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ARTE-TESTEMUNHO EM NAZARETH PACHECO

TESTIMONIO DE ARTE SOBRE NAZARETH PACHECO

TESTIMONY ART IN NAZARETH PACHECO

Resumo

A presente pesquisa aborda a obra de arte enquanto testemunho, à luz de falas e escritos da artista Nazareth Pacheco. O testemunho trata da questão biográfica e dá voz àquele que tem algo a dizer a partir de sua experiência de vida. Abrirmo-nos para os sentidos, que se expressam para além da comunicação verbal em criação artística, imprimem relevância ao presente escrito no âmbito da psicologia, ao buscar evidenciar que a expressão através das artes visuais, além de assumir contornos terapêuticos, permite reconstruir o conteúdo da experiência com o potencial de desafiar crenças e valores. O material coletado foi composto por entrevistas e a dissertação de mestrado da artista, submetidos a análise temática. Foram identificados quatro temas: enfrentamento, ideal de beleza, literalidade e transcendência. Conclui-se que, se dar voz ao sofrimento implica em elaborar a experiência vivida, a expressão artística pode se afigurar como importante estratégia terapêutica no campo da psicologia.

Palavras-chave
Arte-testemunho; Nazareth Pacheco; Sofrimento; Elaboração; Terapia

Resumen

Esta investigación aborda la obra de arte como un testimonio, a la luz de los discursos y escritos de la artista Nazareth Pacheco. El testimonio aborda el tema biográfico y da voz a quienes tienen algo que decir a partir de su experiencia de vida. Abrirnos a los sentidos, que se expresan más allá de la comunicación verbal en la creación artística; imprimen relevancia a la escritura actual en el campo de la psicología, al buscar mostrar que la expresión a través de las artes visuales, además de asumir contornos terapéuticos, nos permite reconstruir el contenido de la experiencia con el potencial de desafiar creencias y valores. El material recolectado consistió en entrevistas y en la disertación de maestría de la artista, sometidas a análisis temático. Se identificaron cuatro temas: confrontación, ideal de belleza, literalidad y transcendencia. Se concluye que, si dar voz al sufrimiento implica elaborar la experiencia vivida, la expresión artística puede representar una importante estrategia terapéutica en el campo de la psicología.

Palabras clave
Arte-testimonio; Nazareth Pacheco; Sufrimiento; Elaboración; Terapia

Abstract

This research addresses the work of art as a testimony, in the light of speeches and writings of the artist Nazareth Pacheco. The testimony deals with the biographical issue and gives voice to those who have something to say based on their life experience. Opening ourselves to the senses, which are expressed beyond verbal communication in artistic creation, imprint relevance to the present writing in the field of psychology, by seeking to show that expression through the visual arts, in addition to assume therapeutic contours, it allows us to reconstruct the content experience with the potential to challenge beliefs and values. The collected material consisted interviews and the master’s thesis of the artist, all submitted to thematic analysis. Four themes were identified: confrontation, ideal of beauty, literality, and transcendence. It is concluded that, if giving voice to suffering implies elaborating the lived experience, artistic expression may represent an important therapeutic strategy in the field of psychology.

Keywords
Art-testimony; Nazareth Pacheco; Suffering; Elaboration; Therapy

Arte e Testemunho

Após as duas grandes guerras que marcaram a história do século XX, surge um gênero literário ligado ao testemunho de sobreviventes de situações de violência extrema.

Tais obras, comumente chamadas de 'literatura de testemunho', têm relação com o ato de falar sobre experiências vividas, registros de alguém que viveu algo, atravessou uma situação e pode falar de si mesmo (Agamben, 2008Agamben, Giorgio (2008). O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III). Boitempo.). Trata-se de uma forma de expressão que pretende testemunhar a vida social e íntima, revelando a tênue fronteira entre o externo e interno, entre a linguagem e a representação, entre ficção e verdade, “gerando biografias que ao mesmo tempo apresentam caráter histórico e atemporal” (Marçal, 2008Marçal, Márcia Romero (2009). Jorge Semprún: forma precária e literatura de testemunho [Tese de Doutorado em Literatura Espanhola, Departamento da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SP]., p. 2). Em suma, um gênero narrativo que revela inúmeros limiares, fronteiras, litorais humanos e a possibilidade de projetar de dentro para fora um corpo que sofre, dando-lhe voz (Clark, 2004Clark, Miriam Marty (2004). Art and Suffering in Two Late Poems by William Carlos Williams. Literature and Medicine, 23(2), 226-240. https://doi.org/10.1353/lm.2005.0001
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).

No entanto, pesquisas baseadas nas artes podem se constituir em um jogo intertextual no qual elementos estéticos, que variam de acordo com a formas de arte abordadas, são selecionados e, da mesma forma que na escrita, permitem ressignificar os conteúdos da experiência (Finley, 2005Finley, Susan (2005). Arts-based inquiry. Performing revolutionary pedagogy. In Norman K. Denzin & Yvonna S. Lincoln (Eds,), The SAGE handbook of qualitative research (3rd ed., pp. 681-695). SAGE.).

Nesse sentido, para além da sua representação na literatura, o testemunho é uma fala que expressa, que conta, que remonta às adversidades pelas quais uma pessoa passou: guerras, regimes ditatoriais, genocídios, entre outras, como também outros tipos de passagens traumáticas, por exemplo, doenças e/ou acidentes de alta gravidade, passagens que colocam em cena o limiar entre a vida e morte da qual resulta um sobrevivente, alguém que vive, que resiste e que pode testemunhar o que passou (De Marco, 2004De Marco, Valeria (2004). A literatura de testemunho e a violência de Estado. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 62, 45-68. https://doi.org/10.1590/S0102-64452004000200004
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; Ginzburg, 2008Ginzburg, Jaime (2008). Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Linguística/Literatura e Encontro e Pesquisa, 3(3). https://doi.org/10.22456/2594-8962.55604
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).

Para Márcio Seligmann-Silva (2008Seligmann-Silva, Márcio (2008). Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica. 20(1), 65-82. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-56652008000100005
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), simbolizar um evento é recolocá-lo no tempo, sendo a imaginação uma forma de expressar o sofrimento, o que pode ser observado historicamente na literatura e nas artes visuais. Se a situação de dor pode afigurar-se como um sintoma do inenarrável, a imaginação permite um realizar de novo, por meio do qual, como lembra Paul Ricoeur (2007Ricoeur, Paul (2007). A Memória, a História, o Esquecimento. UNICAMP., p. 391), “a potência criadora da repetição permanece inteira nesse poder de reabrir o passado sobre o futuro”.

Enquanto testemunho pela visualidade, “o artista e sua expressão de arte podem plasmar as diversas experiências como modo de explicação pessoal ou como um motivo além de sua capacidade para explicar algum tipo de dor vivida” (López-Maya, Lina-Manjarrez, & Lina-López, 2014López-Maya, Lorena, Lina-Manjarrez, Francisco, & Lina-López, Lorena Monserrat (2014). El dolor y su expresión en las artes. Revista Mexicana de Anestesiologia, 37(2), 91-100. https://www.medigraphic.com/pdfs/rma/cma-2014/cma142e.pdf
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, p. 92). Como assinala Daniel Wojcik (2021Wojcik, Daniel (2021). Arte e trauma.Porto Arte: Revista de Artes Visuais, 26(45). https://seer.ufrgs.br/index.php/PortoArte/article/view/118453
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), abrirmo-nos para os sentidos oferecidos pela imaginação, que se expressam para além da comunicação verbal em criação artística, imprime relevância ao presente escrito no âmbito da psicologia ao buscar evidenciar que, para aqueles que vivenciam o sofrimento e a dor, a expressão através da arte assume contornos terapêuticos, dado que

o meio da obra de arte em si, seja papel, tela, escultura ou outra forma, serve como um “container” [grifo do autor] manejável para materializar emoções muito pesadas, permitindo que os indivíduos ganhem um senso de controle sobre memórias intrusivas e de outro modo respostas difíceis de dominar. (Wojcik, 2021Wojcik, Daniel (2021). Arte e trauma.Porto Arte: Revista de Artes Visuais, 26(45). https://seer.ufrgs.br/index.php/PortoArte/article/view/118453
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, p. 8)

Considerando, a partir do levantamento bibliográfico, que a questão do testemunho geralmente é abordada através da obra literária, propomos aqui fazer uma leitura do fenômeno a partir das artes visuais, ou seja, compreender a obra de arte como testemunho de experiências do sofrimento vivenciadas por Nazareth Pacheco, a partir de depoimentos seus sobre suas obras.

Arte é execução, é invenção, porque no fazer a obra se revela e se atualiza como uma atividade genuinamente humana, que se manifesta desde os tempos mais remotos. Em especial, a expressão artística que toma o corpo e o sofrimento como tema/objeto, promove certo desconforto, por vezes repugnância, mas também reflexões, e se torna uma das alavancas de criação no panorama das artes dos séculos XX e XXI. A série de pinturas abstratas realizadas por Gerhard Richter, Birkenau, inspiradas nas quatro fotografias realizadas pelos integrantes do grupo Sonderkommando no campo de concentração em 1944, é um bom exemplo sobre testemunho e arte. Embora não tratem do testemunho em primeira pessoa, estas obras promovem uma inquietação ao reviver o fato histórico. Segundo Lóren Cristine Ferreira Cuadros (2019Cuadros, Lóren Cristine Ferreira (2019). Fotografia e arte abstrata: cruzamentos entre registro, ficção e testemunho em Gerhard Richter. Letrônica: Revista Digital do Programa de Pós-Graduação de Letras da PUCRS, 12(3), https://doi.org/10.15448/1984-4301.2019.3.33375
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, p. 17), “é possível argumentar que todos os tipos de exteriorização do arquivo testemunhal têm igual importância”.

Arthur Danto (2006Danto, Arthur Coleman (2006). The Body in Pain. The Nation. 27, 23-26. https://www.thenation.com/article/archive/body-pain/
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, 2014) conceitua como Arte Disturbacional o tipo de produção que torna fluida as bordas da arte e reconecta arte e vida. Intensificada pelo caráter perturbador, esta arte coloca à mostra a própria realidade, ou seja, a mutilação, a dor verdadeira, o perigo, a morte, desencadeando assim maior identificação entre fruidor-obra-artista. De outro lado, Elaine Scarry (1987Scarry, Elaine (1987). The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World. Oxford University Press.) entende que o sofrimento e a dor física são inobjetáveis (desprovidos de um objeto exterior), ou seja, não são visíveis, porém podem tomar uma forma ou cor enquanto metáforas, ou, segundo Alfonso Del RíoAlmagro e Marta Rico Cuesta (2019Almagro, Alfonso del Río & Cuesta, Marta Rico (2019). La enfermedad como otredad: Las metáforas dominantes a partir de las prácticas artísticas visuales. AIBR Revista de Antropología Iberoamericana, 14(2), 253-276. https://doi.org/10.11156/aibr.140205
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), podem criar realidades.

Os conceitos de arte disturbacional e arte metafórica são maneiras de compreender a dimensão expressiva de apresentação de uma obra de arte a partir do tipo de experiência vivida pelo artista e da maneira como este se apropria dos meios disponíveis para expressá-la.

O espaço que a arte oferece como campo de experimentações e expressões é paradigmático e já foi utilizado como dinâmica testemunhal pelas artistas Frida Kahlo e Jo Spence, por exemplo.

Em 1913, aos seis anos, Frida Kahlo foi vítima de poliomielite, vindo a enfrentar vários meses de repouso. Aos 18 anos sofreu um acidente que deixou inúmeras sequelas durante os anos seguintes, até a sua morte, em 13 de julho (1954), uma semana depois de completar 47 anos. Frida sofria dores físicas terríveis e passou por inúmeros tratamentos de saúde, afora três abortos por não ter condições físicas de sustentar uma gravidez, o que lhe causou também grande dor e frustração. Apesar disso, o acidente marca o início de sua pintura. Talvez pintar fosse a única coisa que Frida pudesse fazer para encontrar uma outra atividade que lhe trouxesse reconhecimento, dada a impossibilidade de se tornar médica. Começou a pintar depois que a mãe teve a ideia de transformar sua cama em um leito com um espelho pendurado no teto (Herrera, 1986Herrera, Hayden (1986). Frida: uma biografia de Frida Kahlo. Diana.). Para Frida Kahlo (1995Kahlo, Frida (1995). O diário de Frida Kahlo: um auto-retrato íntimo. José Olympio., p. 243), “a angústia e a dor, o prazer e a morte nada mais são do que um processo para existir”.

Jo Spence, artista inglesa, utilizou a fotografia como meio para registar os estágios vivenciados a partir do diagnóstico de um câncer de mama em 1982, até sua morte em 1992. Desse investimento autobiográfico por meio da arte derivou a fototerapia. Além das problemáticas que suas obras e escritos revelam sobre a dimensão política em relação ao feminismo e subversão dos padrões de beleza femininos, apontam para a dimensão documental de alguém que, diante do sofrimento e ao desnudar-se diante das lentes de uma câmera sem a utilização de maquiagens ou efeitos cenográficos, ratifique a condição humana diante da inevitabilidade de uma doença. Segundo Spence (1995Spence, Jo (1995). Cultural Sniping: The Art of Transgression. Routledge.), a aproximação da fotografia com a vida cotidiana, comunitária, abre espaço para que histórias sejam contatas e lidas no momento da criação, instantaneamente, quebrando-se assim barreiras de contato e permitindo ver o mundo de um modo diferente.

Ao abordarmos a literatura sobre Nazareth Pacheco, a aproximação realizada pelos autores a sua obra a classifica como autobiográfica. Como aponta Hiáscara Jardim (2017), para além de um registro do vivido, trata-se do desejo da artista de dar aos traços de memória outro significado, fazendo uso de materiais associados aos momentos traumáticos que viveu, transformados em obras que, para além do aspecto visível, remetem ao contexto cultural no qual estão inseridos, especialmente aos padrões estéticos vigentes e às relações entre beleza e dor. Assim, os objetos criados por Nazareth evocam questões universais e variam aos olhos de cada fruidor, mas acabam por demonstrar a vulnerabilidade do corpo sofrido que somos.

Alessandra Ribeiro (2007Ribeiro, Alessandra Monachesi (2009). Nazareth Pacheco e o corpo.Revista Concinnitas, 1(14), 104-119.), de uma perspectiva psicanalítica, também evidencia como a artista desmascara o feminino limpo e sedutor e o devolve a um real que nos formata. Ao articular seus objetos à dor que causam no corpo, lugar da subjetividade tornada doença, a artista encena uma rebelião e presentifica um corpo ausente em suas obras, das quais nos aproximamos sem poder tocar, num jogo de sedução que acarreta sofrimento e aprisionamento desse outro corpo, sendo o fascínio do olhar o único sentido pelo qual se pode circular.

Para compreender a obra de arte disturbacional e metafórica como testemunho de experiências traumáticas, elegemos Nazareth Pacheco, artista plástica contemporânea brasileira, por ser protagonista de experiências de vida avassaladoras, que tomou o corpo como palco de suas incursões artísticas. A artista escreveu sobre essas experiências e suas obras revelam, paradigmaticamente, a dinâmica arte-vida de modo diferenciado, o que possibilita visualizar a relação entre testemunho e arte - o que foi dito e que pode ser apreciado em linguagem visual (obra de arte) ou, mais precisamente, a suposição da arte como testemunho que extravasa a linguagem verbal, pois relata aquilo que não foi ou não pôde ser dito - o inenarrável.

Percurso metodológico

A partir da década de 1960, a arte passa a fazer uso, entre outros recursos, de materiais hospitalares, exames clínicos, raios X, roupas e objetos corporais, contemplando a sexualidade, a temporalidade, a dor e a morte (Frayze-Pereira, 2002Frayze-Pereira, João A. (2002). Pulsão e simbolização: arte contemporânea e banalização do mal: corpo do artista, silêncio do espectador. In Giovanna Bartucci (Org.), Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação (pp. 253-277). Imago.), e que colocam em cena um corpo torturado, por vezes feio, sujo, pavoroso (Cauquelin, 2005Cauquelin, Anne (2005). Arte contemporânea: uma introdução. Martins. (Coleção Todas as Artes)). Nazareth Pacheco e Silva aparece no cenário artístico na década de 1980, momento no qual o corpo surge como motivo evidente das pesquisas artísticas devido a diversos fatores que afetaram a conjuntura sociocultural da época. Katia Canton (2000Canton, Katia (2000). Novíssima arte brasileira: um guia de tendências. Iluminuras.) aponta que as situações como a AIDS, a cirurgia plástica, o culto ao corpo e a engenharia genética, entre outros, produziram inquietações no mundo artístico.

Nascida Nazareth Pacheco e Silva em 1961, em São Paulo, a artista cursou Artes Plásticas na Universidade Mackenzie de 1981 a 1983. Frequentou, em 1987, o ateliê de escultura da École National Supérieure des Beaux-Arts, em Paris. Também se titulou mestre pela Escola de Comunicações e Artes na Universidade de São Paulo, em 2002. Começou sua trajetória artística na transição dos anos 1980-1990, acumulando uma produção reconhecida pela crítica no Brasil e no exterior. Seus trabalhos carregam a marca de uma série de intervenções cirúrgicas e estéticas pelas quais passou, visto que nasceu com uma doença congênita. Alguns registros desses processos reparativos incluem fotografias, laudos médicos, mechas de cabelo, o chumbo utilizado nos exames radiológicos, bem como equipamentos médicos (Pereira, 2017Pereira, Hiáscara A. Pereira (2017). A exteriorização da memória pessoal em Nazareth Pacheco.Revista Poiésis, 18(30), 33-54. https://doi.org/10.22409/poiesis.1830.33-54
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).

Em sua arte, o mote é o corpo vitimado pela doença e suas transformações estéticas. As experiências pelas quais passou motivam suas obras, que refletem a pungência de uma vida marcada por rasgos, desconexões, fraturas, acordos, alinhavos. Suas obras podem ser classificadas em três eixos. Os dois primeiros estão descritos na dissertação de mestrado da artista (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP].) e também foram descritos por Ivo Mesquita (2019Mesquita, Ivo (2019). O corpo em construção. In Regina Teixeira de Barros (Org.), Nazareth Pacheco (pp. 112-113). Allucci & Associados Comunicações.). O terceiro é derivado de obras recentes, ainda pouco exibidas e compreendido pelos autores como um importante momento de ressignificação dos dois eixos que o antecedem: no primeiro, trabalha questões relacionadas a seu universo autobiográfico, os objetos aprisionados. São obras elaboradas a partir de relatórios médicos, radiografias, fotos, chumbo. No segundo, desenvolve criações ligadas à condição da mulher, os objetos sedutores. Faz uso de miçangas, agulhas, lâminas, cristais e anzóis para a produção de adornos e vestimentas. No terceiro, destacam-se os vestidos infantis de algodão com textos bordados. São obras que remetem ao universo e aos corpos infantis.

Revisitações biográficas como essa a que nos propomos abrem as portas do passado para futuros possíveis. Mas, devemos ser cuidadosos, pois a realidade se mostra refratada em hierarquias emaranhadas, o que remete a inúmeras descrições do fenômeno e ao risco de pretender determinar a singularidade do sujeito sobre o qual falamos (Dosse, 2009Dosse, François (2009). O desafio biográfico: Escrever uma vida. Edusp.). Ante uma objetividade sempre incompleta, que desafia o pesquisador, delineamos a presente investigação como uma pesquisa qualitativa, buscando compreender, a partir dos depoimentos de Nazareth Pacheco, os significados que atribui a sua obra, concebida como testemunho dos sofrimentos que vivenciou. Trata-se de um modo de pesquisa híbrido, pois faz comunicar ciência e arte e, em conexões intertextuais, permite reconstruir o conteúdo da experiência, com o potencial de desafiar crenças e valores, em busca de respostas culturalmente situadas (Finley, 2005Finley, Susan (2005). Arts-based inquiry. Performing revolutionary pedagogy. In Norman K. Denzin & Yvonna S. Lincoln (Eds,), The SAGE handbook of qualitative research (3rd ed., pp. 681-695). SAGE.).

Para tanto, foi desenvolvida uma análise documental. O critério para seleção do material foi considerar apenas as falas e escritos de autoria da artista relacionados às suas experiências de vida e às suas obras. O material coletado de Nazareth Pacheco foi composto por entrevistas em vídeo disponíveis na mídia, transcritas pelos autores, entrevistas publicadas na internet e sua dissertação de mestrado (Chiarelli, 2001Chiarelli, Tadeu (2001). Fascículos de Arte Contemporânea: Entrevista com Nazareth Pacheco. Galeria Kogan Amaro. https://artebrasileiros.com.br/arte/uma-autobiogafia-de-nazareth-pacheco-na-galeria-kogan-amaro/
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; Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP].; Vicalvi, s/dVicalvi, Carlos (s/d). Os objetos sedutores de Nazareth Pacheco. SESC TV, Duração: 22’ [Vídeo]. ).

Diante das experiências de vida recheadas de eventos significativos, a análise temática (Ezzy, 2002Ezzy, Douglas (2002). Qualitative analysis. Practice and innovation. Routledge.) se apresentou adequada, na medida em que os temas oriundos dessas vivências contribuíram para atender ao objetivo proposto.

Foi feita, em um primeiro momento, uma leitura do material como um todo, com objetivo de conjeturar o seu sentido mais geral. A abordagem de certos temas e a volta ao significado mais global, à luz do significado aprofundado das partes, assume uma forma circular, na qual uma interpretação demonstrava ser mais provável que outra. Confrontar estas interpretações e arbitrar entre elas, articulando as informações oferecidas por Nazareth Pacheco, foi um processo que se repetiu e só terminou quando os significados dos diferentes temas emergiram em uma unidade coerente. Foram, então, construídas categorias temáticas: o enfrentamento, o ideal de beleza, a literalidade e a transcendência (Macedo, Kublikowski, & Grandesso, 2004Macedo, Rosa Maria Stefanini, Kublikowski, Ida, & Grandesso, Marilene Aparecida (2004). A interpretação em pesquisa qualitative. InAnais do I Cibrapeq (p.83-93). São Paulo: Tec Art.).

Análise e discussão

Enfrentamento

A primeira categoria temática lança luz sobre a maneira como a artista enfrentou questões difíceis e dolorosas através da arte. Enfrentar é poder lidar com, é transformar o impossível em algo passível de ser manejado. Enfrentar gera potência, permite uma retomada de controle. Possibilita o que é chamado por Ricoeur (2007Ricoeur, Paul (2007). A Memória, a História, o Esquecimento. UNICAMP., p. 391) de “realizar de novo”.

Nazareth apresenta um contraponto entre a aparente dureza e agressividade, com a possibilidade de manipular e manejar a materialidade das coisas, como a borracha vulcânica plástica (obras do primeiro eixo) e mantas de látex, e intituladas pela artista como “A pele ... de borracha natural” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 17). Ao torcer o material, se revela o jogo de poder destruir e recompor. Em entrevista a Carlos Vicalvi (s/dVicalvi, Carlos (s/d). Os objetos sedutores de Nazareth Pacheco. SESC TV, Duração: 22’ [Vídeo]. ) a artista se questiona: “Ao mesmo tempo não dá para dizer que aquilo caiu aleatoriamente na minha mão, aquele próprio formato do cone de borracha que transmitia uma agressividade, porém ele é totalmente possível de ser manipulado?”

A artista utiliza sua arte para transformar a experiência vivida, que trouxe medo, dor, pânico, na criação de objetos artísticos. Dar concretude ao subjetivo permite manipulá-lo e se apropriar dele; dar contorno à experiência permite retomar o controle sobre si mesma, o que é exemplificado pela obra Sem título, de 1996, que consiste na moldagem em gesso da mão direita (https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra64311/sem-titulo).

Essa potência é parte importante no enfrentamento de situações adversas da vida, como o embate vivenciado pelas inúmeras perfurações por agulhas nos vários processos reparatórios pelos quais passou e que serviram como matéria prima para a construção de algumas obras.

Mas, quando eu vou tomar uma injeção, eu me preparo, me controlo, sou uma pessoa muito controlada. Mas é tentar lidar com o inimigo. A Louise [Louise Bourgeois, artista contemporânea com quem Nazareth Pacheco teve contato pessoal e foi referência fundamental para o desenvolvimento de sua atividade artística] fala uma coisa interessante, que é quando você transforma o seu medo em objeto você tem a possibilidade de enfrentá-lo. E a partir do momento que você transforma em objeto, você pode lidar diretamente com ele. (Vicalvi, s/dVicalvi, Carlos (s/d). Os objetos sedutores de Nazareth Pacheco. SESC TV, Duração: 22’ [Vídeo]. .)

A manipulação da matéria bruta (borracha) é o próprio combate com o corpo - moldar a matéria, moldar a si própria: “No momento em que estava produzindo este trabalho, tive a impressão de estar participando de uma briga corporal, ao me dar conta da resistência da borracha sendo aprisionada pela brida de chumbo” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 19). As agulhas e miçangas (segundo eixo de suas obras), são um risco e os objetos que produz respondem às suas convicções e aponta para a repetição em sua potência criadora e investimento. A transformação dos aspectos da vida em arte parece ter sido o ponto de partida para a artista. Em entrevista a Andrea Machado (2022Machado, Andrea (2022). Andrea Machado entrevista Nazareth Pacheco. Andrea Machado entrevista Nazareth Pacheco - YouTube, on-line), Nazareth reitera que parte “de uma questão da memória, identidade. De questões relacionadas ao meu corpo, minha vida”.

Em Nazareth, as oposições: sedutor e perigoso, prazer e dor, estão presentes, especialmente, nos colares e vestidos produzidos com materiais cortantes e perfurantes. Em entrevista a Tadeu Chiarelli (2001Chiarelli, Tadeu (2001). Fascículos de Arte Contemporânea: Entrevista com Nazareth Pacheco. Galeria Kogan Amaro. https://artebrasileiros.com.br/arte/uma-autobiogafia-de-nazareth-pacheco-na-galeria-kogan-amaro/
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, on-line), relata: “Não posso negar a perversidade presente nos colares e vestidos, mas acima de tudo os materiais cortantes e de perfuração escolhidos para confecção desses objetos estavam diretamente ligados a objetos que sempre me causaram medo e pânico”. Ademais, “Não importa a dor, o que importa é o prazer. … cabe a cada um estabelecer o próprio limite entre o prazer e a dor (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 42)”. E complementa: “Não tinha medo, tinha um grande prazer ao ver um objeto lindo, sedutor e ao mesmo tempo perigoso” (p. 45). Na oposição, também repousa a sedução e a repulsa: “lido com a questão da sedução. Existe uma sedução. Quando você se aproxima, tem alguns elementos da repulsa”, em entrevista a Machado (2022Machado, Andrea (2022). Andrea Machado entrevista Nazareth Pacheco. Andrea Machado entrevista Nazareth Pacheco - YouTube, on-line).

Ideal de beleza

Nazareth constrói colares e vestidos feitos de agulhas de sutura, lâminas e bisturis, entremeados de miçangas e cristais, para questionar o estatuto das cirurgias plásticas, assim como a busca pela perfeição do corpo feminino: “Se, por um lado, questionam padrões de beleza, por outro não medem esforços para alcançar o corpo ideal” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 42), evidenciando nas obras desse eixo a beleza almejada pelo uso de adornos, o investimento da mídia em relação à métrica corporal e seu reforço pela indústria cosmética - que promete a felicidade a qualquer custo.

Será que os padrões de beleza impostos pela sociedade ultrapassam o próprio limite da natureza humana? Uma época em que o corpo ideal é magérrimo, que obriga manequins adolescentes a se submeterem a situações comparáveis às de campos de concentração. Do que vale um corpo perfeito que acaba interferindo e prejudicando a saúde mental? (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 46)

A obra de Nazareth esbarra no problema da banalização das intervenções sobre o corpo. Paradoxalmente, a arte por natureza está vinculada ao campo da criatividade (Frayze-Pereira, 2011Frayze-Pereira, João A. (2011). Arte e inveja: relações entre amor e ódio, clínica e política na era do vazio. IDE, 34(52), 157-171. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ide/v34n52/v34n52a16.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ide/v34n52...
), gerando-se assim obras que tensionam novos modos de apreciação, colocando o fruidor numa posição muitas vezes desconfortante e sem precedentes.

Os Objetos sedutores (obras do segundo eixo) revelam sua posição frente aos ideais de beleza almejados pelos padrões socioculturais. A artista concebe esse conjunto de objetos como uma crítica aos mecanismos de correção estética que agem sobre o corpo, de modo que muitas pessoas se submetem a cortes e perfurações sem prever muitas vezes os riscos: “A partir dos anos 1980, deixei de fazer as cirurgias corretivas e o enfoque passou a ser dirigido apenas à questão estética”, afirma em entrevista à Chiarelli (2001Chiarelli, Tadeu (2001). Fascículos de Arte Contemporânea: Entrevista com Nazareth Pacheco. Galeria Kogan Amaro. https://artebrasileiros.com.br/arte/uma-autobiogafia-de-nazareth-pacheco-na-galeria-kogan-amaro/
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). Nesse sentido, ao interromper a utilização corriqueira de objetos perfurantes e cortantes, subverte-os de suas funções tradicionais e os submetem às dimensões do imaginário e do desejo humano.

As obras de Nazareth acionam para uma reflexão da prática e dos discursos que operam sobre as mulheres e o corpo na atualidade, principalmente no que tange as opressões e preconceitos socialmente arraigados que impulsionam a busca de um corpo perfeito, como a obra Sem título, do ano de 2000, composta por acrílico, cristais e miçangas (https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra7079/sem-titulo).

Embora não percam de vista o caráter disturbacional (Danto, 2006Danto, Arthur Coleman (2006). The Body in Pain. The Nation. 27, 23-26. https://www.thenation.com/article/archive/body-pain/
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, 2014Danto, Arthur Coleman (2014). O descredenciamento filosófico da arte. Autêntica. (Coleção Filô/Estética, 4)), as obras desse segundo eixo revelam um sentido mais metafórico (Scarry, 1987Scarry, Elaine (1987). The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World. Oxford University Press.), na medida em que Nazareth constrói objetos que atacam diretamente o hedonismo do corpo, sua forma redelineada e aparentemente saudável - desloca o verbo da carne para o conceito. A artista revela: “Arte não é reflexo de vida e nem terapia. Eu não sou a obra” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 27).

Literalidade

Uma das características das produções, dos testemunhos, dos sonhos e de objetos artísticos de pessoas que viveram em situações extremas e de grande sofrimento é a literalidade. É uma narrativa empobrecida, que traz consigo o tempo presente, que se reatualiza, que repete, eterniza uma cena carregada de muito afeto e sofrimento.

Paulo Endo (2009Endo, Paulo Cesar (2009). Violências, elaboração onírica e o horizonte testemunhal.Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, 17(2), 343-349. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v17n2/v17n2a06.pdf
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) identifica que, para lidar com o vivido, o próprio corpo físico, as próprias marcas servem de base para a formação das produções do sujeito: “Seria, nesse caso, como se a gênese do acontecimento traumático devesse ser buscada nas informações guardadas no corpo físico, igualmente aprisionado e a reboque do instante traumático” (p. 344).

Na série Objetos aprisionados , Nazareth utilizou: “receitas, diagnósticos, fotografias, medicamentos, bulas, máscara do rosto, mechas de cabelo etc” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 22), que são resíduos de sua história pessoal, marcas literais. São “objetos relacionados ao meu corpo. Registros de processos cirúrgicos a que me submetera para a correção” (p. 22), como, por exemplo, a obra Sem título, de 1997, (https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra12178/sem-titulo); assim como objetos que, além de se ligarem concretamente ao corpo, à carne, brincam com a fronteira entre o interno e externo, como o saca-mioma, o espéculo Sem título, 1994, (https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra9339/sem-titulo), o DIU, da série Objetos evasivos.

Na tentativa de lidar com o acontecido, a artista busca nos ferimentos, nas cicatrizes, nas marcas doloridas do corpo físico, material para representar - material proveniente das chagas, dos limites do corpo simbólico e do organismo vivo. Como se diante da dor e do perigo intenso, como recurso de sobrevivência, tivesse seus recursos figurativos mais elaborados imobilizados e, em vista dessa condição, se fixasse na elaboração de produções literais, como forma de enfrentamento e socorro: “Na ausência dessa figuração, refaz-se a experiência literal, cuja representação psíquica será buscada nas informações e percepções do corpo” (Endo, 2009Endo, Paulo Cesar (2009). Violências, elaboração onírica e o horizonte testemunhal.Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, 17(2), 343-349. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v17n2/v17n2a06.pdf
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, p. 344). São literais justamente porque parecem expressar o vivido de maneira nua e crua, sem grande intervenção de recursos alegóricos, metafóricos, figurativos; é Arte disturbacional porque “a realidade deve de algum modo ser um componente real … e usualmente essa realidade é, ela própria, de um tipo perturbador” (Danto, 2014Danto, Arthur Coleman (2014). O descredenciamento filosófico da arte. Autêntica. (Coleção Filô/Estética, 4), p. 159). Segundo Gabriela Maldonado e Marta Rezende Cardoso, (2009Maldonado, Gabriela & Cardoso, Marta Rezende (2009). O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas impossíveis, mas necessárias. Psicologia Clínica, 21(1), 45-57. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pc/v21n1/v21n1a04.pdf
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), talvez possamos pensá-la como memória “afetiva”, memória corporal: “ela é literal (repete o mesmo), imemorável (passado é presente), inumana (da ordem da marca e não de traços significativos). Portanto não se confunde com uma memória da 'representação'” (p. 53).

A literalidade “é, antes de tudo, marcada por um “excesso” [grifo do autor] de realidade” (Seligmann-Silva, 2000Seligmann-Silva, M. (2000). A História como Trauma. In Arthur Nestrovski & Marcio Seligmann-Silva. (Orgs.), Catástrofe e Representação (pp. 73-98). Escuta., p. 91) e em situações extremas trata-se de “reviver o desconforto físico e psíquico que escancarava toda a situação de perigo radical” (Endo, 2009Endo, Paulo Cesar (2009). Violências, elaboração onírica e o horizonte testemunhal.Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, 17(2), 343-349. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v17n2/v17n2a06.pdf
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, p. 344), de dor e de morte a que o sujeito foi exposto, submetido. Como se a situação do vivido, com suas marcas no corpo, se refizesse nos objetos de Nazareth, como se as informações guardadas no corpo físico servissem de material concreto para sua formação. No esforço de sobreviver, de continuar adiante, há um empobrecimento representacional, nada alegórico, quase sem mediação e extremamente aderido à realidade.

Transcendência

Transcender é ir além, além dos limites; superar algo, superar-se. Para a artista, a transcendência vem menos do efeito que a obra provoca, do que do processo de sua feitura: “Lâminas de borracha natural. Transpiram e soltam um odor muito forte. São pedaços e mais pedaços de peles rugosas que começo a cortar, que começo a trançar” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 21).

A obra de Nazareth Pacheco convida para uma apreciação multissensorial, pois o que está em jogo não é apenas uma visualidade, mas uma trama complexa de sentidos incompossíveis - uma tatilidade inviável de realizar-se - a obra aguça, mas alerta! Transcender os próprios limites é o embate que trava com seu próprio corpo e com a matéria. Em uma visita à Rua 25 de Março (cidade de São Paulo), no garimpo de objetos para suas obras, se depara com uma multidão e seu corpo sente-se acuado: “É quase impossível caminhar pela calçada. É um momento difícil. É quando estabeleço contato com o mundo exterior; e que mundo!” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 40); de volta ao ateliê: “Aqui as coisas acontecem como eu quero, à hora que eu quero e do jeito que eu quero. Não dependo de ninguém. Sou eu e meu trabalho” (p. 40).

O limite do corpo é também extensão. A redoma que é seu corpo-ateliê aguça o transcender do espaço - sua obra só poderia ser tridimensional!: “a passagem do painel para os objetos tridimensionais deu-se no momento que senti a necessidade de expandir os trabalhos para o espaço, fazendo com que ele ocupasse o mesmo lugar do meu corpo” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 12). A multissensorialidade de suas obras convida para “o mundo das sensações” (Chnaiderman, 2003Chnaiderman, Miriam (2003). Nazareth Pacheco. D&Z., p. 37), e a presença de seu corpo é apenas sugestionada: “Enquanto foi possível, eu provava [os colares, vestidos] no meu próprio corpo” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 44).

A matéria é o meio para se chegar à obra. Lidar com a matéria requer disponibilidade, força. Nazareth relata sua briga corporal com as mantas de látex-borracha, como se torcê-las estivesse em consonância com o corpo que precisa ser esticado, para que dessa torção vingue a imagem bruta do que é feito - a aparência rugosa é a qualidade preterida de sua obra.

Nazareth transcende no conjunto de sua obra: se no início a borracha e a manta de látex, assim como o chumbo, chamam a questão criativa para o corpo, no segundo eixo de sua produção os materiais leves, pontiagudos e, especialmente, os transparentes, cumprem a passagem do pesado ao leve, do opaco ao translúcido, do corpo fechado ao aberto. Transcendência - Caixas do ser (Chnaiderman, 2003Chnaiderman, Miriam (2003). Nazareth Pacheco. D&Z., p. 64), é o título de uma instalação de 1999 fortemente influenciada por Louise Bourgeois: “No centro da sala, um banco (ou, quem sabe, um divã), de comprimento e largura iguais aos de meu corpo, de acrílico preto, com 1600 agulhas fixadas no assento” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 63). Nesse contexto, surgem obras que se deslocam do caráter autobiográfico para uma dimensão mais ampla: “Chegou um momento em minha vida em que a questão do modelo ideal de beleza passou a ter um peso grande e foi por meio desta questão que ... a minha experiência de vida foi transformada em arte”, em entrevista a Chiarelli (2001Chiarelli, Tadeu (2001). Fascículos de Arte Contemporânea: Entrevista com Nazareth Pacheco. Galeria Kogan Amaro. https://artebrasileiros.com.br/arte/uma-autobiogafia-de-nazareth-pacheco-na-galeria-kogan-amaro/
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, on-line).

No terceiro eixo de sua obra, depois de ter reconstituído as experiências relacionadas às intervenções cirúrgicas pelas quais passou desde a infância, e depois de ter se aventurado na exploração/problematização do corpo feminino diante dos padrões de beleza vigentes, Nazareth revisita a infância. Surgem os vestidos de algodão branco e com textos bordados. Se antes os vestidos fascinavam pela impossibilidade de serem usados, uma vez que foram elaborados com lâminas, agulhas (caber num vestido é correr o risco de mutilar-se), agora são obras vestíveis. O algodão, a cor branca, o babado, o bordado rementem a uma dimensão amorosa e moldável, mas também paradoxal, para um corpo de criança: os vestidos remetem a perdas, mas também receptáculos de uma época de magia e mistério, como a obra She lost it, de 2012 (http://saudeemmovimento.com.br/sites4/nazarethpacheco/portu/comercio.asp?flg_Lingua=1&cod_menu_obras=1&cod_Serie=15&cod_Artista=1). Em entrevista a Regina Barros (2019Barros, Regina Teixeira (Org.). (2019). Nazareth Pacheco. Allucci & Associados Comunicações., p. 142), a artista relata que os bordados estão relacionados a memórias afetivas da avó e da mãe e os textos foram extraídos do livro Destruição do pai, reconstrução do pai, de Louise Bourgeois: “Escolhi frases ... que me marcaram, que falavam também sobre a minha pessoa, a minha vivência e minha história”.

Discussão

O papel do testemunho, especialmente a partir das duas grandes guerras, se assenta na possibilidade de expressar aquilo que parece indizível, difícil de ser transposto em linguagem. Diante dessa limitação, a imagem amplia as fronteiras do representável, e nas narrativas testemunhais das quais fazem parte a lacuna, o não dito, as brechas podem ser amenizadas pelo uso da imagem. É nesse momento que as obras de arte - os objetos de Nazareth Pacheco, aparecem enquanto possibilidades de ultrapassar a linguagem falada, ampliando a comunicação. A expressão artística é uma maneira de extravasar a linguagem verbal, ampliando a possibilidade de expressão daquele que sofre, que urge ouvir a sua própria voz e espera a reverberação desta no mundo: “nem tudo pode ser dito. Por mais que eu me esforce para falar do meu trabalho, existem questões que só cabe a ele revelar” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 94). Nesse sentido, a dor é um dos temas mais fecundos ao artista (López-Maya et al., 2014López-Maya, Lorena, Lina-Manjarrez, Francisco, & Lina-López, Lorena Monserrat (2014). El dolor y su expresión en las artes. Revista Mexicana de Anestesiologia, 37(2), 91-100. https://www.medigraphic.com/pdfs/rma/cma-2014/cma142e.pdf
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).

Apesar de toda solidão, aquele que encara testemunhar está paradoxalmente aceitando arriscar a transgredir os limites deste isolamento. Falar, expressar para si e para os outros, qualquer que seja a linguagem utilizada, traz a público não só aquilo que é singular de sua experiência como também aquilo que extrapola a si e pertence a todos. Pelo fato de o “testemunho ser dirigido [grifo do autor] a outros, a testemunha, de dentro da solidão de sua própria posição, é o veículo de uma ocorrência, de uma realidade, de uma posição ou de uma dimensão para além dele mesmo [grifo do autor] (Felman, 2000Felman, Shoshana (2000). Educação e crise ou as vicissitudes do ensino. In Arthur Nestrovski & Márcio Seligman-Silva (Orgs.),Catástrofe e representação(pp. 13-71). Escuta., p. 16).

Shoshana Felman (2000Felman, Shoshana (2000). Educação e crise ou as vicissitudes do ensino. In Arthur Nestrovski & Márcio Seligman-Silva (Orgs.),Catástrofe e representação(pp. 13-71). Escuta.) considera o testemunho uma modalidade de relação com os acontecimentos que marcam os tempos atuais e destaca o papel da arte: “Obras de arte contemporâneas usam frequentemente o testemunho, tanto como o objeto de seus dramas, quanto como o meio de sua transmissão literal” (p. 17).

A arte é, antes de qualquer coisa, uma maneira de se expressar, de purgar, de transmutar vivências avassaladoras em linguagem autobiográfica. Dentro desta função, fica claro o convite ao outro para pensar sua própria experiência, refletir sobre as questões que os toca e suas ações. Nessa extrapolação do sentido (Gadamer, 2010Gadamer, Hans-Georg (2010). Hermenêutica da obra de arte. WMF Martins Fontes.), a obra, imbuída do testemunho da artista, sai da própria história e vai para o social; é uma fala que alcança, dá voz ao reprimido, ao escondido, e que busca, a partir desta exposição, mobilizar reflexões e uma possível mudança social frente às questões colocadas.

Nas obras de Nazareth Pacheco, a motivação é muito mais a experiência do viver do que a aparência do vivido. O que está em jogo, nesse caso, é o corpo do artista como personagem que procura transpor o sofrimento (físico ou psíquico) para além da experiência individual, ou seja, movido não só por uma motivação pessoal, mas por se referir à dor, à deformação física, ao sofrimento como uma condição humana, universal. Fazendo assim, a artista testemunha sua própria experiência utilizando-se dos meios que melhor se oferecem para a concretização de sua obra. “Um testemunho de vida não é simplesmente um testemunho sobre uma vida privada, mas um ponto de fusão entre texto e vida, um testemunho textual que pode nos penetrar como uma verdadeira vida ” [grifo do autor] (Felman, 2000Felman, Shoshana (2000). Educação e crise ou as vicissitudes do ensino. In Arthur Nestrovski & Márcio Seligman-Silva (Orgs.),Catástrofe e representação(pp. 13-71). Escuta., p. 14).

As situações que subsidiaram as obras da artista passam, então, pelo corpo, elemento primordial dessa rede de emaranhados, interligando o contexto social, o cultural, a tendência artística e a história pessoal da artista; uma tendência de arte que privilegia a autoexpressão (Novero, 2007Novero, Cecilia (2007). Painful Painting and Brutal Ecstasy: The Material Actions of Günter Brus and Otto Muehl. Seminar, 43(4), 453-468. http://dx.doi.org/10.1353/smr.2008.0003
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). Em tempos atuais, Nazareth investiu no papel da mulher para além da sexualidade, em pauta nas discussões sobre o corpo na arte a partir da década de 1960 (Canton, 2000Canton, Katia (2000). Novíssima arte brasileira: um guia de tendências. Iluminuras.; Cauquelin, 2005Cauquelin, Anne (2005). Arte contemporânea: uma introdução. Martins. (Coleção Todas as Artes); Frayze-Pereira, 2002Frayze-Pereira, João A. (2002). Pulsão e simbolização: arte contemporânea e banalização do mal: corpo do artista, silêncio do espectador. In Giovanna Bartucci (Org.), Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação (pp. 253-277). Imago.). Entende-se isso como uma normativa sobre o comportamento humano, sua presença, bem como sua falência. É possível identificar em Nazareth o trato com um corpo maculado - ver mas não tocar, sentir mas não gozar. Chiarelli (2002Chiarelli, Tadeu (2002). Uma realidade... dilacerante: a produção de Nazareth Pacheco. In Arte internacional brasileira (pp. 292-296). Lemos-Editorial.) chama de objetos sádicos, obras que atraem pelo brilho, pela forma, são sedutores porém perversos; possuem “a capacidade real de ferir” (p. 295).

A arte como possibilidade de enfrentamento é um tema que não nasce nos contextos moderno ou contemporâneo. Para Almagro e Cuenta (2019Almagro, Alfonso del Río & Cuesta, Marta Rico (2019). La enfermedad como otredad: Las metáforas dominantes a partir de las prácticas artísticas visuales. AIBR Revista de Antropología Iberoamericana, 14(2), 253-276. https://doi.org/10.11156/aibr.140205
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), ao interferir e ressignificar as obras, os artistas modificam a relação com a doença, ou seja, consideram as práticas artísticas como mecanismos para a resiliência. Nazareth venceu as barreiras da dor, das marcas no corpo, transpôs o sofrimento, o adoecimento para o código da visualidade; resistiu. A meticulosidade, a precisão técnica da artista talvez revele a insistência do controle dos instrumentos que mais lhe agrediram: a agulha, o bisturi, a lâmina. No enfrentamento há sempre a possibilidade de elaboração. Enquanto construía os vestidos de giletes e miçangas “não acreditava que iria ter tanta facilidade para manipular um material tão delicado e cortante, ... tirar a cola das giletes. Este foi o momento em que mais cortei a mão” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 44).

O corpo que o mundo pede! Um ideal de beleza que extravasa o tempo e aciona o imaginário de Nazareth. Se extravasa é porque resiste. Se permanece é porque aguça.

O marco divisional da obra de Nazareth se dá no momento em que o caráter autobiográfico, os resíduos de sua história pessoal, cedem lugar à problemática do corpo da mulher inserido em um contexto ditatorial da imagem: “Ao desejar alcançar o belo, tenho que me submeter a cortes e perfurações” em entrevista a Chiarelli (2001Chiarelli, Tadeu (2001). Fascículos de Arte Contemporânea: Entrevista com Nazareth Pacheco. Galeria Kogan Amaro. https://artebrasileiros.com.br/arte/uma-autobiogafia-de-nazareth-pacheco-na-galeria-kogan-amaro/
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, on-line).

Começa a trabalhar os Objetivos evasivos , aqueles utilizados no interior do corpo, para introduzir os Objetos sedutores , aqueles que fascinam, acionam o olhar e impedem o corpo, atordoam, machucam. Nessa passagem, o caráter disturbacional (Danto, 2006Danto, Arthur Coleman (2006). The Body in Pain. The Nation. 27, 23-26. https://www.thenation.com/article/archive/body-pain/
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, 2014Danto, Arthur Coleman (2014). O descredenciamento filosófico da arte. Autêntica. (Coleção Filô/Estética, 4)) cede espaço para a metáfora (Scarry, 1987Scarry, Elaine (1987). The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World. Oxford University Press.).

Não são todas as obras que usam as experiências vividas de forma literal? A agulha, o feto, o DIU, a cicatriz, a mecha de cabelo, a fratura. As experiências de Nazareth vingam o corpo da mulher; suas marcas, o desconforto psíquico (Endo, 2009Endo, Paulo Cesar (2009). Violências, elaboração onírica e o horizonte testemunhal.Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, 17(2), 343-349. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v17n2/v17n2a06.pdf
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), as memórias afetiva e corporal (Maldonado & Cardoso, 2009Maldonado, Gabriela & Cardoso, Marta Rezende (2009). O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas impossíveis, mas necessárias. Psicologia Clínica, 21(1), 45-57. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pc/v21n1/v21n1a04.pdf
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) demarcam o território do vivido como propulsor da criação: a dor tremenda, o incômodo é tão pungente que não há tempo de saltos imaginativos; a elasticidade da dor (manta elástica) mantém acesa a inviabilidade do descolamento físico-psíquico, por isso criar é extensão do que se sente.

A concretude do corpo físico, marcado, aciona uma memória que não se apaga. A latência dessa realidade é literalidade. Nazareth consegue transpor um sofrimento em discurso (passagem do disturbacional para o metafórico) e transcende na medida eu que reconstrói o corpo e depois passa a pensar no do outro ou no corpo ideal, haja vista os vestidos transparentes, translúcidos, que permitem somente aos olhos adentrá-los.

A transcendência como tema passa pelo corpo e pela matéria que dá forma à arte. Um corpo plano, oprimido pela multidão, convoca uma obra tridimensional - Nazareth projeta seu corpo no espaço; um corpo que ocupa espaço, pesa, sente.

Na passagem da manta de látex torcida - matéria bruta, escura, grosseira, para objetos refinados e translúcidos - leves, transparentes, Nazareth revela o embate com o corpo que precisa ser reconstruído: cortar e trançar, destruir e recompor. Ademais: “estar viva e levando uma vida normal foi para mim uma possibilidade de transcender os próprios limites da vida” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 63). Nos vestidos de algodão se reconecta à dimensão sensorial amorosa da infância, embora reafirme o drama vivido. Em uma obra desse terceiro eixo se inscreve um texto bordado com o seguinte dizer: “Minha infância nunca perdeu sua magia, nunca perdeu seu mistério e nunca perdeu seu drama”. Transcende!

Nazareth Pacheco encontra na arte uma maneira sincera, pontual, de revelação da experiência que se sente; esse é o papel do testemunho e a magia da arte. Já que nem tudo pode ser dito, a arte cumpre esse papel, dando voz ao inaudível, fazendo reconhecer o indescritível. Na visão de Paul Klee (1999Klee, Paul (1999). Credo criativo. In Herschel B. Chipp (Org.), Teorias da Arte Moderna (pp. 183-188). Martins Fontes., p. 183), “A arte não reproduz o visível, mas torna visível”.

É um corpo marcado, transformado no processo e alcança a transcendência a partir do literal, por isso a arte, em Nazareth Pacheco, é uma forma de testemunho - arte-testemunho.

Considerações finais

Nazareth Pacheco, artista com experiências de vida marcada por doenças, dores, sofrimentos, encontrou na arte uma maneira de se expressar. Embora a dor não tenha um objeto exterior e, por isso, careça de representação, podem ser utilizados recursos suficientemente significativos para dar vazão ao que se sente: Nazareth trabalha no plano tridimensional, constrói objetos.

São experiências particulares que revelam, antes de mais nada, o humano. E é essa humanidade o ponto que talvez mais toque o fruidor - sentir o que o outro sente, aproximar-se de sua humanidade, especialmente quando são acionados elementos perturbados extraídos das próprias vivências da artista: cicatrizes, sangue, cirurgias, deformidades.

Nesse exercício de autoconhecimento que a arte provoca, Nazareth o amplifica em sua prática e na investida acadêmica: ao escrever sobre sua trajetória no mestrado, descobre enlaces entre os eixos de suas criações e, ao mesmo tempo, se torna sujeito e objeto do conhecimento. O exercício de pensar sobre a própria produção artística no contexto acadêmico lhe trouxe insights: “quando o artista revela seu pensamento mediante o processo de criação, também ele acaba passando por um processo de pesquisa por meio de reflexões sobre a própria obra” (Pacheco e Silva, 2002Pacheco e Silva, Nazareth (2002). Objetos Sedutores [Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, SP]., p. 9).

As marcas no corpo são, portanto, o testemunho que Nazareth revela através da arte. Nesse sentido, muito além das experiências pelas quais passou, a possibilidade de relatá-las em primeira pessoa - uma das características da literatura de testemunho -, configura a apropriação do que se fala; e como a obra de arte, em sua especificidade, vai além daquilo que foi dito na medida em que a imagem que captura o fruidor o torna condolente.

A partir do exposto, torna-se plausível pontuar o valor terapêutico do testemunho através da arte, que envolve a possibilidade de transformar, transcender a experiência dura e sofrida em uma experiência possível, mas também abre à psicologia outras vias para ajudar àqueles que foram expostos a situações extremas em suas vidas.

Embora Nazareth tenha revelado que arte não é terapia, deixa subentender que pode ser terapêutica. “Se uma pessoa é artista, é uma garantia de sanidade”, obra de 2012 (http://saudeemmovimento.com.br/sites4/nazarethpacheco/portu/comercio.asp?flg_Lingua=1&cod_menu_obras=1&cod_Serie=15&cod_Artista=1).

Referências

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  • Almagro, Alfonso del Río & Cuesta, Marta Rico (2019). La enfermedad como otredad: Las metáforas dominantes a partir de las prácticas artísticas visuales. AIBR Revista de Antropología Iberoamericana, 14(2), 253-276. https://doi.org/10.11156/aibr.140205
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  • Barros, Regina Teixeira (Org.). (2019). Nazareth Pacheco Allucci & Associados Comunicações.
  • Canton, Katia (2000). Novíssima arte brasileira: um guia de tendências. Iluminuras.
  • Cauquelin, Anne (2005). Arte contemporânea: uma introdução. Martins. (Coleção Todas as Artes)
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  • Financiamento

    Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq) da PUC-SP, na modalidade. Auxílio à Publicação de Artigos (PubArt), solicitação 26484.
  • Consentimento de uso de imagem

    Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Revisado
    23 Nov 2022
  • Aceito
    13 Dez 2022
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