeira, (Husserl, 1959/1972) admite realizar uma espécie de abstração fenomenológica ao limitar suas investigações, na maior parte do tempo, à subjetividade transcendental própria, quer dizer, sem levar em conta as subjetividades estrangeiras. Na 53ª. lição do livro, aborda o problema da intersubjetividade, mas sem tratá-la a partir das questões referentes à percepção. Em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, ((Husserl, 1954/2004), ao retomar a questão dos horizontes perceptivos, fala do “mundo enquanto horizonte universal, comum a todos os homens” (p.186) e da conexão de experiências perceptivas com outrem, cujo funcionamento seria “análogo à conexão das séries particulares de experiência” (p.186). Em Meditações cartesianas, ((Husserl, 1931/2001) trata de um acoplamento intencional ao referir-se à associação com a experiência de outrem. Temos na intersubjetividade, em suma, uma importante dimensão da doação perceptiva por perfis, mas que, devido aos limites de espaço, não abordamos no presente trabalho. . As afecções que procedem dele configuram uma consciência de objeto, ainda que o seu modo de validade apoie-se na suposição, na probabilidade ou na rememoração, no caso de um horizonte conhecido.

Voltemos aos textos sobre a síntese passiva. Mantendo-se nos limites da esfera do impressivo, (Husserl, 1966/1998) investiga as funções da afetividade a partir do campo de horizontes. “Antes de tudo”, afirma, “a afecção pressupõe o destacamento” (Husserl, 1966/1998, p. 217). Objetos destacados, “que afetam efetivamente” (Husserl, 1966/1998, p. 217), são constituídos como objetos explícitos, ao passo que aqueles que, do ponto de vista afetivo, não atingiram, numa circunstância determinada, uma excitação, ou força, capaz de despertar o “polo-eu”, constituem-se como objetos implícitos. Trata-se, comenta Husserl, de destacamento por “fusão sob contraste” (Husserl, 1966/1998, p. 217). Se a afecção mais originária é aquela que se dá no presente impressivo, o contraste deve ser caracterizado como “a condição mais originária da afecção”, escreve o filósofo (Husserl, 1966/1998, p. 217). As afecções, todavia, se propagam. Tornam-se um ato de atenção, de tomada de conhecimento ou de explicação, enfim, mantêm-se na forma de um interesse temático. O exemplo referido por (Husserl, 1966/1998) é o seguinte:

simultaneamente aos barulhos, como o tráfego de automóveis, aos sons de uma canção, aos odores que se liberam etc., figuras coloridas individuais e bem destacadas nos afetam. Tudo isso ocorre ao mesmo tempo; mas nesta ocasião, apenas o canto importa, na medida em que estamos, na escuta, voltados exclusivamente para ele (p. 218)

Encontrar as leis do destacamento na configuração do campo visual, tátil, auditivo etc., é a tarefa que se impõe. Um dos aspectos logo aventados por Husserl na condução destas investigações é que as unidades perceptivas podem ser dadas, além do quadro da atenção, a partir de uma “tomada retroativa nos horizontes do passado de uma esfera atencional” (Husserl, 1966/1998, p. 221). Husserl admite, aqui, unidades dadas sem que se preste atenção a elas, pois afetam o sujeito em um “grau mínimo” (Husserl, 1966/1998, p. 221), permanecendo esquecidas. Seria, então, necessário ir, além da esfera do presente vivo, à esfera dos esquecimentos e estudar as condições do despertar reprodutivo. Husserl reconhece que o tema já possui um “título célebre”, o de inconsciente. Tratar-se-ia, pois, de realizar uma fenomenologia do inconsciente.

Levando-se em consideração os desenvolvimentos de (Merleau-Ponty, 1945Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris, France: Gallimard., 1964/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Le visible et l’invisible. Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1964)., 2003Merleau-Ponty, M. (2003). L’instituition, la passivité: notes des cours au Collège de France, 1954-1955. Paris, França: Belin.) em torno da dialética do percebido, pode-se afirmar que as dimensões de ausência e de invisibilidade da percepção, tomada nos limites da esfera do presente impressivo, já remetem a uma ideia de inconsciente como impercebido, àquilo que, invisível e passível de tornar-se percebido, se encontra, agora mesmo, integrado à percepção. Reportando-se à ideia de inconsciente a partir da estrutura de horizontes, (Merleau-Ponty, 2003Merleau-Ponty, M. (2003). L’instituition, la passivité: notes des cours au Collège de France, 1954-1955. Paris, França: Belin.) sustenta a eficácia da percepção não reconhecida, da percepção da falta, que não pode ser compreendida como falta de percepção. E reforça o conceito de afecção husserliano ao definir a percepção como “inserção em um campo” (Merleau-Ponty, 2003Merleau-Ponty, M. (2003). L’instituition, la passivité: notes des cours au Collège de France, 1954-1955. Paris, França: Belin., p. 265), “experiência de um co-funcionamento” (Merleau-Ponty, 2003Merleau-Ponty, M. (2003). L’instituition, la passivité: notes des cours au Collège de France, 1954-1955. Paris, França: Belin., p. 265) em que não se pode afirmar quem dá e quem recebe, se o sujeito da percepção ou o mundo percebido, e na qual uma percepção remete a outras.

Considerações finais

Analisamos a descrição da percepção em Husserl, que enfatiza a doação perceptiva por perfis. Buscamos evidenciar, em meio aos estudos da percepção husserlianos, a convergência do processo intencional da consciência perceptiva, sua natureza de sujeito corpóreo do movimento, e o inacabamento e a latência do campo perceptivo. O campo sensível, espaço de ação, mostrou-se motivo do ato perceptivo, configurando, na esteira da incompletude do espaço e da situação ocupada pelo sujeito da percepção, parte de um dispositivo de afecção. Um elemento de destaque na constituição dessa dinâmica evolutiva da percepção é a função perceptiva do não visto, seja no que diz respeito às faces encobertas do objeto ou às coisas e paisagens que o circundam.

Os aspectos analíticos da filosofia da percepção em Husserl não nos retiram deste círculo descritivo. A corrente de consciência, com seus momentos hyléticos e noéticos, adquire significado na incompletude perspectiva. Seria possível caracterizá-los sem recorrer ao noema, ou seja, ao sentido da percepção, à sua necessária transcendência, cuja natureza é furtar-se à exposição completa? Os conceitos descritivos de horizonte interno e de horizonte externo do percebido figuram essa insuficiência da percepção, que representa, ao mesmo tempo, o excesso. Este, por si só, é um elemento de afecção, na medida em que o transcurso perceptivo se dá mediante a participação de uma consciência carnal, quer dizer, de um sujeito do movimento de percepção, capaz de explorar o mundo, ou o campo perceptivo. A análise da estrutura noético-noemática liga-se à caracterização de um sujeito corpóreo.

Notam-se as possibilidades que a espessura do campo fenomenal, tal como definido por Husserl, possuem no estabelecimento de categorias descritivas referentes à manifestação perceptiva, o que inclui definições acerca do sujeito da percepção. Pela própria estrutura da manifestação, qualquer categoria subjetiva deve espelhar o movimento do sujeito para fora de si mesmo, no campo excessivo da percepção.

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  • 1
    Informação sobre financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Processo 2013/11017-1.
  • 2
    Nossa literatura primária é constituída de versões traduzidas dos originais. Recorremos às versões francesas das obras de Husserl, posto que elas se inserem numa tradição de traduções do filósofo, razão pela qual apresentam um sistema linguístico bastante unificado. Os tradutores franceses das obras, entre eles, G. Granel, A. Kelkel, P. Ricoeur e N. Depraz, são reconhecidos por trabalhos críticos dedicados a Husserl, e apresentam, nas edições pelas quais são responsáveis, importantes comentários e esclarecimentos relativos ao trabalho de tradução, bem como sobre aspectos conceituais centrais da filosofia husserliana. Por estes motivos, tomamos estas versões dos escritos de Husserl como objeto de trabalho passível de análises rigorosas e fieis ao teor dos originais.
  • 3
    Em sua Filosofia primeira, (Husserl, 1959/1972Husserl, E. (1972). Philosophie première, deuxième partie: théorie de la réduction phénoménologique. Paris, France: PUF. (Trabalho original publicado em 1959)) admite realizar uma espécie de abstração fenomenológica ao limitar suas investigações, na maior parte do tempo, à subjetividade transcendental própria, quer dizer, sem levar em conta as subjetividades estrangeiras. Na 53ª. lição do livro, aborda o problema da intersubjetividade, mas sem tratá-la a partir das questões referentes à percepção. Em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, ((Husserl, 1954/2004Husserl, E. (2004). La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris, França: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1954)), ao retomar a questão dos horizontes perceptivos, fala do “mundo enquanto horizonte universal, comum a todos os homens” (p.186) e da conexão de experiências perceptivas com outrem, cujo funcionamento seria “análogo à conexão das séries particulares de experiência” (p.186). Em Meditações cartesianas, ((Husserl, 1931/2001Husserl, E. (2001). Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie. Paris, França: Vrin. (Trabalho original publicado em 1931)) trata de um acoplamento intencional ao referir-se à associação com a experiência de outrem. Temos na intersubjetividade, em suma, uma importante dimensão da doação perceptiva por perfis, mas que, devido aos limites de espaço, não abordamos no presente trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2015
  • Revisado
    19 Jun 2015
  • Aceito
    21 Dez 2015
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