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ESTADO, RACISMO E AÇÕES AFIRMATIVAS PARA PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL: DILEMAS NO CAPITALISMO

ESTADO, RACISMO Y ACCIONES AFIRMATIVAS PARA PROMOVER DE LA IGUALDAD RACIAL: DILEMAS EN EL CAPITALISMO

STATE, RACISM AND AFFIRMATIVE ACTIONS TO PROMOTE RACIAL EQUALITY: DILEMMAS IN CAPITALISM

Resumo

O presente artigo tem como objetivo desenvolver uma discussão materialista-histórica a respeito das contradições entre o Estado e as políticas de ação afirmativa no modo de produção capitalista. Para tanto, consideramos as dinâmicas reais e concretas entre o capital, os movimentos sociais, as conjunturas políticas e econômicas, que interferem na ação do Estado, bem como o entendimento das relações sociais de classe e raça como centrais para uma análise da formação social brasileira, sem a qual não conseguimos ter melhor compreensão do tempo presente. Apresentamos brevemente algumas formulações da tradição marxista a respeito do Estado e das Relações Raciais e discutimos acerca de alguns dilemas que envolvem as políticas de ação afirmativa no Brasil, uma vez que se revelam enquanto conquista da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que possibilitam a manutenção da ordem do Capital.

Palavras-chave:
Ação Afirmativa; Estado; Racismo; Capitalismo; Materialismo Histórico

Resumen

Este artículo tiene como objetivo desarrollar una discusión materialista histórica sobre las contradicciones entre el Estado y las Políticas de Acción Afirmativa en el modo de producción capitalista. Consideramos las dinámicas reales y concretas entre el capital, los movimientos sociales, las coyunturas políticas y económicas, que interfieren en la acción del Estado, así como la comprensión de las relaciones sociales de classe y raza como centrales para un análisis del contexto social brasileño, sin la cual no podemos tener una mejor comprensión del tiempo presente. Presentamos brevemente algunas formulaciones de la tradición marxista sobre el Estado y las Relaciones Raciales y discutimos algunos dilemas que envuelven las Políticas de Acción Afirmativa en Brasil, ya que se revelan como una conquista de la clase obrera, al mismo tiempo que posibilitan el mantenimiento de la misma. el orden del Capital.

Palabras clave:
Acción Afirmativa; Estado; Racismo; Capitalismo; Materialismo Histórico

Abstract

The purpose of this article is to develop a historical materialist discussion about the contradictions between State and Affirmative Action policies in the capitalist mode of production. For this purpose, we consider the real and concrete dynamics between capital, social movements, political and economic conjunctures, that they interfere in the State's action, in addition to theories about social relations of class and race, which are central to an analysis of Brazilian social formation, without which we cannot have a better understanding of the present time. We briefly present some formulations of the Marxist tradition regarding State and racial relations and discuss some dilemmas that involve Affirmative Action policies in Brazil, considering that they are conquests of the working class, at the same time that they make it possible to maintain the order of Capital.

Keywords:
Affirmative Action; State; Racism; Capitalism; Historical Materialism

Introdução

A partir da Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, ocorrida em Durban, África do Sul, no ano de 2001, o Estado brasileiro tem regulamentado e implementado importantes políticas de ação afirmativa para promoção da igualdade racial. O evento foi antecedido por três anos de preparação, com grupos de trabalho formados por representantes das nações e redes de organizações não governamentais. A delegação brasileira foi a mais numerosa, composta por mais de 200 integrantes de organizações não governamentais, ligadas, principalmente, ao movimento negro (Barbosa, Silva, & Silvério, 2003Barbosa, Lucia M. A., Silva, Petronilha B. G., & Silvério, Valter R. (2003). De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. Edufscar.). Dentre as políticas que podem ser consideradas como fortemente influenciadas pelas discussões e encaminhamentos da Conferência destacam-se a Lei nº 12.711/2012Lei Federal n. 12.711, de 29 de agosto de 2012. (2012). Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Presidência da República., que estabelece reserva de vagas em universidades federais e institutos federais de ensino, a Lei nº 12.990/2014Lei Federal n. 12.990, de 09 de junho de 2014. (2014). Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Presidência da República., que estabelece a reserva de vagas para pessoas negras (pretas e pardas) em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos na administração pública federal, e as Leis n° 10.639/2003Lei Federal n. 10.639, de 09 de janeiro de 2003. (2003). Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Presidência da República. e n° 11.645/2008Lei Federal n. 11.645, de 10 de março de 2008. (2008). Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Presidência da República., que tornam obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar com ênfase nas disciplinas de História, Artes e Literatura, objetivando a educação para as relações étnico-raciais, além de diversas iniciativas no âmbito público, nos três entes federativos brasileiros.

As ações afirmativas consistem em políticas ou programas, públicos ou privados, com o objetivo de conferir recursos ou direitos especiais para membros de um grupo social desfavorecido, com vistas ao bem coletivo, sendo etnia, raça, classe, ocupação, gênero, religião e castas, categorias mais comuns em tais ações (Feres, Campos, Daflon, & Venturini, 2018Feres, João, Campos, Luiz A., Daflon, Verônica T., & Venturini, Anna C. (2018). Ação afirmativa: conceito, história e debates. EDUERJ. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0003
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). O termo surgiu oficialmente nos Estados Unidos da América, em um decreto presidencial, a Executive Order10.925The White House. (1961). Executive Order n. 10.925 of March 06, 1961. Establishing the President's Committee on Equal Employment Opportunity., de 06 de março de 1961, assinado pelo então Presidente, John F. Kennedy, estabelecendo o Comitê Presidencial para Igualdade de Oportunidades e Emprego (Medeiros, 2009Medeiros, Carlos A. (2009). Ação afirmativa e promoção da igualdade racial: uma visão comparativa. In V. Silvério & S. Moehlecke (Orgs.), Ações afirmativas nas políticas educacionais: o contexto pós-Durban (pp. 55-76). Edufscar.). Por essa influência estadunidense, esse termo foi adotado no Brasil.

Os recursos e oportunidades distribuídos através da ação afirmativa podem se referir à participação política, ao acesso à educação, aos serviços de saúde, ao emprego, a oportunidades de negócios, a bens materiais, a redes de proteção social, ao reconhecimento cultural e histórico etc. Em vista disso, as ações afirmativas para promoção da igualdade racial têm o objetivo a equanimização do acesso às oportunidades e a mitigação das desigualdades raciais, acumuladas ao longo de anos.

No entanto, não se pode perder de vista a impossibilidade da distribuição equitativa de bens e riquezas no modo de produção capitalista. As ações afirmativas, assim como as demais políticas sociais, ao mesmo tempo em que evidenciam a contraditoriedade de conceitos como meritocracia, igualdade, isonomia, igual direito burguês e direito universal, contribuem para a contenção de reinvindicações proletárias efetivamente revolucionárias, garantindo a manutenção do modo de produção que tem a desigualdade na distribuição de riqueza como sua característica central (Mocelin, 2020Mocelin, Cassia E. (2020). Uma análise marxiana da política de cotas no Ensino Superior Público brasileiro. Revista Katályses, 23. http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n1p101
https://doi.org/10.1590/1982-02592020v23...
).

Desse modo, nosso objetivo neste artigo é desenvolver uma discussão materialista-histórica a respeito das contradições entre o Estado e as políticas de ação afirmativa no modo de produção capitalista, considerando as dinâmicas reais e concretas entre o Capital, os movimentos sociais, as conjunturas políticas e econômicas, que interferem na ação do Estado. Partimos das compreensões das relações sociais de classe e raça como centrais para uma análise da formação social brasileira, sem a qual não conseguimos ter melhor compreensão do tempo presente. Para tanto, apresentaremos brevemente algumas formulações da tradição marxista a respeito das Relações Raciais e do Estado.

Racismo e capitalismo: faces de uma mesma moeda

Abordar o racismo a partir da perspectiva materialista-histórica implica na efetivação de uma análise das questões raciais em suas imbricações com a totalidade das relações sociais, evidenciando suas conexões dinâmicas e complexas com a produção e reprodução da vida social na sociedade capitalista. Raça e classe constituem elementos dialeticamente articulados, dotados de materialidade e historicidade (Almeida, 2016; Oliveira, 2016Oliveira, Dennis (2016). Dilemas da luta contra o racismo no Brasil. Margem Esquerda, 27, 31-37.).

O racismo e as relações patriarcais de gênero são expressão das relações sociais que estruturam a sociedade de classes e o desenvolvimento do capitalismo. Como fala Heleieth Saffioti (2004Saffioti, Heleieth (2004). Gênero, patriarcado, violência. Fundação Perseu Abramo.) são faces de um mesmo processo: dominação-exploração ou exploração-dominação. Não há de um lado a exploração na sociedade capitalista e de outro a opressão dos povos negros.

Para começar, não existe um processo de dominação separado de outro de exploração. Por esta razão, usa-se, aqui e em outros textos, a expressão dominação-exploração ou exploração-dominação... De rigor, não há dois processos, mas duas faces de um mesmo processo. Daí ter-se criado a metáfora do nó para dar conta da realidade da fusão patriarcado-racismo-capitalismo. (Saffioti, 2004Saffioti, Heleieth (2004). Gênero, patriarcado, violência. Fundação Perseu Abramo., p.130)

Esta compreensão é nosso ponto de partida para dialogar sobre o racismo e como ele se expressa na sociedade brasileira, compreendendo-o como parte das relações sociais constitutivas da sociedade capitalista. Apesar de, na particularidade deste texto, darmos mais ênfase às apreensões sobre raça e classe, não deixamos de reconhecer a diversidade da classe trabalhadora e dos povos negros, no que se refere às identidades étnicas, de gênero, de sexualidade, de território, de condições de deficiência e demais marcadores sociais da diferença.

O racismo é uma forma sistemática e sistêmica de discriminação baseada na raça, que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes, que resultam em desvantagens, em subalternidade ou em privilégios para os indivíduos, a depender do grupo racial que ocupam, sendo um elemento que compõe a organização econômica e política da sociedade (Almeida, 2019Almeida, Sílvio (2019). Racismo Estrutural. Pólen.). O racismo engendra uma hierarquização da instância do trabalho, fazendo com que alguns trabalhadores percam, mais do que outros, parte do mais valor por eles criado, além de gerar uma fragmentação entre os segmentos sociais explorados, tendo em vista que as explorações são vivenciadas distintamente em modo e intensidade (Devulsky, 2016Devulsky, Alessandra (2016). Estado, racismo e materialismo. Margem Esquerda, 27, 25-30.). Dessa maneira, trata-se de um importante componente das políticas de dominação ideológica para dividir o proletariado.

Os processos de colonização, escravização e a posterior implantação de um modelo de produção capitalista periférico forjaram o racismo como componente estruturante da sociedade brasileira. A sociedade capitalista tem, na exploração do trabalho e na produção de mercadoria, o cerne de sua constituição. E ao determo-nos, especificamente, às vivências dos povos negros no processo de escravização, observamos que seus próprios corpos eram denominados como mercadoria e as mulheres negras eram consideradas uma mercadoria com o potencial de produzir outras mercadorias, em um processo de violência e apagamento de suas condições de humanidade. (Davis, 2016Davis, Angela (2016). Mulheres, raça e classe (Heci Regina Candiani, trad.). Boitempo.; Giacomini,1988Giacomini, Sônia Maria (1988). Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Vozes.). Como expressa Giovanni Alves (2009Alves, Giovanni (2009). A condição de proletariedade: A precariedade do trabalho no capitalismo global. Praxis; Canal 6., p. 47) “a acumulação capitalista sempre se utilizou da atividade predatória, fraudulenta e violenta, principalmente na acumulação capitalista do dito Terceiro Mundo. Trata-se de uma atividade oculta que é intrínseca à reprodução ampliada do capital”. Dessa forma, a escravidão dos povos negros, longe de ser distante do processo de acumulação do capital, é parte dele.

Sobre a realidade da sociedade capitalista contemporânea e a permanência e atualização do racismo nas relações sociais, Pierre Salama e Jacques Valier (1975Salama, Pierre & Valier, Jacques (1975). Uma introdução à economia política (Carlos N. Coutinho, trad.). Civilização Brasileira.) apontam que há dois processos de hierarquia no desenvolvimento do trabalho: uma hierarquia objetiva que se expressa em salários distintos na mesma função quando os trabalhadores estão situados em países diferentes, dado o preço de subsistência do operariado e os elementos incluídos no valor da força-de-trabalho, assim como a diferença salarial em decorrência de qualificações diferenciadas; e uma hierarquia subjetiva no estabelecimento de salários desiguais para mulheres, negros/as, imigrantes, entre outros aspectos. Sobre esta última hierarquia, referente aos povos negros, o racismo estrutural e institucional explica tais determinações.

Como exemplo deste ponto, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, em novembro de 2022, um estudo que mostrou a diferenciação do rendimento mensal médio no ano anterior, entre trabalhadores negros e brancos. Pessoas brancas ganham 75,7% mais que pessoas pretas e 70,8% mais que pessoas pardas. Mesmo em parcelas com maior escolaridade (nível superior), o rendimento de pessoas brancas chega a ser maior 50% e 40%, em relação ao rendimento de pessoas pretas e pardas, respectivamente, com a mesma escolaridade (Adjuto, 2022Adjuto, Graça (2022, 11 de novembro). IBGE: renda média de trabalhador branco é 75,7% maior que de pretos. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-11/ibge-renda-media-de-trabalhador-branco-e-757-maior-que-de-pretos
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). Tais números revelam o papel do racismo para a maior obtenção de lucro e exploração agudizada nas populações não brancas.

O poder estatal teve e tem função importante na produção e manutenção desse cenário de desigualdades e inequidades, assim como tem potencial para realização de modificações. Adiante trataremos das contradições acerca dos papéis do Estado no modo de produção capitalista.

Estado, ações e contradições no modo de produção capitalista

As compreensões sobre a origem, as funções e sobre o conceito de Estado são diversas e até divergentes, a depender de perspectivas epistemológicas, políticas e filosóficas adotadas. O Estado, da maneira como se apresenta na atualidade, não foi uma organização política existente em sociedades precedentes, mas é uma manifestação específica da sociedade moderna capitalista. (Mascaro, 2013Mascaro, Alysson L. (2013). Estado e forma política. Boitempo.). Max Weber (1981Weber, Max (1981). A ética protestante e o espírito do capitalismo. Pioneira.), para citarmos de maneira sintética, apresentou uma compreensão do Estado como um povo, fixado num território delimitado por fronteiras, o qual institui por autoridade própria órgãos que elaborem as leis e imponham o respectivo cumprimento, dentre as quais está a definição de um governo que precisa ser reconhecido interna e externamente.

Numa perspectiva liberal, o Estado aparece como um suposto poder autônomo, imparcial e neutro em relação às diversas parcelas dessa sociedade. Seus representantes, portadores de poderes políticos, não precisariam ser também detentores do poder econômico. Os poderes políticos exercidos pelo Estado seriam apartados dos interesses individuais e poderiam ser conferidos a representantes tanto da classe trabalhadora, quanto da burguesia, a depender do cumprimento das regras previamente estabelecidas e da vontade da maioria. Tal concepção implica na constituição das subjetividades, influenciando nas ideias e nas percepções, por exemplo, sobre liberdade, justiça, igualdade, meritocracia, já que todas as pessoas seriam, supostamente, sujeitas de direito, submetidas a um único regime político e jurídico (Mascaro, 2013Mascaro, Alysson L. (2013). Estado e forma política. Boitempo.).

Na perspectiva materialista-histórica, os modos de produção da vida material, que se referem às maneiras como as pessoas produzem coletivamente os seus meios de subsistência, determinam o desenvolvimento de toda a vida social, política, intelectual e subjetiva dessa sociedade. Diante disso, Karl Marx (1859/2003Marx, Karl (1859/2003). Contribuição à crítica da economia política (Maria Helena Alves, trad., 3ª ed.). Martins Fontes. (Original publicado em 1859)) defendeu a compreensão do Estado alicerçado nas condições materiais de existência, ou seja, as relações jurídicas (superestrutura) são formuladas a partir de uma base concreta das relações de produção (estrutura). O Estado, como parte do desenvolvimento da sociedade capitalista, para além da função política, social e econômica a serviço do capital, historicamente, tem se constituído como espaço de lutas e contradições. Como expressam Marx e Engels (1848/2018Marx, Karl & Engels Friedrich (1848/2018). Manifesto do Partido Comunista. Expressão Popular. (Original publicado em 1848), p. 8) “a história de todas as sociedades que existem até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Tais lutas se materializam nos espaços públicos, nas ruas, no cotidiano de movimentos sociais e de partidos políticos, mas também no espaço governamental, na disputa pelo orçamento público e no direcionamento das políticas públicas.

Por conseguinte, para uma compreensão concreta do Estado, é necessário o entendimento da posição relacional, estrutural, histórica, dinâmica e contraditória dentro da totalidade do modo de produção. Realizando esse esforço, percebe-se o papel essencial do Estado na regulação da sociedade, garantindo, entre outras coisas, o direito de propriedade; a circulação de mercadorias, estando inclusa também a força de trabalho; e, finalmente, a preponderância da classe dominante sobre a classe dominada (Mascaro, 2013Mascaro, Alysson L. (2013). Estado e forma política. Boitempo.). Nesse sentido, é possível reconhecer o papel do Estado enquanto superestrutura ideológica, criando e mantendo narrativas que legitimam e naturalizam a ordem social vigente e os interesses da classe dominante.

Portanto, o Estado se apresenta não como um instrumento para o atendimento dos interesses individuais dos capitalistas, mas de realização dos interesses do Capital, isto é, do modo de produção e de organização da sociedade, assumindo a posição de atender aos interesses de distintas parcelas da burguesia, concomitantemente com o atendimento às pressões das distintas parcelas da classe trabalhadora (Faleiros, 2009Faleiros, Vicente de P. (2009). A política social do estado capitalista. Cortez.). Logo, é relevante o papel da política, das classes burguesas, das classes trabalhadoras e da permanente luta de classes na concretização das ações do Estado, revelando o caráter dialético de seu funcionamento, garantindo a manutenção das condições gerais de reprodução e acumulação do capital (Faleiros, 2009; Mascaro, 2013Mascaro, Alysson L. (2013). Estado e forma política. Boitempo.).

Sobre as contradições e as correlações de forças no âmbito do Estado, apontamos o papel histórico de mobilização da classe trabalhadora para a garantia de direitos. Tais lutas partem do reconhecimento da necessidade de melhorias das condições de vida não apenas como um estágio ou mudança processual na busca de outra sociabilidade, mas como condição concreta de subsistência.

A mobilização e a organização da classe trabalhadora foram determinantes para a mudança da natureza do Estado liberal no final do século XIX e início do século XX. Pautada na luta pela emancipação humana, na socialização da riqueza e na instituição de uma sociabilidade não capitalista, a classe trabalhadora conseguiu assegurar importantes conquistas na dimensão dos direitos políticos, como o direito de voto, de organização em sindicatos e partidos, de livre expressão e manifestação (Barbalet, 1989Barbalet, Jack M. (1989). A Cidadania. Estampa.). Tais conquistas, contudo, não conseguiram impor a ruptura com o capitalismo. (Behring & Boschetti, 2010Behring, Elaine R. & Boschetti, Ivanete (2010). Política Social: fundamentos e história. Cortez., pp. 63-64)

No Brasil, após o período da ditadura civil-militar, por meio das lutas de diferentes sujeitos sociais (mulheres, povos negros, população LGBTQIAPN+, movimentos de lutas pela reforma sanitária, pelos direitos de crianças e adolescentes, pelos direitos das pessoas com deficiência etc.), deu-se o processo de constituinte e a tentativa de garantir na Carta Magna os direitos civis, sociais e políticos da classe trabalhadora. No entanto, na correlação de forças entre as classes sociais, a Constituição Federal (1988) mantém o direito da propriedade privada e não avança nas perspectivas de mudanças mais estruturais a exemplo das reformas de base.

No que se refere à luta dos povos negros, o ano de 1988 também expressava o marco de cem anos da proclamada abolição da escravatura, sem a garantia de nenhuma política de reparação, sem reconhecimento das desigualdades raciais e com forte presença do mito da democracia racial. Por isso, a manifestação dos povos negros no processo da constituinte era uma denúncia explicita à forma como se deu a “abolição” e a condições de exploração e dominação que a população negra ainda estava submetida.

‘Queremos proclamar a nossa abolição. Não é ódio, nem rancor, apenas um grito de liberdade!’ Com essas palavras, Benedita da Silva, deputada constituinte brasileira pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ecoava a voz de negras e negros durante uma das audiências de formulação da Constituição Brasileira. (Paixão, 2019Paixão, Mayara (2019, 21 de janeiro). O Movimento Negro e a Constituição de 1988: uma revolução em andamento. Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/especiais/o-movimento-negro-e-a-constituicao-de-1988-uma-revolucao-em-andamento
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, s/p)

Esse grito por liberdade ainda ecoa atualmente e esteve e está presente em diferentes mobilizações. No âmbito das políticas governamentais a implementação das políticas de cotas raciais é um avanço, como veremos no tópico seguinte, mas perpassada por desafios para sua efetivação, bem como por uma disputa ideológica teórico-política e conceitual sobre equidade e sobre privilégios.

Políticas raciais no Brasil: do período pós abolição à redemocratização

Políticas Raciais são comumente identificadas na história e na literatura ao tratar de ações governamentais de países, como por exemplo as políticas implementadas na Alemanha nazista, a segregação racial nos Estados Unidos ou o apartheid na África do Sul. O Brasil, por sua vez, implementou políticas que não necessariamente trataram a questão racial explicitamente, mas afetaram de maneira distinta os diferentes grupos raciais (Guimarães, 2021Guimarães, Carlos A. S. (2021, 4 de novembro). Política racial brasileira. Nexo Políticas Públicas. https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2021/Pol%C3%ADtica-racial-brasileira1
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).

Imediatamente após o período a abolição da escravatura no Brasil, não houve políticas compensatórias para a população escravizada. Pelo contrário, houve políticas de valorização da mão de obra europeia e a criação de normativas que dificultavam o acesso das pessoas, que foram anteriormente escravizadas, à terra e ao emprego (Theodoro, 2008Theodoro, Mário (2008). A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição (pp. 15-44). IPEA.). Como exemplo temos a Lei de Terras (Lei nº 601/1850Lei Federal n. 601, de 18 de setembro de 1850. (1850). Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Palácio do Rio de Janeiro.), que retirou do Estado o papel de distribuir terras, passando ao papel de vender terras para quem dispusesse de dinheiro para adquiri-las; a política de imigração de povos europeus com garantia de concessão de terras, na segunda metade do século XIX, com o objetivo de povoamento do Brasil por uma população europeia e, consequentemente, um pretenso branqueamento do país; o decreto que definiu os critérios para a participação política, que retirava a possibilidade de mulheres, pobres e analfabetos (majoritariamente negros) votarem e assumirem cargos eletivos (Guimarães, 2021Guimarães, Carlos A. S. (2021, 4 de novembro). Política racial brasileira. Nexo Políticas Públicas. https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2021/Pol%C3%ADtica-racial-brasileira1
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; Moura, 2020Moura, Clóvis (2020). Dialética radical do Brasil negro. Anita Garibaldi.).

Tais políticas comprometeram a participação de pessoas negras na nova etapa de organização do trabalho, agora remunerada, após a abolição da escravatura. Cassia Mocelin (2020Mocelin, Cassia E. (2020). Uma análise marxiana da política de cotas no Ensino Superior Público brasileiro. Revista Katályses, 23. http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n1p101
https://doi.org/10.1590/1982-02592020v23...
, p. 103), sobre este comprometimento, explica:

com isso, negaram-se à população negra oportunidades de trabalho e de vida, as quais ficaram reservadas aos imigrantes europeus, resultando numa histórica divisão social e racial do trabalho na sociedade brasileira. Ao segmento negro, sobraram e ainda continuam “a sobrar” apenas as posições de trabalho inferiores e rejeitadas pelos trabalhadores brancos.

No início do período republicano houve o investimento no imaginário nacionalista de valorização à mestiçagem, construído através da produção intelectual, cultural, artística e midiática. Tal concepção contribuiu para que as desigualdades raciais não fossem diagnosticadas como problemas que necessitariam da intervenção do Estado (Feres et al., 2018Feres, João, Campos, Luiz A., Daflon, Verônica T., & Venturini, Anna C. (2018). Ação afirmativa: conceito, história e debates. EDUERJ. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0003
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). Apesar disso, no governo Vargas, em 1930, o decreto nº 19.482Presidência da República. Decreto n. 19.482, de 12 de dezembro de 1930. Limita a entrada, no território nacional, de passageiros estrangeiros de terceira classe, dispõe sobre a localização e amparo de trabalhadores nacionais, e dá outras providências. (1930)., mais conhecido como Lei dos 2/3, determinou que pelo menos dois terços dos trabalhadores das empresas fossem brasileiros natos. Tal iniciativa possibilitou, naquele momento, um incremento de pessoas negras no trabalho formal.

As mobilizações progressivas dos movimentos sociais e, especificamente, dos Movimentos Negros, já que se trata de uma pluralidade de grupos, culminaram no processo de redemocratização do país na segunda metade dos anos 1980, após 21 anos de ditadura militar. Tais mobilizações, em conjunto com a produção de intelectuais, evidenciaram as desigualdades raciais existentes no Brasil e construíram reivindicações e proposições para atuação do Estado no enfrentamento das inequidades.

Com a elaboração da Constituição Federal de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, bastante progressista no que se refere aos direitos sociais e à recomendação do ativismo estatal para redução das desigualdades, criou-se bases normativas fundamentais para a posterior criação de políticas de ação afirmativa para promoção da igualdade racial (Feres et al., 2018Feres, João, Campos, Luiz A., Daflon, Verônica T., & Venturini, Anna C. (2018). Ação afirmativa: conceito, história e debates. EDUERJ. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0003
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). Em muitos aspectos, a Constituição de 88 teve inspiração no Estado de Bem-estar Social, com proposta de intervenção por meio de políticas públicas para assegurar aos/às seus/suas cidadãos/ãs patamares mínimos de igualdade social e um padrão mínimo de bem-estar (Coelho, 2014Coelho, Ricardo C. (2014). Estado, governo e mercado. Departamento de Ciências da Administração/UFSC.).

No entanto, como já abordado aqui neste texto, a noção de igualdade e as garantias de direitos que também estão contidas na Constituição de 1988 são contraditórias e limitadas, ainda que se configurem como um importante patamar civilizatório (Wellen, 2019Wellen, Henrique (2019). Igualdade abstrata e desigualdade econômica: da equivalência da circulação à não equivalência da produção. In E. Salvador, E. Behring, & R. Lima (Orgs.), Crise do Capital e Fundo Público: implicações para o trabalho, os direitos e a política social (pp. 21-41). Cortez.). Ao mesmo tempo em que são reconhecidas condições de inequidades entre as cidadãs e os cidadãos, em que é reconhecida a responsabilidade do Estado em intervir para a superação de tais inequidades, não há previsão do Estado intervir no mecanismo produtor delas, qual seja, a distribuição desigual das riquezas socialmente produzidas. As políticas de ação afirmativa, por sua vez, questionam, em alguma medida, a noção moderna de igualdade e justiça, segundo a qual a distribuição de bens e posições sociais seria fundamentada no indivíduo e em seus méritos e talentos naturais (Silvério & Moehlecke 2009Silvério, Valter. R. & Moehlecke, Sabrina (2009). Introdução. In Ações afirmativas nas políticas educacionais: o contexto pós-Durban (pp. 11-16). Edufscar.). Dessa forma, trataremos adiante a respeito das ações afirmativas para promoção da igualdade racial no período posterior à Constituição de 1988.

Ações Afirmativas pós redemocratização

De acordo com Antônio Guimarães (2009Guimarães, Antônio S. A. (2009) Contexto histórico-ideológico do desenvolvimento das ações afirmativas no Brasil. In Ações afirmativas nas políticas educacionais: o contexto pós-Durban (pp. 19-33). Edufscar.), o período pós redemocratização foi de aprofundamento do Estado Mínimo e de defesa da mínima intervenção possível do Estado na sociedade, o que caracterizou fortemente as gestões dos presidentes Fernando Collor de Melo (1990-1992), Itamar Franco (1993-1994) e Fernando Henrique Cardozo - FHC (1995-2002). Apesar disso, as mobilizações políticas dos movimentos sociais mantiveram as inequidades raciais na agenda de reivindicações.

No início dos anos 90, as centrais sindicais e os principais sindicatos do país estavam organizados em torno de reinvindicações sobre as questões raciais. Nesse contexto, foi organizada, em 1995, a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida, ocorrida em Brasília-DF, reunindo mais de 30 mil pessoas e pressionando o governo para o comprometimento com ações efetivas por parte do Estado. Tais reinvindicações desdobraram-se em diversas iniciativas, ainda que embrionárias, para a implementação de ações afirmativas no Brasil, como por exemplo: a instituição do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Valorização da População Negra; a instituição do Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTDEO), no Ministério do Trabalho; o lançamento do programa Brasil, Gênero e Raça; e a realização do “Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo - O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos” (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2009Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2009) A construção de uma política da igualdade racial: uma análise dos últimos 20 anos (Luciana Jaccoud, org.). Autor.).

Apesar de tais iniciativas e do reconhecimento das desigualdades raciais pelo Governo FHC1 1 Sociólogo, cientista político, professor da Universidade de São Paulo - USP, que esteve presente da discussão de importantes estudos sobre as relações raciais no Brasil. , havia resistência em estabelecer as ações afirmativas como política para promoção da igualdade racial. Apenas a partir da forte mobilização dos Movimentos Negros na realização dos eventos preparatórias para a Conferência de Durban, em 2001, e com a forte participação brasileira na Conferência em si, tornando o Brasil signatário da Declaração produzida, o país assume, mais concretamente, o compromisso com as políticas de ações afirmativas para promoção da igualdade racial (Feres et al, 2018Feres, João, Campos, Luiz A., Daflon, Verônica T., & Venturini, Anna C. (2018). Ação afirmativa: conceito, história e debates. EDUERJ. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0003
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; IPEA, 2009).

Os eventos preparatórios para a Conferência de Durban contribuíram também para que as temáticas das inequidades raciais estivessem presentes na mídia brasileira, favorecendo o debate público da questão. Embora o Programa Nacional de Ações Afirmativas (2002) tenha sido lançado no final do Governo FHC, não foi efetivada nenhuma política de reserva de vagas na Administração Pública Federal (Feres et al, 2018Feres, João, Campos, Luiz A., Daflon, Verônica T., & Venturini, Anna C. (2018). Ação afirmativa: conceito, história e debates. EDUERJ. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0003
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). As primeiras políticas de ação afirmativa nas Universidades públicas ocorreram no estado do Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), por meio da Lei Estadual nº 3.524/2000Lei Estadual n. 3524, de 28 de dezembro de 2000. (2000). Dispõe sobre os critérios de seleção e admissão de estudantes da rede pública estadual de ensino em universidades públicas estaduais e dá outras providencias. Governo do Estado do Rio de Janeiro., e na Bahia, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por meio da Deliberação n° 196/2002Resolução n. 196, de 25 de julho de 2002. (2002). Estabelece e aprova o sistema de quotas para a população afrodescendente, oriunda de escolas públicas, no preenchimento de vagas relativas aos cursos de graduação e pós-graduação e dá outras providências. Conselho Universitário, Universidade do Estado da Bahia. http://redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br/uploads/uneb_resolucao_2002_196_1.pdf
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do Conselho Universitário. No que se refere às Universidades Federais, a Universidade de Brasília (UnB) foi a pioneira na formulação de uma política de ação afirmativa para a igualdade racial, através do Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial, aprovado em junho de 2003.

Nos primeiros governos do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciado com o presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e continuado pela presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), ocorreu uma maior permeabilidade para as demandas dos movimentos sociais, incluindo os Movimentos Negros, transformarem-se em ação do poder público (Guimarães 2009Guimarães, Antônio S. A. (2009) Contexto histórico-ideológico do desenvolvimento das ações afirmativas no Brasil. In Ações afirmativas nas políticas educacionais: o contexto pós-Durban (pp. 19-33). Edufscar.). Nesse sentido, diversas ações afirmativas com o viés racial foram implementadas, das quais mencionamos algumas: a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar com ênfase nas disciplinas de História, Artes e Literatura, objetivando a educação para as relações étnico-raciais; a reserva de vagas para negros e indígenas no Programa Universidade para Todos (PROUNI) e no Financiamento ao Estudante de Ensino Superior (FIES); a reserva de vagas em Universidades Federais e Institutos Federais de Ensino; a concessão de Bolsa Permanência para estudantes indígenas e quilombolas das Instituições Federais de Ensino Superior; a reserva de vagas para pessoas negras (pretas e pardas) em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos na Administração Pública Federal; entre outras ações.

Segundo Guimarães (2009Guimarães, Antônio S. A. (2009) Contexto histórico-ideológico do desenvolvimento das ações afirmativas no Brasil. In Ações afirmativas nas políticas educacionais: o contexto pós-Durban (pp. 19-33). Edufscar.), no entanto, o PT foi, durante muitos anos, reticente ao desenvolvimento de políticas de identidades não classistas (ou universalistas para a classe trabalhadora), mas adotou as políticas de ações afirmativas por não ter disponibilidade para investir em transformações estruturantes, como por exemplo na política econômica. Nesse sentido, o autor reconhece as ações afirmativas como uma conquista dos Movimentos Negros e demais movimentos sociais, ao mesmo tempo em que evidencia a contradição das ações afirmativas serem uma concessão do Estado para conter reinvindicações que busquem a justa distribuição de todas as riquezas socialmente produzidas, de maneira muito mais ampla do que se refere à difusão de conhecimento, à educação de nível superior ou à ocupação de cargos públicos.

Outro ponto a ser considerado é que os processos de formulação e implementação das ações afirmativas para a promoção da igualdade racial têm acontecido com resistências. Vale lembrar a discordância com a aprovação das ações no processo legislativo, principalmente por parte das bancadas do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e do partido Democratas (DEM), tendo este último impetrado, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental contra a política de ação afirmativa da UnB. Foi alegado ferimento aos princípios da dignidade da pessoa humana, de repúdio ao racismo e da igualdade, além de legislações que dizem respeito à universalidade do acesso à educação. No entanto, em votação unânime dos ministros e ministras, as políticas de cotas raciais foram consideradas compatíveis com a Constituição de 1988 (Feres et al, 2018Feres, João, Campos, Luiz A., Daflon, Verônica T., & Venturini, Anna C. (2018). Ação afirmativa: conceito, história e debates. EDUERJ. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0003
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; Marona & Andrade, 2021Marona, Marjorie & Andrade, Luciana (2021). A audiência pública sobre quotas raciais no Supremo Tribunal Federal. Suprema: Revista de Estudos Constitucionais, 1(2), 257-289. https://doi.org/10.53798/suprema.2021.v1.n2.a70
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).

João Feres et al. (2018Feres, João, Campos, Luiz A., Daflon, Verônica T., & Venturini, Anna C. (2018). Ação afirmativa: conceito, história e debates. EDUERJ. https://doi.org/10.7476/9786599036477.0003
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), apresentam alguns argumentos contrários às ações afirmativas, por não combaterem a grave desigualdade social, uma vez que não são capazes de beneficiar os indivíduos e os grupos sociais mais marginalizados, favorecendo apenas uma parcela mais bem sucedida dentro dos grupos beneficiados. Os autores apresentam também argumentos em defesa da implementação de ações afirmativas, como por exemplo: que tais programas não são concebidos como uma solução para todas as desigualdades sociais e que devem ser combinados com outras ações que atuem em outras formas de exclusão; que podem provocar efeitos secundários nos membros do grupo familiar e social do beneficiário direto; que são medidas para diversificar as elites sociais, tornando-as mais representativas do total da população, sendo uma ferramenta para criação de novos modelos que podem inspirar outros membros de grupos minoritários a alcançar objetivos mais elevados.

A partir dos argumentos apresentados é possível identificar limitações nos efeitos das ações afirmativas para promoção da igualdade racial, assim como identificadas nas demais políticas sociais. Ratifica-se o objetivo de tais políticas em apenas ‘aliviar’ as inequidades geradas no modo de produção capitalista. Além disso, o argumento que as ações afirmativas poderiam produzir uma diversificação das elites sociais, construindo a ideia de que seja possível a grupos minoritários alcançarem objetivos mais elevados, revelam o interesse na manutenção das desigualdades, dentro de uma lógica de representatividade. Ao mesmo tempo em que as ações afirmativas questionam a concepção de meritocracia, tal argumentação fortalece a ideia do mérito a partir da representatividade, já que as elites sociais poderão ser diversificadas e acessíveis a todos e todas. Nesse sentido, continuam sem efetivas oportunidades de transformação as populações mais pauperizadas, as quais provavelmente permanecerão com os mesmos perfis raciais.

Portanto, as ações afirmativas, pautadas na diferença, são provenientes de um processo de frustração da universalização dos direitos e se configuram como instrumentos possíveis para reduzir as distâncias entre grupos raciais. Amanda Murgo e José Baioni (2015Murgo, Amanda C. & Baioni, José Eduardo M. (2015). Universalidade e particularidade: a compreensão dos valores universais e as ações afirmativas. In Petronilha B. G. Silva. & S Danilo S. Morais (Orgs.), Ações afirmativas: perspectivas de pesquisas de estudantes da reserva de vagas (pp. 107-124). Edufscar.) argumentam que a tão almejada universalização de condições de direitos só pode ser concretizada se entrarem em exercício pleno ações políticas particularistas, uma vez que não se pode renunciar ao reconhecimento das diferenças e diversidades. No entanto, tais ações costumam ser instrumentos que conseguem incorporar ou integrar pessoas em melhores condições nos segmentos discriminados, pois a questão central reside na acumulação exacerbada, por parte de poucos, das riquezas socialmente produzida, não sendo possível almejar a universalização de direitos com a manutenção da propriedade privada dos meios de produção.

No Brasil, após a situação de ruptura democrática ocorrida com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e posterior eleição de um governo de extrema direita, o país passou por um período de hiato e até mesmo de retrocessos no que diz respeito às ações do Estado brasileiro para promoção da igualdade racial. Recentemente, em 2023, tivemos uma significativa retomada do compromisso do país no combate ao racismo e seus efeitos, destacando-se a criação do Ministério da Igualdade Racial e o Ministério dos Povos Indígenas, além da recriação do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania. Há muito a ser realizado por essas estruturas administrativas e os desafios são enormes, inclusive em relação ao orçamento. No entanto, é importante que não se perca de vista a necessidade de ser pôr em questão o modo de produção capitalista, produtor não só das inequidades raciais, mas de diversas formas de opressão e exploração, assim como a limitação das possibilidades do Estado em promover a redução das desigualdades, sem que ocorram transformações radicais na sociedade.

Considerações finais

Neste texto objetivamos discutir a respeito das contradições entre o Estado e as políticas de ação afirmativa no modo de produção capitalista, a partir de uma perspectiva materialista-histórica. Compreendemos que tal discussão se faz importante para desvelar os aspectos que envolveram e envolvem os processos de formação de agenda, formulação e implementação das políticas de ação afirmativa no Brasil, além de colaborar com as reflexões acerca de suas possibilidades e limites.

Movimentos de resistência dos povos negros da classe trabalhadora historicamente fizeram frente às forças do Capital, as quais impuseram a realização de mudanças nos modos de produção, seja frente aos sequestros realizados em África, na organização dos quilombos, no cotidiano das periferias, dos terreiros, até os direitos específicos garantidos atualmente, ainda que muitas vezes de maneira subjetiva. No entanto, as forças e as armas do Capital se atualizaram, efetivando novos mecanismos de opressão e exploração, não tendo sido possível, ainda, um rompimento radical com esse modo de produção e sociabilidade.

Compreendemos as políticas de ação afirmativa para promoção da igualdade racial enquanto conquistas da classe trabalhadora, que demandam articulação política com vistas a sua manutenção e aperfeiçoamento. As conquistas de ampliação de direitos por parcelas da classe trabalhadora têm sido historicamente reconhecidas como provenientes do processo permanente da luta de classes, como ganhos parciais da classe trabalhadora. No entanto, se faz importante atentarmos para a insuficiência das Ações do Estado na construção de uma sociedade efetivamente equânime, se não superarmos o modo de produção capitalista, produtor das diversas inequidades sociais. Essa seria a principal contradição que gostaríamos de problematizar neste texto.

Compreendemos que tal discussão se faz necessária para colaborar na luta da classe trabalhadora, dos movimentos sociais, dos sindicatos, partidos políticos, profissões, na luta para a promoção da igualdade racial, mantendo no horizonte nossa luta pela emancipação humana.

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Nota

  • 1
    Sociólogo, cientista político, professor da Universidade de São Paulo - USP, que esteve presente da discussão de importantes estudos sobre as relações raciais no Brasil.

Nota

  • Financiamento

    Não houve financiamento
  • Aprovação, ética e consentimento

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2023
  • Revisado
    25 Set 2023
  • Aceito
    26 Set 2023
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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