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O inconsciente da moda: psicanálise e cultura caipira

The unconscious of folksongs: psychoanalysis and "caipira" culture

Resumos

O presente artigo mostra a correlação entre a cultura e o inconsciente, tendo como mediador uma "Moda Caipira", produção musical encontrada no interior do Estado de São Paulo e adjacências. A análise mostra os níveis de comunicação que a obra permite, desde os mais superficiais até as significações míticas.

Inconsciente; Cultura popular; Arte; Música; Psicanálise


The present paper shows the relationship between culture and the unconscious, having as mediator a "Moda Caipira", a kind of folksong, found in the interior of São Paulo state and surroundings. The analysis shows the communication levels of the folksong, both the superficial and the mythical ones.

Unconscious; Folk culture; Art; Music; Psychoanalysis


O INCONSCIENTE DA MODA: PSICANÁLISE E CULTURA CAIPIRA

Osvaldo Luís Barison

Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira

Psicanálise de São Paulo.

O presente artigo mostra a correlação entre a cultura e o inconsciente, tendo como mediador uma "Moda Caipira", produção musical encontrada no interior do Estado de São Paulo e adjacências. A análise mostra os níveis de comunicação que a obra permite, desde os mais superficiais até as significações míticas.

Descritores: Inconsciente. Cultura popular. Arte. Música. Psicanálise.

Desde as formulações iniciais de Freud sobre o inconsciente, abriu-se um fértil terreno para diversas possibilidades de produção teórica. Não obstante a diversidade de visões que se tem sobre este conceito, há uma invariante no que diz respeito a assertiva de que o inconsciente não é só constituído por aspectos ontogenéticos, mas também por aspectos filogenéticos. O que se afirma com isso é que através de certos núcleos míticos, cada sujeito traz em si a história da humanidade, assim como a cultura é a produção das experiências de cada um e de todos os sujeitos.

Ao nascer, a todo indivíduo humano é oferecida a cultura específica de seu momento histórico e de sua localização geográfica, como uma grande possibilidade que precisa ser internalizada e discriminada para ser usufruída e transformada. O que diferencia um sujeito de outro é que, nas vivências, atualiza-se a história para o presente, com a roupagem característica do momento histórico e das experiências pessoais. É neste sentido que observamos que aquilo que temos de mais íntimo e pessoal é uma invariante, algo comum a todos humanos. Ou seja, núcleos míticos.

A idéia de núcleos míticos guarda uma relação de proximidade com as proto-fantasias propostas por Freud e com as pré-concepções da teoria de Bion. No entanto, preferimos usar o termo núcleo mítico, mesmo não sendo novo, pois, na Psicanálise, não está tão saturado quanto proto-fantasia e pré-concepção. De qualquer forma, usamos o termo na esperança de que possa significar o conjunto de possibilidades que, na mente, dá origem ao mundo de representações, como um umbigo deste conjunto. Acreditamos que uma das roupagens mais importantes para atualizar estes núcleos míticos, gerando e sendo gerado pelas significações, é a realizada pelas artes.

Entendemos que as artes são produções privilegiadas, complexas e que merecem abordagens diversas. A vertente que priorizaremos no momento é a que dá instrumentos para revelar tanto os meandros de uma cultura, quanto de um sujeito.1 1 Em outro artigo analisamos a capacidade que a arte tem de emocionar. Trata-se de Vertentes: psicanálise e literatura (Barison, 1996).

Uma obra funciona em uma freqüência dupla, pois ao mesmo tempo em que revela a cultura e o produtor, também serve para formatar a cultura e o receptor. Porém, esta função de dupla mão não se dá apenas no nível manifesto da estética da obra. Também ocorre uma comunicação latente, sub-liminar e que, mediada pela cultura e pela obra, coloca o artista e o receptor em um nível de sintonia inconsciente. A comunicação realizada transcende o nível formal.

Esta sintonia movimenta-se pela linguagem através dos valores, da ideologia, ou seja, da visão de mundo que a obra enseja. Contudo, esta visão de mundo também serve de roupagem para a atualização inconsciente dos núcleos míticos, tanto do artista, quanto do receptor.

Além dos aspectos formais e estéticos que a obra traz em si, assim como o prazer estético na recepção, é interessante notar os diversos procedimentos que estão presentes na relação dos sujeitos com a arte. Um dos procedimentos que saltam aos olhos e que está presente, em menor ou maior grau em todas as obras, pelo menos nas obras que vão até a chamada pós modernidade, é aquele segundo o qual a obra deve funcionar em uma freqüência psíquica muito próxima à dos sonhos, tanto na produção, quanto na recepção.

Considerando que toda obra de arte se utiliza de alguma linguagem, o lingüísta Roman Jakobson formula que entre as funções da linguagem há uma que permite a vinculação de sua natureza artística, estando configurada no que chama de "função poética." (Jakobson, s.d.). Baseando-nos nessa formulação, afirmamos que é como se todos os sujeitos tivessem em seu ego uma "instância poética" capaz de captar a "função poética da linguagem". Assim, entre as funções da mente, propomos a inclusão desta função significadora de objetos estéticos. É ela que nos permite estabelecer relações com uma obra de arte como se esta fosse do mundo da realidade. É ela que nos permite sofrer, apaixonar, odiar, pensar sobre a vida de novos prismas, enfim, darmos à verossimilhança o estatuto de verdade.

No entanto, ocorre um par complementar entre os dois pólos da comunicação. Em um dos pólos está o sujeito que se relaciona com sua "instância poética" de uma maneira ativa, produzindo arte: este é o artista, o produtor. No outro polo da cadeia, em termos de produção, se colocam os sujeitos passivos: estes são os receptores que acolhem a produção artística, usufruindo-a dentro de si.

É dessa perspectiva teórica que analisaremos a Moda Caipira, Cabocla Tereza, uma das mais importantes construções de nosso cancioneiro popular.

A vantagem de se analisar uma produção artística popular e restrita a uma cultura específica (no caso a da população rural do interior do Estado de São Paulo e adjacências) é a de se poder entender até que ponto a produção está vincada na realidade subjetiva de um povo, uma vez que se trata de uma cultura homogênea e bem definida. Entretanto, não é o nosso objetivo uma análise geral da obra escolhida. Assim, não serão considerados os aspectos estéticos e poemáticos, bem como a definição de caipira, moda e a própria história da toada que analisaremos. Caso o leitor se interesse pelo assunto, recomendamos a leitura do trabalho "Moda Caipira: Cantador, Universo, Mediações e Participação Emotiva" (Barison, 1994).2 1 Em outro artigo analisamos a capacidade que a arte tem de emocionar. Trata-se de Vertentes: psicanálise e literatura (Barison, 1996). O que nos interessa agora é rastrear como se dão os vários níveis de comunicação que a obra de arte permite, desde os mais superficiais até as significações dos núcleos míticos, podendo atuar nas chamadas fantasias inconscientes, demonstrando a estreita relação que existe entre a cultura e o inconsciente.

CABOCLA TEREZA

(Raul Torres e João Pacífico)

Declamado:

Lá no arto da montanha,

Numa casa bem estranha

Toda feita de sapê,

Parei uma noite o cavalo

Pra mor de dois estralo

Que eu ouvi lá dentro batê.

Apiei com muito jeito,

Ouvi um gemido perfeito

Uma voz cheia de dor:

" - Vancê, Tereza, descansa,

Jurei de fazê vingança

Pra mor de meu amor."

Pela réstia da janela,

Por uma luizinha amarela

Dum lampião apagando

Vi uma cabocra no chão

E um cabra tinha na mão

Uma arma alumiando.

Virei meu cavalo a galope,

Risquei de espora e chicote,

Sangrei a anca do tá.

Desci a montanha abaxo

Galopeando meu macho,

Seu dotô fui chamá.

Vortemo lá pra montanha,

Naquela casinha estranha

Eu e mais seu dotô.

Topemo um cabra assustado

Que chamando nóis prum lado

A sua história contô:

Cantado:

" - Há tempo fiz um ranchinho

Pra minha cabocla morá,

Pois era ali nosso ninho

Bem longe deste lugá.

No arto lá da montanha,

Perto da luiz do luá,

Vivi um ano filiz

Sem nunca isto esperá.

E muito tempo passô

Pensando em ser tão feliz,

Mas a Tereza, dotô,

Felicidade não quis.

Puis meu sonho neste oiá,

Paguei caro o meu amô,

Pra mor de outro caboclo

Meu rancho ela abandonô.

Senti meu sangue fervê,

Jurei a Tereza matá,

O meu alazão arriei

E ela eu fui percurá.

Agora já me vinguei,

É este o fim dum amô.

Esta cabocla eu matei

É a minha história dotô."

Esta toada de Raul Torres e João Pacífico, gravada por ambos pela Victor em 1940, tornou-se um dos maiores sucessos da Moda Caipira, recebendo mais de quarenta regravações, sendo a mais famosa a de Torres e Florêncio.

Tal qual ocorre em outras Modas Caipiras, nota-se que a maneira de apresentar uma música por introdução declamada cria um clima de intimismo. Configura certa solidão, numa atmosfera introspectiva que favorece o campo para a manifestação do sentimentalismo lírico, familiar ao romantismo. Portanto, compromete o ouvinte com a história, aguçando a disposição afetiva para entrar em contato com os sentimentos que a moda desperta. Diferentemente da parte cantada que, mesmo mantendo a atenção dos ouvintes, por envolver instrumentação, atenua, dispersando, a importância do que se está dizendo.

A segunda parte é a "toada" propriamente dita, melancólica e vagarosa. Na forma de discurso direto, o cantador empresta sua voz para que o ex-companheiro de Tereza conte ao doutor e ao personagem-cantador os motivos que o levaram a assassinar Tereza.

Logo no início ocorre uma localização espaço-temporal do cenário da história. Há uma descrição pitoresca do lugar (no sentido plástico) que revela uma atmosfera de melancolia e emotividade, perpassando todos os versos da primeira parte do poema.

Assim, há a realização de uma ancoragem que remete a uma localização sombria, com um cenário feérico, misterioso, rústico, sugerindo esconderijo de criminosos, lugar propício à tragédia e ao inusitado. Tais características vêm reforçadas pela presença do signo "noite". O cantador revela que foi atraído para aquele cenário em função dos dois "estalos" que ouviu, signo produtor de um efeito de tensão narrativa. Essa maneira de introduzir o universo do que será narrado comove o ouvinte e o remete a um mistério e a um clima onírico, algo que atrai e prende a atenção para o desenrolar da narrativa que se seguirá.

A narração parte do presente, de um "tempo zero", porém o fato ocorre no passado, numa noite não determinada. Trata-se de uma narração ulterior aos fatos.

O cantador narra, no tempo presente, fatos que presenciou em suas andanças pelo sertão. Quando a focalização se desloca para o ex-companheiro de Tereza, o personagem se vale de uma analepse remetendo ao passado para poder contar a seus interlocutores - o cantador e o doutor - sua história com a vítima. Dito de outro modo, a partir do tempo presente da enunciação, o cantador se remete ao passado para contar o episódio da morte da Cabocla Tereza. Porém, quando a focalização é deslocada para o assassino, ele retorna ainda mais ao passado para contar que aquele ato tinha motivações remotas. Do ponto de vista do assassino, seu relacionamento com Tereza é constituído por três momentos distintos, representados no enunciado pelas três estrofes da segunda parte:

a) No primeiro momento, o assassino revela uma situação idealizada juntamente com a mulher amada. As figurações de valores idealizados por signos como "ranchinho", "ninho", "montanha", "luz do luar", dão a impressão de uma situação amena, apaixonada, plena de romantismo e felicidade. Demonstra um clima de harmonia e equilíbrio. Porém, no final da primeira estrofe, o agente da narração aponta um princípio de ruptura expresso no verso "Sem nunca isto esperá".

b) O depoente inicia a segunda fase de seu relato fazendo uma elipse do tempo. Diz que "muito tempo passou". Durante este tempo, a vida correu normalmente. Porém, o que ele pensava ser felicidade, num clima de união, não era compartilhado por Tereza. Em sua fala, o personagem parece acreditar que sempre fora enganado pela companheira. Descobre, no seu entender, que não havia motivos para que ela o abandonasse, a não ser por uma índole perversa e dissimulada de sua companheira. Isto explica, do seu ponto de vista, o assassinato.

c) Na terceira parte, depois que Tereza abandona o rancho, ele relata sua reação frente à traição. A grande surpresa gera uma reação somática, expressa no "sangue que ferve" e que, para acalmar, necessita de uma ação vingativa em nível corporal. Para tanto procura Tereza e consuma a sua ira, como um ato catártico. Expia o mal, punindo com a morte a mulher ingrata e infiel.

Outro elemento importante da segunda parte desta toada é o aparecimento do personagem "dotô" a quem a fala é dirigida. Este doutor não é só a personificação de um personagem interlocutor, mas também o personagem a partir do qual os ouvintes passam a se identificar. Tal recurso acaba por transportar o ouvinte de uma atitude passiva de recepção para uma atitude viva, participativa, cumpliciada. Quer dizer, o ouvinte é guiado à condição de supremacia hierárquica de doutor e remetido a se posicionar, a formular algum nível de julgamento sobre o ocorrido.

Os procedimentos narrativos e as pistas para desvendar a identidade do cantador revelam que se trata de um boiadeiro, se não, pelo menos de um viajante. Ele tem participação nas ações da trama, porém não se envolve diretamente com a história narrada. O enunciador testemunhou alguns fatos e agora passa a relatá-los. Como será visto adiante, ele não se revela, quer dizer, não demonstra de forma explícita a sua subjetividade.

Apesar do cantador dizer que foi buscar o doutor, o que revela certa tomada de posição ante os fatos, ele não faz nenhuma intromissão que exprima seu juízo de valor sobre a traição, ou o assassinato. Este ocultamento da opinião pode denotar uma postura baseada em valores ideológicos. Neste sentido, o evitar comentários, a transferência da focalização da voz do cantador para o personagem do ex-companheiro de Tereza, pode ser entendido como um posicionamento em relação ao episódio. É uma postura assumida pelo cantador, enquanto modelador, que vai ao encontro de um padrão cultural que está expresso em uma quantidade considerável de modas. Toda a forma de ver e de se relacionar com o mundo se dá pelo ponto de vista do homem, o que acaba por criar uma perspectiva enviesada na visão de mundo marcada por uma hierarquia de gênero. Os valores que emanam desta forma de ver excluem a óptica feminina. A mulher não participa com voz em nenhum momento. Ela se resigna, se pudermos assim dizer, em seu caráter de ser distante, perigoso e traiçoeiro. A mulher, enquanto musa caipira, por um lado deve ser idolatrada e, por outro, temida.

Em Cabocla Tereza, a característica cultural do machismo assume uma representação complexa e dissimulada. Veja-se que na moda o cantador não esboça qualquer comentário sobre as ações ocorrentes. Esta postura, que poderia denotar neutralidade, acaba por impregnar, na fruição dos receptores, uma idéia de naturalidade do ocorrido. Ou seja, transmite a mensagem de que é aceitável ao homem traído assassinar a mulher, restabelecendo a ordem moral e a situação de equilíbrio em relação ao que se aceita como tradicional e natural.

Apesar da personagem Tereza ser o título desta toada, ela não tem uma participação efetiva, não faz uso da voz em nenhum momento, sendo só referida pela visão do seu ex-companheiro. É a perspectiva dada por um homem que, ao cantar uma canção, estando imbuído da função de significar a realidade, professa a visão machista reinante na idiossincrasia de seu mundo, de seu contexto cultural.

Nesta toada, mais que o cantador, a cultura fala. Desde o nascimento, os sujeitos estão inseridos em um contexto no qual a organização familiar reflete e reassegura ao homem a posição de "dono" da mulher e da família. Observando o poder na estrutura familiar das camadas populares das regiões agrícolas, sabemos que todo ele é baseado no poder do homem e do pai.

É através de mensagens "latentes", reflexos de uma cristalização de valores culturais do meio, que Cabocla Tereza serve como exemplo, como "mensagem reasseguradora" de um alerta para as mulheres e uma autorização aos homens: a mulher que trai deve ser severamente punida. Assim, se por um lado a moda reflete valores arcaicos estagnados no meio rural, por outro, os retroalimenta. A organização social baseada na hierarquia de gênero, ou seja, no poder do homem, do pai, do chefe, assim como a repressão sexual da mulher, são conceitos necessários quando se tem divisão social entre classes e dominação de uma sobre outra. Ao se referir e, por conseqüência, referenciar estes valores como naturais e imutáveis, a moda reforça, involuntariamente, uma cristalização destes valores.

A questão da focalização, ou seja, a escolha da perspectiva em que uma estória irá ser narrada, é revelador da posição do autor implícito. Isto é, da concretização nos meandros do texto da presença da instância poética do autor de carne e osso. Assim, é como se houvesse uma invasão do inconsciente sobre a obra de arte, sendo que esta passa a ser veículo do que ocorre em suas fantasias inconscientes e que são revestidas por conteúdos presentes na cultura e partilhados, inconscientemente, pelos seus pares. Tal qual em um sonho manifesto em que as idéias são produzidas esteticamente sob a vigilância da censura, o conteúdo latente demonstra algo implícito, algo que o sujeito deveras deseja.

É neste sentido que podemos afirmar que as características mais arraigadas na cultura de um povo são baseadas nas projeções de aspectos inconscientes que entram em sintonia com a cultura em um processo de retroalimentação. Portanto, além de refletir valores aceitos pelo grupo social, esta toada de Raul Torres e João Pacífico utiliza-se de uma temática recorrente nas Modas Caipiras e nas canções populares: a traição amorosa. Muito do fatalismo que existe nesta toada, e nas demais canções que tratam das "histórias de amor", se deve à sensação da perda de uma situação idealizada com a companheira. Quando o narrador se refere a uma situação romântica disfórica, sempre representa o término de um relacionamento idealizado, provocado pela traição da mulher. É comum que algum rival apareça fazendo a cesura da ligação, roubando a "mulher perfeita".

São canções que criam grande empatia com os ouvintes, sugerindo questões presentes no imaginário popular. Buscando o auxílio da psicanálise para entender a razão da recorrência desta temática nas canções populares, podemos observar que são modas construídas sobre um núcleo mítico da relação triangular entre um homem, sua companheira e a aparição de um rival que destrói a integração que havia entre ambos. Este núcleo guarda semelhanças com o que, em psicanálise, se conhece como a base da vivência edípica. A teoria psicanalítica entende que sobre esta base é alicerçada toda a constituição do indivíduo. É a vivência que funda o sujeito. Assim, na marcha do desenvolvimento pessoal, todos os humanos, para se constituírem como tais, passam por esta vivência, independente de suas condições históricas, sociais ou culturais. Por ser uma situação muito parecida com a tragédia Édipo Rei, de Sófocles, Sigmund Freud importou o nome do personagem grego para o que designou de "complexo de Édipo". Freud atribuíu ao complexo de Édipo um caráter nuclear na organização do indivíduo. No próprio dizer do psicanalista: "Todo ser humano encontra ante si o trabalho de dominar o complexo de Édipo, e se não o faz, sucumbirá à neurose". (Freud, 1905, p.1227). Desde Sófocles, este núcleo mítico tem sido explorado de várias maneiras pelos artistas ao longo da história, revelando a importância da vivência relacional do triângulo entre filho, mãe e pai.

Na vivência do conflito edípico, a criança passa por uma primeira fase na qual a mãe é o único objeto externo a si. Estabelece um vínculo simbiótico, permanecendo exclusivamente ligado a ela até se haver com a dolorosa percepção de que, além dele e da mãe, existe um "outro". Mais ainda, este outro tem a preferência do amor da mãe. Conseqüentemente, toda a sensação de falta e dor que a criança experiencia é atribuída à negação, por parte da mãe, em supri-lo, uma vez que, na crença do infante, a mãe está suprindo o pai. Esta situação triangular provoca toda a sorte de sentimentos violentos e ambíguos. Em função da bissexualidade constitucional da criança, tanto o pai quanto a mãe recebem uma carga de sentimentos hostis e amorosos. No menino, dentro de um desenvolvimento normal, o pai é tido como modelo de identificação e a mãe como objeto amoroso. Ao mesmo tempo em que o menino ama e deseja a mãe, ele também a odeia por deixá-lo viver a dor. Além do mais, em função da bissexualidade, o menino:

... não apresenta somente uma atitude ambivalente em relação à mãe, senão que se conduz ao mesmo tempo como uma menina, apresentando a atitude carinhosa feminina para com seu pai e a atitude correlativa, hostil e ciumenta para com sua mãe. (Freud, 1923, p.2713).

Assim, a relação com o pai também é ambivalente. O pai é amado, é um modelo para a identificação da criança. Contudo, também é um rival temido, merecendo muita carga de ódio e desejo de destruição. A quebra desta situação dramática que a criança vivencia desde o seu nascimento até por volta dos sete anos, se dá pela repressão dos desejos destrutivos em relação ao pai e dos desejos sexualizados pela mãe. Fica garantida, assim, a proibição ao incesto. É através desta explicação, aqui grosseiramente resumida, que a psicanálise entende a inscrição do indivíduo na cultura. Mas o complexo de Édipo continua ativo pelo decorrer da vida, expressando-se nas fantasias, nos sintomas, nas produções artísticas e na cultura.

A nossa hipótese é que os poetas tornam-se porta-vozes deste núcleo mítico do sujeito e o representam nas suas obras com temática sobre a traição amorosa. Nestes casos, substituem a experiência da perda da mulher-mãe para o rival-pai, pela perda da mulher-amante para o rival-outro. Assim, a composição atualiza e exprime o conflito edípico. O indivíduo se "reconhece" na obra ficcional como se ele também tivesse vivenciado a mesma história.

Em Cabocla Tereza não se tem uma expressão do conflito edípico como um todo, mas do seu estágio inicial. Veja-se que o personagem-narrador descreve, na primeira estrofe da segunda parte, que:

No arto lá da montanha,

Perto da luiz do luá,

Vivi um ano filiz

Sem nunca isto esperá.

Estes versos sugerem que ele e Tereza viviam uma relação solidária, apartados de tudo e de todos. Uma relação simbiótica, por assim dizer. A traição de Tereza rompe com esta situação idílica. A vivência concreta da traição empreendida pela mulher-amada é insuportável para o personagem-narrador. É como se ele estivesse relatando a dor da experiência de alguém que não está preparado para saber que existe, além dele e a "mãe", outras pessoas na vida. Assim, esta toada parece atualizar, para o contexto do momento, a dor e a decepção que o menino experiencia ao "descobrir" a existência do pai e a ligação deste com a mãe. Mais do que isto, a moda realiza uma expiação catártica da ira que esta descoberta provoca na criança. Ao ouvirmos a fábula de Cabocla Tereza, realizamos, inconscientemente, a fantasia destrutiva motivada pela vivência de sermos "traídos" pela mãe, o que não nos é legado realizar na realidade. Assim, é proporcionado ao ouvinte, através de uma identificação com o personagem-narrador, a possibilidade de reviver em fantasia uma fase de nossa própria relação triangular com a mãe e o pai, funcionando como uma ab-reação dissimulada. Esta talvez seja uma das explicações para a recorrência desta temática nas Modas Caipiras e populares em geral, criando tamanha empatia com os ouvintes.

Cabocla Tereza gera um campo perfeito para a identificação do ouvinte com a tragédia narrada pelo cantador. É claro que esta identificação é mais eficaz aos membros da cultura caipira, pois é a expressão de valores sintonizados com a visão de mundo desta cultura. Mas, também, o núcleo mítico da relação triangular, da exclusão e da ira que isto provoca, é revestido na forma poemática presente na estética desta toada, provocando a atualização e expiação fantasiosa de um estágio da vivência edípica.

BARISON, O.L. The Unconscious of Folksongs: Psychoanalysis and "Caipira" Culture. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.281-95, 1999.

Abstract: The present paper shows the relationship between culture and the unconscious, having as mediator a "Moda Caipira", a kind of folksong, found in the interior of São Paulo state and surroundings. The analysis shows the communication levels of the folksong, both the superficial and the mythical ones.

Index terms: Unconscious. Folk culture. Art. Music. Psychoanalysis,

2 Dissertação de Mestrado, apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração "Teoria da Literatura", do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Universidade Estadual Paulista - Campus de São José do Rio Preto. Orientação do Prof. Dr. Romildo Sant'Anna, 1994.

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    Em outro artigo analisamos a capacidade que a arte tem de emocionar. Trata-se de
    Vertentes: psicanálise e literatura (Barison, 1996).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 1999
    • Data do Fascículo
      1999
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