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Paralelismo entre história e psicogênese da escrita do ritmo musical

Parallelism between history and psychogenesis of the writing of musical rhythm

Resumos

A pesquisa tem como objetivo traçar um paralelismo entre o desenvolvimento histórico de um conceito, o de escrita do ritmo musical, na história da música e na psicogênese da notação musical. Ao mesmo tempo esta pesquisa contesta a visão de paralelismo entre a ontogênese e a filogênese, jamais proposta por Piaget. Esta pesquisa se apóia na redefinição das etapas estipuladas por Piaget para o desenvolvimento de um conceito, abandonando a tradicional sucessão de quatro estágios divulgada hoje em dia. O reconhecimento da seqüência de etapas intraobjetal, interobjetal e transobjetal, que acontece tanto na história das ciências como na psicogênese desses conceitos, representa a descrição de um processo no qual os mecanismos pelos quais o desenvolvimento cognitivo e a construção conceitual se realizam.

Epistemologia genética; Escrita; Ritmo; Música; Desenvolvimento cognitivo


The purpose of this research was to draw a parallel between the development of a concept, that of written musical rhythm within the history of music and the psychogenesis of musical notation. This article contests the idea of a parallel between ontogenesis and psychogenesis, which was never proposed by Piaget. This study was based on the redefinition of the levels proposed by Piaget for the development of a concept and abandoned the traditional sequence of Piaget's four stages, which are currently more diffused. The acknowledgement of the continuous intraobjectal and transobjectal levels, which happens in the history of science and in the psychogenesis of each concept, represent the description of a process in what the mechanisms of the cognitive development and the conceptual construction happen.

Genetic epistemology; Handwriting; Rhythm; Music; Cognitive development


José Nunes Fernandes

Universidade do Rio de Janeiro – Uni-Rio

A pesquisa tem como objetivo traçar um paralelismo entre o desenvolvimento histórico de um conceito, o de escrita do ritmo musical, na história da música e na psicogênese da notação musical. Ao mesmo tempo esta pesquisa contesta a visão de paralelismo entre a ontogênese e a filogênese, jamais proposta por Piaget. Esta pesquisa se apóia na redefinição das etapas estipuladas por Piaget para o desenvolvimento de um conceito, abandonando a tradicional sucessão de quatro estágios divulgada hoje em dia. O reconhecimento da seqüência de etapas intraobjetal, interobjetal e transobjetal, que acontece tanto na história das ciências como na psicogênese desses conceitos, representa a descrição de um processo no qual os mecanismos pelos quais o desenvolvimento cognitivo e a construção conceitual se realizam.

Descritores: Epistemologia genética. Escrita. Ritmo. Música. Desenvolvimento cognitivo.

Existe interesse na notação musical para a educação musical? Muitos afirmam que não. Pesquisadores, como o inglês Terry (1994), posicionam-se contra a obrigação da leitura da notação musical do Currículo Nacional Inglês. Ele diz que essa leitura "só tem valor para executantes especialistas os quais queiram passar grande parte de suas vidas profissionais estudando ou interpretando a literatura musical existente" (p.110), e que a notação musical está tendo menor importância hoje, com a gravação e o uso de recursos eletrônicos e tecnológicos para o registro "direto" do som e com a não intervenção dos símbolos visuais. Se a notação não é importante no ensino da música, então por que ela foi e é importante para o músico? Por que houve um processo histórico de constituição da notação musical?

Colocaremos essa questão de lado, já que a decisão ou não do uso da notação musical no ensino da música necessita ser esclarecida pela investigação sobre a gênese dessa escrita. Haveria paralelismo entre a notação historicamente construída e a produzida pela criança? Ou seja, a psicogênese da notação do ritmo musical teria ou não relação direta com a gênese histórica da notação? Aqui emerge, imediatamente, um problema: o que se desenvolve? A resposta imediata é: "conteúdo". No entanto, sabemos que são os "instrumentos e mecanismos" cognitivos que se aplicam a qualquer conteúdo (daí serem formais). A passagem de um estágio para outro constitui o problema central da epistemologia genética. Assim, ao se comparar o desenvolvimento social e psicológico das notações musicais, verificamos que os mecanismos e os instrumentos são determinados por uma razão social: a necessidade (prática) da uniformização da escrita do ritmo musical. Será que essa necessidade se apresenta para as crianças? Caso a resposta seja positiva, então seria preciso definir em que condições essa necessidade se impõe; se for negativa, então como explicar que ocorra uma psicogênese da escrita do ritmo musical?

Instrumentos do conhecimento: História e Psicogênese

A história da ciência nos informa que a formação do conhecimento baseia-se na significação epistemológica, só sendo relevante a análise da evolução de um conceito se tomarmos em conta o papel dos precursores no estabelecimento de um novo sistema. Sob esse ponto de vista, torna-se essencial a caracterização dos grandes períodos sucessivos do desenvolvimento de um conceito ou de uma estrutura. Nessa análise, devemos considerar também as acelerações/regressões e as ações dos precursores. Nesse ponto, Piaget e Garcia (1984) afirmam que é comum negligenciarmos tais aspectos também na psicogênese, já que, em ambos os casos, história e psicogênese, cada estágio ou período inicia-se com a reorganização do herdado dos estágios anteriores. Isso compromete a afirmação, comum na psicogênese, de que os estágios superiores não estão ligados aos estágios elementares.

A análise comparativa entre estudos histórico-críticos e psicogenéticos conduz ao reencontro (em todos os níveis) de instrumentos e mecanismos similares. Esse fato nos leva a identificar os mesmos problemas gerais, comuns a todo desenvolvimento epistêmico. O problema mais geral encontrado aqui refere-se, por um lado, à determinação do papel da experiência, e, por outro, das construções operativas do sujeito.

Tanto na história como na psicogênese, um ponto comum pode ser identificado nas relações entre o sujeito e os objetos de seu conhecimento: o estabelecimento dos tipos de instrumentos cognitivos que o sujeito utiliza para resolver os problemas, de onde surgem e como são elaborados.

Uma dualidade é encontrada aqui, tanto na história como na psicogênese: na história, há dualidade dos instrumentos comparativos (correspondências que o sujeito faz) e dos instrumentos transformadores (construções operacionais), enquanto que na psicogênese, os instrumentos "iniciais não são nem a percepção nem a linguagem, e sim os esquemas e ações sensório-motoras" (Piaget & Garcia, 1984, p.19) que só muito tempo depois se interiorizam em operações do pensamento (se verbalizam em conceitos). Cada esquema de ação é fonte de correspondências na medida em que elas vão se aplicando a novos objetos/situações, resultando em transformações e novas possibilidades de ação. Aqui se comprova a existência de tal dualidade, tanto na história como na psicogênese, desde os estágios elementares até os superiores.

Construção e preformação

Em que medida um conhecimento é preformado em um conhecimento precedente, e/ou em que medida ele surge de uma construção efetiva? Não se defende aqui nem o inatismo nem a construção, mas sim um sistema de auto-regulação - não a herança. Com isso podemos afirmar que o conhecimento nunca é um estado e sim um processo influenciado pelas etapas precedentes. Daí a importância da análise histórico-crítica que nos mostrará a necessidade evolutiva de determinado conceito em um campo dado, e da análise psicogenética que nos mostrará a maneira em que essa necessidade se constitui desde as formas mais simples. Tal análise resultará na eleição da construção de hipóteses construtivistas e/ou preformativas.

Piaget e Garcia (1984, 1987) negam a preformação, demonstrando dois fatos. Primeiro, que os resultados obtidos por diferentes caminhos implicam em diferentes transformações; segundo, que as coordenações das transformações só são possíveis a posteriori e não podem ser preformadas.

Os únicos fatores realmente presentes, tanto na história como na psicogênese, são de natureza funcional e não estrutural. Eles estão vinculados à assimilação e à acomodação do que é novo às estruturas precedentes, e com a acomodação dessas últimas às novas aquisições realizadas (Piaget & Garcia, 1984, 1987). Esse aspecto funcional do desenvolvimento cognitivo explicita a "relativa estabilidade das estruturas adquiridas, o processo de desequilibração de uma estrutura e o processo de reequilibração do sistema em uma estrutura de ordem superior." (Piaget & Garcia, 1984, p.242). A passagem de uma estrutura para outra é descontinua. Existe, pois, uma lógica interna das reestruturações; elas não são um salto no vazio. A continuidade funcional proporciona uma generalidade muito maior dos caracteres do conhecimento científico, uma inconsistência relacionada ao próprio mecanismo e a um devenir constante e contínuo (incluindo as rupturas, desequilibrações e reequilibrações). Isso não significa, entretanto, que devamos considerar somente o desenvolvimento do sujeito em relação ao objeto, mas sim, ao contrário, levar em conta que esse último está imerso em um contexto social com relações dos tipos: 1) mediatizada pelas interpretações que provêm do contexto social do sujeito; 2) preestabelecida socialmente da maneira pela qual o objeto funciona em relação a outros objetos ou com outros sujeitos. Nesse processo, nem o sujeito e nem o objeto apresenta neutralidade. Este é o ponto exato de intersecção entre conhecimento e ideologia (Piaget & Garcia, 1984).

Isso faz com que, tanto na história da ciência como na psicogênese, seja encontrada a repetição de formas similares de aquisição dos conhecimentos, qualquer que seja o nível. Neste fato, reside a explicação do porquê da existência dos mesmos mecanismos cognitivos (em ação) em todos os períodos da história e nas crianças de todos os grupos sociais, independente da forte influência social. É necessário diferenciar os mecanismos de aquisição de conhecimento que o sujeito dispõe e a forma de apresentação do objeto a ser assimilado. A segunda é modificada pela sociedade, mas os primeiros independem dela. A sociedade influencia na significação dada a um objeto, em um momento, no contexto de suas relações com outros objetos. A maneira pela qual essa significação é adquirida depende exclusivamente dos mecanismos cognitivos do sujeito e não de fatores sociais, ou seja, a maneira pela qual o indivíduo assimila depende dele mesmo, mas o que ele assimila depende, ao mesmo tempo, de sua capacidade e da sociedade. Esta última lhe fornece o componente contextual da significação do objeto.

Desenvolvimentos sociogenéticos relativos à evolução das idéias diretivas, conceitualizações e às teorias, no campo da escrita do ritmo musical

Tratando exclusivamente do caráter histórico desse conceito - escrita do ritmo musical -, buscaremos agora determinar os mecanismos que atuam cada vez que se passa de uma etapa para outra na evolução dos conceitos e teorias referentes à escrita do ritmo musical.

A notação musical é a imagem gráfica análoga ao som musical que contém uma série de indicações (também visuais) para a execução. É, sem dúvida, um campo muito vasto, tendo em vista sua complexidade tanto em termos de variações nacionais ou regionais da escrita rítmica, como em termos temporais. A discussão só pode ser estabelecida porque existem documentos escritos (fontes) comprovando a história/evolução da escrita musical. Para falarmos em notação musical, devemos lembrar que ela está ligada a sistemas formalizados de signos usados entre músicos, assim como a sistemas de memorização e ensino da música com sílabas, palavras ou frases. Cada sociedade desenvolveu, ou não, um sistema de escrita musical. Os povos que utilizaram a escrita musical foram as comunidades brancas (europeus) que desenvolveram sistemas de escrita da língua falada; no caso da África, a maioria das comunidades negras, mesmo tendo um complexo sistema de discurso musical, não desenvolveu sistemas de escrita musical.

A origem da escrita neumática11A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus, que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um "gesto"., da qual derivam-se os sinais musicais usados hoje em dia, está possivelmente ligada à notação sangaliana cujos elementos foram todos tomados dos sinais de acentuação e pontuação usados nos textos literários da antigüidade e da Idade Média (Cardine, 1989). A hipótese mais aceita pelos estudiosos do assunto é a de que a origem da escrita neumática está ligada aos acentos da palavra escrita (Cardine, 1989; Sadie, 1980; Strunk, 1981), principalmente no que se refere ao sistema de acentuação da gramática Alexandrina (Sadie, 1980).

Os neumas primitivos não eram escritos em linhas, mas sim no espaço acima do texto (Figura 1). Com o tempo, os neumas passaram a ser escritos mais próximo ou mais longe do texto, iniciando o processo de intenção de altura mais precisa na notação (Figura 2). O surgimento de uma linha-guia viria inaugurar o aparecimento de várias outras linhas, fixando as alturas (Figura 4).

Figura 1
: Neumas ingleses, "Burial Office", c.1000, Winchester. Fonte: (1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan.
Figura 2
: Neumas Aquitanianos: "Gradual", início do séc.XI, St. Michel-de-Gaillac. Fonte: (1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan.
Figura 3
: Quadro de neumas. Fonte: Cardine, Dom Eugène. (1989) Primeiro Ano de Canto Gregoriano e Semiologia Gregoriana. São Paulo: Attar Editorial/Palas Athena.
Figura 4:
Melodia Gregoriana. Fonte: Cardine, Dom Eugène. (1989) Primeiro Ano de Canto Gregoriano e Semiologia Gregoriana. São Paulo: Attar Editorial/Palas Athena.
Figura 5
: Parte extraída do quadro de divisões e subdivisões de sistema de Philipp de Vitry (Ars Nova) séc. XIV. Fonte: Scliar, Esther (sd). Ritmo. Rio de Janeiro, manuscrito.
Figura 6
: Quadro de subdivisão renascentista. Fonte: (1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan.

Mas o ritmo continuava mais ligado ao texto e, com o aparecimento da notação neumática quadrada21A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus, que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um "gesto"., a notação neumática primitiva (sangaliana) perdeu a função quando a melodia passou a ser precisamente registrada na pauta, usando dois fragmentos silábicos muito simples, transformados em seus elementos de base: um do acento agudo (que se tornou virga = nota aguda), e o outro do acento grave que se tornou punctum (indicador de nota grave), transferidos para a notação quadrada e para a pauta (Cardine, 1989) (Figura 3).

Depois de seu aparecimento no século IX, a escrita neumática sofreu modificações e foi também identificada com características diversas em regiões distintas. Muitas escritas neumáticas não podem ser descritas pois não se sabe o que cada signo significa. Somente quando os neumas passaram a ser escritos nas linhas (século XII, com a notação quadrada), foi possível interpretar mais precisamente a notação. A notação neumática baseia-se na rítmica inerente da prosódia, de gestos manuais e de "letras significativas", as quais poderiam significar aspectos rítmicos, comumente usadas entre os séculos IX e XI (Cardine, 1989; Sadie, 1980).

Guido D'Arezzo desenvolveu, já no século X, além de um sistema melódico definido por sílabas hoje conhecidas como notas musicais, um sistema rítmico detalhado que se fundamentava no ritmo do verso. Mas tornava-se cada vez mais clara a necessidade de sistematizar as durações. Guido D'Arezzo, no seu Micrologus, afirmava que "é necessário saber onde uma duração longa ou curta deve ser usada."(Apud Sadie, 1980, p.812).

Na música polifônica do século XII, principalmente no organum melismático, o ritmo era muito livre (imprecisão das durações), proporcionando desencontros entre as vozes e superposições não previstas ou desejadas, gerando o aparecimento da música mensurata, na qual a duração dos sons e silêncios passou a ser regulada. Podemos verificar que a notação neumática evoluiu de signos imprecisos para uma precisão relativa, em termos de melodia, até chegar a uma maior precisão: a pauta musical. Entretanto, o ritmo estava embutido num "todo" que era regido pelo texto, já que não se tratava somente de "amoldar simplesmente à acentuação das palavras e de seguir o ritmo natural (...) trata-se então do espírito do texto mais que sua matéria, mas, definitivamente, é sempre o texto que inspira a melodia." (Cardine, 1989, p.57).

Com a polifonia, ocorreu uma sofisticação estilística, devido ao incremento da improvisação, necessitando-se de uma definição maior das relações rítmicas entre as vozes individuais. Paris (Catedral de Notre Dame) foi o centro musical de maior importância no estabelecimento de padrões rítmicos regulares definidos em uma pulsação constante, mas ainda muito ligada às exigências textuais. Evidencia-se aqui o aparecimento de uma nova significação rítmica para os símbolos sonoros. Quando ocorre o aparecimento de uma nova notação rítmica, evidencia-se uma "crise rítmica." (Sadie, 1980).

Os modos rítmicos compreendiam seis padrões que se baseavam no ideal de expressão dos melismas do organum, os quais eram não-textuais. O princípio da divisão ternária, derivado do perfectio do número 3, foi mantido. No século XIII, a liberdade de movimentação das vozes e a liberdade mensural podem ser percebidas na "enorme possibilidade de subdivisão e conseqüente aumento da independência rítmica das vozes individuais." (Sadie, 1980, p.813). Os modos rítmicos eram, muitas vezes, superpostos, principalmente, o 1º, 2º e 3º modos. Neste mesmo século, Marchetus di Padova (Marchetto da Padua) introduz signos referenciais importantes na evolução da paleografia do Ocidente (Scliar, s.d.; Strunk, 1981). Philipp de Vitry, no seu tratado Ars Nova, desenvolveu o sistema de Padova, criando símbolos específicos para as durações e suas divisões e subdivisões binárias e ternárias. A versatilidade rítmica (Ars Nova do século XIV) caracterizou-se por divisões quantitativas diversas, pela alternância métrica, pela poliritmia31A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus, que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um "gesto". e polimetria, e pela variação do valor normal das figuras (coler), com a mudança de coloração (de preto para vermelho e, posteriormente, do vermelho para o branco), gerando o que se chamou de "white notation." (Sadie, 1980, p.814). No século XV, as figuras em forma de losango começaram a dar espaço às figuras de forma arredondada (v.Figura 7), por causa da dificuldade de desenhar manualmente losangos com rapidez.

Figura 7
: Score Notation, c.1600, Parte do "Coro Primo", Anônimo. Fonte: (1980). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan.

Entre os séculos XV e XVI, desenvolveu-se um sistema baseado em proporções aritméticas. Havia também uma referência para a pulsação, o tactus, que se vinculava ao caráter da música, já que inexistiam os andamentos. Mesmo assim, os valores das figuras não eram totalmente independentes, sendo necessário analisar o conjunto, pois diferentes proporções eram agrupadas. Existiam também símbolos para diminuição e aumentação, manipulando-se o valor do tactus.

A complexidade decorrente do uso das proporções fez com que Tomas Morley, no século XVI, criasse a organização dos compassos (Scliar, s.d.), o que correspondeu aos efeitos do acento condicionado. Isso ocorreu porque na polifonia, com a combinação de melodias independentes, ressaltava-se também a sua independência rítmica. Motivava-se, pois, a não-coincidência dos apoios. Além disso, o processo imitativo entre as vozes, um tipo de unidade da música polifônica, e a busca da consonância, na maioria das vezes, não permitiam que as imitações se iniciassem no mesmo lugar da voz anterior, ocorrendo assim um deslocamento da tésis.

No barroco inicial, Michael Praetorius, na segunda metade do século XVI, introduzia o seu próprio sistema, que dividia a música em harmônica e métrica (Sadie, 1980), sendo o ritmo, para ele, pura divisão matemática. Via-se, nessa época, a proliferação da música instrumental com o corrente uso do ostinato e do baixo contínuo, e do uso excessivo de ornamentos, deixando o estilo declamatório somente para a voz superior. Iniciava-se, pois, a homofonia - uma melodia acompanhada por acordes e um baixo contínuo. O impulso da dança deu vida ao ritmo na era barroca (as sonatas da câmera, as suítes, tinham ritmos inspirados na dança). A padronização do ritmo das danças identificava-se com a padronização dos modos rítmicos medievais. Em contraste com a música influenciada pela dança, que era regulada pelos acentos rítmicos, os compositores polifônicos conservaram um estilo rítmico isócrono. O deslocamento de uma série rítmica, simples em todos os registros, tornou-se característica das polifonias barrocas, estabelecendo um pulso regular (em termos de duração e intensidade). Sistematizava-se, então, uma complexa notação do ritmo totalmente independente.

Desenvolvimentos psicogenéticos relativos à escrita do ritmo musical nas crianças e seu paralelo com o seu desenvolvimento na história

Segundo Beyer (1988), uma das condições para a fundamentação de uma teoria cognitiva da Educação Musical seria fazer um paralelo entre a ontogênese e a filogênese musical. Piaget e Garcia (1984) dizem que isso só é possível em alguns campos do conhecimento e, dentro deles, com alguns conceitos específicos. Isso implica num paralelismo que não pode ser generalizado para toda a história da música (seus diversos campos e áreas), mas apenas ao paralelismo entre a evolução de alguns conceitos musicais e o seu desenvolvimento psicogenético. Para que um paralelismo seja estabelecido, é fundamental, em primeiro lugar, localizar e apresentar documentos que comprovem e expliquem as etapas do desenvolvimento, seja no campo da história, seja na psicogênese de um conceito específico.

Quanto ao conceito de escrita do ritmo musical, comprova-se, pelos documentos existentes, que havia uma imprecisão inicial, seguida de uma apuração dessa imprecisão, até alcançar padrões rítmicos precisos e definidos. Isso ocorre também com a escrita da língua falada, o alcance de uma maior complexidade em termos de precisão (Azenha, 1993; Ferreiro, 1990). Baseados nos estudos de Bamberger (1990), tentaremos levantar algumas questões referentes ao desenvolvimento psicogenético do conceito de escrita do ritmo musical41A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus, que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um "gesto". e seu possível paralelismo, ou não, com o desenvolvimento histórico desse conceito.

Apesar de todo ser vivo estar cercado e entranhado por/de ritmos (coração, respiração, andar), a notação das durações foi muito tardia na história da música e da escrita musical. Na história, a rítmica inicial usou como referencial a língua falada - transferência do ritmo do texto para a música -, uma dependência inicial que foi transmitida para a escrita da música (e do ritmo), fazendo com que os sinais aparecessem primeiramente sobre o texto, adquirindo depois precisão e independência progressivas. Como isso se relaciona com o desenvolvimento psicogenético do conceito?

Bamberger (1990) mostra que crianças de 4-5 anos produzem um tipo de "garatujas rítmicas" (Figuras 8 e 9), consideradas como "formas primitivas das quais emergem todas as outras." (p.103). Parece haver necessidade de reproduzir no papel os "movimentos das mãos e dos braços que produzem as batidas" (p.103) (neste caso a escrita referia-se a uma série de palmas), não fazendo distinção entre a ação e o som produzido. A mudança de centração, do movimento contínuo de bater, para os "efeitos discretos", é um importante elemento no desenvolvimento da escrita do ritmo musical. Muitos pesquisadores, segundo Bamberger (1990), já estudaram e descreveram as "garatujas"51A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus, que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um "gesto". feitas por crianças, inclusive menores, de objetos e formas geométricas, e Ferreiro (1990), das garatujas da palavra.

O primeiro caráter (...) é o de um simples ritmo, a expressão mais elementar do grafismo de uma criança é o movimento da mão sobre o papel, e é desse jogo rítmico de movimentos que irão se diferenciar as primeiras formas do estádio I. (Piaget & Inhelder apud Bamberger, 1990, p.105).

Figura 8
: Tipologias de notações de crianças. Fonte: Bamberger, J. (1990) "As estruturações cognitivas da apreensão e notação de ritmos simples". In Hermine Sinclair (Org). A produção de notações na criança. Linguagem, número, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez.
Figura 9
: Tipologias de notações de crianças. Fonte: Bamberger, J. (1990) "As estruturações cognitivas da apreensão e notação de ritmos simples". In Hermine Sinclair (Org). A produção de notações na criança. Linguagem, número, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez.

No desenvolvimento histórico, a notação também se inicia de forma associada ao gestual dos braços66"Constata-se, então, a preocupação de se utilizar vários meios gráficos para exprimir a variedade de notas. Na base do sistema, manifesta-se a intenção de traduzir uma melodia por um gesto e de fixar esse gesto sobre o pergaminho: de fato, o neuma é um 'gesto escrito.'" (Cardine, 1989, p.107) e, conseqüentemente, ao som (melodia + ritmo), e podemos dizer que de forma "garatujal", tendo em vista que a notação originou-se de pequenos neumas rabiscados em cima do texto, imprecisos e confusos. Mas o ponto de coincidência não é a imprecisão garatúgica, e sim o mecanismo de ambos os casos, da não-separação entre o som e o movimento contínuo de produção deste som.

Dessa maneira, parece existir, sob certas condições, um processo de desenvolvimento psicogenético semelhante ao histórico que merece ser melhor compreendido. Esse estudo centra-se no esclarecimento baseado nas investigações conduzidas por Piaget e outros, mostrando que o processo apoia-se em uma estruturação da cognição das ações (musicais) dos sujeitos. As ações humanas podem ser separadas em dois aspectos: os causais ou efetivos e os antecipatórios ou inferenciais. A ação musical, então, pode ser compreendida como o momento da execução e o momento da antecipação do que se executará. A notação musical, dessa maneira, envolveria o segundo aspecto: antecipa-se o que se executará e define-se os modos de execução.

Na investigação psicognética, uma segunda fase da notação pode ser caracterizada: as formas "figural" e "representação métrica", comuns em crianças entre 6-7 anos, mostram o início de uma capacidade de reflexão sobre as suas próprias ações e de diferenciação de suas características (Bamberger, 1990). Ao contrário da fase anterior, a notação representa o número correto de sons (eventos) e inclui a regulação dos movimentos, aproximando-se mais da descrição do ritmo apresentado, representando um grupo e sua repetição (tipos figural 1 e 2) e a separação dos eventos sutis do movimento contínuo da ação. Cada desenho representa um evento, uma unidade, mas já apresenta o início da aparição de unidades referentes à pulsação na criança. A modificação, em relação ao estágio anterior, vai desde a separação da ação e do som, até uma maior especificação das unidades apresentadas. Essa nova etapa apresenta uma importante mudança: a saída de um estado indiferenciado de todos os elementos e o início do desmembramento de um ritmo contínuo, com separação entre o movimento (ação) e as partes internas.

Outra importante mudança é apresentada nessa etapa, pois, segundo Piaget e Inhelder (Apud Bamberger, 1990, p.107), essa escrita contém

... em estado indiferenciado todos os elementos que, ulteriormente, constituirão o desenho das retas, das curvas, dos ângulos, embora o sujeito seja ainda incapaz de extraí-las ou abstraí-las do ritmo do conjunto (...) O problema apresentado à criança consiste, na verdade, em realizar uma forma definida a partir de movimentos ritmados, oscilantes eles próprios entre ziguezagues vagos e formas cíclicas. Conseqüentemente, mesmo para fazer um círculo, trata-se de interromper o ritmo contínuo, aproveitando suas voltas ou seus fechamentos espontâneos.

Mesmo falando da forma e não da escrita de ritmos percebidos, as afirmações de Piaget e Inhelder confirmam esse acontecimento, também em relação ao ritmo musical, pois em ambas, nessa etapa, as crianças parecem estar em um "'processo de regulação' na sua capacidade de interromper e agrupar" (Bamberger, 1990, p.107), de desmembramento de um ritmo contínuo, com separação entre o movimento (ação) e as partes internas (Figura 9).

Na psicogênese, os estudos têm demonstrado que, em crianças acima de 7 anos, o aparecimento de outro tipo de notação, chamada de "figural 2", inclui claramente elementos das notações anteriores, mas mostram uma ultrapassagem: a diferenciação das divisões (Bamberger) (Figura 9). A escrita já está, como na etapa 2, desvinculada do movimento contínuo, diferenciando os eventos que o compõem, mas também apresentando diferenciação das divisões. Nesta etapa, além da escrita dos eventos individuais, apresenta-se também uma alteração no tempo global da seqüência e a representação da não-ação (pausas). Bamberger (1990) mostra que essa fase difere da anterior, pois mesmo permanecendo "figural", ela exige do sujeito reflexão sobre as ações, expressando mais "'o pensamento em ação' do que a própria ação"'. Inicia-se aqui um processo desvinculado da ação imediata, porém muito mais simbólico, ilustrando "ações do que vêm a ser, elas próprias, ações" (p.110); é mais complexa, pois reflete a mudança de tempo e mostra uma estrutura agrupada, ou melhor, hierarquizada; fornece mais dados para a repetição mais precisa por outra pessoa ou em outra ocasião.

Na gênese histórica, da mesma forma, a segunda etapa é caracterizada por um tipo de notação, ainda neumática, mas com escrita de pequenos signos geralmente em forma quadrada e depois losangular. Essa notação não mais mistura o movimento (um todo) com os eventos particulares e já apresenta uma especificação: o número correto de sons e a regulação dos movimentos. Nesta etapa, cada neuma significa um grupo de sons, ou som, mostrando assim o aparecimento, como na psicogênese, de um processo de regulação na capacidade de interromper e agrupar e de desmembrar um ritmo contínuo, com separação entre o movimento, enquanto um fenômeno inteiro (ação), e as partes internas.

O paralelismo, nessa etapa da psicogênese e da história, pode ser comprovado quando verificamos que, no desenvolvimento histórico, ocorreu da mesma forma, pois a notação neumática secundária gerou uma série de modos rítmicos organizados, os quais já estavam desvinculados do movimento contínuo (notação neumática primitiva), diferenciando os eventos que o compunham (neumática secundária), mas também apresentando diferenciação das divisões (modos rítmicos), a pulsação (o tactus) e iniciando-se as primeiras regulações de divisão proporcional, com o início da desvinculação da música e do texto e o predomínio da música instrumental, primeiramente baseada em ritmos da dança (Sadie, 1980; Scliar, s.d.).

Numa etapa posterior do desenvolvimento da escrita do ritmo musical, aparecem nas crianças notações, chamadas por Bamberger (1990) de notação tipo "Métrica 2", que refletem muito mais um "deslocamento importante de centração cognitiva do que uma elaboração de uma abordagem já presente antes, como no caso da mudança de F1 para F2." (p. 110). Este novo tipo de notação do ritmo "... mostra a passagem da centração da reprodução de uma ação efetuada e sentida, da atenção prestada aos agrupamentos em figuras e à função dos eventos, para uma centração na medida das durações relativas de todos os eventos." (p.110).

Existe uma correspondência da escrita de sons curtos e formas pequenas, e de sons longos com formas maiores. Inicia-se, portanto, uma diferenciação entre as durações de cada evento e forma-se a capacidade de comparação de todos os eventos entre si e da sua classificação, muito mais do que preocupações em relação à situação seqüencial. Este tipo de notação se afasta da anterior em favor da medida.

Nessa etapa (Métrica 2 e 3), além da capacidade de classificação dos eventos em função da duração relativa entre eles, as crianças são capazes de mostrar a duração de cada evento em relação a um pulso estável (Bamberger, 1990). Nesse estágio, as crianças

... inventaram os começos de um sistema formal simbólico, próximo da notação rítmica tradicional. Um sistema simbólico formal (em nosso contexto) é definido como um conjunto de signos cujos referentes são elementos e relações que ficam constantes em relação a um quadro referencial externo e estável (uma estrutura formal), generalizáveis a todas as instâncias em um dado domínio (por exemplo, a todo ritmo), aplicáveis de um ponto a outro de contextos internos variados e aceitáveis por leitores diferentes. (Bamberger, 1990, p.111).

No caso da escrita do ritmo musical, isso significa que os signos trazem tanto os diferentes níveis de estrutura temporal e as relações entre esses níveis, como uma conseqüente unidade de medida invariante-unidade métrica. Hargreaves e Zimmerman (1992) afirmam que vários estudiosos já mostraram que é nessa mesma idade que se fixa a "conservação métrica." (p.387).

Os historiadores têm mostrado que, na Renascença76"Constata-se, então, a preocupação de se utilizar vários meios gráficos para exprimir a variedade de notas. Na base do sistema, manifesta-se a intenção de traduzir uma melodia por um gesto e de fixar esse gesto sobre o pergaminho: de fato, o neuma é um 'gesto escrito.'" (Cardine, 1989, p.107), constituiu-se um sistema regular de divisão aceito e usado em um referencial de tempo invariável: o pulso. No Barroco, esse sistema tornou-se mais complexo ao se tomar o pulso por regulador por meio das divisões e subdivisões (Sadie, 1980; Scliar, s.d.). Essa regulação, que se apresenta na notação, onde a unidade de tempo encontra-se subjacente - nem sempre ela é explicitada - apresenta uma coordenação de uma unidade com as batidas, projetando-as em um quadro de referência fixo.

Nas investigações psicogenéticas, reencontra-se esse mesmo modo de organizar a notação rítmica. Apresenta-se aqui uma expressão acabada da centração nas unidades, que já se iniciava no segundo estágio ("Métrica 1"). Neste estágio, as crianças constróem algo semelhante ao que Piaget chama de "agrupamentos":

... todo mecanismo mental evolui do ritmo ao agrupamento por intermédio de regulações que coordenam, primeiro, os elementos dos ritmos86"Constata-se, então, a preocupação de se utilizar vários meios gráficos para exprimir a variedade de notas. Na base do sistema, manifesta-se a intenção de traduzir uma melodia por um gesto e de fixar esse gesto sobre o pergaminho: de fato, o neuma é um 'gesto escrito.'" (Cardine, 1989, p.107) iniciais e que resultam, em seguida, em sua reversibilidade crescente, em formas diversas de agrupamentos. (Bamberger, 1990, p.113).

Verifica-se que o ciclo do desenvolvimento da escrita musical das crianças inicia-se com as garatujas rítmicas para regulações expressas nos tipos F1 e M1 (desde a separação da ação e do som, até uma maior especificação das unidades apresentadas), passando depois por um tipo de regulação bem mais articulada (F2) e, finalmente, construindo um quadro de referência fixo, que é resultado de uma reversibilidade crescente (M1 e M2) (Bamberger, 1990). No processo de desenvolvimento da escrita do ritmo musical nas crianças, as relações métricas e figurais interagem e são totalmente coerentes, aparecendo em vários estágios da escrita muitas vezes separadas, mas

... os dados da experimentação psicológica parecem sugerir que é o próprio processo de descrição que separa os aspectos métricos e figurais (...) é quando traduzimos nossas unidades de apreensão em unidades de descrição que "analisamos" a experiência vivida nessas duas dimensões. (Bamberger, 1990, p.122).

A natureza das representações em símbolos e signos define a separação dos aspectos apreendidos simultaneamente, devido à especificidade dos referentes. A notação do ritmo musical é, pois, uma apreensão de figuras, "descritas somente post facto como uma coordenação particular de características integrantes" (Bamberger, 1990, p.123), tanto na psicogênese como na história.

Assiste-se aqui ao conflito entre a experiência interior subjetiva e a exteriorização simbólica, porque as diferentes notações produzidas nas distintas etapas do desenvolvimento demonstram o estado atual da capacidade do sujeito de descrever, exteriorizando certos aspectos do fenômeno sonoro mais que outros (ou sem poder ainda descrevê-los). Verifica-se, porém, que os processos de descrição são resultado de uma certa aprendizagem: "o sujeito aprende a centrar, a diferenciar e classificar propriedades, a comparar eventos separados no tempo e, assim, a distanciá-los de seu próprio contexto situacional único." (Bamberger, 1990, p.123). O processo de singularidade e de unicidade é a característica da experiência artística, mesmo de um simples ritmo, já que envolve a capacidade de manipular o conflito entre a "invariância de certas propriedades e o caráter único de sua formação contextual." (p.123). Trata-se de uma "transação figural-formal ... essa capacidade de operar agrupamentos variados e de reuní-los de maneira que eles se enriqueçam mutuamente." (Bamberger, 1990, p.124).

Conclusões

A pesquisa teve como objetivo traçar um paralelismo entre o desenvolvimento histórico de um conceito, o de escrita do ritmo musical, na história da música e na psicogênese desse conceito. Ao mesmo tempo, a pesquisa é contrária a uma visão de paralelismo entre a ontogênese e a filogênese, jamais proposta por Piaget. Ela utiliza a redefinição das etapas proposta por Piaget para o desenvolvimento de um conceito, abandonando mesmo a tradicional sucessão de quatro estágios divulgada hoje em dia. O reconhecimento da seqüência de etapas intra-, inter- e trans-, que acontece tanto na história das ciências como na psicogênese dos conceitos, representa a descrição de um processo no qual se realizam os mecanismos do desenvolvimento cognitivo e a construção conceitual. Com a comprovação das três etapas, Piaget (Piaget et al., 1980) as relaciona com as três formas conhecidas de equilibração cognitiva: (1) equilibração entre assimilação e acomodação dos esquemas (etapa intra-); (2) equilibração entre sub-sistemas (etapa inter-) e (3) equilibração entre a diferenciação crescente dos sub-sistemas e a integração em totalidades (etapa trans-).

O paralelismo entre a evolução das noções, no campo da história e no desenvolvimento psicogenético, não se refere aos conteúdos das noções mas, sim, aos instrumentos e mecanismos comuns em sua construção. O mais geral deles é a natureza dos raciocínios, que, em todos os níveis psicogenéticos e na história das ciências, evoluem de abstrações empíricas96"Constata-se, então, a preocupação de se utilizar vários meios gráficos para exprimir a variedade de notas. Na base do sistema, manifesta-se a intenção de traduzir uma melodia por um gesto e de fixar esse gesto sobre o pergaminho: de fato, o neuma é um 'gesto escrito.'" (Cardine, 1989, p.107) para abstrações reflexivas106"Constata-se, então, a preocupação de se utilizar vários meios gráficos para exprimir a variedade de notas. Na base do sistema, manifesta-se a intenção de traduzir uma melodia por um gesto e de fixar esse gesto sobre o pergaminho: de fato, o neuma é um 'gesto escrito.'" (Cardine, 1989, p.107) e, por outro lado, por generalizações, tanto extensionais como construtivas (Piaget & Garcia, 1984). O sequenciamento dos estágios não é aleatóreo. O conhecimento das leis que regem este sequenciamento é importante, mas não basta. É necessário apontar que os mecanismos de passagem de um período histórico para o seguinte são análogos aos de passagem de um estágio psicogenético para o seguinte. Um mecanismo já conhecido é o que se refere ao fato de que quando ocorre um "transbordamento"1111ultrapassagem, no original, rebasamiento. cognitivo, o que foi transbordado está de alguma forma integrado ao ultrapassante, isto é, ao novo. Outro mecanismo de passagem é o processo que conduz do intraobjetal (ou análise dos objetos) ao interobjetal (ou estudo das relações e transformações) e daí ao transobjetal (ou construção das estruturas). Esta tríade dialética está presente em todos os níveis e domínios, sendo encontrada nas sucessões globais e nas sub-etapas que compõem essas sucessões. Este é o argumento de maior peso a favor de uma epistemologia genética construtivista.1211ultrapassagem, no original, rebasamiento.

Piaget estabelece três etapas características do desenvolvimento dos conceitos nas crianças e na história da ciência. A primeira dessas etapas é a intraobjetal que, no nosso caso, representa a etapa na qual a notação rítmica aparece extremamente ligada à notação melódica e, conseqüentemente, ao texto. Não há distinção entre o movimento final resultante (ação) e uma escrita do ritmo. A notação representa uma não separação entre sujeito (a música, a produção sonora e sua notação como um todo) e objeto (ritmo). O som unificado ao gesto, unificado ao texto. O conceito de ritmo independente do texto (ou do todo) ainda não existe. O conceito desenvolvido resume-se, pois, à ação musical; essa fase é, portanto, intraobjetal. A atividade musical é anotada no seu conjunto, fazendo com que o objeto da representação seja a ação musical e não o ritmo.

No caso da psicogênese, nota-se o perfeito paralelismo com a etapa citada por Bamberger (1990) com as garatujas rítmicas, consideradas pela autora como ponto emergente de todas as outras notações rítmicas posteriores, nas quais não há distinção entre a ação e o som produzido, sendo o movimento contínuo apresentado sem distinção entre objeto (ritmo) e ação produzida.

Essa ação produzida pode ser entendida no desenvolvimento histórico como a performance gestual do monge regente, tentando conduzir o movimento melódico e rítmico (ambos em função do texto), comprovados na escrita neumática inicial, a sangaliana. A mudança de centração, do movimento contínuo para os seus efeitos discretos, é uma característica da mudança de etapa, é uma resposta a uma "crise rítmica". Tal mudança que traz consigo um mecanismo de passagem para outra etapa, agora é interobjetal, na qual o ritmo já é um conceito quase independente. Vemos aqui que o processo histórico (e o psicogenético) partiu de uma visão sociocentrada para uma visão de maior descentração. Já podemos falar num conceito de ritmo quase independente.

Na psicogênese, verifica-se o aparecimento de uma notação com maior grau de diferenciação quanto ao ritmo. Agora, o conceito de ritmo aparece ligado a um grupo fixo de sons. Representa-se, pois, o número correto de eventos rítmicos. O mecanismo de mudança entre as duas etapas foi, inicialmente, a separação da ação e do som e também uma maior especificação das unidades apresentadas. Aparece então a capacidade de interromper e agrupar padrões rítmicos mais independentes, principalmente do texto, no caso da história. As notações figurais (1 e 2) de Bamberger (1990) representam essa etapa, mostrando claramente que quando a criança alcança a notação tipo figural 2, na qual os elementos das etapas anteriores são visíveis, demonstram uma ultrapassagem.

Na história, a ultrapassagem vai desde o aparecimento da escrita neumática quadrada, que simbolizava eventos mais específicos e sua inclusão na pauta, até o desenvolvimento de dezenas de modos rítmicos, os quais foram sucumbidos na notação tradicional atual, com a adoção da PRP (Progressão Redutiva Proporcional) binária, substituindo a PRP ternária (v. Figura 5).

Uma última etapa, a transobjetal, fixa-se a partir de outro mecanismo de mudança. A notação focaliza os elementos musicais distintamente, havendo uma determinação de um sistema simbólico formal, generalizável a todas as instâncias em um dado domínio, no caso, o ritmo. Na história, isso se deu com a notação renascentista, onde a notação rítmica já é independente, ou seja, os signos trazem tanto os diferentes níveis de estrutura temporal como as relações, com uma conseqüente unidade de medida invariante - a unidade métrica.

O reconhecimento da seqüência de etapas intra-, inter- e trans-, que acontece tanto na história das ciências como na psicogênese dos conceitos, representa a descrição de um processo; estão aqui os mecanismos pelos quais o desenvolvimento cognitivo e a construção conceitual se realizam (Piaget et al., 1980). Daí Piaget mostrar a necessidade dos estudos do processo dialético na teoria do conhecimento e de uma lógica das significações (Piaget & Garcia, 1987; Piaget et al., 1980). O processo, descrito em etapas sucessivas, encontra sua validação na medida em que engendra diferentes necessidades progressivas, cujas conquistas só são feitas por etapas. Na etapa intraobjetal, no nível das ligações p.ex., a necessidade implica nas relações entre elementos, não indo muito além da simples generalização. Na etapa seguinte, a interobjetal, a notação alcança um nível explicativo superior, já que as transformações fornecem um sistema de conexões necessárias que determinam "intrinsecamente" as "razões" das propriedades invariantes. A última e mais elevada etapa é a transobjetal; na medida em que as estruturas fornecem uma resposta à necessidade de "explicação" (requeridas na etapa tipo inter-), o sistema total de transformações representado por uma estrutura, engendra novas transformações e fornece as razões de sua composição de conjunto. Uma teoria cognitiva da Educação Musical levaria em conta esses estágios estabelecidos com o paralelismo, baseando-se nas características de cada etapa para a elaboração de programas escolares que queiram incluir também um treinamento da escrita musical.

FERNANDES, J.N. Parallelism between History and Psychogenesis of the Writing of Musical Rhythm. Psicologia USP, São Paulo, v.9, n.2, p.221-247, 1998.

Abstract: The purpose of this research was to draw a parallel between the development of a concept, that of written musical rhythm within the history of music and the psychogenesis of musical notation. This article contests the idea of a parallel between ontogenesis and psychogenesis, which was never proposed by Piaget. This study was based on the redefinition of the levels proposed by Piaget for the development of a concept and abandoned the traditional sequence of Piaget's four stages, which are currently more diffused. The acknowledgement of the continuous intraobjectal and transobjectal levels, which happens in the history of science and in the psychogenesis of each concept, represent the description of a process in what the mechanisms of the cognitive development and the conceptual construction happen.

Index terms: Genetic epistemology. Handwriting. Rhythm. Music. Cognitive development.

2Estilizada pela Vaticana e atualmente é plenamente usada (Cardine, 1989).

3Poliritmia é a superposiçao de divisões quantitativas heterogêneas com coincidência nos apoios e, muitas vezes, também coincidindo no início. Na polimetria os apoios não coincidem.

4Atterbury (1992) mostra a ligação entre consciência rítmica e representação simbólica no desenvolvimento musical afirmando que o entendimento rítmico pode ser visto através da representação simbólica.

5Entre eles estão Gardner, Goodnow e Piaget e Inhelder.

7V. Figura 6.

8Piaget refere-se aqui ao movimento e não ao ritmo musical.

9"que extrai suas informações do próprio objeto." (Piaget & Garcia, 1984, p.10).

10"que procede a partir das ações do sujeito." (Idem, ibidem).

12Para os autores o empirismo daria conta somente da passagem do intra para o inter, o apriorismo daria conta somente do trans, mas não satisfaria as etapas do tipo intra e inter. O caráter dialético e construtivista das atividades cognitivas é evidenciado na sucessão dos intra para os inter e somente daí para os trans.

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  • 1
    A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus, que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um "gesto".
  • 6
    "Constata-se, então, a preocupação de se utilizar vários meios gráficos para exprimir a variedade de notas. Na base do sistema, manifesta-se a intenção de traduzir uma melodia por um gesto e de fixar esse gesto sobre o pergaminho: de fato, o neuma é um 'gesto escrito.'" (Cardine, 1989, p.107)
  • 11
    ultrapassagem, no original,
    rebasamiento.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 1999
    • Data do Fascículo
      1998
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