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Notas sobre uma ontologia em Lacan: um diálogo com Heidegger

Notes sur une ontologie dans Lacan: un dialogue avec Heidegger

Notas sobre una ontología en Lacan: un diálogo con Heidegger

Resumo

Este estudo busca discutir a questão de uma possível ontologia na obra de Lacan a partir de seu estatuto do inconsciente ético de 1964. Procura-se estabelecer relações entre os conceitos lacanianos de inconsciente, ética e tempo e, através deles, dialogar com a concepção de temporalidade em Heidegger, a fim de demonstrar que o inconsciente lacaniano não é ético apenas por sua natureza linguística, mas também pela ontológica.

Palavras-chave:
inconsciente; ética; tempo; ontologia; ser-para-a-morte

Résumé

Cette étude vise à discuter la question d’une ontologie possible dans l‘œuvre de Lacan à partir de le statut éthique de l’inconscient présenté par lui en 1964. Nous cherchons à établir des relations entre les concepts lacaniens de l’inconscient, d’éthique et du temps et, à travers d’eux, dialoguer avec la conception de la temporalité chez Heidegger, afin de montrer que l‘inconscient lacanien n’est pas éthique seulement du point de vue de la linguistique, mais aussi de la ontologie.

Mots-clés:
l’inconscient; l’éthique; le temps; l’ontologie; l’être-pour-la-mort

Resumen

Este estudio tiene como objetivo discutir la cuestión de una posible ontología en la obra de Lacan a partir de su estatuto del inconsciente ético de 1964. Tratando de establecer relaciones entre los conceptos lacanianos del inconsciente, ética y tiempo y, mediante estos, dialogar con la concepción de la temporalidad en Heidegger, con el fin de demostrar que el inconsciente lacaniano no es ético solo por su naturaleza lingüística, sino también por la ontológica.

Palabras clave:
inconsciente; la ética; el tiempo; la ontología; el ser para la muerte.

Abstract

This study aims to discuss the possibility of an ontology in Lacan’s work, based on the status of ethical unconscious presented by him in 1964. We try to establish relationships between the Lacanian concepts of unconscious, ethics and time and, through them, a dialogue with the conception of temporality in Heidegger, in order to demonstrate that the Lacanian unconscious is not only linguistic, but also ontological.

Keywords:
unconscious; ethics; time; ontology; being-toward-death

Em seu seminário de 1964 sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao traçar um paralelo entre o modo que entende o inconsciente freudiano e seu próprio modo de pensá-lo, Lacan (1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960).) fala da relação entre a causa e o que ela afeta, dizendo que nesta há sempre claudicação. Para Lacan, o que Freud encontra na hiância característica da causa é algo da ordem do não-realizado, aquilo mesmo que Freud chamou de umbigo dos sonhos. O que se produz nessa hiância, uma vez apresentado, perde-se novamente, ou seja, de uma temporalidade que se apresenta como descontinuidade, como vacilo em um corte do sujeito, e ressurge como um achado - o desejo - em que o sujeito se encontra em algum ponto inesperado; trata-se do sujeito enquanto indeterminado. Ao introduzir o inconsciente por essa estrutura de uma hiância, Lacan é questionado por Miller a respeito de sua ontologia e responde que se trata, aí, de uma função ontológica, mas que melhor seria dizê-la pré-ontológica, característica esquecida, mas essencial do inconsciente, não se prestar à ontologia: “é que ele não é ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado” (Lacan, 1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)., p. 37). E segue, na tentativa de responder: “O estatuto do inconsciente, que eu lhes indico tão frágil no plano ôntico, é ético” (Lacan, 1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)., p. 40). “Ontologicamente, então, o inconsciente é o evasivo - mas conseguimos cercá-lo numa estrutura, uma estrutura temporal, da qual se pode dizer que jamais foi articulada, até agora, como tal” (Lacan, 1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)., p. 39).

Esse artigo pretende discutir essas afirmações de Lacan não no sentido de nos determos particularmente nesses conceitos, mas no de partirmos dos questionamentos trazidos por elas, ao estabelecer relações entre inconsciente, ética e tempo. Começamos a partir dessa relação, aparentemente contraditória: não se presta à ontologia, mas o apreendemos em uma estrutura temporal? Como falar em tempo sem falar em ontologia? Lacan retira seu conceito de inconsciente desse campo ao dizê-lo ético e frágil onticamente, mas ao dizer que apesar de evasivo podemos apreendê-lo em uma estrutura temporal, acaba por retomá-lo. O questionamento mais imediato é sobre essa relação entre inconsciente e tempo, pois, para Freud, o inconsciente é atemporal. E para Lacan? De acordo com C. I. L. Dunker (conforme aula ministrada no Espaço Cult, em 26 de fevereiro de 2015, como parte do curso Lacan e a Filosofia), o inconsciente é atemporal, um sistema, como a língua, mas o sujeito do inconsciente não. Os tempos lógicos - instante de ver, tempo de compreender, momento de concluir - são tempos sujeito, escansões significantes, maneiras de lidar com a divisão subjetiva, de natureza linguística por um lado, mas também de natureza ontológica por outro.

Tratados por Lacan (1936/1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1936).) com a análise do sofisma dos três prisioneiros, os tempos lógicos fazem prevalecer a estrutura temporal e não a espacial do processo lógico, onde o sujeito transformou combinações possíveis em três tempos de possibilidade ao captar, na modulação do tempo, a absorção e reabsorção que estabelece a sucessão e sua gênese no movimento lógico. É através dessa modulação que o sujeito pode, como nos mostra Lacan, chegar à asserção sobre si e concluir o movimento que o precipita para um juízo e para o ato de sua saída. Esse ato é motivado pela pressa, em que Lacan aponta uma semelhança com a forma ontológica da angústia, refletida na expressão “por medo de que” a demora gere o erro:

Em outras palavras, o juízo que conclui o sofisma, só pode ser portado pelo sujeito que formou a asserção sobre si, e não pode ser-lhe imputado sem reservas por nenhum outro - ao contrário das relações do sujeito impessoal e do sujeito indefinido recíproco dos dois primeiros momentos, que são essencialmente transitivos, já que o sujeito pessoal do movimento lógico os assume em cada um desses momentos. (Lacan, 1936/1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1936)., p. 207)

Como vemos, a verdade do sofisma depende de sua “presunção” para vir a ser confirmada, verdade que se manifesta sozinha no ato que gera sua certeza, mas que só se alcança em uma relação lógica de reciprocidade. Não pretendemos aqui, para relacionar inconsciente e ética, nos aprofundarmos no tempo lógico - questão fundamental para o manejo clínico, já bastante trabalhada por lacanianos; tampouco nos aprofundaremos em sua natureza linguística. Pensamos tratar da questão por esse outro lado citado por Dunker (aula ministrada no Espaço Cult, 26 de fevereiro de 2015, como parte do curso Lacan e a Filosofia), o da natureza ontológica, que acreditamos estar apontada por Lacan nesse texto dos tempos lógicos, ao ligar a asserção sobre si com uma verdade que se carrega só, ao relacionar angústia com uma tensão temporal, e ao apontar a relação disso com uma presunção de verdade necessariamente relacionada ao porvir.

Se na clínica estamos interessados no discurso e não fazendo ontologia, precisamos lembrar que esse discurso, em cada sessão, está cifrado por uma temporalidade, e considerar que há algo de inapreensível no tempo, que os tempos modais não coincidem como supõe nosso imaginário, e principalmente que, para Lacan, pensar o sujeito é pensá-lo no tempo e como negatividade. Para pensar a ontologia e a questão do tempo, recorreremos a Heidegger, não por considerar que Lacan fosse heideggeriano, não é disso que se trata, mas sim devido à influência que a obra de Heidegger teve no pensamento de Lacan e também pela pertinência do tema na primeira fase do pensamento do filósofo - sobre a qual nos concentraremos nesse artigo. Em Ser e tempo, obra principal dessa fase, Heidegger (1927/1996Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927).) procura mostrar que o sentido do projeto compreensivo é o tempo; pensar sobre esse fenômeno é pensar que o homem não é um ser simplesmente dado no tempo, ele é tempo; refaz-se constantemente a partir de um mundo, e o mundo a partir de si. Aqui começa nossa dificuldade pois, para Heidegger, ser e sujeito são conceitos opostos na história da filosofia, não compatíveis. O conceito de sujeito seria exatamente um dos responsáveis pelo esquecimento do ser na história da filosofia ocidental. Mesmo assim, acreditamos que Lacan faz um uso estratégico do pensamento heideggeriano: vale-se do conceito de ser-para-a-morte, tratado em Ser e tempo, e que só pode ser compreendido a partir de sua dimensão temporal e ontológica. O que tentaremos demonstrar aqui, é que Lacan faz uso desse conceito inclusive para poder pensar em um inconsciente ético, e não ôntico.

Primeiramente, vamos nos deter nesse ser-para-a-morte no filosofar heideggeriano. Para tanto, teremos que passar por alguns conceitos desenvolvidos em Ser e tempo, obra na qual o filosofar de Heidegger pode ser compreendido como uma constante interrogação, uma busca pela revelação do objeto que decide ele próprio sobre esse interrogar e que orienta o movimento que pretende desvelá-lo. Trata-se da questão sobre o ser, elemento central de sua filosofia. Essa interrogação confunde-se com a própria renovação da temática sobre o ser na filosofia ocidental, que se torna espaço privilegiado para seu desvelamento. A procura deste caminho é a procura do que é o ente enquanto tal, o caminho do ente do ponto de vista do ser. Para ele, essa retomada da questão sobre o ser significa, em um primeiro momento, interrogar seu sentido, o que torna necessário fazer transparecer um ente que questiona seu próprio ser - designado por Dasein1 1 Na edição que usamos (1996), a tradução de Sein und Zeit para o português optou por traduzir Dasein por pre-sença. Neste trabalho, quando se tratar de citação literal, manteremos a opção do tradutor. No restante, optaremos pelo termo em alemão, opção também da nova edição bilíngue (2012). . Deve-se procurar na analítica existencial do Dasein a ontologia fundamental de onde as demais podem originar-se, uma vez que este ente possui um primado múltiplo (ôntico-ontológico) mediante todos os outros.

A análise dos fundamentos do Dasein, da qual Heidegger primeiramente se ocupa em Ser e tempo, constitui o primeiro desafio no questionamento sobre o ser. Este ente deve poder mostrar-se em si mesmo e por si mesmo em sua cotidianidade mediana, tal como é antes de tudo e na maioria das vezes. Trata-se, segundo ele, de uma análise incompleta e provisória, com o intuito de abrir o horizonte para uma interpretação do ser em bases ontológicas mais autênticas.

Essa análise encontra sua constituição fundamental, o ser-no-mundo; este ser desentranha-se como cura em seu nexo originário com a facticidade e a decadência, e a totalidade de suas estruturas só se torna compreensível a partir da temporalidade - reconhecida como seu fundamento ontológico originário - e cujo próprio sentido se torna, reciprocamente, mais transparente por meio da analítica do Dasein. De acordo com Heidegger, do ponto de vista ontológico, o Dasein é, em princípio, diverso de todo ser simplesmente dado, seu teor funda-se na “autoconsistência” do si mesmo e seu ser é concebido como cura; a determinação do sentido ontológico da cura consiste precisamente na liberação da temporalidade. O Dasein sempre já se compreende de algum modo, sempre precede a si mesmo: sendo ele, já se projetou para determinadas possibilidades de sua existência, projetando também a existência e o ser. Se a essência do Dasein é a existência, ao liberar suas estruturas ontológicas em seu sentido temporal, o autor procura compreender o ser-para-a-morte; a cotidianidade como modo da temporalidade; o modo como o Dasein é e pode ser histórico; como constrói a contagem vulgar e tradicional do tempo e assim prepara uma compreensão mais originária da temporalidade, em que o projeto de um sentido do ser em geral pode realizar-se. Projeto com o qual ele acredita poder rever a história enquanto modos de esquecimento do ser e que nos possibilitaria pensar o ser como clareira, abertura, pensar o originário desse ser. Nos possibilitaria pensar também a destinação desse ser, onde o porvir tem uma primazia: o ser é vir a ser.

O mundo já está aí, aberto ao Dasein, só assim é que ele pode lidar com um nexo instrumental, compreender algo como conjuntura. E se o ser deste ser-no-mundo funda-se na temporalidade, esta deve possibilitar não apenas esse ser-no-mundo, mas também a transcendência desse ser-no-mundo. Na tentativa de compreender o Dasein ainda mais originariamente do que no projeto de sua existência própria, Heidegger nos remete à extensão do Dasein entre nascimento e morte, o contexto em que de algum modo ele se mantém, vinculando temporalidade e historicidade. A caracterização desse contexto consta de uma sequência de “vivências no tempo” e parte da suposição de algo simplesmente dado “no tempo”. No entanto, o Dasein não é a soma das realidades momentâneas de suas vivências; e determina-lo como algo simplesmente dado “no tempo” está, de acordo com Heidegger, fadado ao fracasso:

Através das fases de suas realidades momentâneas, a pre-sença não preenche um trajeto e nem um trecho da vida já simplesmente dado. Ao contrário, ela se estende a si mesma de tal maneira que seu próprio ser já se constitui como extensão. No ser da pre-sença, já subsiste um “entre” que remete a nascimento e morte. (Heidegger, 1927/1996Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927)., p. 179)

A movimentação da existência determina-se pela extensão do Dasein, e Heidegger a denomina de acontecer, o “contexto” do Dasein é o problema ontológico de seu acontecer. “Liberar a estrutura do acontecer e suas condições existenciais e temporais de possibilidade significa conquistar uma compreensão ontológica da historicidade” (Heidegger, 1927/1996Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927)., p. 179). O fio condutor para a construção existencial da historicidade caracteriza-se, então, como o poder ser todo em sentido próprio do Dasein e a análise da cura como temporalidade; uma vez que ele sempre existe como ente historicamente próprio ou impróprio. Ao analisar sua historicidade, o autor busca explicitar que este ente não é “temporal” por encontrar-se na história, e sim que ele só existe historicamente porque é temporal. Questiona-se sobre a primazia do “passado” no conceito de história, pois o Dasein nunca pode ser um passado, uma vez que em sua essência ele nunca é algo simplesmente dado; sempre que o Dasein é, existe. Ao caracterizá-lo como histórico não está apenas referindo-se a um ente no fluxo da história do mundo; é no âmbito da temporalidade que se deve buscar um acontecer que determina a existência como histórica. Assim, seu acontecer originário reside na decisão própria, onde ele livre para a morte, transmite-se a si mesmo em uma possibilidade herdada e, não obstante, escolhida. A esse fenômeno Heidegger chama de destino. No ser-com-os-outros, o seu acontecer é conjunto, o acontecer da comunidade, o envio comum. Assim, ele pode sofrer os golpes do destino porque ele é destino enquanto ser-no-mundo aberto para vir ao encontro:

o destino exige para o seu ser a constituição da cura, isto é, a temporalidade. Somente na medida em que morte, débito, consciência, liberdade e finitude convivem, como na cura, de modo igualmente originário, no ser de um ente, é que ele pode existir no modo do destino, ou seja, é que ele pode, no fundo de sua existência, ser histórico. (Heidegger, 1927/1996Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927)., p. 191)

Contudo, a interpretação do caráter temporal da história não considerou que todo acontecer decorre “no tempo” e que o Dasein só conhece a história como acontecer intratemporal. Heidegger entende que, para torná-lo ontologicamente transparente, faz-se necessário explicitar a interpretação ôntico-temporal da história, o que nos permitiria reconhecer a temporalidade e a intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo. O Dasein, existindo, conta com o tempo, toma tempo, perde tempo… ainda que sem compreender existencialmente a temporalidade.

O filósofo segue então, na direção de mostrar de que modo o Dasein, como temporalidade, pode “ter” ou “não ter” tempo. Se cotidianamente ele encontra o tempo no manual e no ser simplesmente dado que vêm ao encontro dentro do mundo, o como e porque forma o conceito vulgar do tempo necessita de um esclarecimento deste ocupar-se com o tempo. O ser-no-mundo, enquanto ser junto aos entes que vêm ao encontro dentro do mundo, anuncia-se na interpelação e discussão daquilo de que se ocupa. A ocupação funda-se na temporalidade e no modo de uma atualização que atende e retém: “É atendendo que a ocupação se pronuncia no ‘então’, é retendo que ela se pronuncia no ‘outrora’ e é atualizando que o faz no ‘agora’” (Heidegger, 1927/1996Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927)., p. 216). A atualização interpreta a si mesma nesse interpelar e discutir. Chama-se de tempo essa atualização que atende e retém interpretando a si mesma, ou seja, o que é interpretado no “agora”. A compreensão vulgar do tempo o entende como uma sequência de agoras, fluente e sem fim, que surge da temporalidade do Dasein decadente. A temporalidade, habitualmente, só é conhecida nas interpretações das ocupações. Sendo assim, o tempo se torna acessível com a abertura de mundo, já é sempre ocupado com a descoberta dos entes intramundanos. Uma vez que o Dasein lançado e decadente está, na maior parte das vezes, perdido nas ocupações, podemos dizer que nessa perdição anuncia-se a fuga encobridora de sua existência própria, ou seja, reside a fuga da morte:

Enquanto desviar o olhar da finitude, a temporalidade imprópria da pre-sença decadente e cotidiana deve desconhecer o porvir próprio e, assim, também a temporalidade em geral. É justamente quando o impessoal dirige a compreensão vulgar da pre-sença que se consolida a “representação” da “infinitude” do tempo público, que se esquece de si. (Heidegger, 1927/1996Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927)., p. 237)

Sendo a morte apenas “compreendida” existenciariamente em sentido próprio na decisão antecipadora, o impessoal nunca morre e compreende equivocadamente o ser-para-o-fim, onde, até o fim ele sempre “tem” tempo. Deste modo o que ele conhece não é a finitude do tempo e sim um tempo que ainda vem e passa; o tempo que nivela e que pertence a todo mundo, ou seja, a ninguém. No entanto, apesar de todo o encobrimento, o discurso do passar do tempo revela, de algum modo, uma vontade de deter o tempo que não se deixa deter. Aí reside o reflexo público do porvir finito da temporalidade do Dasein:

A pre-sença conhece o tempo fugaz a partir do saber ‘fugaz’ de sua morte. . . . E é porque até mesmo a morte pode ficar encoberta no discurso do passar do tempo que o tempo se mostra como um passar ‘em si’ (Heidegger, 1927/1996Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927)., p. 238).

Com Heidegger temos, então, que ser é algo que aparentemente nega o ser, e esse não ser, esse negativo, é próprio do ser - esse capaz de se apreender no vir a ser-para-morte; só assim ele pode existir no modo do destino, ou seja, ser histórico. Com Lacan, podemos dizer que o ser seria essa dobra temporal, essa tensão que de algum modo move o prisioneiro do sofisma como dissemos anteriormente. Também com Lacan, podemos pensar a morte como símbolo universal - que interpretamos como castração. Ou seja, se ao simbolizar fazemos operações contando com a castração, como recurso, a morte e a lei são partes da operação, atuando como símbolo maior dessa instância de negatividade. Em Heidegger, “entre” o originário e esse ser-para-a-morte (como porvir), fazemos nossa versão do esquecimento do ser. Em Lacan, se contando com essa operação simbólica pensarmos o sintoma como um ente paralisado no tempo, suspenso em sua história, nesse “entre” fazemos nossa versão do esquecimento do desejo.

De acordo com Dunker (aula ministrada no Espaço Cult, 26 de fevereiro de 2015, como parte do curso Lacan e a Filosofia), Lacan usa Heidegger justamente para pensar qual seria esse originário do ser do sujeito - de onde vem? E Lacan responde com Heidegger, mas também com a influência de outros pensadores e principalmente com a linguística de Saussure: esse lugar é a linguagem - condição para o sujeito e para o inconsciente, de onde tudo procede. Ainda de acordo com Dunker, se temos aqui também uma ressonância com o que Lacan entende por sintoma - esquecendo aquilo que nos nega como existência positiva, como uma espécie de ente fixado no tempo -, Lacan pode trazer de Heidegger algo que não acha em outro pensador: quando dissolvemos o sintoma, transformamos a metáfora do sintoma na metonímia do desejo. O gesto interpretativo transforma a metáfora em metonímia. E o que acontece enquanto se dá essa transformação linguística? Momento de cuidado; evanescente. O sujeito aparece em sua falta a ser. Ainda que por um instante2 2 Reiteramos, assim, nossa hipótese inicial de que, no texto dos tempos lógicos, a natureza também ontológica do inconsciente já estava apontada por Lacan, ao ligar a asserção sobre si a algo que se carrega só, ao relacionar angústia com uma tensão temporal e ao apontar a relação disso com uma presunção de verdade necessariamente relacionada ao porvir. , ainda que para em seguida vir a alienação, naquele instante a análise faz isso: lembra do ser, do ser como falta a ser, para a morte, como negatividade, abertura; e isso é Heidegger e é Lacan. Em Lacan:

Não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço ao acesso ao desejo -, na medida que esse desejo, nós o definimos alhures como a metonímia de nosso ser. O arroio onde se situa o desejo não é apenas a modulação da cadeia significante, mas o que corre por baixo, que é, propriamente falando, o que somos, e também o que não somos, nosso ser e nosso não-ser - o que no ato é significado, passa de um significante ao outro da cadeia, sob todas significações. (Lacan, 1959-1960/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 376)

Aqui retomamos nossa hipótese sobre uma ontologia em Lacan: o que o ser-para-a-morte heideggeriano em sua perspectiva temporal e ontológica tem a ver com o fato de Lacan afirmar que o estatuto do inconsciente é ético e não ôntico? Em que a ética, tal como Lacan a entende, relaciona-se com o ser-para-a-morte? Sabemos que, ao propor que o inconsciente apresenta uma estrutura de linguagem, ele introduz a dimensão do desejo; desejo partilhado, de reconhecimento. Tendo a linguagem como originário, a análise pode ser lida como a invenção de uma lei, de uma ética, que seja consoante com o desejo, pois, para Lacan, é o desejo que suporta o tema inconsciente, a articulação própria que faz com que nos enraizemos em um destino particular. Acontece que, como vimos, essa lei, ou essa ética, é invariavelmente marcada por uma falta a ser.

Lacan (1959-1960/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).) recorre então às tragédias gregas e, por meio da leitura da Trilogia tebana de Sófocles, principalmente de Antígona (2001Sófocles. (2001). Antígona (Schuler, D. trad.). Porto Alegre, RS: L&PM Pocket.), traz para a ética essa outra dimensão, trágica, pois aí residiria a experiência da ação humana. Na tragédia o que está em jogo não é uma espécie de verdadeiro acontecimento, mas o herói e seu entorno, que se situam em relação ao ponto de vista do desejo. E propõe uma outra ética, em resposta àquela relacionada a valores morais e ao serviço dos bens, ou antes, propõe a psicanálise como uma ética - do desejo -, que se distingue dos modos protocolares e do utilitarismo, estabelece um outro saber, elege a verdade do sujeito e faz prevalecer sua singularidade.

Para ele, os heróis de Sófocles caracterizam-se sempre pelo isolamento, pela solidão. São personagens situados, de início, em uma zona limite entre a vida e a morte, onde o bem não pode ordenar tudo sem que apareça um excesso e o que é deferido por esse bem é essencialmente ambíguo, havendo duas dimensões distintas: “por um lado as leis da terra, por outro o que os deuses ordenam” (Lacan, 1959-1960/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 326). Antígona se coloca nesse limite, onde ela se sente inatacável e onde nenhum mortal pode passar por cima das leis, ou melhor, de algo que é da ordem da lei, mas que não está desenvolvido em nenhuma cadeia significante: “Trata-se do horizonte determinado por uma relação estrutural - só existe a partir da linguagem de palavras, mas mostra a consequência intransponível disso” (Lacan, 1959-1960/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 328).

Ao defender o irmão como algo único - defesa que surge na linguagem do caráter indelével do que é - e colocar-se nesse limite intransponível, para além de tudo que lhe pode ser infligido, Antígona mantém o valor do seu ser que, segundo Lacan, é essencialmente de linguagem, pois a linguagem escande tudo o que ocorre. Para Antígona, a vida só é abordável a partir desse limite em que ela já a perdeu, abordável enquanto portadora desse corte significante que lhe confere o poder de ser o que é: ela encarna o desejo puro, é aquela que já escolheu em direção à morte. Podemos dizer, então, que Lacan nos apresenta a função do desejo em uma relação fundamental com a morte, ou melhor, em uma zona limite, repelida para além da morte; não é da morte comum que ele está falando, aquela que o homem convencional está sempre tentando evitar, mas de uma morte verdadeira, em que ele mesmo risca seu ser. Entendemos morte aqui do mesmo modo que Heidegger, como dissemos anteriormente, em que o homem, em uma decisão própria, livre para a morte, transmite-se a si mesmo em uma possibilidade herdada e, não obstante, escolhida. Fenômeno que Heidegger chama de destino e que exige para seu ser a temporalidade, pois só assim ele pode ser histórico. Do mesmo modo, Lacan nos mostra que é sempre por meio de algum ultrapassamento do limite que o homem faz a experiência do seu desejo; é o que ele chama de triunfo da morte. É como se a morte fosse apropriada como escolha, e em Antígona isso presentifica o belo como função de uma relação temporal, em sua apreensão na pontualidade da transição da vida à morte e nos fala de um desejo que é relação do homem com sua falta a ser. Sendo assim, podemos dizer que esse desejo, em Antígona, evidencia a relação que aqui tratamos entre inconsciente, tempo e ética da psicanálise e, ao voltarmos ao inconsciente ético, ontologicamente evasivo que citamos no início desse artigo, entender porque ele pode ser apreendido em uma estrutura temporal, ainda que, como diz Lacan, ele seja da ordem do não-realizado.

Referências

  • Heidegger, M. (1996). Ser e tempo: parte II (4a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927).
  • Heidegger, M. (2012). Ser e tempo (7a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1927).
  • Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1936).
  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960).
  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
  • Sófocles. (2001). Antígona (Schuler, D. trad.). Porto Alegre, RS: L&PM Pocket.
  • 1
    Na edição que usamos (1996), a tradução de Sein und Zeit para o português optou por traduzir Dasein por pre-sença. Neste trabalho, quando se tratar de citação literal, manteremos a opção do tradutor. No restante, optaremos pelo termo em alemão, opção também da nova edição bilíngue (2012).
  • 2
    Reiteramos, assim, nossa hipótese inicial de que, no texto dos tempos lógicos, a natureza também ontológica do inconsciente já estava apontada por Lacan, ao ligar a asserção sobre si a algo que se carrega só, ao relacionar angústia com uma tensão temporal e ao apontar a relação disso com uma presunção de verdade necessariamente relacionada ao porvir.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2016
  • Aceito
    27 Ago 2016
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