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Editorial

EDITORIAL

Em outubro de 2012, diretores de seis unidades da Universidade de São Paulo redigiram uma carta aberta destinada ao reitor e expressando sua preocupação com a política adotada pelo Sistema Integrado de Bibliotecas - SIBI-USP - de substituir as assinaturas de periódicos impressos por assinaturas de periódicos exclusivamente em formato eletrônico. Esta decisão, argumentam, introduz o risco de que o acesso a tais periódicos seja interrompido, fique suspenso ou seja mesmo cancelado, em consequência de fatores que, em parte, estão sob responsabilidade da universidade e, em parte, fogem ao próprio controle da instituição. A interrupção da assinatura das bases de dados que permitem o acesso a tais publicações poderia impedir a consulta, por parte dos pesquisadores, a todos os periódicos assinados desde 2011, quando esta política começou a ser implantada.

Esta preocupação, porém, não diz respeito apenas ao meio de difusão do conhecimento científico - digital ou impresso - e tem raízes mais profundas do que a garantia de acesso seguro às informações científicas de ponta. Ela relaciona-se com o problema amplo da substituição de uma forma de difusão da informação - o livro impresso - por outra, baseada na transmissão eletrônica de informações e consolidada pela difusão da Internet e pela World Wide Web. Esta verdadeira revolução tecnológica produziu impactos em diversos aspectos da vida contemporânea e tornou-se parte essencial do espírito de nosso tempo, conduzindo a especulações frequentes a respeito da substituição do livro impresso pelo livro digital e à mudança drástica das funções desempenhadas pelas bibliotecas no conjunto da sociedade. Conquanto ainda seja cedo para aquilatar sua verdadeira dimensão, a ninguém causa espanto que ela seja comparada à invenção do tipo mecânico móvel por Gutenberg. Isso significa que a representação social deste fenômeno é a de que tal tecnologia não irá retroceder em importância e de que deverá produzir impactos comparáveis à da própria invenção da imprensa.

Mas esta aparente inevitabilidade não esconde os enormes dilemas que esta tecnologia pode trazer. Há muitos caminhos abertos no processo de sua consolidação e a escolha destes caminhos depende de fatores sociais, políticos, econômicos e históricos que escapam ao controle de qualquer agente social específico. Há, em princípio, uma forte tendência que conduz à democratização do acesso e produção da informação e a inúmeras possibilidades de participação direta da população em decisões tomadas por órgãos governamentais, por exemplo. Mas há igualmente um risco advindo do controle da produção e disseminação de informação por governos ou grandes corporações que atuam como monopólios ou oligopólios e se contrapõem a este potencial democrático do sistema mundial de informações. As empresas que controlam as redes sociais, por exemplo, detêm muitas informações não apenas sobre a biografia de seus usuários mas também sobre as relações sociais que estabelecem e não está claro o grau de proteção que estas informações possuem frente a agências de governo e empresas patrocinadoras. Além disso, as decisões recentes tomadas por parte dos grandes jornais e revistas mundiais de fechar apenas para assinantes o acesso às informações veiculadas on-line gera um cenário em que, de forma simplificada, a maioria da população irá consultar informações geradas por blogs ou sites pessoais, enquanto os assinantes terão acesso a informações produzidas pelas grandes agências internacionais de jornalismo. Os mais importantes mecanismos de busca na Internet já geram, como resultado de uma pesquisa, uma lista de páginas que corresponde ao perfil suposto ou conhecido do usuário, de modo que os resultados apresentados para uma pesquisa realizada por um usuário podem ser significativamente diferentes dos resultados apresentados para uma busca realizada por outro usuário, e isso com base em seu histórico de navegação e em seu perfil de consumo. Além disso, alguns governos têm mostrado que é possível exercer controle rígido sobre o tráfego de informações mesmo em situação de grande crescimento econômico e avanço tecnológico, o que estabelece um limite claro à utopia libertária ("hackers are naturally anti-authoritarian", na afirmação de Eric Steven Raymond) que alimentou os sonhos de alguns dos pioneiros da Internet. Por fim, enquanto as informações contidas em documentos em papel podem ser mantidas seguramente por muitos séculos (em alguns casos, milênios) sem perdas substanciais, não se sabe ainda qual a melhor forma de preservar a informação digital, havendo, até o momento, apenas soluções paliativas.

Desta forma, os problemas vivenciados pelas universidades constituem um caso de uma questão mais ampla envolvendo a expansão acelerada da tecnologia digital. Por um lado, as soluções para tais problemas dependem de avanços tecnológicos que permitam, por exemplo, lidar com a deterioração do conteúdo digital. Por outro, a relação entre sociedade e tecnologia apresenta caráter dialético, e os riscos presentes nas transformações tecnológicas não se explicam pela tecnologia per se. Isso porque são justamente as possibilidades e os riscos presentes na relação entre a sociedade e a tecnologia digital em geral que também se verificam na produção, disseminação e consumo da informação digital de caráter científico. Há aqui também inúmeros caminhos possíveis e que indicam graus variados de abertura ou fechamento para a disseminação democrática do conhecimento científico. É sem dúvida louvável o esforço que universidades e governos têm feito no Brasil para permitir, por meio de contratos coletivos, o acesso ao conteúdo dos principais periódicos do mundo por grande parte da comunidade científica brasileira. Mas isso apenas contorna o problema do acesso soberano ao conhecimento. O país deu passos importantes ao desenvolver plataformas que garantem o acesso público, gratuito e livre ao conteúdo das pesquisas científicas realizadas no país, em grande medida com financiamento público, e este esforço é muito bem representado por iniciativas consolidadas como a SciELO, a BIREME e o PEPSIC. Nestes casos, os problemas acima apontados são alterados, em seu aspecto político, pelo fato de o conteúdo aí produzido poder ser compartilhado e armazenado sem restrições, permitindo que os pesquisadores e estudiosos tenham acesso perene ao resultado dos trabalhos publicados, dentro dos limites técnicos existentes. As questões fundamentais envolvendo tais preocupações, assim, não provêm apenas das dificuldades técnicas envolvidas, mas dos problemas políticos implicados na extrema concentração existente no mercado internacional dos periódicos científicos. E o caminho para solucionar este problema parece passar pelo investimento direto no desenvolvimento de tecnologias de difusão do conhecimento científico, esforço que o país já realizou, mas que precisa ser disseminado e aprofundado.

Encontramo-nos atualmente em um momento de transição tecnológica. A substituição do meio impresso de difusão do conhecimento científico pelo digital não se completou inteiramente, e não há indícios de que isso realmente venha a ocorrer, do que dão prova os expressivos números que apontam para o crescimento da produção de livros impressos em todo o mundo. Neste cenário, não faz sentido abrir mão inteiramente da aquisição de periódicos impressos e parece mais adequado adotar alternativas conservadoras que avancem para o domínio das tecnologias digitais de geração e disseminação do conhecimento sem esquecer o valor que as obras impressas ainda possuem. No mesmo caminho, mostra-se prematuro para os periódicos brasileiros adotar a saída mais definitiva de abrir mão de suas versões impressas. Estas, no cenário que se apresenta, possivelmente manterão sua importância, havendo mudanças, porém, em suas funções: de veículos privilegiados para a divulgação do conhecimento científico, passarão a representar um esteio da versão eletrônica, onde se dará de fato a comunicação do periódico com seu público.

Gustavo Martineli Massola

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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