Acessibilidade / Reportar erro

Equívocos na publicação científica: algumas considerações

Equívocos en la publicación científica: algunas consideraciones

Équivoques dans la publication scientifique: quelques considérations

Misconceptions in scientific publication: a few considerations

Resumos

Publicar para mostrar produção, e não como compromisso social com o disseminar conhecimento, pode levar Autores e Editores Científicos a equívocos. A partir de análise de formulários para emissão de parecer hoje praticados, o artigo traz considerações sobre o esgarçar das fronteiras entre as diversas funções no trabalho editorial. São discutidos aspectos técnicos e éticos do trabalho de Autor de artigo científico e de Editor de periódico científico e que, no limite, podem desservir à disseminação de conhecimento. Conclui-se convocando a uma discussão que não se limite a problemas pontuais, mas aborde o problema principal: a pressão por produção quantificável.

Publicação em Psicologia; Comunicação científica; Revistas científicas; Disseminação de conhecimento


La práctica de publicar con el objetivo de alcanzar niveles específicos de producción académica, y no como resultado del compromiso social para la difusión del conocimiento, puede llevar autores y editores a equívocos. A partir del análisis de los formularios utilizados hoy en revistas científicas para emitir opiniones, este trabajo presenta consideraciones acerca de la ruptura de las fronteras entre las diversas funciones en el trabajo editorial. Se discuten los aspectos técnicos y éticos de la actividad de los autores de artículos científicos y editores de revista científica y que, en última instancia, no sirven a la difusión del conocimiento. Se está llamando a una discusión que no se limita a los problemas específicos, pero que enfrente al problema principal: la presión para la producción cuantificable.

Publicación en Psicología; Comunicación científica; Revistas científicas; Difusión de conocimiento


Publier pour rendre compte d’une productivité, et non en tant que mission sociale de divulgation du savoir, peut mener auteurs et éditeurs scientifiques à certains équivoques. A partir d’une analyse de formulaires de parution utilisés actuellement, le présent article soulève des considérations sur l’extension des frontières entre les diverses fonctions du travail éditorial. Seront discutés les aspects techniques et éthiques du travail d’auteur scientifique, ainsi que d’éditeur de périodiques scientifiques qui peuvent desservir la dissémination du savoir. Nous invitons à une discussion qui ne se limite pas à des cas ponctuels, mais qui aborde le problème de la pression à produire quantitativement, ce qui est imposé par l’Université à ses professeurs.

Publication en psychologie; Journal scientifique; Dissémination du savoir


Publishing as a way of showing a production, and not as a way to disseminate a knowledge, may lead scientific authors and editors to certain ambiguities. Based on the analysis of the publishing forms used nowadays, this article brings considerations about the extension of the margins between the different aims in the work of edition. In this article we will discuss the technical and scientific aspects of the work of the authors, as well as the editor’s, in the science field, that might disserve the spreading of knowledge. We also invite to a debate not about punctual cases, but about the problem of the pressure that University applies to its teachers to produce quantitatively.

Publication in psychology; Scientific journal; Spreading of knowledge


ARTIGOS ORIGINAIS

Equívocos na publicação científica: algumas considerações

Misconceptions in scientific publication: a few considerations

Équivoques dans la publication scientifique: quelques considérations

Equívocos en la publicación científica: algunas consideraciones

Maria do Carmo Guedes

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

RESUMO

Publicar para mostrar produção, e não como compromisso social com o disseminar conhecimento, pode levar Autores e Editores Científicos a equívocos. A partir de análise de formulários para emissão de parecer hoje praticados, o artigo traz considerações sobre o esgarçar das fronteiras entre as diversas funções no trabalho editorial. São discutidos aspectos técnicos e éticos do trabalho de Autor de artigo científico e de Editor de periódico científico e que, no limite, podem desservir à disseminação de conhecimento. Conclui-se convocando a uma discussão que não se limite a problemas pontuais, mas aborde o problema principal: a pressão por produção quantificável.

Palavras-chave: Publicação em Psicologia. Comunicação científica. Revistas científicas. Disseminação de conhecimento.

ABSTRACT

Publishing as a way of showing a production, and not as a way to disseminate a knowledge, may lead scientific authors and editors to certain ambiguities. Based on the analysis of the publishing forms used nowadays, this article brings considerations about the extension of the margins between the different aims in the work of edition. In this article we will discuss the technical and scientific aspects of the work of the authors, as well as the editor’s, in the science field, that might disserve the spreading of knowledge. We also invite to a debate not about punctual cases, but about the problem of the pressure that University applies to its teachers to produce quantitatively.

Keywords: Publication in psychology. Scientific journal. Spreading of knowledge.

RÉSUMÉ

Publier pour rendre compte d’une productivité, et non en tant que mission sociale de divulgation du savoir, peut mener auteurs et éditeurs scientifiques à certains équivoques. A partir d’une analyse de formulaires de parution utilisés actuellement, le présent article soulève des considérations sur l’extension des frontières entre les diverses fonctions du travail éditorial. Seront discutés les aspects techniques et éthiques du travail d’auteur scientifique, ainsi que d’éditeur de périodiques scientifiques qui peuvent desservir la dissémination du savoir. Nous invitons à une discussion qui ne se limite pas à des cas ponctuels, mais qui aborde le problème de la pression à produire quantitativement, ce qui est imposé par l’Université à ses professeurs.

Mots-clés: Publication en psychologie. Journal scientifique. Dissémination du savoir.

RESUMEN

La práctica de publicar con el objetivo de alcanzar niveles específicos de producción académica, y no como resultado del compromiso social para la difusión del conocimiento, puede llevar autores y editores a equívocos. A partir del análisis de los formularios utilizados hoy en revistas científicas para emitir opiniones, este trabajo presenta consideraciones acerca de la ruptura de las fronteras entre las diversas funciones en el trabajo editorial. Se discuten los aspectos técnicos y éticos de la actividad de los autores de artículos científicos y editores de revista científica y que, en última instancia, no sirven a la difusión del conocimiento. Se está llamando a una discusión que no se limita a los problemas específicos, pero que enfrente al problema principal: la presión para la producción cuantificable.

Palabras-clave: Publicación en Psicología. Comunicación científica. Revistas científicas. Difusión de conocimiento.

Equívocos na publicação científica. Implicações do "produtivismo"

Em tempos já de e-prints e "arquivos abertos", a Psicologia brasileira reunida acorda para a enorme inadequação de seus periódicos. Depois de uma primeira tentativa coletiva no ataque ao problema em 1992,1 1 Grupo de Trabalho coordenado por William Gomes, da UFRGS, produziu uma coletânea com 15 textos entre os apresentados no Simpósio da Anpepp em Brasília. Publicada como n. 1 dos Cadernos Anpepp (Gomes & Rosa, 1992), traz análises sobre política de publicação, produção de periódicos e publicação de livros. No rastro dessa iniciativa, a SBP propicia, em 1996, aquele que foi o primeiro Encontro de Editores de Psicologia. E em 1997 o Conselho Deliberativo da ANPEPP indica a Comissão que detonou o processo que, coordenado em seguida pela Capes, serviu à classificação dos periódicos que apoia essa agência em seu trabalho de avaliação dos programas de pós-graduação no país. a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) cria, em 1997, Comissão encarregada de qualificar os veículos científicos no país (Yamamoto et al., 1999). De uma relação de 79 revistas identificadas inicialmente, apenas 47 se apresentaram para avaliação. Dessas, 14 se diria nacionais e, entre as locais, boa parte carecia ainda de informações fundamentais para que pudessem ser incluídas na categoria periódico científico: ausência de Conselho editorial e de avaliação dos artigos, além de se restringirem, algumas, à difusão de pesquisas da instituição publicadora (à época uma publicação não considerada como periódico científico pela Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC – criada em 1985). Vinte anos depois da primeira tentativa organizada, o que ocorre hoje?

Em primeiro lugar, não apenas se tem um maior número de periódicos qualificados, mas todos eles ocupados em (tentar) dar conta do principal entre as exigências postas agora pelo adicional objetivo de ser reconhecidos pelos principais indexadores internacionais. Mas talvez ainda não se tenha periódicos qualificados em número suficiente, dado o crescimento da pós-graduação no período. Infelizmente, a relação produção versus publicação não tem sido analisada, embora bem-sinalizada já nos textos de Bueno (1992) e Witter (1992) e apesar de recorrentemente colocada em pauta na ANPEPP, pois as discussões sobre o tema acabam se restringindo, em geral, a aspectos pontuais da avaliação de periódicos. Além disso, o chamado "produtivismo" exigido pelos próprios programas de pós-graduação para atender à avaliação Capes veio a aumentar a demanda por publicação, ainda que muitas vezes distante daquilo que tornaria os periódicos realmente científicos: publicação de conhecimento novo.

Muito tem sido publicado sobre tudo isso e não se pretende aqui repetir o que pode ser encontrado.2 2 Revisão detalhada pode ser encontrada em Bianchetti e Machado (2007), do Grupo Trabalho e Educação, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação. Pesquisadores da área de Saúde também têm dedicado parte de seu tempo ao tema. Conferir, por exemplo, em Revista de Saúde Pública (2006, volume 40, número especial), além dos primorosos editoriais do Professor Maurício Rocha e Silva (2009a, 2009b; 2010a, 2010b; 2011); e, claro, revistas da área de Ciência da Informação. Vale ainda conferir charge de Luiz Oswaldo Rodrigues em anexo (Rodrigues, 2007). Entretanto, a avaliação Capes avança e, ao se pressionar hoje o professor de pós-graduação por publicação (sua e de seus orientandos), não é apenas um problema de quantidade versus qualidade dos artigos que se impõe. Impõe-se também um consequente trabalho editorial diferente, pois ao Editor Científico compete agora dar conta de mais trabalho, sem ao menos tê-lo considerado em seu contrato (salvo exceções, que desconhecemos) ou na sua "produção bibliográfica" – ao menos como a entendem os órgãos de fomento. De fato, parece que apenas artigos publicados em periódicos Qualis constituem produção importante. A tentativa de avaliação de livros e capítulos de livros, por promissora, vem confirmando isso. E a edição de periódicos não passa de "produção técnica" (algo como "trabalho manual"?), quem sabe até "demais trabalhos".

Tratar desse problema – implicações do aumento do trabalho em edição científica – é o que se pretende aqui. O destaque é para o que estamos chamando de equívocos no trabalho do Editor e do Autor, em parte hoje delegado a Consultores e à Secretaria (em suas diferentes etapas, do registro de entrada do manuscrito à distribuição do periódico editado).

O trabalho de edição científica

Na Psicologia (como em outras áreas) tivemos no Brasil muitos periódicos de vida efêmera. Nascidos em geral para atender à "necessidade premente" de escoar produção científica numa área de conhecimento ou numa instituição de pesquisa, poucos iam além de três a quatro números. Na Psicologia, os que duraram mais que isso tiveram muitas vezes que juntar números num mesmo volume para manter a publicação.3 3 É o caso, para exemplo, de dois periódicos iniciados em 1949 e ainda publicados: os Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, depois Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada (inicialmente da Fundação Getúlio Vargas, hoje um periódico regular da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e o Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo; é o caso também da Revista de Psicologia Normal e Patológica da PUC-SP, iniciada em 1955 e que teve seu último número em 1973. Não é difícil encontrar ainda hoje editoriais explicando atrasos da publicação, em geral por falta de verba.

Mas também não é difícil encontrar diferenças significativas num periódico científico (para o bem e para o mal) quando da mudança de seu Editor, do mesmo modo que alguns dos periódicos de maior duração podem ser explicados pelo empenho e persistência de um único Editor, em especial quando seu criador.

O que tudo isso nos ensina? De um lado: que valeu a pena a transparência com que o processo de avaliação dos programas pela Capes se explicitou, a partir dos anos 1990. Em evento realizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL) em 2008, o Professor Adalberto Vasques, Diretor de Avaliação da Capes, dizia que a avaliação de periódicos existia na Capes há 26 anos, a novidade era que se passou a quantificar e dar publicidade a isso.4 4 Disponível em http://www.anpoll.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=72& Itemid=72&limitstart=1, recuperado em 17 de maio de 2011. (Nós diríamos: a novidade maior era usar "isso" para pressionar professores da pós-graduação brasileira por produção "quantificável".)

É também possível concluir que editar periódico científico nunca foi fácil. E, se agora parece estar mais difícil ainda, dado o aumento de autores, ao mesmo tempo se tem mais apoio, tanto de colegas Editores (e os encontros da ABEC e, mais recentemente, da Associação Brasileira de Editores Científicos em Psicologia (ABECIP) são boa oportunidade para isso) como da Comissão de Avaliação de Periódicos, desde o início dando pistas com seus detalhados formulários, nos quais notas e pesos diferentes indicam valor de cada decisão editorial. Infelizmente, o auxílio financeiro não acompanha essa ajuda, dado que, de modo geral, o que ocorre de aumento na produção não é acompanhado de aumento correspondente em verbas para publicá-la.

Deve ser por tudo isso que os Editores, antes sabidamente indispensáveis para suas revistas, são hoje não apenas substituíveis, mas interessados também em ser substituídos, ainda que gostando do cargo e até do trabalho: deve ser reforçador, na Universidade, lidar com produto além de tão necessário à área e aos colegas, além de tão visível ("um dos poucos frutos do trabalho acadêmico que se configuram, claramente, como produto, em sentido próprio e não figurado", diz Aubert, 1996).

Entretanto, a que custo – pessoal, acadêmico, social?

Vejamos o que implica ser Editor Científico: ler os manuscritos que chegam e conferir com o projeto editorial da revista; escolher e, às vezes, escolher de novo (com ou sem ajuda do Conselho Editorial ou de Comissão Executiva) os Consultores aos quais encaminhá-los para parecer; ler os pareceres, compará-los e decidir encaminhamento (às vezes para mais um parecer); voltar os manuscritos aos autores, quando for o caso (e frequentemente é); nova leitura para decisão sobre reencaminhar aos pareceristas antes da decisão final; convocar e dirigir reuniões do Conselho (ou colaborar para que outrem as dirija – "secretariando" chefe do setor responsável pela revista), seja para fechar cada número, seja para outras matérias, que sempre há o que discutir e decidir.

Isso tudo e mais: se tiver um Conselho atuante, cuidar dos encaminhamentos definidos como rotina na relação Editor/Conselheiros. Se tiver uma boa secretaria (um secretário, um revisor e um encarregado da distribuição, pelo menos), conferir o trabalho de encaminhamento consequente a cada uma das decisões tomadas – das rotineiras, como revisão de texto e avaliação da revisão, além da avaliação de preços das diversas tarefas para as quais se necessita serviços de terceiros (quando não, ele próprio, do levantamento de preços), bem como outras, relativas a alterações na rotina, como nova capa ou nova diagramação, por exemplo; difusão e distribuição do periódico e controle de assinaturas; correspondência com Autores, Conselheiros, Consultores; e, sobretudo, cuidar de arestas a aparar: desde assegurar a necessária isenção no processo de consulta até facilitar a imediata distribuição do material a editar ou editado. Para completar, o trabalho externo: correspondência com órgãos de financiamento e indexadores (em geral com preenchimento de formulários detalhados) e relatórios às agências, ao Conselho e outra(s) chefia(s).

Não é, pois, de estranhar, que os periódicos venham praticando hoje novos, infelizmente equivocados, procedimentos. Entre eles, o de repassar seu trabalho a outrem. É verdade que parte dele pode, sim, ser partilhado: por exemplo com Conselheiros atuantes, com Editores Assistentes ou Associados e com Editores convidados (para citar termos mais usados hoje), uma partilha sempre com pessoal de qualificação igual ou próxima à sua. O equívoco é repassá-la da forma como vem às vezes sendo feita. E isso se vê facilmente analisando formulários praticados em boa parte dos periódicos, mesmo os ditos Qualis.

Em 1994, Feitosa (1994b) lembrava que compete ao Editor Científico

viabilizar a publicação de trabalhos de qualidade técnico-científica compatível com os referenciais de excelência da subárea em que se inserem, torná-los amplamente acessíveis à própria comunidade científica e disponíveis à sociedade em geral. (p. iv)

Avaliação por pares deveria dar conta do primeiro requisito, começando com escolha adequada (com ou sem apoio de seu Conselho Editorial) dos Consultores necessários. Parece, entretanto, difícil acreditar que isso acontece, quando um formulário pede ao Consultor que verifique se o artigo "atende à política editorial da revista". Quer dizer que não houve análise preliminar do texto? Por outro lado, desvia ainda o Consultor de seu trabalho ter que se submeter ao rito burocrático de assinalar entre alternativas "sim/não", "está/não está", "requer/não requer". No limite, há ainda formulários que pedem ao Consultor para contar palavras do resumo ou até do título.

Quanto a tornar os trabalhos "amplamente acessíveis", a responsabilidade do Editor pode estar sendo finalizada com a entrega do número publicado aos indexadores e à Comissão de Avaliação Capes. A um distribuidor frequentemente anônimo é entregue a tarefa de fazer o periódico impresso chegar à comunidade, em certos casos incluindo aí os membros do Conselho e o próprio Autor. Felizmente, e em boa hora, a Avaliação Capes dá nota para distribuição por meio eletrônico.

Ausência de equipe própria ou suficientemente preparada pode responder por todos esses equívocos, embora não os justifique. É certo que casos caricatos respondem por essa crítica, mas o fato é que são equívocos que ocorrem hoje e que podem facilmente incidir no que cabe à ética do Editor (Feitosa, 1994b) e do Consultor (Feitosa, 1993).5 5 A propósito, é da mesma revista – Psicologia: Teoria e Pesquisa o "quem é quem" na pesquisa psicológica brasileira, entre outras razões, para "ajudar quem procura especialistas numa determinada área de conhecimento" (Todorov, 1993).

A circulação do conhecimento científico

Em texto anterior nesta revista, tivemos oportunidade de trazer o leitor para o centro dos problemas de nossos periódicos: "para além de registro do conhecimento produzido e sua circulação, o periódico é também o espaço que materializa o artigo, que o torna objeto de leitura" (Guedes, 2004, p. 252).

Naquele momento, nossa preocupação era com a baixa circulação dos periódicos em Psicologia, apesar de esse quesito já fazer parte da Ficha de Avaliação da Capes para a área desde os primeiros tempos do processo. Não à toa, boa parte das reclamações dos Editores incidia então sobre a dificuldade de distribuição. A passagem de direção de um Editor a outro se fazia acompanhada de caixas e caixas com exemplares não vendidos: o envio pelo correio era caro, a distribuição por intercâmbio dependia da boa vontade das bibliotecas da instituição publicadora, livrarias não vendiam periódicos... Significava isso, ao menos para os periódicos impressos, que os textos não tinham chegado aos leitores?

Mas, à época, outro aspecto relativo à circulação era questionado: o atraso na regularidade do periódico. Dificuldade para pagamento de gráfica (frequentemente o único serviço pago diretamente a terceiro) podia acarretar atraso de que se ressentiam Autores e Leitores. Para alguns Editores o problema, parecia, poderia ser resolvido com a troca da impressão em papel pelo periódico eletrônico; e, de fato, alguns adotaram imediatamente esse novo meio. Mais adiante, exigência da avaliação pela Capes, a circulação por meio eletrônico é cobrada também do periódico impresso.

A novidade hoje é que o chamado produtivismo6 6 Justiça seja feita, a avaliação em Psicologia logo colocou um freio nessa exigência, ao acatar como suficiente para consideração o limite de quatro artigos ao ano. No entanto, apenas um paliativo para uma decisão descolada da realidade do pesquisar. aumentou consideravelmente o número de autores na área, sem que o número de periódicos o acompanhasse, ocasionando agora um outro tipo de atraso, constatado na informação (também obrigatória) das datas de recebimento do texto a aceite final, em alguns casos mediados pela data de revisão. Rápida análise mostra que em revista Qualis o tempo total entre recebimento e aceite para ser publicado pode estar alcançando hoje até dois anos, em revista quadrimestral. Mais dois a três meses para entrar em circulação e está de novo posto o problema. Fácil dizer que, se o periódico tem mais que dez textos por número, a resposta ao problema seria aumentar a periodicidade, de quadrimestral a trimestral. Vale dizer, mais trabalho para o Editor e o Conselho Editorial. Sem falar no trabalho dos Consultores e toda a secretaria. O fato é que o aumento de autores está levando os periódicos a atrasar a publicação de artigos apesar de sua regularidade, prejudicando Autor e Leitor.

Para complicar ainda mais essa relação, cabe lembrar o que Feitosa (1994a) diz sobre a ética na comunicação (em encontros científicos) e na publicação da pesquisa (em periódicos): se a responsabilidade do Autor científico começa na atuação ética ao pesquisar, essa é também fundamental na sua divulgação; desde a decisão sobre quem é de fato o Autor do artigo (não deveria ser questão "de estilo pessoal de comunicação, mas [baseada] em julgamento acerca do tipo de participação intelectual" (p. vi)) ao diálogo com o Editor e o parecerista (por intermédio do Editor) na publicação, passando por aspectos como a citação de autores e até os agradecimentos. Em análise bem mais recente, mas também bastante cuidadosa, Castiel e Sanz-Valero (2007) destacam agora os vários tipos provocados pela "luta ferrenha entre artigos que buscam a ocupação dos espaços editoriais": publicacionismo, escambo editorial (meu nome no seu artigo, seu nome no meu artigo), plágio, autoplágio.7 7 Ver também "apagamento de autoria" e "semiplágio" em Orlandi (2007). "Sem dúvidas, a tarefa de editar revistas científicas se tornou bastante complexa ao envolver intrincados e múltiplos aspectos éticos" (p. 3043).

E isso tudo, sem contar a escrita em si. Voltamos a mais um editorial de Feitosa (1994c), agora sobre o limite da individualidade de estilo de expressão: espera-se do Autor que não escreva apenas para alguns (especialistas) e de seu texto que tenha "organização predizível, lógica, elegância, simplicidade, concisão, propriedade sintática e clareza semântica" (p. v). A questão que se coloca é: onde se aprende a escrever assim? Estão os cursos de pós-graduação ocupados em preparar os novos autores? Editores e Consultores, temos preparo para ajudar nisso os mais jovens? Ou fica para o Revisor de provas consertar? E os Autores, entendem (ou esperam) que isso possa estar entre os papéis de Editor, Consultor e Revisor de prova? Entretanto, o Leitor precisa disso, a circulação do conhecimento depende disso.

Finalmente, uma palavra sobre a escrita dos pareceres. Já foi peça importante na vida dos Autores (pessoalmente, aprendi muito com pareceres circunstanciados). Um parecer minucioso, bem-detalhado era fundamental para o Autor, além de indispensável ao Editor. Fragmentados hoje em respostas a questões pontuais, que serviço prestam ao Autor? Dizer que não se proíbe ao Consultor completar o formulário com "Comentários adicionais" só dá ideia de como podem ser irrelevantes à decisão editorial e atrasa a nossa discussão. O foco deveria estar no que se espera de um Consultor. A impressão que se tem ao analisar os formulários é que, no limite, a avaliação por pares pode estar sendo reduzida a simples rito burocrático, cabendo-lhe dizer se as normas da revista estão sendo cumpridas.

Entretanto, não é difícil concordar que "se a forma nos revela o objeto, ela não poderia ser apreciada sem a consideração de seu conteúdo" (Carone, 2009, p. 49), o que faz de Autor, Editor e Consultor parceiros no que devam ser nossos periódicos: publicação de conhecimento novo, de qualidade científica e técnica e acessível, à comunidade e à sociedade em geral.

À moda de conclusão

Em comunicação apresentada no Fórum Política Científica no último Simpósio da ANPEPP, em 2010, a Professora Lúcia Rabello de Castro convocou a comunidade a refletir sobre "o contraponto necessário ao trabalho acadêmico atualmente engolfado pelas políticas de boa gestão". Por que não juntar a discussão da publicação em Psicologia aos exemplos trazidos em seu texto pela professora – relação da pós-graduação com a graduação (como esperar que a primeira vá bem, se a segunda vai mal?) e a internacionalização da produção científica (chegamos sequer a decidir "em que direções e para que devemos e queremos ser internacionalizados"?).

É preciso "compreender melhor os dilemas postos pelo nosso tempo para construir outras escolhas de viver e trabalhar", diz Castro (2010). Quem sabe ANPEPP e SBP, bem como todas as Associações específicas, poderiam priorizar o tema em seus próximos eventos, de modo a coletivizar essa busca de "um outro mundo acadêmico"?

Recebido em: 17/04/2011

Aceito em: 26/05/2011

Maria do Carmo Guedes, Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Psicologia Social. Endereço para correspondência: Rua Georgia, 419, Brooklin, CEP 04559-010, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: mcguedes@pucsp.br

  • Aubert, F. (1996). Problemas e caminhos das publicaçőes universitárias no Brasil da área de Humanidades (Texto escrito para evento na Reuniăo Anual da SBPC em 1996).
  • Bianchetti, L., & Machado, A. M. N. (2007). Reféns da produtividade: sobre produçăo do conhecimento, saúde dos pesquisadores e intensificaçăo do trabalho na pós-graduaçăo. In Anais da 30Ş Reuniăo Anual da ANPEd (pp. 1-15). Rio de Janeiro: ANPEd.
  • Carone, A. M. (2009). O escritor Freud e a psicanálise. Cięncia e Cultura, 61, 48-51.
  • Bueno, J. L. O. (1992). Sugestőes para uma política de publicaçőes científicas no Brasil. Cadernos ANPEPP, (1), 39-44.
  • Castiel, L. D., & Sanz-Valero, J. (2007). Entre fetiche e sobrevivęncia: o artigo científico é uma mercadoria acadęmica? Caderno de Saúde Pública, 23(12), 3041- 3050.
  • Castro, L. R. (2010). Privatizaçăo, especializaçăo e individualizaçăo: um outro mundo acadęmico) é possível? Psicologia & Sociedade, 22(3), 622-627.
  • Diretório de pesquisadores da Psicologia brasileira. (1993). Psicologia: Teoria e Pesquisa, 9(especial), 1-46.
  • Feitosa, M. A. G. (1993). A ética no processo de revisăo demanuscritos. A expectativa do Editor em relaçăo ao papel do Consultor. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 9(3), iv-vi.
  • Feitosa, M. A. G. (1994a). A responsabilidade ética do autor de manuscritos submetidos ŕ publicaçăo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 10(1), iv-viii.
  • Feitosa, M. A. G. (1994b). A responsabilidade ética do Editor de um periódico científico. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 10(2), iv-viii.
  • Feitosa, M. A. G. (1994c). O cientista e o limite da individualidade de expressăo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 10(3), iv-vi.
  • Gomes, W. B., & Rosa, J. T. (Orgs.). (1992). Divulgaçăo de pesquisas em Psicologia no Brasil. Cadernos da ANPEPP, (1), 59-70.
  • Guedes, M. C. (2004). Escrever e editar: compromisso com a disseminaçăo do conhecimento. Psicologia USP, 15(3), 249-256.
  • Orlandi, E. P. (2007). As formas do silęncio Campinas: Ed. da Unicamp, 133-147.
  • Rocha e Silva, M. (2009a). O novo Qualis ou a tragédia anunciada. Clinics, 64(1).
  • Rocha e Silva, M. (2009b). O novo Qualis, que năo tem nada a ver com a cięncia do Brasil. Carta aberta ao presidente da CAPES. Clinics, 64(8).
  • Rocha e Silva, M. (2010a). Classificaçăo dos periódicos no Sistema Qualis da Capes a mudança dos critérios é ugente! Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, 32(1).
  • Rocha e Silva, M. (2010b). Quais 2011-2013 os tręs erres. Clinics, 65(10).
  • Rocha e Silva, M. (2011). Reflexőes críticas sobre os tręs erres, ou os periódicos brasileiros excluídos. Clinics, 66(1).
  • Todorov, J. C. (Ed.). (1993). Apresentaçăo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 9(especial), 1.
  • Rodrigues, L. O. C. (2007). Publicar mais, ou melhor? O tamanduá olímpico. Revista Brasileira de Cięncias do Esporte, 29(1), 35-48.
  • Witter, G. P. (1992). Editoraçăo científica: da produçăo ŕ veiculaçăo. Cadernos ANPEPP, (1), 45-56.
  • Yamamoto, O. H., Koller, S. H., Guedes, M. C., LoBianco, A. C., Sá, C. P., Hutz, C. S., Bueno, J. L. O. (1999). Periódicos científicos em Psicologia: uma proposta de avaliaçăo. Infocapes, 7(3), 7-13.
  • 1
    Grupo de Trabalho coordenado por William Gomes, da UFRGS, produziu uma coletânea com 15 textos entre os apresentados no Simpósio da Anpepp em Brasília. Publicada como n. 1 dos
    Cadernos Anpepp (Gomes & Rosa, 1992), traz análises sobre política de publicação, produção de periódicos e publicação de livros. No rastro dessa iniciativa, a SBP propicia, em 1996, aquele que foi o primeiro Encontro de Editores de Psicologia. E em 1997 o Conselho Deliberativo da ANPEPP indica a Comissão que detonou o processo que, coordenado em seguida pela Capes, serviu à classificação dos periódicos que apoia essa agência em seu trabalho de avaliação dos programas de pós-graduação no país.
  • 2
    Revisão detalhada pode ser encontrada em Bianchetti e Machado (2007), do Grupo Trabalho e Educação, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação. Pesquisadores da área de Saúde também têm dedicado parte de seu tempo ao tema. Conferir, por exemplo, em
    Revista de Saúde Pública (2006, volume 40, número especial), além dos primorosos editoriais do Professor Maurício Rocha e Silva (2009a, 2009b; 2010a, 2010b; 2011); e, claro, revistas da área de Ciência da Informação. Vale ainda conferir charge de Luiz Oswaldo Rodrigues em anexo (Rodrigues, 2007).
  • 3
    É o caso, para exemplo, de dois periódicos iniciados em 1949 e ainda publicados: os
    Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, depois
    Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada (inicialmente da Fundação Getúlio Vargas, hoje um periódico regular da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e o
    Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo; é o caso também da Revista de
    Psicologia Normal e Patológica da PUC-SP, iniciada em 1955 e que teve seu último número em 1973.
  • 4
    Disponível em
  • 5
    A propósito, é da mesma revista –
    Psicologia: Teoria e Pesquisa o "quem é quem" na pesquisa psicológica brasileira, entre outras razões, para "ajudar quem procura especialistas numa determinada área de conhecimento" (Todorov, 1993).
  • 6
    Justiça seja feita, a avaliação em Psicologia logo colocou um freio nessa exigência, ao acatar como suficiente para consideração o limite de quatro artigos ao ano. No entanto, apenas um paliativo para uma decisão descolada da realidade do pesquisar.
  • 7
    Ver também "apagamento de autoria" e "semiplágio" em Orlandi (2007).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      17 Abr 2011
    • Aceito
      26 Maio 2011
    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revpsico@usp.br