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EDITORIAL

EDITORIAL

Ao longo de sua história, Psicologia USP vem dando guarida a uma multiplicidade de abordagens, temas, enfoques, objetos e campos do conhecimento. Seus artigos refletem a necessidade de contato interdisciplinar entre a Psicologia e outras áreas do conhecimento. Isso não se dá por decisão político-institucional, mas por uma profunda necessidade lógico-científica: não se pode criar conhecimento válido nesta área sem levar em conta sua necessária pluralidade. Nem sempre este problema fica claro nas inúmeras e, muitas vezes, infrutíferas discussões a respeito do problema da transdisciplinaridade. As tentativas de axiomatização nesta área do conhecimento não produziram resultados definitivos, encontrando graus variados de sucesso. Isso quer dizer que as diversas abordagens da Psicologia só puderam nos levar ainda muito longe do ideal de ciência unificada que anima os pensadores há alguns séculos. As diversas abordagens da Psicologia devem permanecer válidas até que seus pressupostos sejam superados em virtude de suas falhas (incoerência, incompletude, ausência de independência ou não-simplicidade). Esta tarefa não foi realizada até o presente momento, o que implica a necessidade, por parte do estudioso da área, de admitir o convívio com inúmeras formas de entender seu objeto e sua configuração metodológica. O confronto entre as diversas abordagens da Psicologia, assim, é uma característica necessária deste campo do conhecimento.

Ademais, não se pode demonstrar que, de dentro da atual circunscrição fenomênica da Psicologia, seja possível a constituição de uma teoria psicológica que não seja, ao mesmo tempo, uma teoria social. Disso decorre a relação necessária entre Psicologia e Ciências Sociais. Por outro lado, como já indicou Serge Moscovici, a Psicologia Social, que ocupa uma posição sui generis dentro desta área, apresenta-se como uma reflexão sobre a relação entre natureza e cultura, herdando uma preocupação milenar, presente nos textos dos grandes pensadores da Antiguidade clássica. Desta forma, encontra-se precisamente na interface entre as ciências sociais e da natureza, e indica algo também sobre a própria Psicologia, que não pode deixar de acompanhar os embates travados entre esses dois campos de conhecimento. A criação de conhecimento nesta área deve supor atenção às implicações mútuas das teorias que aí se desenvolvem e deve mesmo estimular seu confronto. Psicologia USP assumiu como tarefa estimular o embate: entre grandes campos do conhecimento, entre disciplinas e entre abordagens da Psicologia.

O leitor não se deve espantar com o fato de que este confronto se dê preferencialmente por meio de ensaios. Conquanto os ensaios tenham papel e objetivos próprios, podem também apresentar uma relação específica com a criação de conhecimento em áreas em que os próprios problemas científicos não estão bem definidos. Apontam caminhos, definem critérios, esclarecem as perguntas subjacentes às investigações empíricas e delineiam as implicações mais profundas dessas próprias perguntas. Os ensaios publicados por psicólogos podem bem servir, enfim, ao papel de estabelecer os termos do confronto. Vemos com muita frequência, entre os ensaios aqui publicados, trabalhos cujos objetivos prendem-se à tentativa de conceituar um termo ou uma expressão cujo uso técnico fez perder o impulso poético que lhe deu origem em nossa área da ciência. A compreensão "clara e distinta" de um conceito, como norte do esforço intelectual (às vezes, clara e distintamente inalcançável) é condição decisiva para o avanço das discussões, e, em uma área que se caracteriza pela amplitude semântica das principais noções com as quais trabalha, este esforço de definição conceitual não pode jamais ser suficientemente encarecido. Tais ensaios podem também servir a inúmeros outros objetivos. Muitas vezes, os trabalhos aqui publicados recuperam problemas aparentemente esquecidos, desvelam as consequências teóricas e políticas de algumas abordagens em Psicologia ou buscam mesmo definir critérios para distinguir abordagens ou posições teóricas. Contribuindo para este amplo esforço, podem resgatar a história de um campo teórico ou institucional com o interesse de refletir sobre a própria área do conhecimento. Por tantas razões, cabe um lugar de destaque a esta forma de comunicação cuja importância pode ser muitas vezes negligenciada ou mal compreendida.

Por outro lado, há um papel específico a ser desempenhado pelo relato de investigações empíricas neste contexto. Em uma área do conhecimento como a Psicologia, não se pode falar em pesquisas desenvolvendo-se sob a perspectiva da "ciência normal" como entendida por Thomas Kuhn. Mas a investigação empírica em Psicologia pode se realizar sob diversos interesses, e aqui cabe uma aproximação. Dentro de cada abordagem da Psicologia, talvez o avanço do conhecimento possa se dar por refinamento e acúmulo de dados empíricos. Mas no campo da Psicologia como um todo, na perspectiva aqui adotada, o avanço não pode ocorrer senão por meio de uma crescente consciência das características, dos limites e dos problemas da própria área. Esta consciência, porém, não se constroi apenas por meio do refinamento intelectual dos conceitos e da relação existente entre eles. Constroi-se pela relação entre este esforço intelectual e a empiria, que alimenta, reformula e corrige tal esforço, e que também é por ele alimentada, reformulada, transformada. Esta retroalimentação entre a ciência e seu objeto é observada amplamente nas ciências da cultura e também se observa em grande medida nos trabalhos em Psicologia. Pensada desta forma, esta relação dinâmica é parte essencial da criação de conhecimento nesta área e o esforço intelectual aqui discutido seria uma atividade lacunar sem esta preocupação.

As diretrizes editoriais de Psicologia USP foram traçadas há quase 23 anos. O professor César Ades apresentou seus princípios com clareza ao afirmar que, já de início, "definiu-se, como campo básico de atuação da revista, a reflexão crítica a respeito de temas psicológicos, em contraposição à publicação de artigos empíricos e se adotou uma perspectiva multidisciplinar, concretizada na edição de números especiais... e dossiês" (Ades, 2006). Algumas de suas consequências foram aqui apresentadas para debate. Elas devem levar em conta as conquistas e os limites de uma área do conhecimento que se tornou imprescindível para a compreensão e a constituição da sociedade contemporânea. Enfrentar seus desafios exige a mesma coragem e energia apresentada pelos seus fundadores, que a elevaram ao seu estado atual. É esta atitude que Psicologia USP gostaria de fomentar em nossa comunidade de estudiosos e pela qual vem trabalhando há mais duas décadas.

Referência

Ades, C. (2006). Psicologia USP, 1992-2002: uma aventura participativa. Psicologia USP, 17(3), 33-44. Recuperado em 04 de agosto de 2012, de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642006000300004&lng=pt&tlng=pt. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642006000300004.

Gustavo Martineli Massola

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    2012
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