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A realidade americana na literatura

A REALIDADE AMERICANA NA LITERATURA

Dante Moreira Leite* * Ensaio inédito

É mais ou menos freqüente que a crítica americana - talvez a crítica menos literária - se preocupe em saber porque a literatura americana apresenta apenas os aspectos desagradáveis da vida nos Estados Unidos.

Compreender as razões da crítica talvez não seja tarefa tão difícil. Vários viajantes já observaram que uma das reações mais freqüentes do americano diante do estrangeiro é pedir suas impressões sobre o país. Há mesmo uma dose de orgulho na tonalidade com que todos - com exceção, naturalmente, da elite intelectual - querem saber a opinião do estrangeiro a respeito do que vê. Diante desse orgulho, é claro que a literatura - descrevendo os piores aspectos da vida - tem um sabor de crítica injusta ou de incompreensão. Mais ainda, é explicável que os críticos se recusem à idéia de que os Estados Unidos e os americanos sejam conhecidos unicamente como o país das misérias e injustiças, descritas pelos romancistas.

Mas está claro que a interpretação não pode parar aqui, pois é também necessário perguntar porque existe essa seleção do pior para a representação artística. Tudo se passa como se os críticos pensassem da seguinte forma: que os romancistas descrevessem a miséria quando os homens viviam miseravelmente é compreensível. Mas será que uma sociedade que, em grande parte, solucionou o problema da miséria e da fome, deve ter como arte a representação de uns pequenos núcleos miseráveis?

Se sairmos da perspectiva americana talvez possamos encontrar, senão uma resposta, ao menos alguns pontos de referência capazes de nos conduzir a uma compreensão mais ampla do que acontece na literatura dos Estados Unidos.

Seria possível, em primeiro lugar, observar que, nos países de maior miséria, a elite intelectual não chega, sequer, a perceber sua existência, muito menos a pensar na miséria como tema artístico. Para usar uma imagem visual, seria possível dizer que falta o fundo para fornecer o contraste à figura. Esta então se apaga, deixa de ser percebida. Se quisermos um exemplo, basta ver a nossa literatura romântica, e mesmo do começo do século XX. É uma literatura para a qual não existe problema social (embora, é claro, existam sempre as exceções; como existem exceções na literatura americana atual).

O exemplo definitivo seria a "Escrava Isaura:" Guimarães vê na situação da escrava apenas um drama sentimental, jamais um problema social. Não é outra a perspectiva de Alencar ao tratar do índio.

Esta, aliás, uma das objeções mais sérias para a utilização da literatura como descrição de uma realidade: às vezes o mais real não aparece, não porque não exista, mas porque é óbvio. E o óbvio não pertence à realidade literária. Dizendo de outro modo, o que se pode inferir da realidade artística é que aquela realidade - naquele momento - era uma situação de problema para o artista. Poder-se-ia ir ainda mais longe no desenvolvimento dessa hipótese, e pensar que a arte nova não é, inicialmente, considerada artística, por revelar o que é apenas cotidiano. Dir-se-ia, assim, que o artista, em vez de apresentar o novo, apresenta o velho que naquele momento começa a existir artisticamente (isto é, começa a ter um fundo contra o qual se saliente).

Voltando à literatura americana, seria possível pensar que a existência do slum é um tema artístico precisamente na medida em que é uma ilha de miséria perdida numa civilização milionária. Enquanto isso acontece lá, as nossas favelas continuam como temas inócuos para os cronistas. Se em New York o slum é revoltante, no Rio de Janeiro a favela não passa do pitoresco.

Mas seria apenas essa a explicação para a apresentação quase que exclusiva da miséria na literatura significativa do país mais rico do mundo? Talvez fosse necessário lembrar também a escala de valores em que as diferentes sociedades se movem. Compreender-se-ia assim que, se os americanos super-valorizam o conforto material e, senão a posse dos bens, ao menos o seu uso, a existência dos que não participam desses valores seja coisa essencialmente injusta.

Se, de outro lado, é verdade que a cultura americana valoriza, como poucas o fazem, a fundamentação moral da existência, será fácil compreender o outro grande tema da sua literatura: a degradação moral. O mesmo se poderia ver muito claramente no cinema americano, sobretudo no gangster e no bandido das fitas de cowboy.

Se esta possibilidade de explicação for acertada, a mais autêntica literatura americana seria uma imagem especular da sociedade em que nasce.

Aparentemente, entretanto, essas duas possibilidades de compreender o fenômeno ainda não explicam a seleção do real feita pelos escritores. Seria necessário considerar o escritor como indivíduo: e este nos daria a terceira chave para a compreensão da literatura americana. É verdade que o escritor é, freqüentemente, um desajustado nessa sociedade; muitos não resistiram à tentação de dizer que a sociedade americana atual parece contrária à verdadeira vida artística; que o bairro artístico de New York não passa de cópia - e inautêntica - dos bairros europeus semelhantes. Encontraram uma confirmação para essas afirmações no fato de que muitos artistas americanos sejam uns exilados voluntários, incapazes de viver nos Estados Unidos; ou quando aí vivem, se isolam de tudo e de todos. Embora essas verificações possam ser verdadeiras, restaria examinar se o mesmo não acontece em outras sociedades, aparentemente mais propícias ao desenvolvimento artístico. É como se o exílio voluntário tivesse uma função libertadora, que, por sinal, os românticos aproveitaram extraordinariamente.

Seja como for, este seria o terceiro ponto de referência para a compreensão da perspectiva pessimista sob que aparece a vida americana na sua literatura. Embora as generalizações sejam aqui mais que perigosas, talvez se pudesse dizer que o conformismo não produz obra de arte (como não produz ciência). Arte e ciência nascem, necessariamente, do desequilíbrio. O que às vezes nos ilude é que, na sua forma final, a obra de arte freqüentemente (mas não sempre) é um restabelecimento da harmonia ou do equilíbrio. Nem será outra a razão para explicar que o academismo seja - sob uma forma ilusoriamente artística - a negação da arte. O mesmo, aliás, pode ser observado na ciência acadêmica: esta desenvolve os maneirismos formais da ciência, sem que sob este exista a situação do desequilíbrio que levaria alguém a investigar. Por isso mesmo, a ciência e a arte acadêmicas, nos casos mais autênticos, são apenas exercícios cujo final todos conhecem e aceitam. Ou, se quisermos dizer ainda de outro modo: o artista como o cientista percebem o desequilíbrio (ou problema, mas a noção de problema é muito vaga) onde os outros percebem apenas a harmonia.

Esta descrição poderia explicar o hiato existente entre o artista americano e seus críticos menos literários, aqueles que se surpreendem com a deformação que a literatura apresenta da vida americana. Mas esse hiato - como ficou dito - não é exclusivo da literatura e da vida americanas. Parece existir entre toda literatura autêntica e a sociedade correspondente. Nem é outra a razão do escândalo que os poetas apresentam para o homem comum. Não só o poeta vê aquilo que passa despercebido aos outros, como sente o que parece absurdo ou impossível sentir. A velha fórmula do "épater le bourgeois" é sempre seguida, voluntariamente ou não. E se o poeta é um ressentido (porque incompreendido) não se pode esquecer que também o burguês o é (por razões igualmente legítimas).

Este ressentimento explica uma grande parte das relações entre o público e o artista contemporâneo. Explica que, no caso dos Estados Unidos, um romancista como Sinclair Lewis seja muito mais admirado pelos estrangeiros que pelo americano.

Chegados a este ponto, talvez seja possível verificar que os três elementos da explicação para o divorcio entre a realidade americana e sua literatura são convergentes e não divergentes ou paralelos.

Há, inicialmente, o fato de que o artista faz uma seleção do real, que depende de contrastes para que se saliente. De forma que a realidade vista pelo artista é, freqüentemente, o que está fora do cotidiano.

Ao mesmo tempo em que isto acontece, o artista julga aquilo que percebe segundo a escala de valores que a mesma sociedade apresenta. Isto é, o artista percebe a desarmonia que para os outros não existe, e julga a desarmonia segundo os padrões que todos aceitam. Se não fosse assim, a sua crítica se perderia, ou não seria recebida como tal. Mas por isso mesmo é um desajustado, é mal compreendido, o que, por sua vez, lhe permite ver uma face diferente das relações humanas.

Este processo pode ser observado - com relação a diferentes aspectos da vida americana - em escritores como Sinclair Lewis, Steinbeck, John dos Passos, Faulkner.

Em escritores mais recentes parece haver, como demonstra Hilton Kramer, um "abuso do terrível." O terrível (ou horrível) parece centralizar-se na descrição de perversões sexuais; e já houve quem daí concluísse pela existência de um vasto problema sexual na vida americana atual, caindo no erro de identificar realidade literária e realidade social.

O importante a notar é que, em todos esses escritores, quase que invariavelmente, se apresenta o amargo ou irremediável da vida americana.

O lado "cor de rosa" da existência parece destinado a surgir apenas na sub-literatura e no cinema comercializado. Enquanto na literatura o conflito se revela insolúvel, na sub-literatura existe sempre o "happy-end." Aqui, encontramos o pólo oposto da literatura pessimista: são transpostos para o romance (ou criados pelo artista, não importa) aqueles casos em que se realiza o ideal de vida aceito pela sociedade. Se quisermos os exemplos mais característicos desse processo, devemos procurá-los nas páginas das "Seleções do Reader’s Digest." As suas pequenas histórias apresentam uniformemente o indivíduo que enfrenta uma situação perigosa. Através da coragem, iniciativa, às vezes da rebeldia contra a convenção, consegue ser reconhecido como triunfador. Nem sempre o triunfo se revela por esse reconhecimento exterior; muitas vezes, a maior vitória é a conseguida no estabelecimento do equilíbrio interior.

Se analisarmos essas histórias, veremos que também elas partem de uma situação de desequilíbrio. O que acontece é que o desequilíbrio se revela falso. Enquanto na literatura o autor nos mergulha num desequilíbrio crescente e percebemos que o problema é insolúvel, na sub-literatura o desequilíbrio é decrescente até que chegamos à solução feliz. A literatura mostra, sob o aparentemente grandioso e perfeito, a miséria e a mesquinharia; a sub-literatura descobre, sob a insignificância ou a maldade, o grandioso ou verdadeiramente humano.

Nas fitas de Hollywood é fácil verificar como se desenvolve o processo. A fita mais típica é aquela em que a situação de desarmonia ou desequilíbrio se revela falsa; em seu lugar surge a verdade, que é sempre harmoniosa. Seja, por exemplo, o caso do rapaz de ótimos sentimentos que se apaixona por uma mulher fatal, aparentemente uma pecadora incorrigível. A trama consistirá em demonstrar que a pecadora é uma excelente criatura, obrigada a se disfarçar de uma mulher fatal para sustentar a mãe paralítica e o irmão doente. Uma vez revelada a pureza de sua alma, a jovem está preparada para o casamento, e a suposição do final é que continuarão felizes para todo o sempre.

Outro caso é o do empregado do banco que se aborrece com a monotonia da vida e a exigüidade do ordenado. Resolve fugir com o dinheiro que deve guardar. No meio da viagem de fuga, arrepende-se de tudo e volta para ser perdoado pela mulher e pelo patrão.

Poder-se-ia dizer que a diferença está no nível em que se dá o conflito. Os mesmos temas poderiam ser utilizados pela literatura. No primeiro caso, bastaria propor a perspectiva da mulher paralítica para se ter o sentido da inevitabilidade da desarmonia ou da desgraça. No segundo, bastaria descer à monotonia de vida do caixa de banco, de sua impossibilidade de ascensão. O romance do "happy-end" segue uma linha de demonstração que torna possível uma solução harmoniosa; a literatura pessimista propõe um nível de solução que é irrealizável.

O importante a notar é que, nos dois níveis, os dados da situação decorrem do mesmo universo, isto é, da vida americana, mas são selecionados em planos diferentes, ou vistos através de perspectivas também diversas.

Talvez não fosse errado dizer que a sub-literatura representa um sonho dentro da vida americana. As dificuldades são astuciosamente eliminadas, e o herói triunfa e conquista a mulher amada. Na literatura, ao contrário, estamos diante de um pesadelo: todas as portas se fecham, e o herói fica sozinho, clamando inutilmente.

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    Ensaio inédito
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2001
    • Data do Fascículo
      2000
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