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CONTRIBUIÇÕES DE VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA PARA UMA PSICOLOGIA BRASILEIRA ANTIRRACISTA

APORTES DE VIRGINIA LEONA BICUDO Y NEUSA SANTOS SOUZA A UNA PSICOLOGÍA BRASILEÑA ANTIRACISTA

CONTRIBUTIONS OF VIRGINIA LEONE BICUDO AND NEUSA SANTOS SOUZA TO AN ANTI-RACIST BRAZILIAN PSYCHOLOGY

Resumo

O presente artigo tem como objetivo discutir as contribuições teóricas de Virgínia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza para o campo da Psicologia Social, bem como refletir sobre o modo como uma política de circulação dos conhecimentos científicos age de modo a resistir a essas contribuições. Metodologicamente, este artigo se orienta a partir de uma meta-análise qualitativa. Os resultados apontam que desnaturalizar a não-presença da população negra nos espaços de produção de conhecimento, trazer à tona suas produções intelectuais e, ainda, suas experiências enquanto sujeitos ativos da história, é urgente para a transformação desse cenário e, sobretudo, para uma democratização efetiva das universidades e do conhecimento. Por isso, conclui-se que as produções de Bicudo e Souza podem ser um recurso para se pensar sobre a emergência da construção de uma Psicologia Social Antirracista, rompendo com as matrizes colonialistas e as lógicas maniqueístas.

Palavras-chave:
Epistemicídio; Virgínia Leone Bicudo; Neusa Souza Santos; Racismo

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir los aportes teóricos de Virgínia Leone Bicudo y Neusa Santos Souza al campo de la Psicología Social, así como reflexionar sobre cómo una política de circulación del conocimiento científico actúa para resistir a esos aportes. Metodológicamente, este artículo se guía por un metanálisis cualitativo. Los resultados indican que es urgente desnaturalizar la no presencia de la población negra en los espacios de producción de conocimiento, sacar a la luz sus producciones intelectuales y, también, sus experiencias como sujetos activos de la historia, para la transformación de este escenario y, sobre todo, a una democratización efectiva de las universidades y del conocimiento. Por lo tanto, se concluye que las producciones de Bicudo y Souza pueden ser un recurso para pensar el surgimiento de la construcción de una Psicología Social Antirracista, rompiendo con matrices colonialistas y las lógicas maniqueas.

Palabras clave:
Epistemicidio; Virginia Leona Bicudo; Neusa Souza Santos; Racismo

Abstract

This article aims to discuss the theoretical contributions of Virgínia Leone Bicudo and Neusa Santos Souza to the field of Social Psychology, as well as to reflect on how a certain scientific knowledge circulation policy acts in order to resist these contributions. Methodologically, this article is guided by a qualitative meta-analysis. The results indicate that it is urgent to denaturalize the non-presence of the black population in spaces of knowledge production, to bring to light their intellectual productions and, also, their experiences as active subjects of history, in order to transform this scenario and, above all, to an effective democratization of universities and knowledge. Therefore, it is concluded that Bicudo and Souza's productions can be a resource to think about the emergence of the construction of an Anti-racist Social Psychology, breaking with colonialist matrices and Manichean logic.

Keywords:
Epistemicide; Virginia Leone Bicudo; Neusa Souza Santos; Racism

Introdução

Este artigo dedica-se à investigação de um tema urgente para a transformação da Psicologia, sobretudo da Psicologia Social. Ele nasce da seguinte pergunta retórica: é possível construir uma Psicologia antirracista? A pergunta é retórica, pois, desde já, afirmamos uma posição epistemológica e política que demarca que essa construção deve ser possível, pois, se não for, nenhuma Psicologia nos servirá. Mas a pergunta (como qualquer pergunta) está carregada de pressupostos. Nesse caso, pressupõe que a Psicologia que temos hoje segue atravessada pelo racismo e, assim, contribui para a perpetuação das desigualdades de raça. Essa falha será analisada nesse artigo, sobretudo, sob o viés do apagamento dos saberes antirracistas produzidos no campo, por meio do conceito de epistemicídio. Ao lançar esse questionamento à Psicologia, pressupomos, também, que ela tem algo a contribuir com a luta antirracista.

Destarte, temos por objetivo discutir as contribuições teóricas de Virgínia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza no campo da Psicologia Social, bem como refletir sobre o modo como uma política de circulação dos conhecimentos científicos age de maneira a resistir a essas contribuições. Para tanto, o artigo, primeiramente, revisa e apresenta a produção e a contribuição teórica em Psicologia das autoras Virgínia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza. Em seguida, discute o modo como essas contribuições foram silenciadas nas formações em Psicologia. Por fim, aponta que, mesmo sendo apagadas, as contribuições das duas autoras passam a ser instrumentos e recursos para seguirmos em busca das próximas rotas e vias para almejar e esperançar uma Psicologia Social Antirracista, uma vez que, não se trata apenas de produzir conhecimento, mas de encarnar essa produção. A ilusão de conhecimentos universais, neutros e desencarnados é o que queremos ver ruir na Psicologia Social e, sobretudo, na Psicologia Brasileira.

Metodologicamente, este artigo se orienta a partir de uma meta-análise qualitativa. O objetivo de uma meta-análise é sintetizar estudos qualitativos sobre um tópico a fim de localizar temas, conceitos ou teorias-chave que forneçam novas possibilidades, explicações e contribuições para o fenômeno sob análise (Siddaway et al., 2019Siddaway, Andy; Wood, Alex; & Hedges, Larry (2019). How to do a systematic review: a best practice guide for conducting and reporting narrative reviews, meta-analyses, and metasyntheses. Annual Review of Psychology, 70(1), 747-770. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30089228/
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).

Repensar os cânones da Psicologia Social e sua estruturação enquanto ciência é mais do que urgente e necessário, haja vista que nos possibilita forjar uma teoria e uma historiografia com diferentes sujeitos que agem no e sobre o mundo das mais diversas formas, a partir das mais distintas cosmovisões. Por isso, acreditamos que as produções teóricas de Bicudo (2010Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Editora Sociologia e Política.) e Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal.), assim como tantas outras pensadoras(es), podem ser um recurso para pensar sobre a emergência da construção de uma Psicologia Social Brasileira Antirracista, rompendo com matrizes colonialistas e lógicas maniqueístas.

O que deixamos de aprender com Virgínia Leone Bicudo?

Licença. Pedimos permissão a você, Virgínia, para que possamos falar, para que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome. São quase cinco décadas desde que Virgínia Leone Bicudo defendeu sua dissertação de mestrado, desenvolvida entre os anos 1941 e 1944 e apresentada no ano seguinte. Sob a orientação do sociólogo Donald Pierson, na dissertação, intitulada “Estudos de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo” (1945), a autora realizou uma investigação pioneira sobre as relações raciais em um grande centro urbano.

Seu trabalho, por meio do estudo das “atitudes raciais”, orientadas pelas intersecções entre Sociologia, Antropologia e Psicologia Social, teve por base estudos de caso, entrevistas e análise de documentação da Frente Negra Brasileira (1931-1937) e do jornal Voz da Raça. O trabalho de Bicudo, junto com os trabalhos de Oracy Nogueira, apresenta um novo olhar sobre as relações entre cor/raça e classe social no Brasil.

Pode-se dizer que é um marco epistemológico, haja vista que estes estudos evidenciam a persistência do preconceito de cor, mesmo quando se atenuam as diferenças sociais e de classe. Os estudos de Bicudo contrapõem-se às concepções tradicionais acerca da existência de uma harmonia racial na sociedade brasileira (democracia racial) embasada no pressuposto de que o preconceito de cor estaria submisso ao de classe (Maio, 1999Maio, Marcos Chor (1999). O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14(41), 141-158. https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/QZnghFsznmKFLtHyMWpnwHk/?lang=pt
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).

No final da segunda guerra mundial, Bicudo apresentou uma reflexão inovadora, ao considerar a cor como importante variável na produção de desigualdades sociais em contexto intelectual, no qual prevalecia a máxima de que o preconceito de classe seria reinante na sociedade brasileira. Bicudo (2010Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Editora Sociologia e Política.) deixa explícito que estuda a experiência de seus entrevistados para além das causas meramente intrapsíquicas, contemplando também os aspectos sociais (Aiello-Fernandes, 2018Aiello-Fernandes, Rafael (2018). Racismo e Psicanálise em produções acadêmicas [Tese de doutorado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas/SP].).

O trabalho de Virgínia Bicudo foi realizado em São Paulo, tendo 30 casos apresentados, dos quais 11 foram encontrados na Clínica de Orientação Infantil da Sessão de Higiene Mental Escolar. A autora visitava os grupos escolares da capital e tomava o endereço de estudantes declarados pretos ou mulatos, e, assim, contatava os pais, dizendo-lhes que desejava conhecer as condições do ambiente afetivo para orientá-los na educação dos filhos. Por sua vez, os pretos e mulatos das classes sociais intermediárias foram procurados por meio de apresentações e as pessoas eram informadas dos intentos da pesquisa.

É importante demarcar que Bicudo (2010Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Editora Sociologia e Política.) não utilizou o critério de autoclassificação racial que se emprega, por exemplo, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Deste modo, a autora recorreu a uma classificação segundo a qual identificou os pretos como indivíduos de cor preta e cabelos encarapinhados, com pais de mesmos traços físicos. Já os mulatos eram os de cor parda, cujos genitores eram compostos por pares de negro e branco, pardo e branco ou indivíduos pardos.

Bicudo (2010Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Editora Sociologia e Política.) também estudou a instituição Frente Negra Brasileira, realizando entrevistas com seus dirigentes e procedendo à análise de documentações e do jornal da entidade, o Voz da Raça. O intuito era examinar atitudes e opiniões raciais manifestadas em âmbito institucional e assumidas publicamente. Em função do momento político no qual a pesquisa se deu - estávamos no Estado Novo e organizações políticas não eram permitidas - a autora renomeou a Frente Negra como “Associação de Negros Brasileiros”, referindo-se ao jornal como “Remanescentes de Palmares” (Aiello-Fernandes, 2018Aiello-Fernandes, Rafael (2018). Racismo e Psicanálise em produções acadêmicas [Tese de doutorado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas/SP].).

Segundo Bicudo (2010Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Editora Sociologia e Política.), os pretos de classe social “inferior” entrevistados/as evidenciavam distância social entre os pretos de classe social “alta” por atitudes de rivalidade, ou seja, como afirma um dos entrevistados, “cada um quer ser melhor do que o outro”, bem como manifestam desprezo, “é pior o desprezo de preto que melhora economicamente do que o do branco”. Manifestam, também, antipatia, “preto não gosta do preto”, antagonismo, “os pretos são contra os pretos”, e inveja, “os pretos são pessoas invejosas, desejam ver-nos sempre mal”, bem como o sentimento de inferioridade perante o corpo branco, o que concorreria para arrefecer os sentimentos de hostilidade.

A partir dos casos e relatos apresentados pela autora, pode-se afirmar que pessoas negras, estejam elas em ascensão social ou não, internalizavam, em algum momento de sua existência, e ainda se encontravam fixados numa concepção desfavorável de si próprios, em consequência de intenso processo de identificação, por meio de contato primário com pessoas do grupo dominante, principalmente, na infância. Assim, como aponta Costa (1983Costa, Jurandir Freire (1983). "Da cor ao corpo: a violência do racismo” (Prefácio). In N. S. Santos (Ed.), Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro (pp. 01-16). Graal.) no prefácio do livro Tornar-se Negro, “negro, no desejo de embranquecer, deseja nada mais, nada menos, que a própria extinção. Seu projeto é o de, no futuro, deixar de existir, sua aspiração é a de não ser ou não ter sido” (Costa, 1983Costa, Jurandir Freire (1983). "Da cor ao corpo: a violência do racismo” (Prefácio). In N. S. Santos (Ed.), Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro (pp. 01-16). Graal., p. 5).

Portanto, o fato de a pessoa negra, pertencente às classes sociais intermediárias, não apresentar, diretamente, atitudes de hostilidade contra o branco, encontraria explicação no intenso sofrimento do processo de identificação com este, ao mesmo tempo em que sofriam com a discriminação. Nesse ponto, Bicudo (2010Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Editora Sociologia e Política.), revelando seu diálogo com a Psicanálise, volta sua atenção para a constituição subjetiva dos entrevistados - muitos dos quais tinham sido criados por brancos.

No convívio íntimo com brancos, pessoas negras adquiriam as maneiras de pensar e sentir do corpo branco, inclusive no que se refere ao próprio preto, passando a ter, para com o corpo negro, a mesma atitude e os mesmos sentimentos do corpo branco. Ou seja, em virtude dos contatos primários da infância e do mecanismo psíquico da identificação, o corpo negro introjetaria as ideias do branco e passaria, então, a ver os corpos pretos do ponto de vista dos brancos, desprezando-os. Questão como esta é a que Frantz Fanon, Neusa Santos Souza e Isildinha Baptista Nogueira, posteriormente, descrevem e desenvolvem em seus trabalhos.

Vale ressaltar que Neusa Santos Souza não leu Virgínia Leone Bicudo, mas é possível afirmar e pontuar o quanto suas obras convergem, assim como as narrativas das pessoas entrevistadas se assemelham, mesmo depois de quase 30 anos de publicação da obra de Bicudo. As narrativas encontradas nas entrevistas feitas por Virgínia e Neusa se parecem, afinal, estamos falando das adversidades do corpo negro e sabemos que, por mais singular que este corpo seja, ele é constituído por um contexto racista e que se expressa a partir de particularidades, no entanto, o centro passa ser o mesmo: o racismo.

O que deixamos de aprender com Neusa Santos Souza?

Em nosso ponto de vista, a obra Tornar-se Negro (Costa, 1983Costa, Jurandir Freire (1983). "Da cor ao corpo: a violência do racismo” (Prefácio). In N. S. Santos (Ed.), Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro (pp. 01-16). Graal.) não só inaugurou os estudos sobre relações raciais e saúde mental da população negra no Brasil, mas também inverteu a lógica da produção de conhecimento sobre pessoas negras, haja vista que tanto Virgínia quanto Neusa estavam falando de si, também porque ambas percorreram um campo metodológico de que tínhamos pouco conhecimento na época.

Neusa nos diz, em Tornar-se Negro, que uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo, discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade. Assim, eu não sou mais o objeto. Eu sou o sujeito da minha história, posto que a reivindicação da condição humana não está dada, somos nós que a conquistamos. Então, Tornar-se Negro, assim como o trabalho de Virgínia Leone Bicudo, são obras que viabilizam a construção de um discurso do corpo negro sobre o corpo negro, narradas por mulheres negras que não só vivenciaram a experiência de ser negra em uma sociedade branca/misógina/cis-colonial, mas se tornaram referências fundamentais para os estudos das relações raciais no Brasil.

Em específico, Neusa apresentou seu primeiro livro em 1983, fruto de uma dissertação de mestrado defendida em 1981, na qual a autora estuda os passos e trajetórias de pessoas negras, justificando a importância de tal obra no fato de que, na época, havia uma ausência de estudos e trabalhos acadêmicos sobre a vida emocional de negros e negras, além da absoluta ausência de um discurso desse nível elaborado pelo corpo negro acerca de si mesmo.

A partir das leituras deste livro, é possível nos indagar: a descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio, afinal, o que é óbvio? Como Darcy Ribeiro (1986Ribeiro, Darcy (1986). Sobre o Óbvio. In Ensaios Insólitos (2a ed., pp. 01-10). Editora Guanabara. http://www.biolinguagem.com/ling_cog_cult/ribeiro_1986_sobreoobvio.pdf
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) pontua, o óbvio é aquela categoria que só aparece enquanto tal depois do trabalho de se descortinar muitos véus. Foi isso que Neusa e Virgínia, como tantos outros e outras, fizeram e ainda fazem.

Tendo em vista que saber-se negra, como Santos (1983) afirmou, é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida às exigências e compelida a expectativas alienadas, é importante salientar que também é a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.

Se Jurandir Freire Costa (1983Costa, Jurandir Freire (1983). "Da cor ao corpo: a violência do racismo” (Prefácio). In N. S. Santos (Ed.), Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro (pp. 01-16). Graal.) afirma que: “Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso” (Costa, 1983Costa, Jurandir Freire (1983). "Da cor ao corpo: a violência do racismo” (Prefácio). In N. S. Santos (Ed.), Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro (pp. 01-16). Graal., p. 2), hoje, a partir das nossas narrativas, saberes e conhecimentos, podemos contrapor e afirmar que o corpo negro não é apenas um corpo do despejo ou subjugado, pois existem outros processos psíquicos implicados no racismo que envolvem a resistência e a ressignificação desta subjugação. Sendo assim, nem sempre pessoas negras cedem à ideologia do embranquecimento ou se deixam calar. Há busca pelo valor de si, pelo amor de si, por outras identificações e identidades, como nos ensinou Neusa Santos Souza.

Rafael Aiello-Fernandes (2018Aiello-Fernandes, Rafael (2018). Racismo e Psicanálise em produções acadêmicas [Tese de doutorado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas/SP].) pontua que a vivência pessoal de Neusa Santos Souza se encontra presente em sua obra como matéria-prima, que é articulada com experiências vividas por outros negros e negras. Ainda segundo o autor, Neusa assinala ser fundamental que o conhecimento produzido nessa obra possa alcançar, também, os brancos engajados com o objetivo da construção de um processo real de libertação.

Baseada na experiência de ser negro em uma sociedade branca, de classe e ideologia dominante brancas, de estética e comportamentos brancos, de exigências e expectativas brancas, a autora busca analisar a experiência emocional do corpo negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo de ascensão social.

Na medida em que a sociedade escravagista transforma o corpo africano em sujeito escravizado, ela definiu o negro como raça e, assim, demarcou seu lugar, sua história e a maneira de tratar e ser tratado, bem como os padrões de interações com o branco, instituindo, então, o paralelo entre cor negra e a posição social inferior. Com isto, desde o processo de escravização, busca-se novos elementos que lhe permitam justificar a representação da pessoa negra como socialmente inferior.

Santos (1983) afirma que, muitas vezes, para livrar-se desta concepção e das amarras do sistema colonial, pessoas negras são constrangidas a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar e levar a cabo a estratégia de ascensão social, ou seja, de reconhecimento. Tendo em vista que o cidadão era o branco, os direitos eram para o branco, os serviços respeitáveis eram os “serviços de branco”, ser bem tratado era ser tratado como o branco, foi a partir do desejo de ser humano que a pessoa negra “organizou-se para a ascensão, o que corresponde dizer: foi com a principal determinação de assemelhar-se ao branco, ainda que tendo que deixar de ser negro, que o negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente” (Santos, 1983, p. 21).

Para tanto, três elementos eram necessários para sustentar as relações raciais no Brasil: hierarquização, segregação, e, também, as possibilidades de ascensão do negro. Este tripé correspondia ao contínuo de cor, ideologia do embranquecimento e democracia racial. Em relação ao contínuo de cor, Santos (1983) afirma que o branco e o negro representam, apenas, os extremos de uma linha ininterrupta, onde as diferentes colorações, isto é, nuances de cor, adscreviam significados diversos. Sendo assim, quanto maior a brancura, maiores as possibilidades de êxito e aceitação frente ao olhar do branco/humano/universal.

Com isto, a associação à ideologia do embranquecimento, bem como à ideia de democracia racial, resultaria em um crescente desestímulo à solidariedade do negro, que perceberia seu grupo de origem como referência negativa, isto é, grupo do qual não quer se identificar, reconhecer e estar, logo, seria preciso escapar para realizar, individualmente, as expectativas de mobilidade vertical ascendente (Santos, 1983), como pode-se observar no Caso 12, apresentado por sua precursora Bicudo (2010Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Editora Sociologia e Política., p. 95, grifo nosso):

Caso 12 - Preto, 36 anos de idade. Tem curso primário: Os pretos são mais relaxados que os brancos. Acho que o governo devia tomar a iniciativa de educá-los. Ou então os pretos deveriam unir-se e trabalhar no interior, para em primeiro lugar organizar sua vida econômica. Não existe preconceito do branco contra o preto, pois é o próprio preto que faz surgir situações de desprezo para ele, devido a suas atitudes inferiores. O preto só pensa em dançar. É preciso instruir o negro para melhorar suas atitudes e então ser aceito pelo branco.

A partir do que Virgínia e, sobretudo, Neusa apontam acerca da mobilidade vertical ascendente, é plausível correlacionar a noção de meritocracia, que se acirra, cada vez mais, a partir dos moldes e atravessamentos do sistema neoliberal, pois, desde que nascemos, somos instruídos a acreditar na falsa ideia que subjaz a lógica meritocrática, isto é, o mito e ilusão de que todos os corpos sociais seriam dotados de iguais condições para alcançar os bens da vida. No entanto, é mais do que óbvio e visível (mas apenas para alguns) que a igualdade de oportunidades, prometida pela meritocracia, é uma mera ideologia, cujo intuito é justificar a permanência das desigualdades sociais, tornando-as aceitáveis a todos.

A produção de Neusa desafia a crença psicológica de que o sujeito seria um ser dotado de capacidades e potencialidades que lhes são naturais e que, tendo em vista as condições sociais e ambientais, a pessoa pode “desabrochar” ou não “desabrochar”. Há um ser humano pronto dentro de cada um de nós, como uma semente que tem seu desenvolvimento já determinado, à espera das condições climáticas que poderão facilitar ou dificultar seu desabrochar. A pessoa deve ser capaz de se puxar, pelos seus próprios cabelos, para sair do pântano.

A partir desta lógica apresentada por Neusa, os esforços para curar a “ferida” e ser reconhecido pelo outro (corpo branco) vão, então, suceder-se numa escalada patética e dolorosamente inútil. Como afirma a autora, as inúmeras barreiras à conquista da ascensão social encontradas pelo negro contribuíram para ampliar o fosso que o separava de sua identidade enquanto indivíduo e enquanto grupo.

A autora pontua que o meio negro se dividia: de um lado, ficavam aqueles que se conformavam com a “vida de negro” e, do outro, os que ousavam romper com o paralelismo negros/miséria. Uns e outros hostilizavam-se reciprocamente.

Os primeiros, pelo ressentimento de não “subir na vida” e pela convicção de que perderiam o antigo companheiro que, ao ascender, se afastaria do meio negro. Os outros, por um sentimento de retaliação frente à hostilidade dos primeiros e pela tendência a assimilar o discurso ideológico da democracia racial que vê o negro que não sobre como um desqualificado, do ponto de vista individual. (Souza, 1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal., pp. 22-23)

Deste modo, para autora, a história da ascensão social do negro brasileiro é, assim, a história de sua assimilação aos padrões brancos de relações sociais. Com isto, a estrutura racista passa a criar mitos, que são discursos ilusórios, buscando a negação da história, transformando-a em suposta natureza. Contudo, o mito é uma história verdadeira, porque sempre se refere a realidade. Nas palavras de Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal., p. 25, grifo nosso), “o mito é um efeito social que pode entender-se como resultante da convergência de determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas”.

Neusa faz uso da noção de mito para criar a noção de ‘Mito Negro’, que corresponderia todos os simbolismos construídos ao longo do processo histórico ocidental colonial e passaram a ser associados ao corpo negro. Este mito teria impactos e efeitos nos planos político, ideológico, social e econômico, se expressando pela doutrinação e dominação, mas também surtindo efeitos no plano psíquico. O mito negro impacta no processo de subjetivação e construção identitária. Dito de outro modo, pode-se afirmar que Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal.) propõe uma inovação na discussão sobre racismo no Brasil, ao preconizar que a transmissão do racismo, em nível subjetivo, se faz por meio do que denominou de mito negro.

De acordo com Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal.) e Aiello-Fernandes (2018Aiello-Fernandes, Rafael (2018). Racismo e Psicanálise em produções acadêmicas [Tese de doutorado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas/SP].), o mito negro, visto como como instrumento formal da ideologia cujo efeito social seria resultante da convergência de determinações econômico/políticas/ideológicas e psíquicas, promoveria um processo de naturalização e essencialização das relações sociais, favorecendo uma dissolução de suas contradições. Seria, enfim, uma fala que objetiva escamotear o real, produzir o ilusório e negar a história.

Assim é que, para afirmar-se ou para negar-se, o negro toma o branco como marco referencial. Com isto, a criatividade, a espontaneidade e a sensibilidade lhe são direitos negados, não lhe cabe simplesmente ser. Há que estar alerta não tanto para agir, mas para evitar situações em que seja obrigado a fazê-lo abertamente. Há que estar alerta, como aponta Sônia, entrevista de Neusa: “Estou cansada de me impor. O negro não pode entrar num restaurante, por exemplo, naturalmente. Tem que entrar se impondo” (Souza, 1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal., p. 26).

Há que estar sempre em defesa, em guarda e atento, isto é, em alerta, para evitar ser atacado, violentado e discriminado. Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal.) faz uso da metáfora do ferro em brasa, o qual era utilizado no período de escravização como instrumento de diferenciação, em que a autora diz que a marca da diferença, o ferro em brasa que separa do branco, é vivida não só em seu comportamento externo, mas também em nível psíquico. Em outras palavras, o corpo negro reedita essa desigualdade (negro-branco) e a introjeta em seu universo psíquico, posto que, quando o corpo negro está com outro negro, seu semelhante reproduz o ritual de separação, exclusão, segregação.

Assim, o irracional, o ruim, o sujo, o feio, o exótico, o superpotente são imagens figurativas e representativas do mito negro, conforme aponta Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal.). Cada um desses elementos se expressam através de diversos dispositivos, portando uma mensagem ideológica que busca afirmar, reforçar e manter a linearidade da natureza humana, ou seja, o mito de que o corpo negro corresponderia a uma entidade primitiva, irracional, vai-se reatualizando nas mais diversas formas.

No entanto, Neusa nos ensina a partir de sua obra que ser negro não é uma condição que se estrutura e se arquiteta pela essência ou por uma natureza humana comum, mas é um vir a ser. Logo, ser negro é tornar-se negro. Ao construir uma identidade negra, pode-se afirmar que tal tarefa é eminentemente política, pois passa ser necessária a contestação do modelo advindo das figuras primárias (família ou setores que possam representar tal instituição) e das demais instituições e dispositivos de controle e poder que docilizam nossos corpos e nossos modos de subjetivação, pautando-se em um letratamento racista que passa a ser arquitetado pelo mito negro e pelo mito branco. Isto é, tornar-se negro é romper com este modelo para que possa ser possível organizar condições de narrar a própria história, bem como aponta Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal.), condições de ter um rosto próprio.

Intelectualidade negra no espaço colonial: lidando com a política do esquecimento

A Psicologia brasileira que se faz presente nos manuais didáticos foi gerida e arquitetada de maneira a silenciar intelectuais negros e negras. Sendo, então, um instrumento de constituição de subjetividades por meio da operação do controle, silenciamento e apagamento de histórias, pessoas, grupos sociais e modos de subjetivação. Assim, os saberes psis buscam, incessantemente, se apresentar como um dispositivo disciplinar que captura subjetividades ditas desviantes e abjetas para colocar em prática a narrativa da promessa de correção e do cuidado. Entretanto, o que se pode afirmar é que, na realidade, seu papel tem sido de manutenção, naturalização e produção de necrorrelações1 1 Tendo como referência o conceito de Achille Mbembe de necropolítica, aponto que os saberes psis hegemônicos (psicologia, psiquiatria e psicanálise) se estruturam e se relacionam de modo a produzir uma gestão relacional que se pauta pela disciplina, apagamento, silenciamento e morte. e de pedagogias da violência. Esses processos são denominados epistemicídio (Carneiro, 2005Carneiro, Sueli Aparecida (2005). A construção do outro como não-ser como fundamento do ser [Tese de doutorado em Educação, Universidade de São Paulo/SP].). A palavra episteme nos remete à ideia de conhecimento ou ao estudo do conhecimento. Por sua vez, o sufixo -cídio exprime a ideia de morte ou extermínio. Logo, epistemicídio pode ser entendido como assassinato do conhecimento de algo. Mas que “algo” seria esse que está sujeito ao epistemicídio? Pode-se pensar que aqueles/as que apresentavam modos de ser, costumes e fenótipos diferentes daqueles partilhados pelos europeus estariam sujeitos ao epistemicídio.

Segundo Sueli Carneiro (2005Carneiro, Sueli Aparecida (2005). A construção do outro como não-ser como fundamento do ser [Tese de doutorado em Educação, Universidade de São Paulo/SP].), no caso dos/as negros/as, o epistemicídio atua como um conjunto de práticas educacionais desfavorecedoras e como constrangimentos sociais cotidianos, visando obstar a trajetória do sujeito negro como sujeito de conhecimento. Impossibilitando esse papel, impossibilita-se, também, o processo social de emancipação do sujeito e de seu grupo. Desta maneira, pode-se pensar em epistemicídio a partir do momento em que um grupo elege apenas um único conhecimento científico e negligencia outros saberes, retirando, assim, suas validades e potencialidades.

A esse processo podemos nomear como sendo um processo de monocultura do saber e do rigor, que se baseia na negação de outros conhecimentos e de formas de se produzir conhecimento (epistemicídio). Apagam-se inúmeras histórias, vozes e lutas, uma vez que se naturaliza a ideia de que a cultura teria um sentido, uma direção e uma dinâmica, ou seja, parte do pressuposto que esse processo foi construído linearmente e de forma pacífica. No entanto, a violência e a exploração foram o meio e o fim para manter o sistema colonial. A violência se torna chave analítica para a compreensão do colonialismo e do epistemicídio.

Como forma de ilustração acerca do apagamento e da perpetuação da política do esquecimento, analisamos, brevemente, os 10 cursos de Psicologia mais bem avaliados pelo ranking Universitário Folha (RUF) no ano de 2019 e 2020, que é uma avaliação anual do ensino superior do Brasil feito pela Folha de São Paulo desde 2012. No ranking de universidades, estão classificadas 195 universidades brasileiras, públicas e privadas, a partir de cinco indicadores: pesquisa, internacionalização, inovação, ensino e mercado2 2 No ano de 2019, os 10 cursos mais bem avaliados em Psicologia foram: 1° UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais; 2º UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro; 3º UNB - Universidade de Brasília; 4º UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 5º PUCSP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 6º USP - Universidade de São Paulo 7º UFF - Universidade Federal Fluminense; 8º PUCRS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 9º UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; 10º UFPE - Universidade Federal de Pernambuco (Navasconi, 2022). .

Das 10 universidades listadas pela RUF (2019), tivemos acesso ao Projeto Pedagógico do curso de Psicologia de 09 universidades (apenas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul não foi possível acessá-lo), bem como as ementas das disciplinas3 3 Um dado para ser demarcado é que a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), colocada na posição de 13°, possui, na grade curricular, uma disciplina obrigatória referente à Psicologia e Relações Étnico-raciais. . Com acesso a estes materiais, passamos a investigar, minuciosamente, as seguintes questões: Quais disciplinas trabalham com as questões étnico-raciais? Quais são as referências utilizadas nestas disciplinas?

A partir destas perguntas, passamos a buscar nas ementas, objetivos e referências as seguintes palavras-chave: Racismo; Racial; Raça; Etnia; Negritude; Negro/a; Cor; Relações Raciais; Relações étnico-raciais; Étnico-racial; Escravização; Afrodescendentes. Verificou-se que a temática das relações étnico-raciais nas disciplinas de Psicologia se fez presente apenas em disciplinas eletivas/optativas, não estando presente em disciplinas obrigatórias do curso. Em relação às referências, em especial as obras das autoras Virgínia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza, nenhuma destas encontram-se presentes nos documentos verificados dos 10 principais cursos de Psicologia. A partir deste cenário, é possível afirmar que só o racismo pode explicar o fato de que as melhores universidade do País não implantem nas ementas das disciplinas dos cursos de Psicologia o assunto das relações étnico-raciais, bem como não utilizem a produção destas autoras como conhecimentos psi (Navasconi, 2022Navasconi, Paulo Vitor Palma (2022). “Os nossos passos vêm de longe”: a contribuição de quatro autoras negras para a Psicologia Brasileira Antirracista [Tese de Doutorado em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá/PR].).

Apesar de não ter disciplinas dedicadas especificamente aos estudos das relações étnico-raciais, apesar de não estudarem os problemas que atravessam a população negra, apesar de que o sofrimento ético-político é produzido a partir da estrutura social racista e apesar de não serem temas dessas universidades, elas são boas e seu trabalho não deve ser “apesar”. Defendemos que não é apesar de, mas justamente por essa realidade não ser um tema e uma prioridade nas discussões e construções pedagógicas que se reforça e se realimenta uma lógica do saber epistemicida, colonialista e silenciadora nos espaços do campo do saber e poder.

Tendo como base essa ilustração é que demarcamos que esses espaços acabam elencando critérios, abordagens, conhecimentos e práxis racistas, mas sem que pareçam racistas. Isto não é neutralidade. É racismo. A obra de Neusa Santos Souza, por exemplo, encontra-se listada na disciplina de Psicologia Social II, ofertada na Universidade de São Paulo (USP), contudo, na seção de referências bibliográficas, é apenas mencionada para apontar a localização bibliográfica do prefácio de sua obra, escrito pelo autor Jurandir Freire Costa.

Temos ciência de que esses dados são apenas uma parcela da realidade. Afinal, não necessariamente tudo que se encontra nos documentos oficiais é concretizado nos espaços de salas de aula, bem como sabemos que o/a docente, muitas vezes, faz uso de outras referências, isto é, para além das que encontram-se instituídas em planos de ensino e de aula. No entanto, a nossa intenção é demarcar que essas e outras intelectuais negras/os não estão nas páginas dos documentos oficiais, e, quando estão, encontram-se nas margens. Por isto, acreditamos ser imprescindível entendermos o quanto a colonialidade do poder (Quijano, 2002Quijano, Anibal (2002). Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos, 37, 4-28. https://doi.org/10.36311/0102-5864.17.v0n37.2192
https://doi.org/10.36311/0102-5864.17.v0...
) se estrutura como uma matriz de inteligibilidade social, cultural e epistemológica, que se consolidou no desenvolvimento das ciências humanas, em particular na Psicologia.

Reivindicamos a importância de entender e nos apropriar dos pressupostos e dos efeitos da colonialidade para não reproduzir e produzir este mal, haja vista que um dos pressupostos deste sistema nocivo é reduzir a pessoa colonizada a uma nota de rodapé de sua própria história. Portanto, ser o sujeito do próprio desejo é uma atitude anticolonial. Em outras palavras, ser dono da própria voz e da própria existência também é uma atitude anticolonial.

A grande batalha, hoje, é travada no campo da legitimidade discursiva. O que está em jogo é a legitimidade do lugar de enunciação de quem fala. Mais do que “o que” está sendo dito, importa “quem” está dizendo. Enquanto nos mantivermos atrelados à lógica colonialista, seguiremos mantendo uma ordem discursiva bem-comportada e compartimentalizada na e para a academia, bem como para a manutenção do status quo.

Considerações finais: desaprender para aprender

Escrevemos para fazer correr, em circuito aberto, um conhecimento que já transborda as estruturações sistemáticas que procuram tangenciá-lo, para afirmar a bibliografia insubordinada, que ousa e resiste ser apagada dos arquivos oficiais. Para isto, se fez necessário entendermos quanto a política do esquecimento, bem como a colonialidade do poder e do saber, se estruturam como uma matriz de inteligibilidade social, cultural e epistemológica, que se consolidou no desenvolvimento das ciências humanas e, sobretudo, na Psicologia Social. Em específico, a política de esquecimento atua para a manutenção da tradição colonial euro-estadunidense, a fim de promover a perpetuação do poder e a legitimação de um único grupo social, uma vez que atribui a si a autoridade da fala e a produção de um único discurso legítimo.

Por isso, acreditamos na necessidade da desobediência. Porque a obediência narra, apenas, a história dominante, onde a minha história não pode ser contada. A questão que se coloca, aqui, é o que nós faremos com esses espaços de saberes que possuem uma história que contribuiu para exclusão, violência e apagamento? Talvez, a desobediência seja útil para interromper um passado que não deixa de existir e que segue glorificado.

Assim o fez, mesmo sem ter a pretensão. Virgínia Leone Bicudo desobedeceu e buscou construir outras narrativas acerca dos estudos das relações raciais no Brasil, apresentando novas teses sobre as relações entre cor/raça e classe social. Virgínia foi subversiva em uma época em que ser mulher e negra em um espaço acadêmico era praticamente inaceitável. Como a própria pesquisadora bem disse, era necessária a permissão da figura paterna ou de seu cônjuge para que então pudesse ocupar aquele espaço. Mas Virgínia não precisou da permissão destes. Afinal, ela esteve ali, presente, existindo e reexistindo. Em outras palavras, subvertendo na escrita, no olhar e no pensamento da época. Subverteu, por exemplo, as teses de ‘democracia racial’ de obras como Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (2005Freyre, Gilberto (2005). Casa-Grande & Senzala (50ª edição). Global. (Original publicado em 1933)), publicada em 1933.

Virgínia desobedeceu e subverteu, também, ao pensar o preconceito racial e seus efeitos psíquicos, numa época em que eram produzidas teorias essencialistas, que afirmavam, categoricamente, que corpos negros seriam corpos inferiores e, consequentemente, corpos degenerados. Virgínia, você, mais uma vez, através de sua voz, escrita e saber, apontou que as condições de vida e, consequentemente, de sofrimento estão relacionadas às suas condições materiais, sociais, econômicas e raciais. Portanto, não seria exagero afirmar e demarcar que Virgínia Leone Bicudo foi um marco epistemológico, ou melhor, sua tese e sua desobediência produziram uma virada epistemológica no que se refere à compreensão dos estudos sobre relações raciais.

Assim, também o fez Neusa Santos Souza, numa época em que havia uma ausência de estudos e trabalhos acadêmicos sobre a vida emocional dos negros e negras e absoluto silêncio de um discurso acadêmico elaborado por pessoas negras acerca de si. Então, Neusa insurge como pioneira nos estudos sobre relações raciais e os impactos psíquicos do racismo na população negra, bem como nos trabalhos sobre loucura, psicose e psicanálise.

A autora, inspirada pelos estudos de Frantz Fanon (2008Fanon, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Ed. UFBA. ), subverteu e desobedeceu a norma hegemônica, analisando a experiência emocional das pessoas negras que, vivendo nessa sociedade, respondem positivamente ao apelo de ascensão social. Neusa redireciona a narrativa cientifica acerca do “corpo” negro que, até então, era visualizado e descrito como objeto, e passa a nomear, demarcar e visualizar o corpo não mais apenas como um corpo material, mas sim um corpo sujeito. Um sujeito que carrega histórias, singularidades, narrativas e desejos.

Neusa, a partir de seus estudos, aponta que a população negra é constrangida a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar e levar a cabo a estratégia de ascensão social, ou seja, de reconhecimento. Seu trabalho ecoa, ao subverter uma Psicanálise que ainda tem dificuldade de entender e visualizar os efeitos do racismo nos modos de subjetivação. Neusa subverte ao escutar corpos que, historicamente, foram alocados à margem, na desumanização. Afinal, nos dias de hoje, quem escuta você, Neusa Santos Souza?

Não temos uma resposta única, mas temos a certeza de que nós escutamos. O eco de sua obra e voz já se inscreve no imaginário e na realidade de uma Psicologia que se faz compromissada política e eticamente frente às relações étnico-raciais.

Como Regina Oliveira (2020Oliveira, Regina Marques de Souza (2020). Cheiro de alfazema: Neusa Souza, Virgínia e racismo na psicologia. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 72(nspe.), 48-65. http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.48-65
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) diz, Souza foi gigante em aprofundar a ótica da barbárie que assalta os corpos físicos e psíquicos da população negra. Sua pesquisa demonstra, por meio de minuciosas entrevistas, a narrativa de vidas e identidades de corpos negros marcados por uma singularidade única, atravessados por um elemento chamado racismo, nos ensinando, contudo, que o conteúdo da angústia é social, mas a estrutura da angústia é singular, histórica e pessoal. Seus passos, Neusa, são eternos.

Por meio de suas obras, análises e manejos clínicos, Neusa nos ensinou que, antes de tudo, cabe a nós, como sujeitos-analistas, estarmos imersos no desejo e na paciência, isto é, no desejo de que haja o encontro, a análise, a disposição de fazer a aposta e a paciência de suportar. Para haver desejo, é necessário reconhecer o outro, escutar o outro.

Além disso, Neusa fez uso da noção de mito para criar a noção de mito negro, que correspondia a todos os simbolismos construídos ao longo do processo histórico ocidental colonial que passaram a ser associados ao corpo negro. Ao falar da noção do mito negro, bem como das transmissões do mito negro e seus efeitos, Neusa de novo subverte e desobedece a literatura hegemônica, assim como fez Virgínia, ao demarcar que não haveria uma natureza negra, isto é, uma essência negra que fosse inata.

Pois bem, como nos ensinou Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social. Graal.), uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Quando passamos a rememorar lembranças, afetos e narrativas que não se encontram presentes na história hegemônica oficial, passamos a ‘memoriafetar’, isto é, a partir do momento em que temos a oportunidade e a possibilidade de acessar episódios e fatos (des)conhecidos e entendermos os efeitos do epistemicídio, passamos a experienciar um turbilhão de afetos, lembranças e, consequentemente, nos damos conta da nossa própria construção e da forma como nos percebemos como sujeitos, ou seja, de nossa identificação.

É neste processo que o sujeito recupera suas vivências e trajetórias, que irão guiar a constituição de sua identidade a partir da memória que não esteja mais ancorada, apenas, em dor e desgraça. Se, hoje, conseguimos dizer e escrever sobre isto, é porque, no passado, houve pessoas negras que subverteram, construindo narrativas, saberes e novos modos de ler não somente o mundo, mas também os processos subjetivos. Essas pessoas falaram, gritaram e exclamaram e, assim como seus passos se fazem presentes, hoje, suas vozes também estão presentes. Se, num passado não tão distante, seus pensamentos e vozes eram de difícil escuta, hoje são vozes que ecoam vidas, saberes e subversões.

As pegadas deixadas por vocês, Virgínia e Neusa, nos exalam resistência dos corpos negros, resistência de pensamentos e de uma ciência que subverte a lógica hegemônica violenta, colonialista e epistêmica. Por isso, resgatar as memórias e entender que os nossos passos vêm de longe é urgente. Urgente, uma vez que a história que nos é contada é uma história da voz única e que se estrutura pela lógica de um poder que imobiliza vozes, escutas e corpos. Logo, não é por acaso que a produção intelectual das senhoras foi e, infelizmente, ainda é invisibilizada. Afinal, são produções que abalam as estruturas hegemônicas do poder supremacista branco. No entanto, gostamos de pensar e de nos apegarmos à produção intelectual negra como ‘bombas bélicas da esperança’, o que nos possibilita criar outras formas de existência, conhecimento e vida.

Então, é por isso que acreditamos que o novo projeto de ciência e profissão significa um rompimento e a construção de um novo lugar, bem como a construção de uma nova relação da Psicologia com a sociedade.

Referências

  • Aiello-Fernandes, Rafael (2018). Racismo e Psicanálise em produções acadêmicas [Tese de doutorado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas/SP].
  • Bicudo, Virginia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo Editora Sociologia e Política.
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  • Navasconi, Paulo Vitor Palma (2022). “Os nossos passos vêm de longe”: a contribuição de quatro autoras negras para a Psicologia Brasileira Antirracista [Tese de Doutorado em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá/PR].
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  • Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro em Ascensão Social Graal.

Notas

  • 1
    Tendo como referência o conceito de Achille Mbembe de necropolítica, aponto que os saberes psis hegemônicos (psicologia, psiquiatria e psicanálise) se estruturam e se relacionam de modo a produzir uma gestão relacional que se pauta pela disciplina, apagamento, silenciamento e morte.
  • 2
    No ano de 2019, os 10 cursos mais bem avaliados em Psicologia foram: 1° UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais; 2º UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro; 3º UNB - Universidade de Brasília; 4º UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 5º PUCSP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 6º USP - Universidade de São Paulo 7º UFF - Universidade Federal Fluminense; 8º PUCRS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 9º UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; 10º UFPE - Universidade Federal de Pernambuco (Navasconi, 2022).
  • 3
    Um dado para ser demarcado é que a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), colocada na posição de 13°, possui, na grade curricular, uma disciplina obrigatória referente à Psicologia e Relações Étnico-raciais.
  • Financiamento

    Não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2023
  • Aceito
    14 Set 2023
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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