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O pai da horda e o supereu: de um prenúncio da instância

Le père de la horde et le surmoi: d’un présage de l’instance

El padre de la horda y el superyó: de un presagio de la instancia

Resumo

Este artigo desenvolve reflexões que visam evidenciar o lugar de destaque da obra Totem e Tabu no corpo teórico da psicanálise. Utiliza-se então a noção de supereu, que reconhecemos enquanto exemplo profícuo deste “poder heurístico” de Totem e Tabu para suscitar desenvolvimentos sobre a cultura, clínica e teoria psicanalítica. O supereu consiste numa noção importante da teoria psicanalítica mesmo antes de sua formulação enquanto instância psíquica; trata-se de um elemento conceitual em constante trabalho de elaboração. Por conseguinte, acentua o aspecto equívoco de tal conceito, pois consiste em uma noção atravessada por paradoxos. Por fim, utiliza a obra O Eu e o Isso enquanto outro polo desta empreitada, pois é nessa obra que o supereu é enfim nomeado e designado como instância psíquica. Ressalta-se aqui o aspecto paradoxal do supereu de poder ser referido ao lugar do pai no mito freudiano da horda primitiva.

Palavras-chave:
pai; superego; metapsicologia; cultura

Résumé

Cet article déploie des réflexions qu’ont l’intention de mettre en évidence l’importance de l’œuvre Totem et Tabou pour la théorie psychanalytique. On utilise alors la notion de surmoi, que nous reconnaissons comme un exemple de ce “pouvoir heuristique” de Totem et Tabou pour déployer questions sur la culture, la clinique et la théorie psychanalytique. Le surmoi est composé d’une notion importante de la psychanalyse même avant de sa formulation comme une instance psychique; il s’agit d’un concept sur une constante élaboration. On souligne aussi l’aspect controversé de ce concept, parce qu’il consiste en une notion paradoxale. Finalement, on utilise l’œuvre Le Moi et le Ça comme l’autre extrémité de cette entreprise, parce que c’est dans cette œuvre que le surmoi est enfin nommé et désigné comme une instance psychique. On souligne alors l’aspect paradoxal du surmoi qui peut être référé au lieu du père dans le mythe freudien de la horde primitive.

Mots-clés:
père; surmoi; métapsychologie; culture

Resumen

Este artículo desarrolla reflexiones destinadas a destacar la importancia del trabajo Tótem y Tabú en el cuerpo teórico del psicoanálisis. Se utiliza la noción de superyó, que reconocemos como un ejemplo fecundo de este “poder heurístico” de Tótem y Tabú para elevar desarrollos de la cultura, clínica y teoría psicoanalítica. El superyó es un concepto importante de la teoría psicoanalítica, incluso antes de su formulación como instancia psíquica; es un elemento conceptual en el trabajo de desarrollo constante. Por lo tanto, se hace hincapié en el aspecto equivoco de este concepto, porque consiste en una noción atravesada por paradojas. Finalmente, se utiliza el trabajo El Yo y el Ello mientras el otro polo de este esfuerzo, ya que es en este trabajo que el superyó es nombrado y designado como instancia psíquica. Luego destaca el aspecto paradójico del superyó que se puede denominar en el lugar del padre en el mito freudiano de la horda primitiva.

Palabras clave:
padre; superyó; metapsicología; cultura

Abstract

This article develops reflections that aims to evidence the prominence of the Totem and Taboo work in the theoretical body of psychoanalysis. In this sense, it uses the notion of superego, which we recognize as an example of this profitable “heuristic power” of Totem and Taboo to raise developments on culture, clinic and psychoanalytic theory. The superego consists of an important notion of the psychoanalytic theory even before its formulation as psychic agency; it is a conceptual element in constant elaboration work. Therefore, this paper accentuates the misconception aspect of this concept, because it consists of a notion fraught of paradoxes. Finally, it utilizes the work The Ego and Id while the other pole of this contract, because it is in this work that the superego is finally appointed and designated as psychic instance. It is also emphasized then that the paradoxical aspect of the superego can be referred to the father’s place in the Freudian myth of the primal horde.

Keywords:
father; superego; metapsychology; culture

O propósito deste artigo é formular algumas considerações acerca do “poder heurístico” contido na obra Totem e Tabu, de (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)), utilizando enquanto ponto de ancoragem a noção de supereu. Vislumbramos nessa obra um grande potencial de fomentar e desenvolver, no seio do pensamento freudiano, questões relativas não somente à concepção de Freud sobre a cultura e tudo aquilo que a anima (a moral, a religião, as artes, o direito), como também de proporcionar o desenvolvimento de questões relativas à conceitualidade psicanalítica, compreendida aqui como o conjunto de elaborações conceituais produzido por Freud a partir de sua experiência. Com efeito, ao concebermos tal poder heurístico em Totem e Tabu, estamos supondo tal obra enquanto fiel da balança da teoria psicanalítica.

O supereu é uma instância psíquica descrita por Freud em um contínuo trabalho de teorização. (Rudge, 1999Rudge, A. M. (1999). Versões do supereu e perversão. Psicologia: Reflexão e Crítica, 12(3). Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721999000300011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) observa que encontramos ao longo da obra de Freud inúmeras passagens nas quais as temáticas da proibição, da culpa e da moral ganham forma muito antes do trabalho definitivo no qual a instância é enfim nomeada. Ainda na segunda metade da década de 1910, (Freud, 1907/1979Freud, S. (1979). Acciones Obsesivas y Prácticas Religiosas. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (José L. Etcheverry, trad., Vol. 9, pp. 97-110). Buenos Aires, Argentina y Madrid, España: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1907)) descreve o acosso que impele o neurótico para a realização de seus atos obsessivos, em um impressionante paralelo com as práticas religiosas levadas a cabo pelo devoto. Já na importante obra que introduz a noção de narcisismo no conjunto teórico da psicanálise, (Freud, 1914/2010Freud, S. (2010). Introdução ao Narcisismo. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914)) descreve a ação fundamental do ideal do eu e de uma “instância psíquica particular” que teria por função velar pela satisfação narcísica proveniente do ideal, sendo uma instância de observação que será vinculada ao supereu na década seguinte, conjugando os elementos que constituem a base do que finalmente será nomeado em O Eu e o Isso.

Com efeito, (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) afirma que a instância do supereu se revela na história da psicanálise como uma noção atravessada por paradoxos e equívocos dos mais candentes. Sua descrição nem sempre é linear e ordenada, sua formulação é marcada por choques, sobreposições e rupturas. O próprio (Freud, 1933/2010Freud, S. (2010). Novas conferências introdutórias à psicanálise. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 18, pp. 123-354). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1933)), próximo ao final de sua obra, irá admitir que muitos pontos que se referem à origem e ao papel do supereu permanecem obscuros e sem respostas.

De todo modo, o supereu nos parece uma ocorrência exemplar das ressonâncias históricas, clínicas e conceituais de Totem e Tabu sobre o conjunto teórico de Freud. Evidentemente que tal instância ali não figura - não podemos recair no simplismo que afirma que tudo já está contido em tudo avant la lettre. Porém, as problemáticas que demandam tal conceito ganham forma e coerência ao longo dos quatro ensaios que compõem a obra. Diante disso, é possível ensaiarmos uma genealogia do supereu tomando Totem e Tabu como ponto de partida, ainda que estejamos a par dos desenvolvimentos anteriores a essa obra que também podem ser considerados enquanto componentes da constelação daquela instância.

Por conseguinte, estabelecemos como base deste trabalho o quarto ensaio da referida obra, no qual figura a trama do mito do assassinato do pai enquanto condição de possibilidade da cultura. Utilizaremos essa referência fundamental para a psicanálise, pois entendemos que tal mito, bastante utilizado pela comunidade analítica e pelos estudiosos das relações entre a psicanálise e o direito para metaforizar o surgimento da lei simbólica, vai além. Tacitamente, a partir do referido mito, desenha-se um inapagável bolsão de poder que não se assimila ao conjunto arquitetado pela lei, mas antes permanece teimosamente a influenciar quem acreditara ter se livrado de sua influência nefasta com a morte do pai da horda. Se o pai morre, vira mito, vira história, vira lei. Será justamente por isso que ele assombra horrivelmente o laço entre os irmãos erigido em seu nome.

Em outro polo, utilizaremos a obra O Eu e o Isso para o contraponto com o mito do assassinato do pai. Tal escolha se justifica pelo fato de que é nessa obra que a segunda tópica é enfim formulada depois de um rigoroso trabalho de teorização acerca daquilo que, conforme se pode depreender das obras anteriores, escapa à tutela do primeiro modelo tópico e do primeiro dualismo pulsional. Contudo, sabemos que em O Eu e o Isso não encontramos uma palavra derradeira acerca do supereu, mas um importante entreposto de sua formulação. Com efeito, o próprio fato de ali ele ser enfim nomeado e definido enquanto instância psíquica - o que lhe confere uma condição estrutural, e não contingente - irá nos munir das prerrogativas necessárias para considerar essa obra um chão firme para o presente intento.

Totem e Tabu e o “Mito Científico”

Nossa proposta se inicia com a abordagem da instância do supereu a partir da obra Totem e Tabu, pois entendemos que o mito formulado por (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)) no quarto ensaio para dar conta da origem do laço social, da moral e da religião possui a dupla vantagem de, além de metaforizar o surgimento da lei, antecipar o caráter terrificante do supereu.

A redação de Totem e Tabu ocupou Freud por quase dois anos, exigindo de si total atenção. Ele só se desviará eventualmente desse fim para se ocupar momentaneamente da escrita de alguns artigos curtos. (Mezan, 2006Mezan, R. (2006). Freud, pensador da cultura. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) a considera a obra central de um período no qual a fundação do movimento psicanalítico e as querelas com Jung e Adler têm um efeito catalisador na produção teórica de Freud, levando-o a formulações que ao mesmo tempo em que alteram os rumos da psicanálise, fazem-na permanecer nos sulcos abertos por ela no campo da sexualidade.

Esse movimento paradoxal de alteração/permanência pode antes ser considerado como um movimento de expansão dos limites da psicanálise em direção a outras sendas que não o referencial predominantemente clínico. Afinal de contas, trata-se com Totem e Tabu - e também com a “Introdução ao narcisismo” - de dar respostas contundentes tanto a Jung quanto a Adler acerca das origens do psiquismo e principalmente quanto à socialização deste. Os termos dessa expansão são as respostas sincronizadas a Jung e sua “tendência espiritual” e a Adler e sua crítica de que a psicanálise em pouco ou em nada levaria em conta as influências dos fatores culturais sobre a formação do sujeito e de sua neurose.

Conforme pontua (Mezan, 2006Mezan, R. (2006). Freud, pensador da cultura. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), há naquela obra uma espécie de “ponto de convergência” de todo um período de investigação: da neurose obsessiva encontramos a questão da ambivalência e os tabus; da psicose o que apuramos é o mecanismo da projeção e a dialética do narcisismo; além da fobia, da qual ressalta o sentido paterno do animal totêmico. Todas essas questões, como dito acima, convergem para o horizonte da função do pai, explicitamente predominante nesse campo. Essa obra hercúlea, ao mesmo tempo em que abre um novo campo de atuação para o pensamento de Freud, sob alguns aspectos dá continuidade às suas teorias anteriores, tendo, contudo, a coragem de questioná-las radicalmente.

Ora, na medida em que descentra o olhar do analista sobre o indivíduo neurótico e seu sintoma, a obra marca - muito antes da formulação da pulsão de morte - o passo de Freud em direção à formulação da defasagem definitiva entre o indivíduo e suas pulsões frente à cultura: estando a origem da humanidade ancorada em um crime cometido em conjunto em favor do desejo sexual de seus cúmplices, não haveria, para Freud, a esperança de um desenvolvimento harmonioso da sexualidade para a comunidade humana.

Com efeito, a abordagem psicanalítica da cultura - que é também abordagem psicanalítica do indivíduo, pois um não existe sem o outro - deve levar em conta essa defasagem e toda consequência trágica que ela comporta. Conforme afirma (Koltai, 2010Koltai, C. (2010). Totem e tabu: um mito freudiano. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. (Coleção Para Ler Freud)), com Totem e Tabu Freud definitivamente enterra a ideia de uma possível liberação do sujeito pelo ato de assumir sua sexualidade genital, assim como a uma teoria da maturação do sujeito até uma definitiva unificação de sua constituição sexual. A realização “plena” da sexualidade ficaria assim tributada ao pacto estabelecido entre irmãos, de modo que é preciso que essa defasagem sempre se interponha entre o que as pulsões impelem e o que a cultura permite. Nisto residiria um dos nossos principais interesses da abordagem freudiana da cultura, que irá encontrar no supereu uma de suas mais renitentes antíteses, apesar de ser essa instância um dos saldos mais fundamentais do processo civilizatório e uma importante conquista cultural. Relação paradoxal entre duas moções antitéticas que não se harmonizam, compondo um importante aspecto do mal-estar da cultura. É justamente este traço indissolúvel que nos permite problematizar este resto inassimilável que nenhum ordenamento moral, religioso e jurídico é capaz de equacionar de maneira satisfatória e resolutiva. A civilização estaria destituída da possibilidade de “harmonizar-se”.

De um lado surge a lei simbólica que, uma vez que instaura a impossibilidade da consumação do objeto por todos desejado, condiciona a existência da cultura à renúncia pulsional: é a lei que salvaguarda os membros da comunidade totêmica do risco de uma guerra fratricida. Por outro lado, nós podemos entrever um esboço de supereu não apenas no despotismo encarnado na figura do pai primitivo, como também representado na mesma lei instaurada após a sua morte e que convoca os filhos que o assassinaram a lhe renderem tributos como uma forma de restituição.

Quanto ao surgimento da lei, ela estaria na dependência direta da interdição do incesto e do parricídio, as proibições que fundariam o humano e o laço social. Tendo como base o mito darwiniano da horda primeva, (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)) nos relata que havia um pai violento e ciumento que reservava para si o direito ao gozo de todas as fêmeas da horda e que por isso expulsava os filhos na medida em que crescia, pois não admitia para si a presença de possíveis rivais. Eis como nos são relatados o assassinato do pai e os desdobramentos posteriores:

Certo dia, os irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente. (Talvez um avanço cultural, o manejo de uma nova arma, tenha lhes dado um sentimento de superioridade). O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No ato de devorá-lo, eles realizavam a identificação com ele, e cada um apropriava-se de parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e a celebração desse ato memorável e criminoso, com o qual teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições morais, a religião. (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913), p. 216-217)

O relato do assassinato do pai primevo constituiria, a partir das referências utilizadas por (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)), um ponto de convergência indispensável. Ele conferiria inteligibilidade ao argumento freudiano, sem o qual a sua teorização sobre os surgimentos da religião, da moral e do direito permaneceria frágil e rarefeita. Tais referências são mencionadas por (Mezan, 2006Mezan, R. (2006). Freud, pensador da cultura. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), que esclarece que o seu uso visa a entrelaçar as construções feitas ao longo dos três primeiros ensaios. Para tal, Freud recorre à teoria da horda primitiva, formulada por Darwin e modificada por Atkinson, para corresponder à forma primordial dos agrupamentos hominídeos, uma vez que a conjectura darwiniana fora feita no condicional e para os gorilas. (Mezan, 2006) dirá então que: “Reunindo esses elementos heterogêneos pela referência comum ao Pai, Freud vai unificá-los por seu ‘mito científico’” (p. 377). No ponto que Freud havia chegado e frente à tarefa que se impunha, não haveria outro recurso para o qual lançar mão senão a formulação de um “mito científico” de busca pelas origens, de proporções grandiosas e conseqüências surpreendentes. Uma formulação bastante ousada dentro de um saber que se pretende científico, pois é justamente a sua vertente “mítica” que irá conferir a esse saber sua forma lógica e bem-acabada.

Um dos primeiros corolários dessa construção é aquele que diz respeito à malta de irmãos que, em uma perspectiva macro, pode se referir também a todo o conjunto da humanidade. (Koltai, 2010Koltai, C. (2010). Totem e tabu: um mito freudiano. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. (Coleção Para Ler Freud)) comenta que a civilização decorre deste ato fundador que congrega a todos na conjuração pela morte do pai. Eis também a necessidade imperiosa do estabelecimento de um marco inicial que seja transitivo, ou seja, que demande a partir de si uma sequência de outros acontecimentos a partir de então, e que terão por condição prévia o próprio estabelecimento desse marco. Ao introduzir o relato por meio da fórmula “Um dia”, (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)) ressalta o caráter hipotético de sua construção, situado na suposta origem de tudo.

O ato que sucede neste “dia” constitui o marco zero da civilização - o assassinato do pai primevo -, no qual se insere um acontecimento fundador, a partir do qual a história poderá ser narrada e sucedida. Zero absoluto da história que não comporta nenhuma relativização e nenhuma vinculação com algum cenário anterior que o anteceda, assim é a situação da horda desse pai severo e violento que “vira história” com sua morte. E nada mais irreversível do que a morte, irreversibilidade que impulsionaria o movimento histórico. E, para que esse movimento se constitua irreversível, um ato deve ser concluído (um assassinato), não permitindo voltar atrás. Retomando Goethe, dirá (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)): “.... no princípio foi o Ato” (p. 244).

O intento do banquete coletivo realizado pelos filhos está em consumar a identificação com a potência do pai morto na esperança de tomar para si as virtudes e os poderes que outrora reconheciam nele. É o momento no qual todos enfim vivem um genuíno sentimento coletivo, excitados pela grandiloquência do ato que haviam acabado de perpetrar e extasiados por sentirem correr em suas veias o sangue do onipotente. Essa refeição se revela um ato prenhe de consequências importantes: (1) instaura definitivamente a preeminência do pai, reconhecido como o único a ter possuído tanto poder, daí ser ele objeto de idealização ostensiva; (2) estabelece da coesão do grupo por meio do laço instituído pela carne e pelo sangue do pai; (3) cria do pai enquanto dotado de uma prole, ou seja, a existência de filhos descendentes diretos desse pai poderoso; e (4) instaura a igualdade entre os membros do grupo, na medida em que cada um incorporou uma parcela das virtudes do pai, tornando possível reconhecer no diferente um traço em comum.

Mas, em seguida, uma questão estarrecedora se impõe: com o onipotente enfim fora do caminho, haverá quem se arvore a ocupar o seu lugar? Este possível usurpador não daria início a mais uma ordem beligerante entre os irmãos, o que os conduziria novamente à necessidade de matar? Por conseguinte, esse ciclo possivelmente interminável de “golpes de estado” não os conduziria, irmãos recém-reconhecidos, a uma infindável guerra fratricida? Justamente para estancar essa sangria é que eles irão estabelecer a seguinte norma: as fêmeas cobiçadas não pertencerão exclusivamente a ninguém. Institui-se a exogamia, institui-se o tabu do incesto. Perigoso prazer aquele que o onipotente se permitia: excita o ódio, a inveja e o desejo de morte daqueles que dele não o usufruem. É preciso que se proíba tal gozo e que o lugar que o condicionava permaneça vazio. Por conseguinte, a quebra de tal proibição implicaria em um retorno à barbárie, na medida em que significaria um retorno da conjuntura da horda, pois, ao romper com o pacto e quebrar o tabu do incesto, o “usurpador” invalidaria o contrato estabelecido entre os irmãos, dando ensejo à possibilidade de “matar e ser morto” em prol do poder posto em causa - ou seja, retorno à barbárie da lei do mais forte.

É nesse ponto que, conforme a tradição psicanalítica, pode-se identificar a emergência mítica da lei. O pai morto se constituirá como o lugar da lei, pois será em seu nome que as proibições citadas serão instituídas. O lugar do totem diante do novo arranjo social será o de marco fundamental do ordenamento que se estabelece desde então. Por conseguinte, temos a origem do laço social em concomitância com o surgimento do sujeito do desejo, conforme propõe a psicanálise. Ambas as origens se encontram diretamente relacionadas a partir do mito freudiano, pois não há como desvincular uma da outra.

Logo em seguida ao relato do assassinato do pai, (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)) imediatamente supõe que os irmãos amotinados estariam governados pelos mesmos sentimentos contraditórios e ambivalentes que encontraríamos, a partir da pesquisa analítica, nas crianças e nos neuróticos: as moções ambivalentes quanto ao complexo paterno: “Eles odiavam o pai, que constituía forte obstáculo a sua necessidade de poder e suas reivindicações sexuais, mas também o amavam e o admiravam” (p. 218). Não basta deixar o lugar do pai vazio: é preciso, acima de tudo, exaltá-lo e enaltecê-lo.

Após eliminar o pai e satisfazer o seu ódio, além de imporem o seu desejo impetuoso de realizarem a identificação com ele, forçosamente foram tomados pelas moções ternas que se ocultavam no ódio. Sobrevém o arrependimento e nasce o sentimento de culpa comum a todos, decorrente da satisfação parricida. O pai temido era também o pai amado, e será este universal sentimento de culpa irreversível que irá desencadear e orientar todo movimento posterior quanto ao encaminhamento dado pelos irmãos às consequências de seu ato princeps.

(Gerez-Ambertín, 2011Gerez-Ambertín, M. (2011). Ley, prohibición y culpabilidad. In M. Gerez-Ambertín (Org.), Culpa, responsabilidad y castigo: en el discurso jurídico y psicoanalítico (Vol. 1, pp. 39-58). Buenos Aires, Argentina: Letra Viva.), ao indagar sobre o modo como se enlaçam a subjetividade e o discurso da lei, responde que “o sujeito é capturado pela lei sob as redes da culpabilidade” (p. 39). E mais adiante: “desde a psicanálise não é possível pensar na estrutura da subjetividade sem essa categoria onipresente que é a culpabilidade, a tal ponto que, pretender extirpar a culpa do sujeito implicaria dissolver o sujeito” (p. 40). Se é pelas mãos do crime que se inicia o homem dentro de sua organização social, a culpa é um traço inapagável, pois as consequências desse ato criminoso são irreversíveis.

(Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)) dirá então que o pai outrora déspota se tornara, morto, tão forte quanto jamais fora em vida, na medida em que não se faz mais necessário que ele intervenha com brutalidade para impedir o gozo das mulheres proibidas. O que era impedido a partir da sua existência nefasta, os filhos agora se impunham proibindo-se mutuamente, caracterizando assim uma obediência de efeito retardado (Nachträglich). (Mezan, 2006Mezan, R. (2006). Freud, pensador da cultura. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) sintetiza esta passagem nos seguintes termos:

Por outro lado, uma vez saciado com o crime o ódio pelo pai, teriam vindo à tona os sentimentos carinhosos com relação a ele, para compensar a agressividade, como complemento necessário da ambivalência. Assim se teria engendrado o sentimento de culpabilidade, a partir do remorso pela ação cometida, e o pai, uma vez morto, adquirido um poder muito maior do que aquele que pudera dispor em vida: teria se transformado em totem e, depois, em deus. (p. 378-379)

Conjuntamente à proibição do incesto, estabelece-se a proibição de matar o animal totem, substituto do pai, à exceção do festejo do banquete totêmico. Por conseguinte, proibição de matar o pai e de possuir indiscriminadamente as mulheres do bando. Proibição de parricídio e do incesto, justamente as interdições que caracterizam o complexo de Édipo, conforme a arguta compreensão de (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)). Com efeito, ele observa que esses dois tabus são psicologicamente distintos quanto ao seu valor. O primeiro, interdição do incesto, se impõe por questões de conveniência, já que, conforme se pressente, a liberação do comércio sexual indiscriminado com as fêmeas do bando conduziria os filhos à intermitente guerra pela supremacia do desejo de apenas um só frente aos demais. Assim, a interdição do incesto conteria um fundamento prático incontornável, na medida em que: “A necessidade sexual não une os homens, ela os divide” (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913), p. 219-220). Justo por isto, a proibição do incesto salvaguardará a integridade do contrato doravante estabelecido entre os irmãos, pois se cada um deles desejava em seu íntimo ter o que outrora fora do pai, não haveria entre eles quem possuísse a força necessária para tal, residindo nisso a razão de uma espécie de temor indissolúvel: o de ser subitamente aniquilado pelos demais. Por outro lado, a proibição do parricídio repousa inteiramente em razões afetivas, pois o pai havia sido eliminado, situação irreversível que trará em seu bojo a nostalgia pelo pai.

O lugar então reservado ao totem na economia dos desejos dos pactuários é o de ser objeto de veneração, identificação, ódio e culpa. Se o totem ocupa o lugar do pai é para que aqueles possam, junto do animal totêmico, personificar o objeto do seu arrependimento. Mas não apenas isto. Serviria também como suporte para o apaziguamento do sentimento de culpa, pois a morte é algo que não se pode des-culpar: uma das partes da querela já não se encontra em uma posição para quem é possível manifestar o perdão por sua morte. Será necessário que isto se forje simbolicamente por meio do arranjo entre os seus assassinos. (Mograbi e Herzog, 2006Mograbi, D., & Herzog, R. (2006). Sob o signo da incerteza: autoridade simbólica e desamparo. Estudos de Psicologia, 11(2), 127-133.) colocam em relevo esse ponto no qual a lei, a culpa e o laço social se entrelaçam em torno do pai ilimitado em sua força, e por isso temido e admirado.

Com efeito, o totem constitui o vislumbre de uma reconciliação com o pai, de sorte que vemos em seu formato mais bem acabado o exercício da ambivalência: o pai odiado, temível e digno de ser morto é a figura identificatória que todos gostariam de ser, ao passo que também é a figura amada justamente por isto, além do que, em seu poderio exorbitante, os membros da horda encontrariam amparo contra as próprias contentas entre eles mesmos, desde que respeitassem o que pertencia inquestionavelmente ao pai: o gozo absoluto.

Paradoxal Instância: O Eu e o Isso

Passemos agora à análise da instância do supereu conforme é exposta na obra na qual recebe sua definitiva nomeação: O Eu e o Isso, de 1923. Conforme observa (Cardoso, 2002Cardoso, M. R. (2002). Superego. São Paulo, SP: Escuta.), o fato de ali ser enfim nomeado e alçado à categoria de instância psíquica não equaciona o problema do supereu de maneira satisfatória. Muitas formulações ainda serão arroladas, entrecruzando origens e funções diversas para tal instância, consideráveis paradoxos decorrentes, principalmente, da indissolúvel questão entre o endogenético e o exogenético que atravessa toda a obra freudiana.

(Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) constata ainda no início de sua profunda análise do supereu, que muitas formulações “normalizantes” acerca dessa instância psíquica foram sendo propostas em resposta ao caráter paradoxal das formulações de Freud. Lugares comuns que chegam ao ponto de tornar o supereu uma “figura benévola” para a subjetividade, capaz de dar conta da relação do sujeito com a realidade; garantir o bom funcionamento da consciência moral; assegurar a saúde mental do sujeito, pondo-o a salvo das transgressões; e, por fim, poderia satisfatoriamente regular a relação do sujeito com a lei. Formulações equívocas justamente por desconsiderar o aspecto “equívoco” desse conceito, na medida em que ele expressa fortemente a cisão do sujeito contra si mesmo. A autora ressalta que, no que tange a essa instância psíquica e aos desenvolvimentos clínicos e teóricos que ela impõe, pode-se dizer que ela “não é nem individual nem social; não é interior nem exterior; não é própria nem alheia e, mais ainda, não é somente mera identificação ao pai, tampouco uma simples herdeira do complexo de Édipo” (p. 21), o que nos permite pensar no “aspecto equívoco” mencionado acima. Além disso, o supereu não é uma formulação conceitual que se harmoniza satisfatoriamente com todo corpo teórico da psicanálise

O supereu ganha enfim seu nome definitivo no quadro da segunda tópica articulado ao segundo dualismo pulsional. É justamente com uma consideração acerca disto que (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) inicia a obra O Eu e o Isso. Dirá ele que as considerações que serão expostas dali em diante retomam o veio do curso de pensamentos iniciados três anos antes, em Além do Princípio do Prazer. Porém, se as atuais considerações dão prosseguimento ao trabalho lá iniciado, desta vez Freud não recorrerá a empréstimos tomados à biologia, e por isso estaria mais próximo da psicanálise. Tais considerações atuais têm antes o caráter de síntese do que uma especulação. Em suma, retomando a discussão sobre o estatuto da pulsão de morte nesse contexto da obra freudiana, com O Eu e o Isso se trataria de determinar de modo mais preciso o lugar da pulsão de morte a partir do aspecto tópico.

Ao fazer emergir a figura do supereu de seu texto, (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) busca dar forma aos paradoxos que marcam tal instância, paradoxos que talvez sejam frutos do longo cortejo de elementos nos quais o supereu podia ser entrevisto desde os primeiros trabalhos clínicos, de modo que o trabalho de Freud àquela altura não seria fácil, mormente por estar de posse da obscura pulsão de morte. Ora, conforme (Cardoso, 2002Cardoso, M. R. (2002). Superego. São Paulo, SP: Escuta.) observa, resolver tais paradoxos pode comportar um insuperável nível de dificuldade para a psicanálise, na medida em que eles se acham diretamente ligados à própria evolução da teoria freudiana. Para a autora, a questão exogenética/endogenética constitui o impasse maior. A própria conceituação do supereu daria provas desse impasse.

O trabalho de teorização do supereu resultaria de uma dinâmica complexa que implicaria, de início, o concurso de dois pólos: o do interdito (pela via da consciência moral e da autocensura) e do ideal (pela via do narcisismo e das identificações). (Cardoso, 2002Cardoso, M. R. (2002). Superego. São Paulo, SP: Escuta.) então irá propor a introdução de um terceiro pólo na genealogia do supereu. Trata-se mesmo do aspecto mais obscuro dessa instância, o menos diretamente abordado, mas que comportaria os elementos mais fundamentais da questão. Ela se refere à dimensão pulsional do supereu, situada em um plano radicalmente distinto daquele das interdições. Ora, se a teoria freudiana do supereu apresenta esse caráter paradoxal, isto se deveria, em grande parte, a uma transposição dos registros: do registro pulsional passa-se diretamente às interdições morais. Tal tendência comportaria um significativo equívoco teórico.

Por conseguinte, ao ser definitivamente nomeado, faz-se necessário indagar o estatuto da “nova” instância psíquica diante daquela partilha, o que implica em não atribuir ao supereu uma compreensão harmoniosa, como muitas vezes se tem proposto sobre ele. E mesmo que nos deparemos com impasses e paradoxos em relação a esse conceito, eles não nos impedem de avançarmos, assim como a teoria psicanalítica segue avançando justo no trato com impasses e paradoxos.

De início, um primeiro impasse: o uso do termo ideal do eu enquanto sinônimo de supereu. Vejamos:

Os motivos que nos levaram a supor uma gradação no Eu, uma diferenciação em seu interior que pode ser chamada de “ideal do Eu” ou Super-eu, foram explicitados em outros trabalhos. Eles continuam válidos. A novidade que exige explicação é o fato de essa parcela do Eu ter relação menos estreita com a consciência. (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923), pp. 33-34, grifo nosso)

Muito já fora dito sobre esse uso de nomenclaturas diferentes para designar o mesmo objeto. A noção de ideal do Eu já havia feito sua aparição formal na escrita de (Freud, 1914/2010Freud, S. (2010). Introdução ao Narcisismo. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914)) no texto destinado a introduzir o narcisismo. Aparecia como o substituto do narcisismo perdido da infância que decaía em função das críticas e exigências parentais. Diante disso, o ideal do Eu se constituía como um modelo a ser seguido pelo Eu para reaver a perfeição perdida. (Rudge, 1999Rudge, A. M. (1999). Versões do supereu e perversão. Psicologia: Reflexão e Crítica, 12(3). Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721999000300011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) destaca que, com a introdução da noção de supereu, o ideal do Eu é mantido na terminologia freudiana: ora como sinônimo de supereu - como no trecho citado acima -, ora como instância a partir da qual o supereu comparará o Eu, punindo-o caso ele se encontre muito aquém dos ideais.

(Cardoso, 2002Cardoso, M. R. (2002). Superego. São Paulo, SP: Escuta.) afirma que se pode entrever, entre o supereu e o ideal do eu, uma espécie de contraponto. Ambas as noções colocariam em jogo, respectivamente, uma dimensão de ataque pulsional e uma dimensão de simbolização. Esse contraponto estaria marcado também na análise que (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) faz. De maneira geral, esta dirá que o supereu estaria dividido entre duas heranças: entre o Édipo e o isso.

O dito de (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) de que o supereu “é o herdeiro do Complexo de Édipo” (p. 45) já se tornara proverbial, a ponto de se perder de vista que o supereu também é herdeiro do isso, conforme (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) nos lembra. Justo por isto, a autora nos fornece um quadro das categorias paradoxais do supereu em Freud no qual esse conceito se subdivide em sua “versão aniquilante e cruel” e sua “versão mesurada” (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS., pp. 106-107).

A herança edípica do supereu, que irá resultar em sua “versão mesurada”, justifica-se em função de sua formação a partir da identificação com o pai no momento do declínio do complexo de Édipo. Dado o seu caráter de interdição, haveria uma transformação nos investimentos libidinais sobre os objetos parentais em identificação. (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) dirá então que, ao renunciar à satisfação de seus desejos edípicos, a criança interioriza a interdição exterior. Daí então o supereu ser um herdeiro do complexo de Édipo.

Ora, a simplicidade e coerência de tal formulação ocultam alguns problemas. Primeiramente sobre a dimensão inconsciente dessa parte que se diferenciara do eu. Para sanar a dificuldade, (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) irá se apoiar mais uma vez no modelo oriundo da melancolia (Freud, 1915/2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 12, pp. 170-194). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915)) para mostrar a função primordial que o objeto perdido tem na gênese do supereu. Conforme ele pondera, se o objeto edípico deve ou tem que ser abandonado, é natural que uma alteração sobrevenha sobre o eu, que precisa ser descrita justamente como o estabelecimento do objeto no eu: “A semelhança com o processo da melancolia é inconfundível” (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923), p. 62).

(Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) se volta então para a multiplicidade de identificações objetais do eu, tentando compreender como o conflito entre elas pode ser vivido por este de maneira “normal” ou patológica. É nesse ponto que tentará definir uma modalidade específica de identificação particular à formação do supereu. Se por um lado o supereu e por outro o eu se constituem, ambos, a golpes de identificações, como as duas instâncias se distinguiriam? “Isso nos leva de volta à origem do ideal do Eu [neste contexto, ainda não discernido do supereu], pois por trás dele se esconde a primeira identificação do indivíduo, aquela com o pai da pré-história pessoal” (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923), pp. 38-39). Esse não pareceria ser, à primeira vista, o resultado ou a conseqüência de um investimento objetal; seria antes uma identificação direta, imediata, mais antiga do que qualquer investimento libidinal. E acrescentamos: aquém do Édipo. Sem dúvida uma passagem realmente obscura, pois coloca em xeque justamente o primado da herança edípica do supereu.

(Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) considera que em O Eu e o Isso temos a oportunidade de diferenciar esta problemática das identificações e do supereu. Conforme o próprio (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) esclarece, o eu consiste em um “precipitado dos investimentos objetais abandonados,... contém a história destas escolhas de objeto” (p. 36). Logo, seria o resultado da identificação regressiva vinculada à identificação secundária e edípica. Contudo, (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) afirma que o supereu tem sua raiz na identificação primária ou de incorporação intrusiva, formas de se referir à identificação “com o pai da pré-história pessoal”. No primeiro caso, tem-se uma identificação que traz a marca de um processo de assimilação e substituição; no segundo, deparamo-nos com a marca do intrusivo, inassimilável, traumático e fixador: “A primeira é passível de mobilização, a segunda é mais remissa e tende à fixação, chegando a estabelecer, às vezes, um bunker inexpugnável como tipos de caráter” (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS., p. 110). Também (Gomes, 2003Gomes, R. M. M. (2003). A escrita freudiana do pai-sintoma. Revista Ágora, 6(2), 271-288.) colocará em relevo tal questão ao mencionar que, quando Freud fala em incorporação (Einverleibung) é por que estaria ressaltando que se trata de algo propriamente intragável.

Para (Cardoso, 2002Cardoso, M. R. (2002). Superego. São Paulo, SP: Escuta.), a suposição de Freud de que a formação supereu seria o resultado de uma identificação precoce viria contradizer a ideia de ser ele o herdeiro do complexo de Édipo. Ela destaca que, frente à obscuridade da passagem, não podemos deixar de questionar teoricamente a ideia de uma identificação “com o pai da pré-história pessoal”, modalidade de identificação bastante enigmática no texto freudiano. De sua parte, ela também considera que a noção de identificação se revela bastante problemática quando se trata de pensar a gênese do supereu. Irá então considerar que esse apelo de Freud a esse mito da pré-história seria uma importante indicação do caráter arcaico da origem do supereu, além de ser um índice das limitações na teorização sobre o conceito de supereu.

Diante do caráter arcaico da identificação primordial para a gênese do supereu, o impasse teórico oriundo dessa ideia irá se refletir de modo a estabelecer um estreito vínculo dessa instância também com o isso, com o pulsional, como observa (Nakasu, 2012Nakasu, M. V. P. (2012). Avatares da instância crítica: supereu entre o isso e o princípio de morte. Psicologia USP, 23(3), 467-480.), pois se o supereu for efeito de tal identificação e, ao mesmo tempo, herdeiro do complexo de Édipo - identificação secundária com as interdições resultantes de sua dissolução - não se tem como pensar em uma formulação “harmoniosa e unívoca” para tal conceito.

Nesse sentido, impõe-se o aspecto inelutável da instância que - conforme o “modelo” da melancolia - confronta o eu com uma parte cruel de si mesmo. O próprio (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) dirá que os conflitos entre as diferentes identificações em que o eu se distribui não podem ser claramente definidos como patológicos; seriam mesmo estruturais. (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) dirá que não haveria então solução para a crueldade com a qual o supereu assola o eu e a quem, a partir desse sadismo, proporciona um gozo masoquista.

Esse impasse acerca da gênese do supereu e seu estatuto no conjunto das instâncias psíquicas permanecerá na obra de Freud ao longo das décadas de 1920 e 1930, de tal forma que, ao fim de sua obra, ele se limitará a uma espécie de “conciliação” entre esses aspectos contrastantes do supereu. E, diante da limitação de seu modelo teórico, ainda em O Eu e o Isso, (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) se viu diante da necessidade de situar a dimensão pulsional originária do supereu em uma “pré-história pessoal”, assim como conceber os aspectos “punitivos” na dependência dos arranjos identificatórios da dissolução do complexo de Édipo. (Cardoso, 2002Cardoso, M. R. (2002). Superego. São Paulo, SP: Escuta.) dirá então que “a teoria de Freud opera uma espécie de sobreposição dos numerosos pólos implicados na questão do superego - auto-ataque, interdito, ideal - sem que o problema dos pontos de passagem de um a outro seja elaborado” (p. 32).

Conclusão: o “mito” e o prenúncio da instância

Vejamos então como na obra publicada dez anos antes, Totem e Tabu, podemos vislumbrar uma maneira de compreendermos tais aspectos paradoxais do supereu tomando o mito do assassinato do pai enquanto ponto de apoio. Um consistente ponto de intersecção entre ambas referências - o mito do assassinato do pai da horda e o supereu - assoma nesse momento em nossa análise. Esse ponto é de grande valia para nosso intento de esboçar uma compreensão dos aspectos paradoxais do supereu. Estamos nos referindo à culpa enquanto articulador conceitual fundamental para o “mito” e para a instância.

A culpa é a figura chave no universo do supereu e ela se torna uma peça fundamental no mito das origens descrito por (Freud, 1913/2012Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)). Certamente a culpa prefigura os desdobramentos oriundos do estabelecimento de tal instância dez anos depois. A culpa sentida pelos filhos após a morte do pai não é puramente efeito retroativo do amor sentido por ele, mas nela há também o ódio pelo poder do pai e o temor de sua vingança, o receio de que ele retorne para retaliar a injúria sofrida. O ritual totêmico que o honra atesta isso: não apenas enaltecê-lo, mas reviver simbolicamente o triunfo sobre ele. E mais: devorar o totem no festim é incorporá-lo por amor, realizar a identificação, mas também fazer desaparecer os vestígios do terrível animal.

Esse intento de esgotar o pai quando da ocasião do ritual denuncia sua permanência como espectro, já que o ritual tende sempre a se repetir. Permanece um resto do pai primevo impossível de se equacionar, um avesso do pai morto que não se conjura, apesar dos reiterados esforços para apaziguá-lo. (Gomes, 2003Gomes, R. M. M. (2003). A escrita freudiana do pai-sintoma. Revista Ágora, 6(2), 271-288.) afirma que isso que se apresenta como resíduo do pai da horda configura justamente “uma falha na lei” (p. 277), o que será retomado, alguns anos depois, como o conceito de pulsão de morte.

A permanente necessidade de renovação do pacto com o totem ocorre em função dessa parcela terrível do pai; parcela que não se soma ao pai morto enquanto representante da lei, mas antes atesta brechas contidas nela, ainda que seja importante ressaltar que não há solo possível para o supereu senão dentro do sistema totêmico, ou seja, a partir do estabelecimento da ordem simbólica inaugurada a partir da renúncia à satisfação dos desejos de incesto e parricídio. Para que tal “moção maligna” cumpra o seu destino de corroer as formações simbólicas que se estabelecem a partir da lei, a condição prévia é o estabelecimento desta.

Assim, se não há solo possível para a ação do supereu senão dentro do sistema simbólico, então desde o estabelecimento da cultura já está inscrita em seu bojo sua própria fórmula destrutiva. De todo modo, resta a parcela espectral do pai terrível que comanda pela força e que incita à violência. Conforme (Gerez-Ambertín, 2003Gerez-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Cultura Editores Associados e Caxias do Sul, RS: EDUCS.) observa:

Se é necessário renovar o pacto na festa e no luto é porque nem-todo-o-pai-terrível foi transformado em sistema; seu avesso e o temor pelo seu retorno são furos na lei por onde se filtram tanto a identificação ao pai por incorporação, como a intensificação da proibição de matar que pode derivar em um imperativo de direção oposta: Mata! ou Fornica incestuosamente! Assim, resta uma bipolaridade na qual não há negociação do negativo e do maligno do pai com o protetor e o bondoso. O pai que protege e preserva a vida também ataca e leva à morte. Por uma borda möbiana o pai maldito e sanguinário desliza junto com o pai purificado, pura bondade. (p. 53)

Ao mesmo tempo, resta o pai poderoso que, mesmo despoticamente, fascina os filhos a ponto de a ele se submeterem pelo vislumbre de seu poder exorbitante e pela crença depositada nele de que esse poder os manteria a salvo das intempéries da civilização e de seu desamparo correlato. Morto, o pai enquanto representante simbólico da lei faculta a possibilidade de cada um exercer o seu desejo, ainda que de forma regrada e limitada pelo totem, mas também exporia os filhos às contingências de estarem “por conta própria”, tendo apenas o sistema simbólico como mediador. Ou seja, sujeitos a serem constantemente aniquilados uns pelos outros, diante do fato de ser o sistema simbólico limitado na sua tarefa de conter a ordem pulsional. De outra parte, vivo, o pai subjuga, vocifera, agride, goza. Contudo, nesse seu desvario de poder, ele mantém os outros a salvos de si mesmos, pois ele é o único que detém a prerrogativa da força: danação contínua que marca o amparo na dor.

Com efeito, três são os registros do pai que podemos extrair de Totem e Tabu: como animal do sacrifício totêmico; como deus onipotente; e como figura temível, cuja possibilidade de retorno conduz ao horror e incita ao gozo. É a partir desse último que se vislumbra a potência demoníaca do supereu, sua face enquanto “moção maligna”, aquela capaz de conduzir em direção à ordem insensata e que jamais cumpre a função pacificadora. Diante disto, (Cordeiro e Bastos, 2011Cordeiro, N. M. L., & Bastos, A. (2011). O supereu: imperativo de gozo e voz. Revista Tempo Psicanalítico, 43(2), 439-457.) destacam que o supereu surge como uma instância psíquica que não se identifica à lei reguladora; pelo contrário, veicula uma lei insensata, na medida que incita a um gozo sem medida.

À questão acerca da gênese do supereu colocada por (Freud, 1923/2011Freud, S. (2011). O eu e o id. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)) quando do seu estabelecimento definitivo enquanto instância psíquica, a construção mítica exposta em Totem e Tabu parece ser capaz de ensaiar uma resposta “retroativa”. O supereu consiste neste renitente recurso de oposição ao desejo, a tal ponto de, em Inibição, Sintoma e Angústia, (Freud, 1926/2014Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 17, pp. 13-123). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1926)) colocar sob sua égide a mais obscura de todas as resistências, pois ela parece advir da própria consciência de culpa ou de uma obscura necessidade de castigo.

Com efeito, a posição paradoxal dos filhos em relação ao pai desponta enquanto uma profícua imagem da posição do indivíduo diante do supereu, que tem na fórmula de sua “dupla herança” - edípica e pulsional - a estrutura metapsicológica de tal imagem. Ao facultar a emergência da lei, a morte do pai enseja também o retorno sempre insidioso do espectro do pai terrível que incita ao esgotamento do desejo, compreendido aqui enquanto a falta de gozo que suporta a vigência da cultura. Por seu turno, o supereu que emerge do conflito edípico atenta contra o sujeito, culpando-o por seu desejo. Não obstante, essa sua dimensão de ataque não poderia ser empreendida sem o concurso da lei que barra o acesso ao gozo, do qual o supereu se faz agenciador: o supereu que brota do solo da lei se insurge contra ela a fim de esgotá-la, realizando o mandato sempre cruel do pai da horda. De acordo com isso, (Gomes, 2003Gomes, R. M. M. (2003). A escrita freudiana do pai-sintoma. Revista Ágora, 6(2), 271-288.) dirá que a ação do supereu, identificada “como uma voz muda que age como pura enunciação,... se manifesta como patogenia da lei, na medida que pode deixar de ser reguladora e se voltar contra o sujeito, impondo-lhe exigências insaciáveis” (p. 280).

De qualquer maneira, tal esboço parece ser bastante promissor em sua tarefa de enfeixar os rudimentos por vezes tão incompatíveis que marcam o supereu. O que se obtém com o recurso ao mito fundador de Totem e Tabu é uma imagem, mais ou menos acabada, daquilo que se pode tomar enquanto “tarefa” da instância do supereu: promover a lei para além do que o sujeito pode suportar, cedendo ao imperativo do pai terrível.

Totem e Tabu (1913/2012) se desdobra a partir de então na obra freudiana, tendo em vista a miríade de questões que comporta. Ao mesmo tempo em que condensa vários dos temas trabalhados até aquele momento conforme vimos acima, sua abordagem das origens inaugura e formaliza um novo conjunto de indagações que a partir de então se tornam fundamentais para o desenvolvimento da psicanálise. E serão justamente os desdobramentos teóricos dessa obra que, cremos, podem servir à guisa de “esquema conceitual” de um surpreendente poder heurístico para toda a abordagem freudiana, tanto no registro da clínica quanto no mal-estar da cultura.

Referências

  • Cardoso, M. R. (2002). Superego. São Paulo, SP: Escuta.
  • Cordeiro, N. M. L., & Bastos, A. (2011). O supereu: imperativo de gozo e voz. Revista Tempo Psicanalítico, 43(2), 439-457.
  • Freud, S. (1979). Acciones Obsesivas y Prácticas Religiosas. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (José L. Etcheverry, trad., Vol. 9, pp. 97-110). Buenos Aires, Argentina y Madrid, España: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1907)
  • Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2015
  • Revisado
    04 Set 2015
  • Aceito
    09 Nov 2015
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