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Terra Natal

TERRA NATAL

Dante Moreira Leite

Estranha geografia

Da cidade em que nasci:

Ruas e casas se afeiçoam

A um tempo, já não meu, que se dilui

Em novas excursões pelos jardins

Por ruas e praças imperfeitas

Cruzadas pelo olhar de um menino.

Melhor encontrá-la assim,

Em rotas de etéreo reencontro:

Os mortos apenas viajam

E os vivos à mesa reconciliados.

Melhor encontrá-la assim, no sonho impuro,

Pedaços de lembranças desenhadas

Na retina já gasta e envelhecida

Enquanto a vila

Se desprende do mapa e da memória.

Jan. de 1967

OFÍCIO

Dante Moreira Leite

Ver. Rever. Desver.

Rever o visto, desrrever.

E novamente rever.

Longe, o tradutor

Mais longe ainda, um autor

Depois, o revisor

E o linotipista

E o revisor do revisor.

Serão palimpsestos?

Serão alfarrábios, escritas cuneiformes,

Hieroglifos - ou apenas grifos?

Grifos ou negritos?

Itálico ou redondo?

Tipo 33 ou 36?

O revisor vê. Revê.

Tudo visto e revisto

Ainda relê

E finalmente deslê.

21/IV/66

Vou partir para a Europa

No próximo transatlântico:

Partirei tão sozinho

Que até as notícias passadas

Deixarei no cais de Santos

Já não tenho amor não me importa

Posso partir tranqüilo

Ninguém ficará esperando

Pelo amor de Deus não me esperem

Em Lisboa em Barcelona

Em vilas de Itália e França

Vou morrer cada dia

Deixarei meus pés de barro

Não voltarei nunca mais

Sabiás e palmeiras

Meus livros meus amores

Não me falem não me falem

Vou partir para a Europa

No próximo transatlântico

(Sem título, s/d)

EXPLICAÇÃO

Dante Moreira Leite

Para a Zilah

Bem sei, não sou poeta

E é pena

Tanto sinto vibrar as coisas, as tardes angustiadas

Tanta sensibilidade minha percebo

De tanto amor sou capaz.

É pena: me limito a poemas alheios

A chorar por eles, rir por eles

Me definir por eles.

É pena: às vezes me aventuro a poetar

Pra me arrepender, me xingar

Tanta distância entre o que digo e o que sinto

(Distância igual à que vai do que se deseja ao que se tem)

É pena: se fosse poeta, talvez me conformasse

(e precisava tanto me conformar)

E é pena principalmente porque a vida é tão, tão besta

Que só com poesia da boa...

E é pena finalmente porque há poemas tão tristes

Que morrerão afogados no meu peito

sem que eu saiba dizê-los

sem que eu possa dizê-los

sem que ninguém os ouça jamais.

Março de 48

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2001
  • Data do Fascículo
    2000
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