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PSICANÁLISE E UNIVERSIDADE: ENSINO

PSICANÁLISE E UNIVERSIDADE: ENSINO

Octavio Souza1 1 Professor do Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. E-mail: octsouza@uol.com.br

FIOCRUZ

Para melhor situar o que tenho a dizer sobre a questão do ensino de psicanálise na universidade, antes gostaria de falar para vocês sobre minha relação com universidade. E para fazê-lo, vou contar, de uma maneira bem abreviada, o meu percurso: como ingressei na universidade, e como me relaciono com as instituições psicanalíticas. Acho que toda a questão da relação da psicanálise com a universidade, e eu vou falar sobre isso mais adiante, não pode ser tratada em toda sua complexidade sem também se considerar a questão da relação da psicanálise com a instituição psicanalítica.

Meu ingresso na universidade é relativamente recente, data de 1991. Até 1989 toda a minha trajetória profissional se concentrou na instituição psicanalítica. Dois anos após minha saída da instituição psicanalítica em que me encontrava, quando ainda buscava um modo de dar prosseguimento à minha experiência institucional, afiliando-me à alguma instituição psicanalítica já existente ou criando uma nova, surgiu, de modo casual, quase que como uma surpresa, a oportunidade de ingressar no Departamento de Psicologia da PUC do Rio de Janeiro e de fazer parte de seu Programa de Pós-Graduação. Atualmente minhas atividades institucionais se concentram na universidade, uma vez que desde então não me afiliei à nenhuma instituição psicanalítica. Contudo, a despeito do meu entusiasmo pela transmissão da psicanálise na universidade, e embora também considere muito difícil encontrar um bom ângulo de inserção em uma instituição psicanalítica, devo dizer que sinto muita falta do tipo de convívio, do tipo de ensino e das trocas de experiências clínicas que acontecem em uma instituição psicanalítica. A associação entre pares de uma mesma instituição possui características que o relacionamento entre professores e alunos, ou entre professores, não possui, e que possibilitam uma aproximação das questões clínicas e doutrinárias de um modo muito mais intenso do que até hoje tem se mostrado possível, ou até mesmo desejável, na universidade.

Mas retornemos à questão da universidade. Acredito que todos estarão de acordo comigo se disser que nos últimos anos aconteceu um boom da psicanálise na universidade brasileira. É verdade que há muito tempo a psicanálise está na universidade, inserida de modo explícito ou disfarçado nos currículos dos cursos de Graduação em Psicologia. Mas a psicanálise como linha de pesquisa em Programas de Pós-Graduação ou, ainda, Programas de Pós-Graduação exclusivamente dedicados à psicanálise, isso é um acontecimento novo, principalmente se levarmos em conta o grau de sua multiplicação nos dias de hoje. Além de estudantes que encontram nos programas de pós-graduação um complemento para sua formação analítica, é ainda mais impressionante o número de psicanalistas com grande experiência clínica que procuram os programas para redimencionar seu percurso teórico. Para entendermos a questão do ensino da psicanálise na universidade temos que entender também esse acontecimento.

Sem procurar proceder a um exame detalhado da questão, devo dizer que de meu ponto de vista particular - minha formação, minha geração, minha cidade - o boom da psicanálise na universidade se mostra como um efeito do ensino de Lacan, e também como o desdobramento tardio, aqui no Brasil, do rompimento de Lacan com a IPA, ou de sua excomunicacão, se preferirem. Por um lado, comparando-se as teorias psicanalíticas entre elas mesmas, existe uma maior afinidade entre o modo lacaniano de fazer teoria e o ensino universitário: é importante não esquecer que dentre os grandes nomes da psicanálise Lacan foi o único a tomar a iniciativa de levar o ensino da psicanálise para a universidade, dando seguimento à sua preocupação em abrir o estudo da psicanálise aos não-analistas de modo a expor a teoria psicanalítica ao confronto com outras modalidades de saber. Por outro lado, e é este o ponto mais importante, se, num primeiro momento, a proliferação de instituições psicanalíticas de orientação lacaniana teve um valor de oposição ao dogmatismo da IPA, propiciando a renovação do ensino da psicanálise e franqueando a formação psicanalítica a um número infinitamente maior de pessoas, num segundo momento, a multiplicidade das instituições da diáspora lacaniana se mostrou incapaz de escapar ao dogmatismo de cuja crítica se originaram. Na opinião de Elizabeth Roudinesco, apenas trocaram o dogmatismo do procedimento técnico do tratamento analítico e da estrutura da formação analítica que existia na IPA, pelo dogmatismo teórico e doutrinário, dogmatismo este, em última análise, ainda segundo Roudinesco, muito mais constrangedor e impeditivo do pensamento criativo do que a standatização ipeana.

Fora essa questão da crise nas instituições, tanto lacanianas, quanto não lacanianas, tradicionais como a IPA ou próximas à IPA, nós também podemos atribuir esse boom a um movimento natural da universidade. Não é necessário creditar esse boom apenas a crises. Por que não ensinar psicanálise na universidade? Até a pouco tempo, a universidade abrigava poucos cursos, dedicando-se a relativamente poucas modalidades do saber. Hoje a universidade multiplica seus cursos, tanto de graduação quanto de pós-graduação, e tende a se colocar, sempre que possível, como pré-requisito para o acesso a qualquer exercício profissional. Houve então também a expansão da universidade no sentido de acolher várias práticas que antigamente ali não encontravam lugar.

Certamente, o boom pode ser explicado por essas duas razões: tanto é natural que a psicanálise esteja na universidade quanto também isso aconteceu por uma crise no interior das instituições. Acredito que se avaliarmos esta conjuntura sem toldarmos o horizonte com a militância embandeirolada, o que encontraremos é um conflito entre instituições, uma competição entre a instituição psicanalítica e a universidade. É claro que do ponto de vista daqueles que buscam formação em ambos os tipos de instituição há também complementaridade, na medida em que uma pessoa pode encontrar coisas diferentes para fazer em cada um destes tipos de instituição e que estas coisas serão certamente elementos importantes em sua formação. Mas, visto do ponto de vista de cada tipo de instituição, da instituição psicanalítica e da instituição universitária, a situação é de disputa. Do ponto de vista da instituição psicanalítica a competição é bem mais visível. Uma instituição psicanalítica, por exemplo, não pode ter seus alunos, seus candidatos, e esperar que procurem complementar sua formação na universidade em um programa de pós-graduação. Do ponto de vista da universidade a competição ainda não está muito visível, pelo menos neste momento. Embora exista ensino da psicanálise na universidade, supõe-se, sem muita preocupação com o assunto, que se uma pessoa quiser realmente ser psicanalista, que ela se afiliará a uma instituição psicanalítica mais cedo ou mais tarde. No entanto, não me parece que essa situação possa perdurar muito tempo, não me parece que as coisas possam ser resolvidas de uma maneira tão simples quanto esta, pois acredito que a autolimitação imposta pela universidade ao alcance da formação que ela mesma oferece traz problemas para a qualidade do ensino da psicanálise na universidade. Veremos isto daqui há pouco.

Por outro lado, mesmo impondo limites ao alcance do ensino que oferece, é verdade também que cada vez mais se torna um fato que a universidade forma psicanalistas. Este é um fato ao qual devemos prestar atenção. Cada vez mais alunos, principalmente dos cursos de graduação de psicologia, fazem sua análise pessoal sem nenhum vínculo com qualquer instituição psicanalítica, prosseguem seus estudos cursando o mestrado e o doutorado e complementam sua formação com supervisões mais ou menos sistematizadas, grupos de estudos e trocas informais. Deste modo, mal ou bem, a universidade tem formado psicanalistas que não passam pela instituição psicanalítica, ou que passam de uma maneira apenas superficial, sem estabelecer com ela qualquer vínculo efetivo de afiliação ou de pertinência, apenas freqüentando de modo não sistemático os seminários abertos ou os cartéis oferecidos pelas diversas instituições psicanalíticas. Nessa constelação de vários locais de ensino da psicanálise pode-se fazer, e faz-se, efetivamente, uma formação com bastante qualidade. Aliás, se prestarmos bem atenção, este estilo aberto de formação é bem próximo da formação efetiva que acontecia na Escola Freudiana de Paris, na qual não havia quase nenhum tipo de seleção para o ingresso na instituição, e onde o analista tinha de se fazer conhecer por seus pares, para que, somente depois, num limite de tempo indeterminado, pudesse ser eventualmente reconhecido como Analista, com A maiúscula, pelos comitês oficiais da instituição. Enquanto não era reconhecido pela Escola, e esse reconhecimento, para a maioria das pessoas, podia durar bem mais do que dez anos, sua formação era quase tão aberta e interligada com a universidade quanto a formação a-sistemática e multifacetada a que estou me referindo.

O problema é que é difícil reconhecer o fato de que a universidade forma psicanalistas, pois as conseqüências são vastas. Já escuto a pergunta: "Então você quer o quê? Quer que a formação do psicanalista seja feita na universidade e pela universidade? Quer que a psicanálise seja uma profissão regulamentada por diplomas?" Não, não quero! Principalmente não quero que a psicanálise seja uma profissão regulamentada por diplomas, acho que é suficiente que o exercício da psicoterapia seja regulamentada por diplomas ou por licenças para o exercício da atividade, como, aliás, ele já o é - gostaria apenas que sua regulamentação fosse menos restritiva e sua aplicação mais conseqüente. Contudo, em primeiro lugar, quando falo que as universidades terminam por formar psicanalistas, estou constatando um fato, e em segundo lugar, e é esse o ponto mais importante, minha principal preocupação é contribuir da melhor maneira possível para a formação de bons analistas, e não creio que restringir o alcance do ensino da psicanálise na universidade seja uma boa maneira de formar bons analistas. Como se pode ver, minha posição não deixa de comportar certas dificuldades e contradições.

Passemos então ao exame da questão do ensino da psicanálise na universidade. Na formação oferecida pelas instituições psicanalíticas o ensino faz parte de um tripé constituído por análise pessoal, supervisão e ensino. Se quiséssemos rebater este tripé sobre a universidade, teríamos de constatar logo de início que a universidade não pode, ou não deve oferecer análise pessoal. Esta diferença, contudo, é abrandada pelo fato de que cada vez mais instituições psicanalíticas reconhecem análises feitas com analistas pertencentes a outras instituições ou não pertencentes a nenhuma instituição. Existe um certo afrouxamento das instituições psicanalíticas em relação à formação do didata. Todas elas insistem em que é preciso que haja análise pessoal e que é preciso que essa análise dure algum tempo, mas não se pode dizer que as instituições psicanalíticas estão oferecendo análises didáticas como ofereciam antigamente. Existem mesmo algumas que não se ocupam da formação propriamente dita.

No que se refere aos outros dois pés do tripé, embora seja verdade que muitas universidades fornecem supervisão em seus serviços de atendimento psicoterápico, na verdade as supervisões ocorrem basicamente na graduação, nos Serviços de Psicologia Aplicada, nos SPA, não sei como isso é chamado aqui na USP, que são os serviços de psicologia oferecidos à comunidade pelos cursos de graduação, e, em alguns casos, pelos cursos de pós-graduação lato-sensu. Creio que não existem serviços de atendimento ligados programas de pós-graduação stricto-sensu. É importante ressaltar que os programas de especialização lato-sensu, em geral, são um pouco colaterais, não inseridos nos Programas de Pós-Graduação. Pelo menos no Rio de Janeiro, eles raramente são oferecidos ou administrados pelo corpo docente dos Programas de Pós-Graduação, que é, em geral, o mesmo corpo docente da Graduação. Isto faz com que o corpo docente regular dos institutos e dos departamentos de psicologia se ocupem de clínica apenas no nível da graduação. Se nos lembrarmos então que Freud afirmava que a psicanálise é uma disciplina na qual, diferentemente de outras disciplinas, a pesquisa se confunde com a prática clínica, teremos de concluir, por esse simples fato, que a pesquisa em psicanálise na universidade não pode estar indo de vento em popa.

A desvinculação entre prática e ensino que acontece com a psicanálise na universidade pode ser entendida em termos históricos e não deve ser considerada natural. Muito pelo contrário, a vocação da universidade é a vinculação entre prática e ensino. Nos programas de pós-graduação em medicina, por exemplo, existe uma intensa integração entre clínica, pesquisa e ensino. Nos programas de disciplinas que não comportam prática clínica, existe uma intensa integração entre ensino e pesquisa, entre prática e ensino. Em psicanálise temos apenas ensino, e quando se fala em pesquisa, fala-se em pesquisa empírica desligada da prática clínica, mais nos moldes das pesquisas qualitativas em ciências sociais, ou em pesquisa clínica exercida em instituições sem vínculo com os programas, ou em clínica exercida nos consultórios particulares. De qualquer modo, sempre que a clínica psicanalítica é incluída em pesquisas levadas a efeito com a finalidade de obtenção de mestrado ou doutorado, esta clínica é exercida longe de qualquer possibilidade de supervisão ou outro tipo qualquer de participação por parte dos professores do corpo docente do programa. Acredito que seria muito interessante se alunos de pós-graduação pudessem trabalhar em conjunto com os professores dos programas de pós-graduação em serviços de atendimento psicoterápico e outros tipos de serviço oferecidos pelas próprias instituições universitárias, em hospitais universitários etc. Não vejo razão para que este tipo de colaboração fique restrito aos cursos de graduação e para que as pós-graduações em psicanálise continuem ou essencialmente teóricas ou, quando clínicas, que o trabalho prático e clínico se efetue obrigatoriamente sem a colaboração entre professores e alunos. Esta conjuntura está na raiz de uma certa inespecificidade vigente no ensino da psicanálise na universidade tal como ele é praticado hoje em dia. Destaco três pontos em que esta inespecificidade se torna patente e nos quais alguma pode ser feita para revertê-la. O primeiro diz respeito a um certo tipo de projeto de tese e de dissertação freqüentemente acolhido pelos programas, o segundo às limitações do conteúdo do ensino da psicanálise na universidade e o terceiro diz respeito ao tipo de trabalho requerido para a conclusão de mestrado e doutorado.

Em primeiro lugar, a universidade tem se mostrado o refúgio predileto de psicanalistas desencantados não apenas com as instituições psicanalíticas, mas com a própria psicanálise em geral e, principalmente, com a prática que com certo desprezo chamam de prática do divã. Tal sentimento de desencanto tem como pano de fundo um diagnóstico de crise da psicanálise. Não cabe aqui discutir se a psicanálise está ou não em crise. Mas é claro, por um lado, que a crise da modernidade atinge a psicanálise, como também atinge outras práticas altamente valorizadas, como a arte, por exemplo. Existe também uma crise no que diz respeito à avaliação dos caminhos da renovação artística. Tal crise, contudo, não impede a produção de trabalhos artísticos importantíssimos e também não provoca a debandada dos artistas de seus locais de criação e de trabalho. Portanto, não é este diagnóstico de crise da modernidade e crise da psicanálise que provoca o desencanto dos psicanalistas desencantados, mas sim a impressão, absolutamente falsa, a meu ver, de que não existe mais pensamento criativo em psicanálise. Julgo que esta impressão é produzida por um ponto de vista que integra de modo paradoxal o fechamento das ortodoxias e a constatação da estagnação destas mesmas ortodoxias. Este ponto de vista é muito comum, por exemplo, em psicanalistas que talvez pudessem ser chamados de semilacanianos por concordarem com os lacanianos que Lacan salvou Freud do esquecimento e a psicanálise do desaparecimento, e que, por conseguinte, qualquer relançamento da psicanálise só pode surgir de um horizonte lacaniano, mas que, ao mesmo tempo, julgam o lacanismo contemporâneo estéril e caricato. Tal perspectiva restringe muitos psicanalistas ao horizonte dos 24 volumes das obras completas de Freud e a alguns comentaristas destes mesmos 24 volumes mais ou menos inspirados em Lacan. Por mais que sejam maravilhosos estes 24 volumes, cedo ou tarde é certo que a sensação que se tem só pode ser a de claustrofobia. Como a perspectiva de trabalhar para alcançar uma visão do conjunto da produção psicanalítica contemporânea é julgada absolutamente desinteressante pelos motivos que vêm de ser expostos, o único caminho que se desenha é o de buscar arejamento em outras disciplinas, em outros objetos de interesse que não os referentes à clínica psicanalítica. É importante notar que não se trata aqui de abordar outras disciplinas para resolver questões psicanalíticas bem delimitadas, mas sim da busca de novos ares. Qualquer texto pode ser interessante, contanto que não seja um texto psicanalítico. É neste ponto que os estudos universitários ganham para o psicanalista desencantado um valor de "abertura para o exterior." É também neste mesmo ponto que a inespecificidade do ensino da psicanálise na universidade torna os programas de pós-graduação que abrigam linhas de pesquisa em psicanálise extremamente permeáveis a projetos de pesquisa de alunos que estão tomando contato pela primeira vez com o tema que se propõem estudar. Sob a desculpa de interdisplinaridade, psicanalistas procuram fazer de suas dissertações e teses motivo para se dedicar ao estudo de disciplinas com as quais não têm quase nenhuma intimidade. Mas como seus trabalhos, afinal de contas, não são trabalhos nem em antropologia, nem em sociologia, história, literatura ou crítica filosófica da cultura, mas sim em psicanálise, acabam por ter de conjugar aos seus novos interesses uma visão psicanalítica pouco trabalhada durante o tempo de elaboração de suas teses ou dissertações, e cuja principal função, se formos examinar bem a coisa toda, é a de costurar e dotar de uma certa coerência um trabalho que tem os defeitos, a fragmentação e as inconsistências dos trabalhos feitos por iniciantes.

É importante perceber um fato que deveria ser evidente mas que muitas vezes é perdido de vista quando se proclama com entusiasmo que a academia é importante para o psicanalista pela exposição ao convívio com outras disciplinas e pela perspectiva crítica que esta exposição desencadeia. Não acredito que este convívio seja o que de melhor se pode colher da inserção da psicanálise na universidade, nem que o espírito crítico seja assim adquirido. Apesar da universidade propiciar o convívio entre especialistas de várias áreas do saber distribuídos por seus vários institutos e departamentos, toda a tradição acadêmica é, antes de mais nada, construída em torno da preocupação com a explicitação da coerência interna e com o tratamento crítico dos saberes que abriga, e não com sua miscigenação. Não se deve confundir espírito crítico e exigência de coerência com o alegre convívio com especialistas de outras disciplinas. É com esse espírito crítico e com essa exigência de coerência que o psicanalista é, ou deveria ser, primeiramente confrontado na universidade, e não obrigatoriamente com o convívio com outras disciplinas. Parece-me que é apenas em psicanálise que se encontra uma tal incidência de estudiosos de uma disciplina buscando cursar mestrados e doutorados para entrar em contato com outras disciplinas. Físicos, historiadores, matemáticos ou filósofos em geral procuram estudos pós-graduados para aperfeiçoarem-se em física, história, matemática e filosofia. Passam anos na universidade apenas dando bom dia a seus colegas de institutos vizinhos, sem que este distanciamento seja indício de embotamento da criatividade. Quanto à perspectiva interdisciplinar, ou transdisciplinar, o fato é que ela não é adquirida por encomenda, nem pelo estudo de uma porção de disciplinas, mas sim, antes de mais nada, pelo adensamento da reflexão sobre os limites de uma disciplina específica, coisa que só pode ser obtida através do exame crítico da coerência interna de cada disciplina em sua própria singularidade. É somente a partir deste trabalho que o contato com outros saberes é possibilitado, e não o contrário. Aos cursos de pós-graduação cabe, portanto, em primeiro lugar, a insistência no adensamento do estudo de suas próprias disciplinas, e não o incentivo de projetos de estudo que não fazem outra coisa senão queimar etapas no anseio por espairecimento. Se o psicanalista procura na universidade ilustração e cultura geral, para isto existem os cursos de extensão universitária, ou quem sabe mesmo, para ambições mais genuínas de conhecimento sistemático de outras disciplinas, os próprios cursos de graduação. Nada mais inadequado para este propósito do que os cursos de pós-graduação stricto sensu.

O segundo ponto que quero abordar diz respeito ao conteúdo do ensino da psicanálise na universidade. Para mim, enquanto professor, é muito claro que existe uma dificuldade, muitas vezes vivida como se fosse inerente ao ensino universitário, de referência à prática psicanalítica propriamente dita, à especificidade das questões da técnica psicanalítica, à analise da transferência e da contratransferência. É como se a abordagem deste tipo de assunto fosse inadequado na universidade. Certamente, um dos motivos deste sentimento de impropriedade é a incerteza quanto ao tipo de transferência estabelecido entre professores e alunos que, em grande parte e pelos motivos que venho de mencionar, não estão procurando os cursos de pós-graduação para adensarem sua reflexão sobre a clínica psicanalítica. Deve-se também ao fato dos professores, em geral psicanalistas com alguma vinculação, pelo menos passada, a instituições psicanalíticas, estarem habituados a falar sobre clínica somente com colegas, com pares e não com pessoas que cursam apenas transitoriamente os programas de pós-graduação, ocupando-se de suas teses e com uma transferência de trabalho em relação ao que acontece na universidade predominantemente teórica. A meu ver esta dificuldade não é, de modo algum, inerente ao chamado discurso universitário, mas à inespecificidade atual do ensino da psicanálise na universidade.

Se houvesse uma maior integração entre ensino da psicanálise e prática psicanalítica, este desconforto em relação ao tratamento da especificidade da clínica psicanalítica nos programas de pós-graduação a que me refiro não aconteceria. Se alunos e professores tivessem uma maior convivência em serviços de atendimento de todo tipo, a discussão sobre o fazer da clínica psicanalítica ganharia direito de cidadania na universidade. Creio que isso seria extremamente desejável, pois, na medida em que, como eu já disse, mal ou bem cada vez mais futuros psicanalistas fazem sua formação tendo a universidade como sua principal referência institucional, é importante que possam ali encontrar uma referência mais viva à clínica. Uma transmissão do saber fazer do analista, e não simplesmente a reflexão sobre o método e os conceitos psicanalíticos. Nessa perspectiva, embora esteja ciente e em parte concorde com as reticências que envolvem a proposta do Mestrado Profissionalizante, acho bastante interessantes algumas possibilidades que ela deixa entrever. É interessante, por exemplo, o incentivo à estruturação de parte dos currículos com vistas a formar as pessoas de maneira mais convergente com a prática efetiva que se propõem a desempenhar (e não apenas visando a formação de acadêmicos, como acontece atualmente com as pós-graduações stricto-sensu, pelo menos na área das ciências humanas). É interessante também a associação de programas de pós-graduação a serviços de atendimento à comunidade, a dispensários de atendimento psicoterápico, a hospitais etc.

O terceiro ponto diz respeito ao formato dos trabalho de conclusão de doutorado e de mestrado. Embora seja possível encontrar uma certa quantidade de excelentes teses (e dissertações) em psicanálise, creio que o formato de tese é adequado apenas para trabalhos em metapsicologia, teoria da clínica, história da psicanálise, crítica da cultura, clínica do social ou que abrigam pesquisas qualitativas do tipo que é feito em ciências humanas. Torna-se praticamente impeditivo, contudo, quando o que se visa é a transmissão da experiência clínica propriamente dita. Para que mestrados e doutorados possam produzir conhecimento a partir da clínica é importante que os programas se tornem mais flexíveis, amoldando o modelo da tese nesse sentido. A esse respeito, diversos programas de outras disciplinas demonstram uma flexibilidade que os psicanalistas também poderiam demonstrar. Departamentos de música aceitam composições como tese, departamentos de arte aceitam obras de arte, departamentos de cinema aceitam filmes, departamentos de biologia, medicina, etc., aceitam conjuntos de artigos como tese. É importante lembrar que até hoje a psicanálise se construiu principalmente através de artigos, e não através de trabalhos longos em formato de livro. Acredito que seria extremamente salutar aceitar conjuntos de artigos em lugar de teses. O artigo permite acompanhar o modo pontual e singular pelo qual os fenômenos clínicos são apreendidos. A tese propriamente dita, por seu lado, tem um formato que exige um tipo de treinamento que poucos psicanalistas possuem, e que, além disso, tem quase nenhuma ressonância com a prática clínica, mas apenas com a prática da própria vida acadêmica. Não vejo porque a psicanálise na universidade deveria continuar a adotar, como tem sido feito até hoje, o modelo das ciências humanas e da filosofia. Estas últimas, em geral, constituíram sua prática e seu modo de inserção social a partir da própria academia e, nesta medida, desenvolvem um tipo de pesquisa cujo rigor resulta quase que naturalmente na feitura de uma tese. A psicanálise, por seu lado, pode ter um lugar na academia, mas, como tantas outras disciplinas, existe principalmente fora dela, da mesma maneira que existe principalmente fora das instituições psicanalíticas. Ela vive no exercício da clínica em suas mais diversas maneiras, e não há motivo nenhum para que na universidade ela adote o modelo das disciplinas que têm uma existência quase que exclusivamente acadêmica. Ela precisa inventar seus próprios parâmetros de rigor acadêmico em contato com sua própria especificidade. Deve, a todo custo, procurar validar na universidade seu próprio método de investigação, método este que inclui necessariamente a transferência e a singularidade do caso clínico. A universidade tem se mostrado extremamente flexível para reconhecer, sem perda da busca de coerência e do exercício crítico, uma enorme variedade de tipos de produções como indicadores de excelência. Cabe à psicanálise reconhecer a universidade como um dos lugares em que pode habitar, e que pode, portanto, ser transformado e reinventado. É fundamental que os psicanalistas deixem de se sentir na universidade como se fossem convidados obrigados a se comportar conforme uma etiqueta acadêmica que apenas existe aos olhos de quem acaba de chegar.

Recebido em 10.07.2001

Aceito em 05.10.2001

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    Professor do Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2002
    • Data do Fascículo
      2001
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