Acessibilidade / Reportar erro

O sonho e a literatura: mundo grego

Dream and literature: Greek world

Resumos

A proposta é abordar não só o significado de que se revestem as produções oníricas no mundo grego, mas a congenialidade entre sonho e Literatura. Com efeito, tanto no sonho como na poesia, domínios do Mythos e não do Logos, colocam-se em ação energias cognitivas do inconsciente. Na Grécia, onde, como todos sabemos, o sonho tem valor oracular, as funções de adivinho e de poeta se sobrepõem, na capacidade de enxergar para além das aparências sensíveis, de ver o que Walter Benjamin chama de "semelhanças invisíveis." Há questões que, de Homero e Ésquilo a Artemidoro de Daldis, passando por Aristóteles, perpassam o pensamento (e a vivência) dos gregos, e que nos acostumamos creditar à Psicanálise: a relação da fantasia com o desejo, a sensorialidade da imaginação, o privilégio do significante, a eficácia da palavra (à qual é atribuído um explícito valor terapêutico), a importância fulcral da analogia (tanto na produção como na interpretação de sonhos e poesia), etc, etc. Finalmente, um último item dirá respeito à historicidade do símbolo e à existência de "arquétipos culturais".

Sonho; Poesia; Literatura grega


The idea is to discuss not only the meaning presented in dream productions in the Greek world, but also the congeniality between dream and literature. In fact, both in dream as well as in poetry, domain of Myths and not of Logos, unconscious energies act. In Greece, where dream has a well known oracular value, the magician’s and poet’s functions overlap, in relation to the capacity of seeing far beyond the sensitive appearances, of seeing what Walter Benjamin called "visible similarities." There are questions that, from Homero and Aeschylus to Artemidor from Daldis to Aristotle cross the Greek way of thinking and living, that we are used to credit to Psychoanalysis: the relation between fantasy and dream, the sensitivity of imagination, the privilege of the significant, the effectiveness of the word (to which is attributed a therapeutic value), the importance of analogy (in dream’s and poetry’s production and interpretation). Finally, something concerning the historicity of the symbol and the existence of "cultural archetypes."

Dreaming; Poetry; Greek literature


O SONHO E A LITERATURA: MUNDO GREGO

Adélia Bezerra de Meneses1 1 Endereço para correspondência: Rua Batatais, 523 – apto. 161 – São Paulo – SP.

Professora de Teoria Literária – USP/UNICAMP

"Onde quer que um homem sonhe, profetize ou

poetize, outro se ergue para interpretar"

(Paul Ricoeur, Da Interpretação)

A proposta é abordar não só o significado de que se revestem as produções oníricas no mundo grego, mas a congenialidade entre sonho e Literatura. Com efeito, tanto no sonho como na poesia, domínios do Mythos e não do Logos, colocam-se em ação energias cognitivas do inconsciente. Na Grécia, onde, como todos sabemos, o sonho tem valor oracular, as funções de adivinho e de poeta se sobrepõem, na capacidade de enxergar para além das aparências sensíveis, de ver o que Walter Benjamin chama de "semelhanças invisíveis." Há questões que, de Homero e Ésquilo a Artemidoro de Daldis, passando por Aristóteles, perpassam o pensamento (e a vivência) dos gregos, e que nos acostumamos creditar à Psicanálise: a relação da fantasia com o desejo, a sensorialidade da imaginação, o privilégio do significante, a eficácia da palavra (à qual é atribuído um explícito valor terapêutico), a importância fulcral da analogia (tanto na produção como na interpretação de sonhos e poesia), etc, etc. Finalmente, um último item dirá respeito à historicidade do símbolo e à existência de "arquétipos culturais".

Descritores: Sonho. Poesia. Literatura grega.

"Sonhador" e "poeta" na linguagem corrente, são às vezes sinônimos. É interessantíssimo debruçar-se um pouco sobre essa reveladora sinonímia popular, em que "sonhar" não tem a acepção de processo psíquico, nem mesmo o de "visão noturna," mas sim o significado de colocar em ação energias cognitivas do inconsciente, na projeção de algo que por vezes só na utopia encontraria guarida.

Vamos reter dessa aproximação entre os dois termos, inicialmente, a mesma recusa ao princípio de realidade com seu cortejo de opressões, o desrespeito às frias leis da lógica racional, o movimento impulsionado pelo Desejo.2 2 Tanto no famoso “I have a dream”de Martin Luther King, como no dramático “The dream is over”de John Lennon (prenunciando o “fim das utopias”que é o cancro a espreitar as novas gerações), sonhar tem a ver com o desejo. Sonhador e poeta mergulham fundo nas águas da fantasia, avessos ao "princípio de desempenho"3 3 O termo é marcusiano. que nos rege. Imaginação onírica e imaginação poética são reciprocamente aferidas - e isso, desde o fundo dos tempos.

Sabemos que na Grécia as funções de adivinho, poeta e sábio muitas vezes se sobrepunham no mesmo poder mântico, na capacidade excepcional de ver e de viver para além das aparências sensíveis. Nas palavras de Vernant (1990), eles possuiriam "uma espécie de extra-sentido, que lhes descobre o acesso a um mundo normalmente interdito aos mortais" (p. 360). E desde longa tradição, não apenas os adivinhos são cegos, como por exemplo Tirésias, pois têm o dom de "ver o invisível," mas também os poetas, de Homero aos cantadores do Nordeste, passando por Camões. Cegos dos olhos do corpo, porque têm uma outra visão, normalmente interdita aos mortais.

Das duas maneiras de se abordar a realidade, o mythos e o logos, tanto a poesia como o sonho são do domínio do mythos. Poesia, sonho e adivinhação mergulham numa lógica da ambigüidade, abrigando a contradição, acionando insuspeitadas forças psíquicas.

Quando sonha, todo homem é poeta: utiliza os recursos da figurabilidade, a imagem sensível; estabelece analogias que não se impõem à primeira vista; vê o que Walter Benjamin chama de "semelhanças invisíveis;" utiliza a palavra como "coisa," atento ao significante; simboliza; não se dobra ao princípio de identidade impositor da lógica da não-contradição, que trava a percepção do real em toda a sua dinâmica riqueza; e sobretudo, poeta e sonhador, entrando em contacto com o seu próprio inconsciente (tanto o pessoal como o filogenético) descortinam uma realidade que vai além dos limites da sua própria individualidade. Pois a possibilidade de estar próximos das fontes inconscientes propicia-lhes um conhecimento que se poderia chamar de intuitivo no sentido etimológico: de in (dentro) + tuor (ver); um "ver dentro" que geralmente denominamos, colonizadamente, "insight."

Mas não é só na acepção popular que poeta e sonhador se aproximam: na reflexão científica sobre os mecanismos dos sonhos, equiparam-se os processos fundamentais de elaboração onírica (definidos por Freud) aos da elaboração poética. Na esteira de Jakobson, Lacan aferiu a condensação à metáfora e o deslocamento à metonímia.

É significativo que, no nível do próprio significante, a poesia e o mais fundamental processo de elaboração onírica, que é a condensação, mantenham em alemão um parentesco revelador: poesia é dichtung e condensação é verdichtung. Daí a fecunda tirada de Pound: Dichtung = Verdichtung. ("Poesia é condensação").

Tanto o sonho como a poesia, espaços de fantasia, operam sensorialmente. Aristóteles, que trabalhou esse tema tanto no Tratado Sobre a Alma quanto no Tratado Sobre a Memória e a Reminiscência, situa a questão da imaginação nos domínios da sensibilidade: a imaginação é um afeto (pathos) do sentido comum. Diz ele, literalmente, que a fantasia é "a faculdade em virtude da qual nós dizemos que uma imagem se produz em nós."4 4 Tratado Sobre a Alma ( De L’áme), III, 3, 428a. E aponta uma relação, funda, entre imagem e pensamento: "... quando alguém pensa, o pensamento se acompanha necessariamente de uma imagem, pois as imagens são num sentido sensações, salvo serem imateriais" (Tratado Sobre a Alma, III, 8-9). E ainda: "Não é possível pensar sem imagem" (Sobre a Memória e a Reminiscência (449b, 1).5 5 Cf. os capítulos “Memória e ficção I” (Aristóteles, Freud e a memória) e “Memória: matéria de mimese” do meu livro (Meneses, 1995, p.131-160). É extremamente significativo que no grego a palavra idéia venha do verbo ver (horáo), cujo aoristo é eidon (= eu vi). Ainda desse mesmo radical vem o verbo eido = ver, observar, representar-se, figurar.

Portanto, idéia é uma imagem mental; e não por acaso, no grego a palavra imaginação vem do mesmo radical de "luz," como aponta o próprio Aristóteles no Tratado sobre a Alma:

... a imaginação pode definir-se: um movimento produzido pela sensação em ato. E uma vez que a vista é o sentido por excelência, a imaginação (em gr. "phantasia") tirou seu nome de "luz" (em gr. phaos), pois sem luz é impossível ver-se. (Aristóteles, Tratado Sobre a Alma, III, 429a)

É por isso que Hegel, leitor de Aristóteles, condensa numa fórmula aguda: "Poesia é o luzir sensível da Idéia."

Sintomaticamente, para os gregos, a fórmula canônica de alguém contar que teve um sonho é: "Eu vi um sonho." Aliás, sonhos e visões noturnas são praticamente sinônimos em todas as línguas.

Tanto na poesia como no sonho, a palavra é flagrada na sua materialidade, na sua corporeidade, soma e sema. Há um filão riquíssimo a ser garimpado, na esteira dos trabalhos de Freud sobre a Interpretação dos Sonhos e sobre o Chiste (sem falar nos trabalhos de Lacan), relativamente à linguagem poética, nesse denominador comum que ambos apresentam: a importância atribuída ao significante. Uma das causas da intraduzibilidade da poesia radica exatamente no fato de que, como dizia Mallarmé, a poesia não é feita de idéias, mas de palavras. Parodicamente, diríamos que o sonho não é feito de idéias, mas de imagens. Só que tanto as palavras encaradas como "coisas," quanto as imagens são reconduzidas, no processo de interpretação, a uma modalidade lógico-discursiva, no inescapável impulso interpretativo que sonho e poema em nós provocam: "Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar," diz Ricoeur (1977, p.26). Depois de vincular todo mythos a um logos que, latente, exigiria ser manifestado.

Todos esses denominadores comuns entre o sonho e a Literatura justificam que Borges (1986) advogue a tese "perigosamente atraente" de que os sonhos constituem "o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros literários." Pois bem, é assim que os vejo, emprestando aos sonhos incorporados em obras literárias, "sonhos inventados pela vigília," no dizer do mesmo Borges (que os contrapõe aos "sonhos inventados pelo sono"), o apanágio de um gênero literário, com características próprias e funções específicas no contexto em que se situam. Eles não são algo acrescentado, enfeite ou excrescência, mas participam da própria economia da narrativa em que se inserem, como é o caso do sonho de Penélope na Odisséia, dos sonhos de Clitemnestra na Electra de Sófocles, e N’as Coéforas de Ésquilo, etc.

Mas se da perspectiva da teoria da Literatura o sonho pode ser abordado como um gênero literário, absolutamente não pode a isso ser restrito. Pois desde sempre, desde tempos imemoriais, ele foi objeto de outras considerações, e tem exercido outras funções para os humanos: forma de conhecimento, meio de previsão do futuro, veículo de comunicação com os deuses, espaço de teofania, campo privilegiado da simbolização e da analogia, "via real para o inconsciente." Desprezado pela ciência, por um largo tempo, na história da humanidade, como manifestações simplórias e alógicas de uma mente adormecida, nos tempos modernos foi com a Psicanálise que o sonho recuperou sua posição privilegiada, encarado como algo de extremo valor:

O respeito concedido aos sonhos na antiguidade baseia-se num discernimento psicológico correto e é a homenagem prestada às forças incontroladas e indestrutíveis existentes no espírito humano, ao poder demoníaco que produz o desejo onírico e que encontramos em ação no nosso inconsciente.

Diz Freud (1900/1996) na Interpretação dos Sonhos. Esse "discernimento psicológico correto," apontado pelo pai da Psicanálise, acho que vai mais longe do que aquilo que o próprio Freud suspeitava, ao menos em termos de visada teórica. Não me parece que ele - que conhecia muito bem a literatura grega, e que lia Aristóteles (pelo menos, cita o Tratado Sobre os Sonhos e Da Adivinhação Através dos Sonhos) - tenha lido o Tratado Sobre a Alma, ou o Tratado da Memória e da Reminiscência, do filósofo grego. Pois bem: aí podemos encontrar antecipações das mais audazes teorias freudianas, como aquela que equipara realidade à fantasia, na economia psíquica. Mas mais surpreendente ainda é a assertiva segundo a qual a imaginação se articula ao desejo. Literalmente: "... a fantasia, quando se move, não se move sem o desejo" (Tratado Sobre a Alma, Livro III, 10).

Atenção: essa não é uma frase de Freud, mas do filósofo grego! Mas na realidade, como se verá, ela vai ressoar acordes que já conhecemos, da sinfonia dos grandes trágicos gregos, como se verá a seguir.

Os sonhos e Prometeu

Extremamente significativo é que para os gregos os sonhos sejam uma dádiva de Prometeu, o deus civilizador e humanizador, titã afeiçoado aos homens. Na versão esquiliana da lenda de Prometeu, o titã doa aos homens não apenas o fogo roubado dos deuses (e com o fogo, "tesouro sem preço," a civilização e a técnica), mas também as formas das artes divinatórias, a esperança e os sonhos. O fogo e os sonhos: dá o que pensar o fato de que esses dois dons, absolutamente fundamentais para o ser humano, tenham uma proveniência comum: são legados do deus civilizador. E é também Prometeu, cujo nome significa, etimologicamente, "aquele que compreende antes"), que doa aos homens a esperança.

Foi por amor aos humanos, os "efêmeros," como diz literalmente o texto grego, que Prometeu é castigado. Preso ao rochedo de sua pena, ele dialoga com o Coro, na tragédia de Ésquilo, Prometeu Acorrentado:

Por ter feito uma dádiva aos mortais, estou jungido a esta fatalidade, pobre de mim! Sou eu quem roubou, caçada no oco de uma cana, a fonte do fogo, que se revelou para a Humanidade mestra de todas as artes e tesouro inestimável: Esse o pecado que resgato pregado nestas cadeias ao relento.

Mas não apenas o fogo e a técnica por ele proporcionada; Prometeu dá aos mortais aquilo que fará deles os agentes da civilização: a agricultura, a escrita, o número, a matemática, a medicina: ...(os homens) definhavam," diz ele,

carecidos de remédio, até que lhes ensinei a composição de específicos eficazes com que afastam todas as moléstias. Coligi muitos gêneros de adivinhação; fui o primeiro a distinguir entre os sonhos quais hão de tornar-se realidade; interpretei para eles os presságios obscuros e os "agouros surgidos nos caminhos ... (Ésquilo, Prometeu Acorrentado, p. 29)

E segue-se aí a lista das artes mânticas que ele legou aos homens. Mas o que quero ressaltar, inicialmente, é a relação que este último texto citado estabelece entre os sonhos e a Medicina, neles postulando um elemento terapêutico. Num primeiro momento, é inevitável que se pense nos procedimentos de incubação, nos sonhos incubatórios, realizados usualmente nos santuários de Esculápio, em que uma resposta oracular costumava ser dada àqueles que procuravam o santuário, versando seja sobre o futuro, seja sobre a resolução de alguma doença, ou sobre remédios a serem utilizados. Mas essa não é a única referência a "forças curativas" que estamos acostumados a associar a práticas que levam em conta aquilo que, depois de Freud, chamamos de "inconsciente" (e que os gregos formalmente desconheciam, mas de que constantemente davam as mais irrefutáveis provas, sobretudo nas tragédias ...). Na própria peça Prometeu Acorrentado há uma referência aos iatroi lógoi: as "palavras-medicina," que teriam o poder de curar. Diz o Coro a Prometeu: "Não compreendes, Prometeu, que para tratar a doença cólera há as palavras-medicina?"6 6 Iatroi-lógoi: textualmente, palavras-médico.

E não é a primeira vez que se depara, no mundo grego, com a cura pela palavra. Há um texto interessantíssimo e curioso, no Fédon de Platão, em que se diz que há terrores que brotam, no homem, da criança que existe nele. Trata-se do medo infantil de que um vento muito forte possa dispersar a alma à saída do corpo, no momento da morte. Diz Cebes, interlocutor de Sócrates nesse diálogo platônico (Platão, Diálogos):

- Admitamos que dentro de cada um de nós há uma criança a que estas coisas fazem medo. Por isso, esforça-te para que essa criança, convencida por ti, não sinta diante da morte o mesmo medo que lhe infundem as assombrações.

- Mas é preciso então - replicou Sócrates - que lhe façam encantamentos todos os dias, até que as encantações o tenham libertado disso uma vez por todas.

- Mas Sócrates, onde poderemos encontrar contra esse gênero de terrores, um bom encantador, uma vez que estás

prestes a deixar-nos?

7 7 Encantador: do radical de epodein: literalmente, “cantar sobre.”

- ... Dirigi vossa busca por entre todos esses homens, e na procura de um tal encantador, não poupeis trabalhos nem bens, repetindo convosco, a cada momento, que nada há em que possais com mais proveito gastar vossa fortuna.8 8 O que não deixa de ter significativas ressonâncias aos “ habitués” da Psicanálise ...

Mas voltemos a Prometeu. Além do amor aos mortais, o que lhe acarreta terrível castigo de Zeus, o que há de mais instigante nesse mito, na sua versão esquiliana, é a ligação estabelecida entre sonho e desejo. Tendo o herói de Prometeu Acorrentado dito ao Coro que o reino de Zeus findaria, e isso traria sua libertação, o Coro lhe pergunta se nessa predição ele não toma simplesmente seus desejos por realidade, e Prometeu responde: "Eu digo o que acontece, e, além disso, o que desejo" (p. 38).

Creio, então, que é sob o signo de Prometeu que todo estudo sobre o sonho deveria ser feito.

Sonhos e realização de desejo: esta tônica no aspecto projetivo do sonho, tendido para o futuro, relaciona-se ao fato de Prometeu ter dado aos homens a esperança. A esperança que, segundo suas palavras textuais, "cura nos homens a preocupação da morte." Será interessante um contacto direto com o próprio texto, a transcrição de um dos diálogos entre Prometeu e o Coro.

P.: Sim, curei nos homens a preocupação da morte.

C.: Que remédio achaste para esse mal?

P.: Alojei neles as cegas esperanças.

C.: Foi esse um dom utilíssimo à Humanidade.

P.: Além disso, dei-lhes de presente o fogo.

C.: Os efêmeros possuem agora o fogo flamejante?

P.: Sim, e dele aprenderão artes sem conta.

(Ésquilo, Prometeu Acorrentado, p. 24)

Inserido no diálogo, apreende-se aqui também uma articulação significativa: a esperança e o fogo. Mas o adjetivo acoplado ao primeiro dom é inquietante: cegas esperanças.

Por que esse índice de conotação negativa para a esperança? Essa ambivalência, no entanto, é uma constante no mito grego: na versão de Hesíodo, a esperança é figurada como um dos muitos males da caixa de Pandora, equiparada à preocupação, à enfermidade, à angústia. Mas há também uma versão helenística posterior, em que o dom de Pandora é apresentado não como uma caixa de desgraças, e sim uma caixa de bens, de prendas de felicidade. Segundo essa versão também estes escapam do fundo da caixa, perdendo-se entre os homens. Como único bem no fundo da caixa, resta a esperança. Registremos isso: a esperança = o único bem que resta aos homens. Bem e mal, remédio de um lado e falácia do outro; cega, mas equiparada ao "fogo flamejante," a esperança é mesmo, como queria Bloch, "o mais humano de todos os sentimentos." A esperança tem a ver com o futuro e com o desejo.9 9 Pois como queria Fernando Pessoa, sem a esperança, que é o homem senão “cadáver adiado que procria?”.

Isso nos reconduz ao estatuto dos sonhos como uma das principais artes mânticas. Prometeu não apenas dá aos homens os sonhos, mas foi o primeiro "a distinguir entre eles quais hão de tornar-se realidade ..." (Ésquilo, Prometeu Acorrentado, v. 472).

Essa constatação de que há sonhos que a vigília deve realizar, e sonhos que não se realizam, e que acompanham a humanidade desde sempre, no mundo grego adquirirá imensa força plástica na alegoria das portas do sonho.

As portas do Sonho

Extremamente importante em toda a Antigüidade Clássica, essa metáfora tem seu ponto germinal na Odisséia, no canto XIX, na boca de Penélope, ao fim do relato que ela faz de um sonho seu a Ulisses, ainda disfarçado em forasteiro e retornando após 20 anos de guerra e aventuras.

O que é que Penélope pensa dos sonhos?

"Forasteiro," diz ela,

os sonhos são deveras embaraçosos, de sentido ambíguo, e nem todos se cumprem no mundo. Os leves sonhos têm duas portas, uma feita de chifre e outra de marfim; dos sonhos, uns passam pela de marfim serrado: esses enganam, trazendo promessas que não se cumprem; outros saem pela porta de chifre polido e, quando alguém os tem, convertem-se em realidade. (Homero, Odisséia, XIX, 560-569)

A aparente aleatoriedade dessas metáforas é "resolvida "recorrendo-se ao original: pois se perdem, na tradução, dois trocadilhos do texto grego: de um lado, entre as palavras que significam "chifre" (keras) e realizar-se (krainein); e de outro lado, entre "marfim" (elephantinon) e "enganar" (elephairomai). A lenda é, assim, explicada através do recurso da conexão com a linguagem: a palavra gera o mito. Levando-se em conta o imperativo da representabilidade, como figurar os conceitos abstratos "realizar-se" e "enganar," senão através do recurso ao significante, apelando para as palavras assonantes? Como dar conta de representar a possibilidade da "realização" dos sonhos, a não ser recorrendo à palavra "realizar-se" tomada na sua materialidade, no jogo a que keras (chifre) se presta, na sua inter-assonância com krainein (realizar-se)? Da mesma maneira, como figurar "o que engana," sem apelar para o significante elephairomai (enganar), interevocado por elephantinon (de marfim)? Na realidade, como queria Cassirer (1976), do nome se cria o mito.

O curioso é que os comentaristas eruditos quando tratam desses versos, muitas vezes apõem uma nota, apontando para a "puerilidade desses jogos de palavras" que os gregos tanto admiravam."10 10 Cf. Bérard (1933), que fala dos “ridicules calembours” desses versos.

Mas os gregos, e junto com eles, Freud11 11 Cf. O Chiste e Sua Relação Com o Inconsciente (Freud, 1905/1980) essa obra capital da Psicanálise, da Lingüística e da Literatura. estão para provar que jogo de palavra é ponto fulcral em que linguagem e inconsciente se travejam.

O que resta a ressaltar, e que acho extremamente significativo, é que, no mesmo texto em que relata seu sonho, Penélope, na seqüência, aciona um trocadilho, um witz, - como se quisesse mostrar-nos a relação que existe entre essas duas "formações do inconsciente."

Mas voltemos à metáfora das duas portas, e o que daí se conclui: há sonhos que se realizam e outros que não se realizam, são "enganosos." Na realidade, apesar de no mundo grego o sonho, como vimos com Prometeu, estar ligado profundamente às artes mânticas, às artes divinatórias, havia a percepção de que muitas vezes eles de nada valiam em termos de eficácia oracular. Essas duas possibilidades aparecem de maneiras variadas, desde a formulação presente na Ilíada, de que "os sonhos provêm de Deus" (Homero, Iliada, v.1), até a observação da rainha Clitemnestra na Orestíada de Ésquilo, quando se refere depreciativamente aos sonhos como "quimeras de uma mente adormecida," em que ela não acreditaria. (e isso, num belo exemplo do mecanismo de denegação: exatamente ela, a personagem que mais sonha, e cujos sonhos se realizam na própria tragédia em que comparecem!). Essa ambigüidade se revela numa discriminação vocabular: da gama variada de sinônimos para "sonho" em grego, algumas designam sonhos "confiáveis" e outros, sonhos irrelevantes. Mas muito mais importante que essas classificações, que em português fica difícil de nomear, uma vez que só temos um termo, "sonho," à diferença do francês, que comporta "rêve" e "songe" - (e também, admiravelmente, o jogo "songe/mensonge") - é o fato de que o sonho se apresenta como algo que postula uma decodificação, que solicita uma interpretação.

Daí, a arte da Onirocrítica - a interpretação dos sonhos, importantíssima na antigüidade, e que originou uma classe de profissionais respeitados que transmitiam de pai a filho a sua arte, como é o caso de Artemidoro de Daldis.

Artemidoro de Daldis

Talvez o mais completo tratado sobre interpretação de sonhos que tenha chegado às nossas mãos, da antigüidade clássica, seja a Onirocrítica de Artemidoro de Daldis, que viveu em Êfeso, no século II d.C. Trata-se do único texto do gênero que nos resta na íntegra e que, segundo o testemunho do próprio autor, resume e sintetiza várias outras obras congêneres em uso na antigüidade. É isso que levou Freud a declarar que a sobrevivência da obra exaustiva dessa grande autoridade em interpretação dos sonhos deve compensar-nos pela perda dos outros escritos sobre o mesmo assunto.

Pois bem, o que é que vamos buscar na Onirocrítica de Artemidoro? É verdade que o oneirocrítico da antigüidade tem por função determinar, a partir das produções oníricas, se os acontecimentos que ocorrerão são favoráveis ou não. Mas as reflexões que ele tece sobre os sonhos são interessantíssimas, e sua obra é muito mais que uma "chave de sonhos," como aliás, um tanto redutoramente, diz o título da tradução francesa que estou compulsando.12 12 Artemidoro, D. La clef des songes (Festugière, trad.). Paris, Vrin. É uma obra que apresenta, além do literário, interesse antropológico, sociológico, histórico, sendo fundamental para o estudo da história das mentalidades – haja vista a importância que lhe concede Foucault na sua Histoire de la Sexualité. Artemidoro não compôs um dicionário de símbolos fixos e de decodificação mecânica. Sempre tal símbolo é aferido à situação do sonhante. O sonho significa diferentemente, à medida que varia a qualidade (e aqui entenda-se: o perfil social) do sonhante. Artemidoro dá exemplos de como um mesmo símbolo pode ser diferentemente interpretado conforme varia aquele que sonha: se é homem ou mulher; se é escravo ou livre; se é casado ou solteiro, governante ou dominado, se é forasteiro ou está na sua pátria, etc, etc. Uma gama infindável de situações humanas é contemplada na sua arte de decodificar símbolos oníricos, levando em consideração a subjetividade do sonhante. O livro I desse seu tratado número 9, apresenta um sub-capítulo interessante, intitulado "O que deve saber o onirocrítico." Vamos a ele:

Poderia bem ser útil, não somente útil, mas necessário, não apenas a quem viu o sonho e quem o interpreta, que o onirocrítico saiba quem é aquele que viu o sonho, qual é sua profissão, qual foi seu nascimento, o que possui de fortuna, e qual o seu estado corporal, e a que idade ele chegou. E é preciso examinar exatamente o próprio sonho, em seu conteúdo. Que com efeito uma ligeira adição ou subtração no sonho seja suficiente para fazer mudar sua realização, será mostrado na seqüência. (Artémidore, Le Clef des Songes: Onirocriticon, p. 30)

Artemidoro dá exemplos de como um mesmo símbolo pode ser diferentemente interpretado conforme varia o perfil social daquele que sonha. Há passagens de sua obra que revelam uma extrema acuidade e pertinácia, como por exemplo esse tento interpretativo, que dá conta não somente da polivalência do signo lingüístico, mas também do trabalho de condensação:

Guarda na memória que, no caso daqueles animais que, permanecendo os mesmos, podem prestar-se a uma pluralidade de interpretações, é preciso levar em conta todas. Por exemplo, a pantera significa ao mesmo tempo um magnânimo por causa de seus costumes, e um patife, por causa de sua cor manchada. (Artémidore, Le Clef des Songes: Onirocriticon, IV, 56-57).

O que é o sonho, para Artemidoro? No capítulo I do livro I da Oneirocrítica, ele propõe três etimologias para o sonho, oneiros, e todas três, mesmo que não gozem do respaldo dos filólogos, são interessantíssimas:

1 - a primeira delas articula oneiros a oreinein: a visão do sonho "é naturalmente própria a excitar e a colocar em movimento (oreinein) a alma;"

2 - a segunda faz derivar o termo de to on eirein: oneiros é aquilo que "diz o ser" (eirein = verbo dizer; to on = o ser), e o diz sob a forma de analogia;

3 - na palavra oneiros está embutido o nome de Iro, o mendigo de Ítaca, que levava as mensagens a ele confiadas.

Com efeito, da perspectiva da Psicanálise, não é verdade que: 1) o sonho é próprio a "excitar e colocar em movimento" a psique; 2) o sonho é aquele que "diz o ser" inconsciente; 3) o sonho é um dos mensageiros do inconsciente?

Já se vê, através dessa decodificação da própria palavra oneiros, como Artemidoro dá importância ao que ele chama de etimologia, mas que nós, de uma maneira geral, chamamos de significante. É assim que ele nos dá uma indicação preciosíssima para a interpretação do símbolo onírico da águia, em grego aetós. Diz Artemidoro: "A águia significa também o ano presente: pois seu nome, quando escrito, não é nada senão "primeiro ano" (Artémidore, Le clef des songes: Onirocriticon, II, p. 207). E numa nota, temos a explicação: aetós = a (primeiro) + etos (ano). Dispondo-me a analisar um sonho de Penélope13 13 Eis o sonho de Penélope, por suas próprias palavras relatado, no Canto XIX da Odisséia: “Eia porém, ouve e interpreta-me este sonho. Vinte de meus gansos saem da água e põem-se a comer trigo aqui em casa; eu os contemplo deleitada; vem, porém, da montanha uma águia enorme de bico recurvo, e mata-os todos, quebrando-lhes o pescoço; os gansos jazem amontoados na sala, enquanto a águia se evola para o éter divino. Embora em sonho, pus-me a chorar e a lamentar; em torno de mim apinharam-se mulheres aquéias de ricas tranças, enquanto me lastimava por ter a águia morto os meus gansos. Mas ei-la que volta, pousa na ponta duma viga do telhado e com voz humana fala, reprimindo meu pranto: “Ânimo, filha do largamente famoso Icário; isto não é sonho, e sim uma bem augurada visão do que se vai consumar. Os gansos são os pretendentes e eu, a águia, que antes era uma ave, volto agora na pessoa do teu marido, para desencadear sobre todos os pretendentes uma morte cruel.” Assim falou ela; o doce sono deixou-me e, procurando ansiosa os gansos na mansão, deparei-os catando grãos de trigo, como antes, ao lado do tanque.” no Canto XIX da Odisséia, pude verificar a pertinência dessa interpretação. Pois na falta de associações do sonhante, urgia buscar aquilo que chamo de "associações culturais." Importaria assim, que quem analisasse esse sonho literário não se pusesse a dizer o que lhe vem à cabeça, mas o que um grego dos tempos homéricos supostamente associaria; haveria necessidade, portanto, de por-se na pele, melhor dizendo, na "psique cultural" da Penélope. E dessa perspectiva, efetivaram-se possibilidades riquíssimas de associações, ultrapassando o por demais evidente símbolo de virilidade que águia encarna: desde a referência ao animal representante de Zeus (cujo raio ela segura entre suas garras), à figuração do herói (referida pelo próprio Artemidoro), à associação com eventos dos dias anteriores da própria Odisséia e que eram considerados como presságios, e que tinham como motivo o vôo de certas aves,14 14 Em grego, a própria palavra pássaro, ornis, significa presságio, vaticínio, augúrio. O vôo das aves era interpretado para se conhecer a vontade divina. É o caso de a gente se perguntar por que é que os pássaros têm a ver com a adivinhação. Uma resposta seria que seu vôo predispõe para servir de símbolo das relações entre o céu e a terra. entre as quais águias, ocorridos em determinadas circunstâncias; e também o que, no nível do significante, um grego associaria.

Pois bem: cabe aqui a interpretação "etimológica" de águia (aetós), segundo Artemidoro. A águia no sonho de Penélope significaria "o que vem no 1º ano, o que vem no ano presente". Efetivamente, a grande questão de Penélope não era saber apenas se seu marido voltaria, mas quando voltaria. A águia lhe dá a resposta: antes que se passasse um ano. Assim, se no nível do significado a águia, por mais de um motivo, remete ao herói, também no nível do significante, por condensação, se refere a Ulisses. A águia (a-etós) não faz senão repetir, enquanto significante, aquilo que o próprio Ulisses diz a Penélope, à sua chegada ao palácio de Ítaca, na conversa ao cabo da qual a rainha lhe narra o sonho: "Não passará deste ano e Odisseu chegará aqui, quando um mês terminar e outro estiver começando" (Homero, Odisséia, XIX, v. 307). O significante "comanda" a interpretação dos sonhos.

É Artemidoro, a propósito, que também relata a famosa interpretação (referida aliás por Freud) do sonho de Alexandre da Macedônia, quando se preparava para fazer um cerco à cidade de Tiro. Alexandre sonhou que viu no seu escudo um sátiro dançando. Chamou Aristandros, seu intérprete oficial, que dividiu a palavra satyros em sa + Tyros (= Tiro é tua) e, assim, fez com que o rei combatesse com tal garra, que conquistou a cidade. Se o intérprete se ativesse ao significado, enveredaria por tentar deslindar questões referentes ao sentido de sátiro como divindade lúbrica habitando as florestas (e daí, por dedução, figuração eventual da luxúria e do caráter libidinal, etc, etc) e provavelmente não iria muito longe. Mas a carga material da palavra lhe dá a pista para decifrar esse sonho, na linha da mais estrita ortodoxia psicanalítica, por sinal: o "sátiro" significa a realização do desejo de Alexandre, a conquista de Tiro: "Tiro é tua," lhe diz o sonho.

Aqui se mostra o alcance da onirocrítica antiga, sensível à força da palavra tomada na sua materialidade (como diz Freud: tomada como coisa), atenta aos restos diurnos e à situação subjetiva daquele que sonha. E além disso, trata-se de um belo exemplo de sonho como realização de desejo.

Na Onirocrítica, de Artemidoro de Daldis (Le Clef des Songes: Onirocriticon) compara seu "método" com a técnica divinatória dos sacrificadores, com a técnica dos adivinhos que fazem suas previsões do futuro a partir do estudo das entranhas dos animais sacrificados. Vamos tentar entender essa aproximação, que tem tudo a ver com a analogia e com a escrita (enquanto inscrição). Trata-se de uma prática antiquíssima, de origem mesopotâmica. Aqui também, os gregos são tributários dos mesopotâmicos.

Num artigo sobre adivinhação na Mesopotâmia, Bottéro (1991) fala do empirismo que fundamenta a observação que está à raiz dos oráculos que, diz ele, provavelmente teriam sido construídos dessa forma: por verificação da seqüência de acontecimentos que não tinham entre si nenhum elo aparente, mas observou-se que tinham sucedido uma vez, e estabeleceu-se imediatamente que sucederiam sempre (na base do "post-hoc, ergo propter hocc)."15 15 “Depois disso, logo, por causa disso.” O exemplo com o qual ele trabalha é muito curioso e diz respeito a oráculos a partir do exame do fígado da vítima sacrificada e está registrado em documentos, as "maquetas de fígado." Aí se pode perceber que se estabelecia um elo entre a observação de uma particular disposição do fígado (protuberâncias, marcas como se fossem perfurações, etc) e um determinado acontecimento, produzido contemporaneamente. Efetivava-se assim, uma leitura das entranhas de animais, articuladas a eventos significativos na vida do povo. Um dos oráculos que Bottéro estuda pode ser assim resumido: se no fígado da vítima são furadas (em acádio: palshou) três perfurações (em acádio: pilshou), o presságio é o mesmo que o do povo da cidade sitiada de Apishal, que o rei Narâm-Sin, por volta de 2260 A.C. fez prisioneiro, recorrendo a sapas (em acádio pilshou). Nesse país, denominado Apishal, os sacrificadores ao dissecarem uma das vítimas, teriam observado que seu fígado se apresentava de forma inusitada; pouco tempo depois, teria se produzido um acontecimento notável na cidade: sabotadores nela penetraram, e ela foi conquistada.

Na realidade, trata-se de um jogo de palavras, todas assonantes: pilshou, palshou, apishal - e o elo que manteriam entre si radica na semelhança de significantes. É assim que as perfurações de um fígado poderiam remeter à ação dos sabotadores (sapas) que fariam de alguém um prisioneiro. Aqui se vê a importância do nome comandando o oráculo, e entende-se porque se afiguram como absurdas a nós certas decodificações - certas interpretações que parecem sem pé nem cabeça: delas, na tradução, perdemos a chave. Na realidade, - isso Bottéro não explora em seu artigo, ou melhor, não nomeia, - aqui vige o princípio da analogia, que é a arte de descobrir semelhanças. Mas o que é interessantíssimo, que ele aponta, é a ligação estabelecida com a escrita. Tais "elos" seriam pura coincidência sem alcance, diz Bottéro (1991), mas não para os antigos mesopotâmicos com sua doutrina, bem conhecida dos assiriólogos, do governo do mundo pelos deuses, e da fixação prévia dos destinos de todas as coisas por esses mesmos deuses. Na concepção mesopotâmica, nessa escrita-inscrição nas coisas do mundo, poderia estar gravado o destino humano.

"Nesse povo," diz Bottéro, "onde, desde os primeiros tempos do terceiro milênio foi inventada a escrita, e onde ela gozou um papel capital na vida material e intelectual, imaginava-se que as sortes assim decididas estavam inscritas pelos deuses sobre a ‘tabuinha dos destinos.’" Os deuses podiam mesmo escrever essas decisões nas coisas, à medida que eles as criavam ou dirigiam seu movimento. Um certo número de textos falam nesse sentido, como o seguinte: "Ó deus Shamash, (...) tu que inscreves o oráculo e marcas a sentença divinatória nas entranhas do cordeiro!" (Bottéro, 1991, p. 30). Não se pode esquecer de que estamos na civilização da escrita cuneiforme, que é, como diz Bottéro, uma "escrita das coisas," em que os pictogramas são, em suma, coisas para designarem outras coisas: assim o croquis do pé para o "andar," a figura do triângulo pubiano para "mulher" ou para "feminilidade," etc. Já vislumbramos algo que não estava no campo de preocupações de Bottéro, mas que para os objetivos do presente estudo é fundamental: em que medida esse mesmo processo está presente no sonho e na poesia.

Assim se justifica esse excurso pela adivinhação mesopotâmica que, partindo da afirmação de Artemidoro de que seu método é comparável à técnica divinatória dos sacrificadores, aponta para o reconhecimento da importância da linguagem humana e ressalta a presença fundante da analogia.

Analogia: para Artemidoro de Daldis (II, 25), "a interpretação dos sonhos não é outra coisa que uma aproximação do semelhante com o semelhante." E aqui a gente encontra um eco de Aristóteles, que termina seu estudo sobre "A Adivinhação através dos sonhos" com a afirmação de que "o mais hábil intérprete dos sonhos é aquele que pode observar as analogias" (Aristóteles, De Divinatione Per Somnum)

Mas o que é mais importante é que a analogia é fundamento não apenas do mundo mágico e do mítico, mas também da poesia, esse universo analógico em que os sons "se respondem" e em que se revelam as afinidades obscuras entre as coisas: CORRESPONDÊNCIAS - de que o poema de Baudelaire é o prestigioso avatar. Diz Octavio Paz (1974):

À idéia da correspondência universal é provavelmente tão antiga como a sociedade humana. É explicável: a analogia torna o mundo habitável. À contingência natural e ao acidente opõe a regularidade; à diferença e à exceção, a semelhança. O mundo já não é um teatro regido pelo azar e o capricho, as forças cegas do impossível: governam-no o ritmo e suas repetições e conjunções. (...) A analogia é o reino da palavra como, essa ponte verbal que, sem suprimi-las, reconcilia as diferenças e as oposições. (p. 95)

A analogia permite uma visão do mundo reordenado segundo um princípio que lhe confere sentido. Os fatos humanos não são assim desraigados e aleatórios, mas estão inscritos nas entranhas e nas estrelas, no mundo biológico e no mundo cósmico.

Mas se ficou inequívoco que as artes mânticas, a adivinhação seja das entranhas de vítimas sacrificadas, dos vôos dos pássaros ou dos sonhos, vai na linha da descoberta das "semelhanças não sensíveis," como fala Benjamin (1971b) e mergulha no mundo do mythos, o instigante será a constatação de que a interpretação (dos sonhos, dos oráculos, dos poemas) é, ela própria, também, num certo sentido, irredutível ao logos. Por mais que a crítica literária se alinhe entre as "ciências da Literatura;" e por mais que a Psicanálise reivindique para si o estatuto de ciência, a interpretação dos poemas e dos sonhos estará sempre do lado do mythos.

Platão, que sendo filósofo era poeta e entendia dessa coisa, dizia que o leitor/ouvinte da poesia, para apreciá-la convenientemente, deveria estar inspirado.

Pois entre o poeta, o rapsodo (que, na Grécia Clássica era o que mais se aproximaria do atual professor de literatura dublado em crítico literário) e o leitor (ouvinte) de poesias, passava a mesma corrente de inspiração poética, que os ligava à divindade, à musa. O leitor / ouvinte também se deixaria imantar pelo entusiasmo, no sentido grego. Estamos todos do lado do mythos.

Mas se é verdade que o sonho, o poema e aqueles que os interpretam estão do lado do mythos, o sonho, como todo produto humano, é historicizado. Se o inconsciente é a-histórico, as formações do inconsciente são históricas. E mais: o sonho não representa apenas uma manifestação psíquica individual; ele está impregnado do social. Nesse espaço próprio, que parece tão individual, do sonhador, imiscui-se o social: suas escolhas imagéticas são buscadas no arsenal de imagens que sua civilização e sua cultura lhe oferecem. Freud diz que é a elaboração secundária que faz com que o sonho perca sua aparência incoerente e de absurdo, e se aproxime de uma experiência inteligível: inteligível para aquele universo cultural, eu acrescentaria. Assim, é a elaboração secundária (que, junto com a condensação, deslocamento e figurabilidade, constitui um dos processos de elaboração onírica) que faz com que o sonho se aproxime de uma dada estrutura cultural. Pois existem estruturas modelares, algo como um arquétipo cultural. Em seu ensaio "Structure onirique et structure culturelle," Dodds (1965) fala exatamente de sonhos cujo conteúdo manifesto é determinado por uma "estrutura cultural:"

E isso não quer simplesmente dizer que lá onde um americano moderno, por exemplo, sonharia com uma viagem de avião, um primitivo sonharia que era transportado ao Céu no dorso de uma águia; isto quer dizer que em muitas sociedades primitivas há tipos de estrutura onírica que dependem de um esquema de crenças transmitidas no interior da própria sociedade, e que cessam de produzir-se quando a crença cessa de ser mantida. Não somente a escolha de tal símbolo, mas o caráter próprio do sonho parece submeter-se a uma estrutura tradicional rígida. É evidente que tais sonhos são parentes próximos do mito que é, como foi justamente observado, o "pensar onírico" de um povo, assim como o sonho é o mito do indivíduo.

Estudar sonhos de uma determinada cultura leva inescapavelmente à caracterização do universo cultural que gerou aqueles sonhos. Há que se reconhecer a historicidade do sonho, ou melhor, das imagens oníricas, surgidas do arsenal imagético de cada sonhante - na linha de uma "história do imaginário."

Um estudo de sonhos e ainda por cima, gregos, não seria assim um tema tão aleatório e desvinculado das angústias e tensões do mundo de hoje: ao nos voltarmos para eles, conhecemos melhor a nós próprios. Pois há uma regra, uma só, quando a gente se volta para o passado. É o que Benjamin (1971a) formulou, de uma maneira definitiva, dizendo que "O problema não é apresentar a obra literária em conexão com o seu tempo, mas sim tornar evidente, no tempo que a viu nascer, o tempo que a conhece e julga, ou seja, o nosso."

Meneses, A. B. (2000). Dream and Literature: Greek World. Psicologia USP, 11 (2), 187-209.

Abstract: The idea is to discuss not only the meaning presented in dream productions in the Greek world, but also the congeniality between dream and literature. In fact, both in dream as well as in poetry, domain of Myths and not of Logos, unconscious energies act. In Greece, where dream has a well known oracular value, the magician’s and poet’s functions overlap, in relation to the capacity of seeing far beyond the sensitive appearances, of seeing what Walter Benjamin called "visible similarities." There are questions that, from Homero and Aeschylus to Artemidor from Daldis to Aristotle cross the Greek way of thinking and living, that we are used to credit to Psychoanalysis: the relation between fantasy and dream, the sensitivity of imagination, the privilege of the significant, the effectiveness of the word (to which is attributed a therapeutic value), the importance of analogy (in dream’s and poetry’s production and interpretation). Finally, something concerning the historicity of the symbol and the existence of "cultural archetypes."

Index terms: Dreaming. Poetry. Greek literature.

  • Aristóteles. (1934). De láme (J. Tricot, trad.). Paris: Librairie Philosophique J. Vrin.
  • Aristóteles. (1965). De divinatione per somnum (R. Mugnier, trad.). In Parva naturalia Paris: Les Belles Lettres.
  • Aristóteles. (s.d.) De la mémoire et de la reminiscence. In Parva naturalia Paris: Les Belles Lettres
  • Artémidore, D. (1975). Le clef des songes: Onirocriticon (A. J. Festugičre, trad.). Paris: J. Vrin.
  • Benjamin, W. (1971a). Histoire littéraire et science de la littérature. In Poésie et révolution Paris: Denoel.
  • Benjamin, W. (1971b). Sur le pouvoir dimitation (M. Gandillac, trad.) In Poésie et révolution Paris: Denoel.
  • Bérard, V. (1933). Introduction ŕ lodyssée Paris: Les Belles Lettres.
  • Bloch, E. (1976). Le principe esperance Paris: Gallimard.
  • Borges, J. L. (1986). Livro dos sonhos (C. Fornari, trad.) (4a ed.). Săo Paulo: DIFEL.
  • Bottéro, J. (1991). Adivinhaçăo e espírito científico na Mesopotâmia. Clássica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos, Săo Paulo, v.4, n.4.
  • Cassirer, E. (1976). Linguagem, mito e religiăo (R. Reininho, trad.). Porto, Portugal: Ediçőes Rés.
  • Dodds. (1965). Les grecs et lirrationnel (M. Gibson, trad.). Paris: Flamarion.
  • Ésquilo. (1939). Nas coéforas (Lobo Vilela, trad.). Lisboa, Portugal: Inquérito.
  • Ésquilo. (1949). Orestíada (P. Mazon, trad.). Paris: Les Belles Lettres.
  • Ésquilo. (1989). Prometeu acorrentado. In Teatro grego Săo Paulo: Cultrix.
  • Foucault. (1984-1988). Histoire de la sexualité (3 Vols.). Paris: Gallimard.
  • Freud, S. (1996). A interpretaçăo dos sonhos (J. Salomăo, trad.). In Ediçăo standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 4). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1900)
  • Freud, S. (1980). O chiste e sua relaçăo com o inconsciente. In Ediçăo standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 8). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1905)
  • Homero. (1965). Illiade (E. Lasserre, trad.). Flammarion: Garnier.
  • Homero. (1993). Odisséia (J. Bruna, trad.). Săo Paulo: Cultrix.
  • Meneses, A. B. (1995). Do poder da palavra: Ensaios de literatura e psicanálise Săo Paulo: Duas Cidades.
  • Paz, O. (1974). Los hijos del limo; del romanticismo a la vanguardia Barcelona, Espană: Seix Barral.
  • Platăo. (1972). Diálogos (J. C. Souza e J. Paleikat, trads.) (Os Pensadores, vol.3). Săo Paulo: Abril Cultural.
  • Ricoeur, P. (1977). Da interpretaçăo (H. Japyassú). Rio de Janeiro: Imago.
  • Sófocles. (1960). Electra (J. Bruna, trad.). Săo Paulo: Cultrix.
  • Vernant, J. P. (1990). Mito e pensamento entre os gregos Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • 1
    Endereço para correspondência: Rua Batatais, 523 – apto. 161 – São Paulo – SP.
  • 2
    Tanto no famoso “I have a dream”de Martin Luther King, como no dramático “The dream is over”de John Lennon (prenunciando o “fim das utopias”que é o cancro a espreitar as novas gerações), sonhar tem a ver com o desejo.
  • 3
    O termo é marcusiano.
  • 4
    Tratado Sobre a Alma (
    De L’áme), III, 3, 428a.
  • 5
    Cf. os capítulos “Memória e ficção I” (Aristóteles, Freud e a memória) e “Memória: matéria de mimese” do meu livro (Meneses, 1995, p.131-160).
  • 6
    Iatroi-lógoi: textualmente, palavras-médico.
  • 7
    Encantador: do radical de
    epodein: literalmente, “cantar sobre.”
  • 8
    O que não deixa de ter significativas ressonâncias aos “
    habitués” da Psicanálise ...
  • 9
    Pois como queria Fernando Pessoa, sem a esperança, que é o homem senão “cadáver adiado que procria?”.
  • 10
    Cf. Bérard (1933), que fala dos “ridicules calembours” desses versos.
  • 11
    Cf.
    O Chiste e Sua Relação Com o Inconsciente (Freud, 1905/1980) essa obra capital da Psicanálise, da Lingüística e da Literatura.
  • 12
    Artemidoro, D.
    La clef des songes (Festugière, trad.). Paris, Vrin.
  • 13
    Eis o sonho de Penélope, por suas próprias palavras relatado, no Canto XIX da
    Odisséia:
    “Eia porém, ouve e interpreta-me este sonho. Vinte de meus gansos saem da água e põem-se a comer trigo aqui em casa; eu os contemplo deleitada; vem, porém, da montanha uma águia enorme de bico recurvo, e mata-os todos, quebrando-lhes o pescoço; os gansos jazem amontoados na sala, enquanto a águia se evola para o éter divino. Embora em sonho, pus-me a chorar e a lamentar; em torno de mim apinharam-se mulheres aquéias de ricas tranças, enquanto me lastimava por ter a águia morto os meus gansos. Mas ei-la que volta, pousa na ponta duma viga do telhado e com voz humana fala, reprimindo meu pranto: “Ânimo, filha do largamente famoso Icário; isto não é sonho, e sim uma bem augurada visão do que se vai consumar. Os gansos são os pretendentes e eu, a águia, que antes era uma ave, volto agora na pessoa do teu marido, para desencadear sobre todos os pretendentes uma morte cruel.” Assim falou ela; o doce sono deixou-me e, procurando ansiosa os gansos na mansão, deparei-os catando grãos de trigo, como antes, ao lado do tanque.”
  • 14
    Em grego, a própria palavra pássaro,
    ornis, significa presságio, vaticínio, augúrio. O vôo das aves era interpretado para se conhecer a vontade divina. É o caso de a gente se perguntar por que é que os pássaros têm a ver com a adivinhação. Uma resposta seria que seu vôo predispõe para servir de símbolo das relações entre o céu e a terra.
  • 15
    “Depois disso, logo, por causa disso.”
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2001
    • Data do Fascículo
      2000
    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revpsico@usp.br