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Prolegômenos ao Conhecimento de uma Carolina Bori

PROLEGÔMENOS AO CONHECIMENTO DE UMA CAROLINA BORI

Olgierd Ligeza Stamirowski

Universidade de Lódz, Polônia

Nell mezzo del camin

O trovatto una senda oscura...

(Dante Alighieri)

Ato I

Nunca me passou pela cabeça fazer um curso de Psicologia. Naquele época, eu estava envolvido com literatura medieval e dedicava-me a ler em italiano arcáico a Divina Comédia quando deparei-me com o sentido psicológico senão oculto da obra de Dante. Intrigado, passei a devorar tudo que me caía nas mãos sobre Filosofia, Psicologia, Esoterismo, Ocultismo e outros ismos, sem método nem ordem, para compreender melhor a viagem do autor em busca de sua Beatriz através do Paraíso, Purgatório e Inferno. Beatriz? Alma? Alter Ego? Anima? Li e reli Freud, Jung, Reich e outros que tais e acho que não satisfeito com tudo aquilo resolvi estudar Psicologia, se é que tal coisa existia mesmo. Um velho bruxo que eu conhecia aconselhou-me a estudar Jung na Suíça mas recusei o conselho e, após a consulta da Lista Telefônica, resolvi ir até a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, ali mesmo na rua Maria Antônia em frente ao Mackenzie. Creio que fui a única pessoa que escolheu a profissão pelas Páginas Amarelas. Hoje jamais seguiria tal caminho mas naquela época pareceu-me uma boa idéia.

A Psicologia de então apertava-se numa minúscula sala de um velho prédio decadente, onde o espaço era dividido pelo diretor e um imenso armário de ferro cheio de livros que - se não me engana a memória - era pintado de verde... Era a Biblioteca! Tomei informação com um senhor de cabelos loiros que - vim a saber mais tarde - era o Prof. Arrigo Angelini, diretor do Curso de Psicologia. A sala mais parecia uma água furtada parisiense, escura e mal cheirosa. Perguntei-lhe no que consistia afinal o Curso de Psicologia e quais seriam as minhas perspectivas para o futuro. Olhou-me de modo estranho, possivelmente pensando "mais um", mas tentou-me explicar sem muito êxito do que se tratava. Finalmente, irritado com as minhas perguntas, indicou-me o Cursinho do Grêmio para mais informações. Seis meses depois compareci ao vestibular. O terror da rapaziada, mais meninada que rapaziada, era um jovem professor de filosofia que gozava a fama de reprovar tudo e todos: José Artur Gianotti. Tinha a mania de comprovar a burrice dos jovens mortais segundo um método simples, aliás cartesiano em contradição com a sua conhecida e comentada orientação marxista... Recebia o aluno com cara amarrada e sem nada dizer ia logo desenhando três linhas na forma de um triângulo mas sem uni-las pelos ângulos. E caía a invariável pergunta "O que é isso? "Qualquer jovem mortal, trêmulo mas aliviado - que pergunta mais fácil - respondia que era um triângulo. E ele, triunfante: "Errado! Triângulo se auto define. Onde estão os três ângulos? O que se vê são três linhas disposta ao acaso". A banca era composta pelo Arno Engelman, pelo filósofo terrorista e uma terceira pessoa cujo nome não guardei. Não sabia, naquele momento, que brevemente a Filosofia estaria atrás das grades. Passei. Naquele dia senti que alguma coisa sucedera na minha vida, um vago sentimento de que teria de mudar radicalmente a minha maneira de pensar e ver o que estava na minha frente. Vieram-me à mente as palavras de Bilac: "Longos anos.../ Presa à minha, a tua mão / A vista deslumbrada tive da luz que o teu olhar continha". Fiquei até hoje com a minha mão presa à "mão" dela, a Psicologia. E lá se vão trinta anos.

Ato II

Assim que entrei, descobri uma Psicologia esparramada pelos quatro cantos da cidade. Assistíamos aulas na Maria Antônia, o laboratório ocupava um porão na Alameda Glete, a Fisiologia guardava a Cidade Universitária que na época era um descampado onde as vacas pastavam mansamente. Mais tarde foi alugada uma grande casa assobradada na Cristiano Viana onde deveríamos estudar Psicologia Geral e Experimental e, em especial, Psicologia Social sob a batuta da então chefe do departamento, Profa. Annita Castilho Cabral.

Devo dizer que o curso era uma desilusão na sala de aula e uma excitação nos corredores. As aulas arrastavam-se monótonas e lentas nas tardes modorrentas, mas os corredores da Maria Antônia vibravam de vida e excitação. Discussões e assembléias sucediam-se quase diárias. O trânsito entre a Filosofia e a Economia que ficava na Vila Nova se dava através do porão e corria solto. As mais diversas orientações políticas e ideológicas eram debatidas com a participação dos professores e alunos. O barbeiro, no mesmo porão, era o centro das "fofocas". Surgiam brigas e discussões ao som da bolinha de ping-pong batida e rebatida. Ficamos tão acostumados ao barulho cadenciado que, quando ninguém jogava, pedíamos a quaisquer gaiatos que jogassem somente para que discutíssemos as nossas opiniões tendo como pano de fundo o ping e o pong. Longas partidas de xadrez eram travadas acompanhadas por uma animada torcida. Hoje eu diria que nenhum de nós tinha consciência daquilo que realmente estava acontecendo. Foi ali a lareira que forjou o Brasil de hoje. Ali nasceu o futuro que hoje toma forma e nós, testemunhas, nem nos demos conta. Corria lá fora o Golpe Militar mas no início daqueles anos de chumbo que viriam mais tarde tudo era uma imensa aventura de meninos de famílias tradicionais paulistanas, ex-alunos do Dante Aliguieri, do Rio Branco ou do Liceu Pasteur. Uma aventura intelectual, ideológica, comandada por professores formados pela tal Missão Francesa que embutiu na cabeça de todos o esquerdismo romântico em moda em Paris. Para nós tudo estava por vir. Fernando Henrique secundava Florestan Fernandes, Gianotti pontificava na Filosofia, Porchat discutia a sua Lógica e assim ia. Assistíamos "estrelas", não cursos, tudo era um imenso debate mais do que aula. Sonhávamos então uma revolução a la cubana, discutíamos a classe camponesa, líamos Mao Tsé Tung, Trótski, e desejávamos acima de tudo um Brasil mais justo. Procurávamos também nos unir às lutas das classe operária, só que escasseavam operários na faculdade. Quando aparecia um, era uma festa. A Psicologia sempre ficava em segundo plano. Corríamos de uma assembléia para outra, participávamos de passeatas, iniciávamos dissidências. Nascia em mim, como para alguns colegas, a idéia de abandonar o curso por absoluta falta de interesse. Foi então que Darcy Ribeiro foi expulso da UnB e uma plêiade de jovens professores voltou para a USP. Voltavam com sonhos desfeitos mas não com ideais derrotados. E desfraldaram suas bandeiras num barracão, que a essa altura já tinha sido construído na Cidade Universitária para abrigar a Psicologia Experimental transferida da Cristiano Viana: O B-10! Mário Guidi montou sua oficina para produzir aparelhos e instrumentos e - imaginem - contratou um mecânico. Logo o FUNBEC produziria a" nossa" bem brasileira Caixa-de-Skinner que iria revolucionar o ensino da Psicologia Experimental no Brasil, Rodolfo Azzi me chamou para ajudar a traduzir o Verbal Behavior de Skinner e Carolina Bori nos apresentava a Fred Keller e seus cursos programados. Walter Hugo Cunha - que não tinha ido a Brasília - saíu da concha e Arno Engelman nos mostrou o lado ameno da Psicofísica. A Psicologia sacudia o pó! Havia batalhas a serem travadas e nós seríamos instrumentos da "nossa" revolução. O longo reinado de Annita Castilho Cabral chegava ao seu fim com a sua Gestalt que nós então, ingênuos, pensávamos ultrapassada. A Clinica Psicológica na rua Jaguaribe - sobradinho geminado - estava nas mãos dos psicanalistas. Os cursos, meras extensões da Sociedade de Psicanálise. Virginia Bicudo, Ferrari e tantos outros impediam quaisquer outras orientações. Assistíamos tudo aquilo impotentes, apalermados, sem compreender o que realmente estava por trás dos argumentos e discussões. Somente depois é que nos demos conta de que o que estava em jogo era uma surda luta pelo poder. Que se danassem os alunos!

Foi por esta época que foi decidida a reforma da universidade em geral e da Universidade de São Paulo em particular. Esta reforma deslanchou uma intensa agitação no seio da nossa instituição. Proliferaram Comissões de Reforma como cogumelos após a chuva. É difícil entender o que aconteceu na véspera de 68. Imaginem uma vetusta faculdade baseada nas suas sólidas e vitalícias cátedras com a sua Congregação que reunia-se com os professores togados, que jamais ouviu um pio sequer de alunos, e de repente admitia representantes dos alunos e ainda mais com direitos de voz e voto! O professor catedrático era o próprio senhor feudal. Nada acontecia sem a sua permissão. E de repente o seu poder teria que ser retirado. Sua opinião diluída nas votações do Conselhos dos departamentos valendo tanto quanto a opinião de um mero e ocasional representante dos alunos! No início as comissões incluíam apenas alguns representantes do corpo discente mas, com o avançar do processo, a representação do alunato chegou a cinqüenta por cento. Foram criadas as assim chamadas Comissões Paritárias que reformaram a universidade

Na Psicologia a resistência dos professores, na sua grande maioria conservadores quando não reacionários, impedia a reforma na extensão da renovação que os estudantes desejavam. Sucediam-se impasses após impasses. Finalmente, fartos de reuniões, os alunos ocuparam o B-10 mantendo o curso paralisado durante seis meses, impondo um novo curriculum e forçando o afastamento dos professores contrários à reforma. Minha turma perdeu um ano do seu curso e a formatura seria anos depois na secretaria do Instituto. Lembra-me bem aquela reunião da Comissão Paritária que decidiu a reforma curricular. A profa. Annita Castilho Cabral compareceu à reunião com uma bolsa na qual alguém vislumbrou um revólver real ou imaginário. Mário Guidi sentou-se ao lado. Os outros se dispuseram ao redor da mesa. A certa altura a Prof. Annita exaltou-se e ameaçou puxar o revólver ou, quem sabe, apenas um lenço. Mário Guidi mergulhou para segurar a bolsa. Os outros, aos gritos. Todos falavam ao mesmo tempo. Estabeleceu-se a balbúrdia. Quando tudo se acalmou estava aprovada a reforma e o afastamento da profa. Annita da direção do departamento. A maré de "68" subia. Iria mostrar os seus resultados somente mais tarde. A partir de então as modificações sucederam-se rapidamente. Ao final da reforma tínhamos uma professora de Educação Física na direção do departamento, Auxiliares de Ensino dirigindo a Clínica Psicológica e um novo curriculum. Uma bela vitória de Pirro. A maré refluía. Os anos de chumbo se seguiriam.

Foi por essa época que conheci melhor a Profa. Carolina. Fomos colegas de inúmeras reuniões das comissões paritárias que procuravam reformar o curso de Psicologia. Nestas reuniões, que prolongavam-se durante horas a fio, comecei a conhecer mais intimamente as opiniões e idéias da Profa. Carolina. Idéias com as quais nem sempre concordava mas que revelavam uma característica marcante: o extremo bom senso do seu pensamento. Escusado dizer que as propostas apresentadas pelos alunos eram em geral marcadas por um irrealismo que refletia um pensamento utópico. Óbvio que a utopia era necessária. Deveria-se ir além do possível, o que era impossível. Contudo nas discussões que se seguiam o bom senso da Profa. Carolina conseguia transformar o irreal em viável. Mais. A Psicologia que era ensinada naquela época era uma salada mista de Gestalt, Aprendizagem e Psicanálise mal digerida. Existiam algumas pesquisas, mas eram fenômenos marginais e excepcionais. Carolina mostrou à minha geração o Novo! Essa marca de contemporaneidade no pensamento produziu o interesse, motivou estudantes, impediu que talentos não se afastassem da Psicologia. Despertou vocações e fez com que uma verdadeira legião de professores se espalhasse pelo Brasil afora nas mais afastadas universidades causando uma autêntica revolução no ensino. Laboratórios de Psicologia Experimental surgiram por toda a parte com as Caixas-de-Skinner mudando o conceito de ensino da Psicologia Experimental. Nós mesmos andávamos correndo pelos descampados da Cidade Universitária à caça de içás para o formigueiro experimental de Walter Hugo Cunha. Cursos Programados começaram a conquistar salas de aula. Notava-se entusiasmo por toda a parte. Pouco depois alguns alunos mais adiantados voltariam à universidade para consolidar aquilo que Carolina Bori iniciara. Maria Amelia Matos, Dora Fix, João Cláudio Todorov se uniriam a Mário Guidi, Walter Hugo Cunha, Arno Engelman, César Ades, Raquel Kerbauy e outros e iniciariam um trabalho de pesquisa sério que redundou posteriormente no mestrado e doutorado de dezenas senão centenas de estudantes que procuraram o Instituto de Psicologia da USP para receber ensino de qualidade. Creio que nenhum de nós que participamos daquele processo até as orelhas podíamos sequer entrever que tipo de revolução ocorria sob os nossos olhos. Olhávamos mas não víamos. Enquanto isso o trabalho realizado por Carolina Bori, com suas idéias e conceitos, deslocou a ênfase do processo de relacionamento aluno-professor do ensino para a aprendizagem. O aluno avaliado pelo seu desempenho e não por comportamento verbal ou gráfico.

Ato III

Vim para o Brasil por acaso. Após a invasão alemã minha família saiu de Varsóvia no outono de 39 corrompendo a preço de ouro a oficialidade nazista, seguindo depois para Roma, Paris, Bordeaux e Lisboa. Na nossa frente o Atlântico, às costas, o fascismo. Meu pai, por pertencer ao Serviço Diplomático, conseguiu uma passagem num comboio que seguia para o Brasil. Em 1940 desembarcávamos no Rio de Janeiro para permanecer três meses. Ficamos até hoje. Fui criado à beira mar sentindo a maresia trazendo cheiro forte de peixe, passeando nos bulevares cheios de bougainvilles floridos, brincando sob os flamboyants da Ilha de Paquetá, catando descalço as conchas nas areias de Niterói. Fui vagabundo de praia até que um dia minha família perdeu a paciência e me exilou para um colégio interno nos confins do Paraná onde - eles achavam - eu encontraria juízo. Mas o que eu encontrei foi um Skinner. Explico-me. O colégio interno era uma espécie de Summerhill administrado pelos alunos onde pela primeira vez aprendi porque nunca me ensinaram nada. Aprendi Biologia catando folhas e plantas no mato das vizinhanças, botando-as sob a lupa porque microscópio não havia para classificá-las sob orientação de professores; aprendi Português traduzindo poesia clássica do latim para o português; aprendi Geometria medindo os terrenos da escola. Falava inglês às terças e francês às quintas, pois os professores somente respondiam nestas línguas nesses dias. O Skinner caboclo fizera um curso de pedagogia na Polônia antes da guerra e colocava em prática o que aprendera. Foi o melhor professor que jamais tive.

Conto tudo isso porque quando Carolina apareceu com o seu curso programado de Psicologia Social, onde nos fornecia passos para serem lidos e depois nos entrevistava e recebíamos o passo seguinte somente se tivéssemos passado no passo anterior, compreendi que Keller tivera precursores embora eles mesmos não soubessem. Raramente Carolina explicava qualquer ponto ou resolvia uma dúvida. Em geral nos indicava, até bastante secamente, o capítulo que deveríamos ler ou o exercício que deveríamos fazer para entender o tal ou qual ponto ou resolver a dúvida. Com o tempo, deixamos de procurá-la e quando o fazíamos era para discutir o material de igual para igual e receber o próximo passo. Confesso que não fui um "bom" aluno naquele ano. Outras preocupações começaram a tomar o meu tempo, mas terminei de aprender com Carolina algo que tinha começado a aprender naquele longínquo Summerhil caipira da minha infância. Ensinar é dispor as contingências do comportamento de aprender. Foi isso que Carolina Bori ensinou à minha geração de estudantes. E não somente à minha, mas a todas as gerações que se seguiram.

Paralelamente às minhas atividades estudantis prestei concurso para ser professor do Cursinho do Grêmio e integrei uma chapa para concorrer à direção do Centrinho de Psicologia. Passei a me engajar cada vez mais nas lutas contra a ditadura militar. No cursinho funcionava uma gráfica que além de apostilas rodava a todo vapor material considerado "subversivo". Nós distribuímos este material para diversas facções do movimento estudantil. Por diversas vezes o DOPS empastelou a gráfica mas esta sempre, qual fenix, renascia das cinzas e o trabalho continuava bem ou mal. Finalmente, na gestão do José Eli da Veiga, assumi a direção do Cursinho numa situação crítica. Procurado pela polícia administrativa, eu me encontrava com o Zé Eli na casa do Prof. Severo, que ficava na rua Cardoso de Almeida, uma vez por semana para levar o dinheiro e trazer encomendas. O Severo tinha comprado a casa dos fundos que dava para uma outra rua e estabeleceu uma passagem de tal forma que se a polícia chegasse sempre haveria a possibilidade de escapar. Os anos de chumbo tinham chegado. Até então tinha me safado por uma circunstância curiosa. De outras épocas trago o apelido de Jerry mas o meu nome é na realidade Olgierd. Os políciais procuravam um Jerry mas eu sempre apresentei a identidade de Olgierd, verdadeira diga-se de passagem. Fui detido diversas vezes em diversas circunstâncias mas como nada constava em relação a Olgierd sempre saía limpo de qualquer investigação. Nunca chegaram a suspeitar que Jerry e Olgierd seriam a mesma pessoa. A não ser uma vez. E nesta, Carolina Bori desempenhou sua parte .

Certa feita, chegando ao B-10 encontrei um recado da Carolina. Era para eu me apresentar na Operação Bandeirantes, divisão da repressão montada pelo Exército, que julgava as forças policiais incompetentes. Havia o mesmo recado para o Elias Rocha Barros. Deveríamos nos apresentar no dia seguinte para averiguações. Um ou dois oficiais foram até o B-10, tiveram uma conversa com a professora e mandaram o recado. Implícito ficava que se nós não aparecêssemos seríamos julgados culpados e a professora poderia sofrer as conseqüências.1 1 Na verdade, os "u m ou dois oficiais" eram três e a " conversa" foi no próprio OBAN, para onde Carolina foi levada, após ser retirada da sala onde ministrava uma aula. Lá foi retida, incomunicável, por um dia, por conta deste episódio. Afirmaram os policiais que a levaram que o faziam por ser ela a professora responsável por uma pesquisa mal explicada que uns alunos estavam fazendo na polícia (Nota de uma das organizadoras desta coletânea e que estava presente no momento da invasão). Carolina não só não nos denunciou, como atestou a nossa conduta de bons alunos garantindo que nos apresentaríamos no quartel general da Operação Bandeirantes assim que pudéssemos. Não lhes forneceu o nosso endereço e de certa forma colocou-se como fiadora da nossa conduta. Vi Carolina com outros olhos. Até então ela procurava se manter afastada das querelas políticas. E então o ser humano Carolina Bori se revelou: corajoso, leal e acima de tudo ético! Os anos de chumbo chegavam ao auge. Qualquer suspeita, por menor que fosse, poderia acabar com a carreira senão com a vida de uma pessoa. Pois Carolina, sem ter a menor noção do nosso envolvimento, não vacilou em nos proteger e de certa forma indicou o que deveríamos fazer. Talvez, no momento, nem ela própria tivesse noção das conseqüências.

Elias e eu passamos a mais longa noite das nossas vidas pesando as conseqüências da nossa apresentação. Ambos estávamos envolvidos até a raiz dos cabelos no combate à ditadura, mas pelo quê nos procuravam? Descendo de uma longa linhagem de guerreiros. Meus antepassados lutaram nas Cruzadas, combateram os mongóis na Polônia, botaram para correr os turcos em Viena, empurraram o Exército Vermelho para além do Bug, morreram na batalha das Ardenas e conquistaram Berlim. Eles lutaram a boa peleja, mas eu combatia nas sombras numa guerra "suja". A clandestinidade ou a apresentação? Finalmente resolvi me apresentar. Telefonei para o capitão que Carolina nos indicara e lá fomos nós para o quartel do Ibirapuera onde funcionava a OBAN. O interrogatório relacionou se com o processo de entrevistas de soldados da Polícia Militar que nós andávamos fazendo. Explico. Tanto o Elias como eu tínhamos nós matriculado num curso da Sociedade de Rorschach de dois anos de duração, tendo que no fim apresentar uma pesquisa para a obtenção do diploma. A turma foi dividida em grupos ao acaso e ao acaso acabamos no mesmo grupo que um coronel da Polícia Militar que fazia o curso. Quando chegou o momento de fazer a pesquisa resolvemos pesquisar a agressividade nas respostas às pranchas. Para isso precisaríamos de sujeitos. O coronel se ofereceu para arranjar sujeitos que seriam os próprios soldados que seriam entrevistados. Assim foi feito e assim surgiu a suspeita de que queríamos minar a moral da tropa. Esclarecida a questão saímos quatro horas depois do prédio do quartel.

Para mim os anos de chumbo pesaram. Não poderia voltar ao Cursinho e a minha casa seria vigiada constantemente. Passei a morar numa maleta com uma muda de roupa, escova de dentes, um livro para ler e apartamentos de amigos para dormir. Não me recordo se telefonei para a Carolina naquela noite ou se o fiz mais tarde. Só sei que a admirei ainda mais pelo seu comportamento. Revelou-se um ser humano integral.

Epílogo

Passaram-se quase trinta anos desde que estes acontecimentos ocorreram. Muitas vezes ainda as nossas vidas se cruzaram mas eu, tendo cortado a possibilidade de permanecer na universidade integrando o seu corpo docente, procurei outras paragens tentando aplicar aquilo que aprendi com Carolina. Continuo dispondo as contingências para que outros aprendam e eu não ensine. Algo me diz que esta história ainda não terminou.

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    Na verdade, os "u
    m ou dois oficiais" eram três e a "
    conversa" foi no próprio OBAN, para onde Carolina foi levada, após ser retirada da sala onde ministrava uma aula. Lá foi retida, incomunicável, por um dia, por conta deste episódio. Afirmaram os policiais que a levaram que o faziam por ser ela
    a professora responsável por uma pesquisa mal explicada que uns alunos estavam fazendo na polícia (Nota de uma das organizadoras desta coletânea e que estava presente no momento da invasão).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1998
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