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DE UMA VIAGEM ESQUIZO À ESQUIZOANÁLISE: PASSEANDO PELA HISTÓRIA DA REVISTA PSICOLOGIA & SOCIEDADE

DEL VIAJE ESQUIZO AL ESQUIZOANÁLISIS: UN PASEO POR LA HISTORIA DE LA REVISTA PSICOLOGIA & SOCIEDADE

FROM A SCHIZO JOURNEY TO SCHIZOANALYSIS: WALKING THROUGH THE HISTORY OF PSICOLOGIA & SOCIEDADE JOURNAL

Resumo

A revista Psicologia & Sociedade é o principal veículo de comunicação da ABRAPSO. Possui grande relevância em nível nacional e internacional, contribuindo para o debate e construção da Psicologia Social brasileira. A presente pesquisa tem por objetivo mapear a história da Psicologia & Sociedade, no período de 1986 até 2001, assim como a publicação de artigos relacionados à esquizoanálise. Como método, utiliza-se a cartografia, cunhada por Deleuze e Guattari, para a construção de um mapa em movimento na experimentação apoiada no real. O passeio esquizo permitiu narrar a história da revista, por meio da expressão de atores, afetos e memórias, dando visibilidade à luta pela construção da ABRAPSO e da revista. As publicações relacionadas à esquizoanálise emergiram a partir de 1987, por meio da citação dos autores, de obras e de conceitos.

Palavras-chave
Revista; Psicologia & Sociedade; ABRAPSO; História da psicologia social; Esquizoanálise

Resumen

La revista Psicologia & Sociedade es el principal vehículo de comunicación de ABRAPSO. Tiene gran relevancia a nivel nacional e internacional, contribuyendo para el debate y la construcción de la Psicología Social brasileña. Así, esta investigación tiene como objetivo mapear la historia de Psicologia & Sociedade, de 1986 a 2001, así como la publicación de artículos relacionados con el esquizoanálisis. Como método, la cartografía, acuñada por Deleuze y Guattari, se utiliza para construir un mapa en movimiento en la experimentación basada en la realidad. El paseo esquizo permitió narrar la historia de la revista, a través de la expresión de actores, afectos y memorias, dando visibilidad a la lucha por la construcción de ABRAPSO y de la revista. Las publicaciones relacionadas con el esquizoanálisis surgieron a partir de 1987, citando autores, trabajos y conceptos.

Palabras clave
Psicologia & Sociedade; ABRAPSO; Historia de la psicología social; esquizoanálisis

Abstract

The journal Psicologia & Sociedade is the main communication vehicle of ABRAPSO. It has great relevance at national and international level, contributing to the debate and construction of Brazilian Social Psychology. Thus, this research aims to map the history of Psicologia & Sociedade, from 1986 to 2001, as well as the publication of articles related to schizoanalysis. As a method, cartography, coined by Deleuze and Guattari, is used to build a moving map in experimentation based on reality. The schizo walk allowed narrating the history of the journal, through the expression of actors, affections, and memories, giving visibility to the struggle for the construction of ABRAPSO and its main journal. Publications related to schizoanalysis started in 1987, through the citation of authors, works and concepts.

Keywords
Psicologia & Sociedade; ABRAPSO; Social psychology history; Schizoanalysis

Introdução

Rasgar a escrita, o método, a forma, a formalidade, esquizofrenizar... Ver a história, fazer a história, criar, sentir, sentir. Assim pretendemos levar esta pesquisa, e assim por ela seremos levados. Se conservarmos as formalidades de um artigo, de seu método, o pudor e a elegância de um problema de pesquisa, será apenas como máscara, para que por debaixo dela possam passar forças demoníacas imperceptíveis, zombeteiras, a rir do Padre Institucional. Não pretendemos nenhum objetivo final, isso é ainda outra máscara. Nem mesmo os dados da pesquisa nos interessam realmente, pois nada disso importará se não formos capazes de traçar linhas qual uma aranha em seu processo de tecitura.

Tal experimentação só é possível ao encontrarmos intercessores. Gilles Deleuze (1992Deleuze, G. & Guattari, F. (1992). Entrevista sobre O Anti-édipo. In G. Deleuze (Org.), Conversações (pp. 23-36). Editora 34., p. 156) afirma que os intercessores são essenciais para a criação: “Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores... Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim...”. Os intercessores podem constituir forças, intensidades que são capazes de nos transportar a outros lugares, viver outros tempos. Um intercessor é sempre uma diferença a nos compor, e nós a ela, de tal forma que já não sabemos mais quem somos e sequer discernimos os tempos que nos habitam, os afetos que nos povoam. É assim que, no contato com a revista Psicologia & Sociedade, veículo de comunicação da ABRAPSO1 1 Associação Brasileira de Psicologia Social. , fabricaremos nossos intercessores e por eles seremos maquinados.

A primeira edição da revista Psicologia & Sociedade data do ano de 1986 e segue até 1992. Há uma parada improdutiva de três anos e ela retoma, superaquecida, em 1996, seguindo seu curso até 2001. A partir de 2002, os volumes passam a integrar o banco de dados da Scielo, onde é possível consultá-los de forma online, integralmente.

Assim, as publicações que vão de 1986 até o ano de 2001 são os nossos intercessores. Nossa preferência por tal recorte processa-se pelo motivo de estarmos nos inserindo no início da construção de uma Psicologia Social crítica, como área preocupada e comprometida com o campo sociopolítico, e também para compreendermos como e de que modo, nesse campo de forças, as referências a Deleuze e Felix Guattari e/ou a esquizoanálise foram emergindo e vieram se consolidando nas publicações. A busca pelos autores se deu a partir da leitura das revistas e a identificação de conteúdo nas publicações que remetesse a Deleuze e Guattari e/ou à esquizoanálise.

O fluxo da escrita deste artigo, além desta introdução, compõe-se da enunciação da cartografia como método da pesquisa, seguindo com a incursão pela história da revista Psicologia & Sociedade, vinculando-a à história da ABRAPSO - nessa sessão, em particular, utilizamos, na escrita, a primeira pessoa do singular, para uma narrativa própria, de modo a dar vida à revista, expressando as suas emoções, além de sua memória. Seguimos então apresentando brevemente o campo no qual se situa a esquizoanálise e cartografando os 18 artigos que fazem referência a Deleuze e Guattari e/ou, em maior ou menor grau, à esquizoanálise. Encerramos com algumas considerações referentes ao conteúdo discutido.

Cabe situar que, sobre a história da revista Psicologia & Sociedade, há outros artigos publicados, como: “Notas sobre um recomeço: revista Psicologia & Sociedade” (Pescatore Alves & Crochík, 2016Pescatore Alves, C. & Crochík, J. L. (2016). Notas sobre um recomeço: revista Psicologia & Sociedade (1996-2001). Psicologia & Sociedade , 28(3), 616-621. https://www.scielo.br/j/psoc/a/sm7zJ4SHhp8P3TxvBpXRPSC/?lang=pt
https://www.scielo.br/j/psoc/a/sm7zJ4SHh...
); “Psicologia & Sociedade: três décadas de produção crítica” (Hüning, Medrado, Bernardes, & Kind, 2016Hüning, S., Medrado, B., Bernardes, A. G., & Kind, L. (2016). Psicologia & Sociedade: três décadas de produção crítica. Editorial.Psicol.& Soc., 28(3), 410-411. https://www.scielo.br/j/psoc/a/ntTf5bs739kssYNyHVc7YGd/?lang=pth
https://www.scielo.br/j/psoc/a/ntTf5bs73...
); “A produção do conhecimento na psicologia social brasileira: um estudo descritivo a partir da revista Psicologia & Sociedade” (Cruz & van Stralen, 2012Cruz, R. N. & van Stralen, C. (2012). A produção do conhecimento na psicologia social brasileira: um estudo descritivo a partir da revista Psicologia & Sociedade. Psicologia & Sociedade , 24(1), 227-239. https://www.scielo.br/j/psoc/a/cv3w76wMX7Ky6mTnwhRCBLs/?format=pdf⟨=pt
https://www.scielo.br/j/psoc/a/cv3w76wMX...
).

Método: metá-hódos, hódos-metá

A cartografia é um método cunhado por Deleuze e Guattari (2011a Deleuze, G. & Guattari, F. (2011a). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia vol.1 (2ª ed.). Editora 34.) e remete à construção de um mapa, em movimento, que possibilita uma experimentação apoiada no real. Mapa aberto, “conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (p. 22). Assim, cartografar é sempre ser convidado a experimentar, a vir-a-ser cartógrafo, a rizomatizar. O rizoma, enquanto conexão, libera outras múltiplas conexões, põe em jogo outras múltiplas forças, traça outros múltiplos caminhos. Por isso, temos um grande desafio: “realizar uma reversão do sentido tradicional de método - não mais um caminhar para alcançar metas pré-fixadas (méta-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas” (Passos & Benevides, 2009Passos, E. & Benevides, R. (2009). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina., p. 17). Estamos em busca dos agenciamentos entre as linhas intensivas de nossos corpos, pensamentos e desejos, com as múltiplas linhas intensivas que cruzamos por esse percurso. E o que seria o agenciamento, como o situam Deleuze e Guattari (2011a Deleuze, G. & Guattari, F. (2011a). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia vol.1 (2ª ed.). Editora 34.; 2012bDeleuze, G. & Guattari, F. (2011b). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (2ª ed.). Editora 34.), senão a variação de natureza à medida em que as conexões aumentam, à medida em que o desejo se ramifica?

Há uma peculiaridade na pesquisa que estamos nos debruçando, já que seu real comporta a dimensão bibliográfica. Cabe esclarecer que não concebemos a pesquisa bibliográfica em seu modo predominante, organizada em torno de eixos estruturais, por meio de uma ordem linear (início-meio-fim) e de uma definição prévia do caminho a ser percorrido para a obtenção dos resultados quantitativos ou qualitativos, com posterior análise para extrair imagens ou representações de uma realidade que se pressupõe dada. Propomos o deslocamento do “escrever sobre” para o “escrever com o escrever” (Almeida, 2009Almeida, R. P. (2009). Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Juruá.). O “escrever sobre” implica a extensão mensurável da memória, de significado e representação. Já o “escrever com o escrever” não restitui memória nem representa coisas prévias à experiência. Ao contrário, permite que o pesquisador mergulhe no “turbilhão da experiência para se perder em sua tarefa de construção de sentido, através da escrita” (Almeida, 2009Almeida, R. P. (2009). Escrita e leitura: a produção de subjetividade na experiência literária. Juruá., p. 48).

Esta pesquisa pressupõe a criação de um campo que não está dado de antemão, que nunca é dado; um plano comum heterogêneo (Passos & Kastrup, 2016Kastrup, V. & Passos, E. (2016). Cartografar é traçar um plano comum. In E. Passos, V. Kastrup, & S. Tedesco (Orgs.), Pistas do método da cartografia: A experiência da pesquisa e o plano comum (pp. 17-41). Sulina.) que possa pôr em jogo os trabalhos produzidos, indo para além da reprodução, estendendo-se ao estabelecimento de conexões, ao infinito, e que possibilite a produção do inédito. A experimentação do real pretende antes os agenciamentos maquínicos, as conexões que façam cópula com o campo sociopolítico. Porque esta é a última consequência de todo cartografar: produzir-desejo-produzir. E a proposta da pragmática esquizoanalítica pressupõe pura e simplesmente a produção desejante; a fabricação, ao invés do eterno retorno do mesmo.

Na produção mesma desta pesquisa, não sabemos bem para aonde estamos sendo conduzidos, onde bifurcaremos, que problemas entrarão em jogo, se ficaremos num limite relativo ou transporemos o limiar absoluto. A certeza que temos é de que estamos numa experimentação, num processo de individuação por hecceidade2 2 Deleuze e Guattari (2012a, p. 52) definem hecceidades como acontecimentos: “acontecimentos cuja individuação não passa por uma forma e não se faz por um sujeito. (Deleuze & Guattari, 2012aDeleuze, G. & Guattari, F. (2012a). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia vol. 3 (2ª ed.). Editora 34.). E é assim que esta pesquisa bibliográfica poderá devir pesquisa-intervenção. Pois “intervenção sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de coemergência - o que podemos designar como plano de experiência” (Passos & Benevides, 2009Passos, E. & Benevides, R. (2009). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina., p. 17).

Ou seja, ao propormos a pesquisa bibliográfica como intervenção, via método cartográfico, queremos dar visibilidade à produção de um plano comum heterogêneo pela pesquisa, no qual transitam elementos diversos: históricos, sociais, econômicos, tecnológicos, afetivos, cognitivos, entre tantos outros. A escrita na cartografia não é apenas registro, mas intensidades de passagem, provêm do fora, configuram rizoma, pondo em jogo a possibilidade de criar conexões. E é por meio dessas conexões com os diversos elementos agenciados pela pesquisa que o campo empírico da pesquisa bibliográfica passa a ser transversalizado, ganhando movimento, as forças instituintes passam a tocar as forças instituídas, gerando transformações.3 3 Para mais informações sobre cartografia por meio de pesquisa bibliográfica, ver Donhauser e Bonamigo (2019).

A Revista Psicologia & Sociedade por ela mesma: narrativa de uma breve história

Sou a revista Psicologia & Sociedade. Estamos em 1986, ano de meu nascimento, ou melhor, de minha metamorfose. Um longo caminho havia sido percorrido até aqui, com muito esforço. Os sulcos de meu corpo, talhados pela escrita, narram minha história: “É essa dedicação militante que leva a ABRAPSO adiante e é isso que explica o fato de em momento tão crítico estarmos dando um salto passando do boletim com poucas páginas para uma revista” (Andery et al., 1986Andery, A. A., Anatanaitis, Y., Furtado, O., Liebsny, B. & Sampaio, L. C. (1986). Editorial. Psicologia & Sociedade , 1(1)., não paginado). Essas lembranças estão ainda vivas em mim, presentes na memória de meu primeiro editorial, meu primeiro ano de vida. No começo, nossa situação era precária. Sofremos. Com pouco, demos um grande passo: “Falta-nos infraestrutura, falta-nos dinheiro, falta-nos pessoal, só não falta vontade” (Andery et al., 1986Andery, A. A., Anatanaitis, Y., Furtado, O., Liebsny, B. & Sampaio, L. C. (1986). Editorial. Psicologia & Sociedade , 1(1)., não paginado). Contarei um pouco sobre mim, através de minhas lembranças, na voz de muitos atores. São histórias que se cruzam, poesias, núpcias. Cada lembrança, um mundo. Não sou passado que passou. A cada instante, atualizo um novo presente. Eu vivo, eu sinto, pulsante e alegre, eu grito.

Pois bem, neste meu primeiro ano, ainda em 1986, muitas coisas aconteceram. Sob o corpo de minha memória, foram gravadas lembranças de muitas experiências. No início, minhas primeiras edições foram fruto de transcrições de entrevistas, palestras e mesas redondas dos encontros de Psicologia Social organizados em todo país. Havia belos artigos também, e tudo isso começava a me preencher. Meu corpo e minha memória tornaram-se morada de um outro, um outro plural, plurívoco. Outra voz, outra escrita, outra época, outro pensamento... Se engana quem pensa que minha função é apenas comunicar ou falar de história. Eu tenho vida. Sou vida! Respiro, transpiro, choro, sorrio através desse outro que me faz existir, como ABRAPSO. E foi no ano de 1979 que surgiu a ideia de sua vinda ao mundo. “O histórico da ABRAPSO mostra que a idéia (sic) de criação de uma Associação de Psicologia Social surgiu em novembro de 1979, como decorrência das preocupações e conclusões do ‘I Encontro Brasileiro de Psicologia Social’, realizado em São Paulo” (Bomfim, 1989aBomfim, E. D. M. (1989a). Da idéia de criação à realidade: 10 Anos de ABRAPSO. Psicologia & Sociedade , 3(6), 11-20., p. 11).

Um ano depois, em 1980, ABRAPSO vem ao mundo oficialmente. Seu parto metamorfoseante ocorreu em assembleia, “realizada durante a ‘32a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência’, em julho de 1980, e seus estatutos foram referendados na Assembléia de julho de 1981” (Bomfim, 1989aBomfim, E. D. M. (1989a). Da idéia de criação à realidade: 10 Anos de ABRAPSO. Psicologia & Sociedade , 3(6), 11-20., p. 12). ABRAPSO teve muitos lares, em muitos estados. Em seu primeiro ano de vida, sua primeira presidenta-cuidadora foi Dra. Sílvia T. M. Lane, que a levou para São Paulo. Mudou-se depois para Maringá/PR, sob os cuidados de Ângela Caniato. Recebeu acalento de muita gente. De 1987 a 1989, seu lar passou a ser Belo Horizonte/MG, sob os cuidados de sua presidenta-cuidadora Elisabeth Bomfim. Foi uma fase marcante, rica em afetos, amor e cumplicidade, que subsiste intensamente em mim.

E por falar em Belo Horizonte, no ano de 1989 tivemos ainda o aniversário de 10 anos do movimento que pensou a vinda de ABRAPSO ao mundo. Que bela e marcante comemoração. As lembranças presentes em meu sexto volume fazem uma singela homenagem àqueles que nos deram vida viva. “Na esperança de que nossa associação continue se fortalecendo, dedicamos este número de ‘Psicologia e Sociedade’ a todos que, direta ou indiretamente, têm contribuído para estes DEZ ANOS DE ABRAPSO” (Bomfim, Silva, & Franco, 1989Bomfim, E. D. M, Silva, M. V. & Franco, V. C. (1989). Editorial. Psicologia & Sociedade , 3(6), 07-08., p. 08).

Foi também em 1989 que Elisabeth Bomfim despediu-se da gestão-cuidado de ABRAPSO. A despedida, se assim posso chamar, foi verdadeiramente emocionante. Ainda hoje me emociona! Não consigo narrar estas lembranças sem que lágrimas escorram pelas linhas de meu corpo. Somos gratas a esta mulher de espírito guerreiro, nutrimos carinhoso afeto em nossas memórias. Lembro-me bem das intempéries daquele difícil início, quando Elisabeth nos amparou. Financiou com seus próprios recursos os primeiros meses de cuidado, quando da mudança de ABRAPSO para Minas Gerais, isso tudo para não a deixar perecer, nem a mim. “A inexistência de qualquer verba (os recursos disponíveis seriam todos alocados na publicação do nº 3 da revista “Psicologia e Sociedade”) demandou que a presidente financiasse, pessoalmente, os primeiros meses da gestão” (Bomfim, 1989bBomfim, E. D. M. (1989b). ABRAPSO em Minas: um movimento social, uma gestão. Psicologia & Sociedade , 4(7), 169-179., p. 172).

Aos poucos, as coisas melhoraram. Com Elisabeth, o número de associados cresceu mais de 800%, e muitos núcleos regionais foram criados. Minas Gerais concentrava a maioria das publicações. Minha edição de nº 5Bomfim, E. D. M. (1990). A Psicologia Social da ABRAPSO. Psicologia & Sociedade , 5(8), 219-225. apresentou um percentual de 75% dos artigos de autores mineiros, e em minha edição de nº 6, o número aumentou para 80% (Bomfim, 1989bBomfim, E. D. M. (1989b). ABRAPSO em Minas: um movimento social, uma gestão. Psicologia & Sociedade , 4(7), 169-179.). Também é do núcleo de Minas Gerais que surgem minhas primeiras memórias em torno da esquizoanálise.

Meus volumes mantiveram regularidade até 1992. Nos três anos posteriores, fiquei inativa, mas ABRAPSO continuava a crescer e a crescer. Em 1996, retorno. É ano comemorativo, aniversário de 10 anos de minha transição: de boletim informativo a revista. Dessa metamorfose, preservei meu lindo nome: Psicologia & Sociedade. Meu volume 8, nº 1, p. 03, de 1996, é dedicado a Sílvia Lane, uma das mães de ABRAPSO, minha também! Com ela, realizamos uma entrevista, para preservarmos com ternura em registro. Por esta alegre trajetória e dedicação, meu volume de nº 4, de 1988, também lhe é dedicado. Foi uma forma carinhosa que ABRAPSO e eu encontramos para prestar-lhe homenagens.

Neste momento em que retomamos a edição da revista Psicologia & Sociedade, o Comitê Editorial quer homenageá-la pela longa e fecunda trajetória como cidadã, pensadora, pesquisadora e formadora de numerosas gerações de profissionais, pesquisadores e docentes no Brasil e no exterior. Ao mesmo tempo queremos, na sua pessoa, fazer extensiva essa homenagem a todos os membros fundadores da ABRAPSO cuja iniciativa e anseias fazemos nossos. (Lane, 1996Lane, S. T. M. (1996). Estudos sobre a consciência. Psicologia & Sociedade , 8(2), 95-105., p. 03)

A narrativa desta minha breve história, tão rica e tão bela, é apenas um fragmento de minhas lembranças. Nem todas as memórias podem ser encontradas, nem por mim, nem por ABRAPSO. Em seu site estão disponíveis quase todas as edições de meu devir-revista, pelo menos até 2001. Infelizmente, dois de meus volumes estão faltando: volume 8 nº 2 (1996) e volume 13 nº 1 (2001). Esse período de minha história encontra-se ainda em formato Word, e, em quase todos os meus volumes, há erros de grafia, nada de muito grave, com boa interpretação se consegue decifrar.

A situação de quando eu era boletim e levava informações sobre os rumos da Psicologia Social para todo canto do país é um pouco mais delicada. Podemos dividir em dois momentos esse período de minha existência: até 1986, quando parte de mim se tornou revista, e a partir de 1987, quando a outra parte, que subsistiu, foi batizada Boletim da ABRAPSO. Tenho vaga lembrança de como aconteceu: “A partir de 1987, a ABRAPSO iniciou a publicação de um novo boletim informativo, ‘Boletim da ABRAPSO’, que tem mantido sua periodicidade trimestral” (Bomfim, 1989aBomfim, E. D. M. (1989a). Da idéia de criação à realidade: 10 Anos de ABRAPSO. Psicologia & Sociedade , 3(6), 11-20., p. 15). Embora recorde brevemente, não consigo acessar nenhum registro. Eles não se encontram disponíveis para consulta, nem no site da ABRAPSO, nem na plataforma Scielo. Isso me angustia. Confesso sentir um aperto em meu peito quando penso que parte de minha história possa ter se perdido no tempo.

Cartografando a emergência de referências ligadas à esquizoanálise na revista Psicologia & Sociedade

Campo de saber criado por Deleuze e Guattari, a esquizoanálise aparece ao longo da obra O Anti-édipo, publicada em 1972Deleuze, G. & Guattari, F. (1972). O Anti-Édipo. Imago., povoando-a do início ao fim, e é desdobrada na obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1985). Em uma entrevista a Catherine Backès-Clément sobre O Anti-édipo, publicada no livro Conversações (Deleuze, 1992, p. 32Deleuze, G. (1992). Os intercessores. In Conversações (pp. 151-168). Editora 34.), Deleuze afirma: “propomos uma esquizoanálise que se opõe a psicanálise”. Menciona como principais limitações da psicanálise: reduzir-se às estruturas edipianas, por isso não atinge as máquinas desejantes; restringir-se aos investimentos familiares, por isso não alcança os investimentos sociais da libido. Para ele, essas limitações estão ligadas à pertença da psicanálise à sociedade capitalista e ao desconhecimento do fundo esquizofrênico. Nessa mesma entrevista, Guattari esclarece que a obra anuncia o desenvolvimento de um fascismo generalizado e que é preciso “montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos do desejo” para que o desejo não continue a ser manipulado “pelas forças de opressão e repressão” (Deleuze & Guattari, 1992Deleuze, G. (1992). Os intercessores. In Conversações (pp. 151-168). Editora 34., p. 29). Juntos, afirmam que a “esquizoanálise tem um único objetivo, que a máquina revolucionária, a máquina artística, a máquina analítica se tornem peças e engrenagens umas das outras... É isto que nos interessa: a esquize revolucionária por oposição ao significante despótico” (Deleuze & Guattari, 1992Deleuze, G. (1992). Os intercessores. In Conversações (pp. 151-168). Editora 34., p. 36)

Ao analisar a proposta de Deleuze e Guattari em O Anti-édipo, Baremblitt (2010Baremblitt, G. (2010). Introdução à esquizoanálise. Biblioteca da Fundação Gregório Baremblitt/Instituto Felix Guattari. (Coleção Esquizoanálise e Esquizodrama)) a qualifica como: uma filosofia, no sentido de compor uma estética e uma ética da existência; uma disciplina científica ao ser aplicável de modo singular, possibilitando a composição de novos dispositivos para transformar o mundo e a vida; uma proposta micropolítica também, constituindo-se máquina intensiva que faz vibrar quem dela se aproxima, indo além das ideias e palavras, passando pelos afetos. Desse modo, podemos considerar a esquizoanálise como uma leitura do mundo, “um saber que tem por objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a diversificação, a potencialização da vida” (Baremblitt, 2010Baremblitt, G. (2010). Introdução à esquizoanálise. Biblioteca da Fundação Gregório Baremblitt/Instituto Felix Guattari. (Coleção Esquizoanálise e Esquizodrama), p. 15).

Importante destacar que a prática da esquizoanálise compõe-se de três tarefas fundamentais, uma negativa e duas positivas: (a) raspagem - tarefa negativa que implica a “demolição das entidades de superfície de registro-controle que afetam ... o território em que se movem os agentes implicados” (Baremblitt, 2010Baremblitt, G. (2010). Introdução à esquizoanálise. Biblioteca da Fundação Gregório Baremblitt/Instituto Felix Guattari. (Coleção Esquizoanálise e Esquizodrama), p. 113), de modo a desconstruir estruturas bloqueadoras do desejo na esfera psíquica ou social e a desterritorializar condutas instituídas (Hur & Viana, 2016 Hur, Domênico Uhng & Viana, Douglas Alves (2016). Práticas grupais na esquizoanálise: cartografia, oficina e esquizodrama. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 68(1), 111-125.); (b) cartografia - conduz ao mapeamento e à compreensão dos agenciamentos e do funcionamento das máquinas psicossociais (sociais, técnicas e psíquicas) implicadas nos processos em curso (Hur & Viana, 2016); (c) produção - objetiva a conexão dos investimentos libidinais aos agenciamentos sociais, de modo a ligar o desejo ao meio, permitindo fluxo entre interno e externo.

Nosso movimento nesta pesquisa é o de cartografar como esse campo de saber aparece nas publicações da revista Psicologia & Sociedade. Assim, iniciamos a partilha daquilo que de Deleuze e Guattari e/ou da esquizoanálise fomos encontrando e colhendo em nosso passeio-esquizo. São 18 trabalhos, intensidades com suas idiossincrasias, e que não estão só, nunca estiveram. Nesse percurso, a primeira autora a fazer referência a Deleuze e Guattari na revista Psicologia & Sociedade foi Silvia Lane (1986Lane, S. T. M. (1986). Psicanálise ou marxismo: dilema da psicologia social? Psicologia & Sociedade , 1(2), 01-05.), ao mencionar a leitura crítica do inconsciente freudiano que Deleuze e Guattari estabelecem. No ano seguinte, Patrícia Fernandes (1987Fernandes, P. M. (1987). Última hora. Psicologia & Sociedade , 3(3), 48-50.), aluna da UFMG, publica um poema, citando Guattari:

Guattari não me deixa só. Localizo minha ação. Ela é micropolítica. Certas vezes desprezada pelos de fora, outras pouco reconhecida por mim. Somos muito pretensiosos. Ainda vivemos adolescentes, mudar em um mês ... Prá onde?

A música, desejo em múltiplas formas: gestual, verbal, corporal (Guattari). Diria o mesmo para a dança, performance, moda, vídeos etc. “Discos, livros, filmes a mancheia. Que deixem, que digam, que pensem, que falem” Caetano. (Fernandes, 1987Fernandes, P. M. (1987). Última hora. Psicologia & Sociedade , 3(3), 48-50., p. 50)

Nesse mesmo ano, Simone Fonseca (1987Fonseca, S. (1987). De uma esquisita arte, parte uma esquizo análise. Psicologia & Sociedade , 3(3), 51-53.), também aluna da UFMG, publica outro poema, inspirado na esquizoanálise:

A esquizoanálise caminha ao andar, pois, traça as cartografias do desejo, e sua prática é tanto uma aplicação como uma inspiração da teoria.

Esta prática só tomará sentido em relação a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares, que possibilitarão mudar a realidade sócio-ecológica-humana. (1987Fonseca, S. (1987). De uma esquisita arte, parte uma esquizo análise. Psicologia & Sociedade , 3(3), 51-53., p. 51)

Em 1988, Maria Regina Almeida (1988Almeida, M. R. D. D. G. (1988). Inferências no Campo da Intervenção. Psicologia & Sociedade, 3(4), 41-43.), Professora da UFMG, no seu trabalho em favelários de BH, utiliza as contribuições de Guattari e seus conceitos de transversalidade, grupo-sujeito, grupo-sujeitado como aporte na análise da realidade e de produção de novos modos de singularização coletivas. Já em 1989, Marisa Tejera (1989Tejera, M. E. S. (1989). A Questão do Coletivo. Psicologia & Sociedade , 3(6), 81-88.) pensa o coletivo a partir das considerações de Alain Badiou e o conceito de transversalidade institucional aparece como tímida citação. Genaro Ieno (1989Ione, G. (1989). Psicologia e movimentos populares: algumas possibilidades de aproximação. Psicologia & Sociedade , 4(7), 108-116., p. 110), ao discutir sobre movimentos populares, faz breve referência a uma passagem de Deleuze no texto Os intelectuais e o poder, do livro de Michel Foucault Microfísica do Poder: “Quem fala e age? Sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age”.

Na década de 90 surgem outros autores que referenciam a esquizoanálise. Lizainny Queiroz (1990Queiroz, L. A. A. (1990). Estudo do favelário belorizontino - reflexões de um trabalho. Psicologia & Sociedade , 5(8), 119-126.) realiza reflexão teórica sobre a favela Acaba Mundo, situada em Belo Horizonte, tendo como base para a discussão as contribuições da Análise Institucional (AI) de René Lourau e Georges Lapassade. Em diálogo com os dois primeiros, aparecem os conceitos de Guattari: transversalidade, grupo sujeito e grupo sujeitado. A referência é do livro Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. Em 1992, Ronald Arendt (Arendt, 1992Arendt, R. J. J. (1992). O Conceito de Comunidade e as Práticas Psicossociais. Psicologia & Sociedade , 7(10), 2-14.) analisa resultados de uma pesquisa junto a um sindicato de metalúrgicos, com base na esquizoanálise, situando essa como ramo da AI. Milton Athayde (1992Athayde, M. (1992). Trabalho e Psicologia Social. Psicologia & Sociedade , 7(10), 110-114.), ao fazer uma crítica ao marxismo, busca pensar novas alternativas no campo da Psicologia Social através de uma “nova aliança” entre alguns pensadores, como Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Deleuze e Guattari e Antônio Negri. E, por fim, Heliana Rodrigues (1992Rodrigues, H. C. (1992). O Espaço (limitado?) das práticas e intervenções em Instituições. Psicologia & Sociedade , 7(10), 30-33.), com uma crítica em torno da atuação da Psicologia e seu lugar de especialista que acaba por desconsiderar e roubar o saber e a possibilidade de reinvenção dos sujeitos. Há citação de Deleuze e sua Lógica do Sentido, e de Deleuze e Foucault em Os Intelectuais e o Poder.

Mary Rangel (1997Rangel, M. (1997). Aplicações da teoria de representação social à pesquisa na educação. Psicologia & Sociedade , 9(1/2), 139-162.) faz uma análise de algumas dissertações no campo da educação, no período de 1990 a 1995, tendo como um dos objetivos mapear a recorrência de autores, elementos teóricos e metodológicos. Deleuze e Suely Rolnik aparecem neste mapeamento. No ano de 1998Deleuze, G. (1998). Uma conversa, o que é, para que serve? In G. Deleuze & C. Parnet (Orgs.), Diálogos (pp. 09-29). Escuta., a revista publica cinco novos artigos que citam autores ligados à esquizoanálise: Bader Sawaia (1998Sawaia, B. (1998). A crítica ético-epistemológica da psicologia social pela questão do sujeito. Psicologia & Sociedade , 10(2), 117-136.) e Helenira Novo (1998Novo, H. A. (1998). A dimensão ético-afetiva das práticas sociais. Psicologia & Sociedade , 10(2), 95-104.) referenciam Deleuze e seu livro Espinoza e os signos para dar sustentação às discussões em torno do paradigma ético-político; Maria Helena Coelho (1998Coelho, M. H. M. (1998). Machado de Assis e o poder. Psicologia & Sociedade. 10(2), 19-31.) olha para três obras de Machado de Assis, O Alienista, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, e as relações de poder ali presentes, tendo como ponto de partida o referencial teórico de Foucault, havendo citação do trabalho de Guattari As três ecologias; já José Rogério Lopes (1998Lopes, J. R. (1998). O sujeito e seus modos de subjetivação. Psicologia & Sociedade , 10(2), 53-75.) faz referência a Guattari em duas de suas obras, Micropolíticas do desejo e Caosmose, para tratar do sujeito enquanto processo e do conceito de território existencial enquanto conjunto de forças a compor processos de subjetivação.

Em 2000, Fernando Cantelmo (2000Cantelmo, F. (2000). Estradeiros modernos ou capitalistas incondicionais? O cotidiano hippie e suas interfaces. Psicologia & Sociedade , 12(1/2), 65-89.) analisa os movimentos hippies e os processos de singularização que subsistem no final dos anos 1990, tendo em vista que tais processos, de acordo com o autor, dariam uma falsa ideia de fuga do modelo de produção de subjetividades da sociedade de controle, ao mesmo tempo que não conseguiriam escapar da soberania do mercado e da produção de modos de subjetivação capitalísticos. E em 2001, Carmem Grisci (2001Grisci, C. L. I. (2001). Tempo Modernos, Tempos Mutantes: Produção de subjetividade na reestruturação do Trabalho Bancário. Psicologia & Sociedade , 13(1), 75-92.) realiza uma pesquisa com funcionários bancários em três agências bancárias de pequeno, médio e grande porte, de Porto Alegre/RS. A autora estabelece diálogo com autores como David Harvey, Thompson, Pierre Lévy, Paul Virilio e outros, situando Deleuze, Guattari, Rolnik e os conceitos de rizoma, subjetividade capitalística e maquínica, processos de subjetivação, territorialização, desterritorialização, reterritorialização e ritornelo, para entender a produção de subjetividades na relação com o trabalho. Já Angela Andrade (2001Andrade, A. N. (2001). Formação em Psicologia: hierarquia versus antropofagia. Psicologia & Sociedade , 13(1), 29-45.) invoca Guattari e Rolnik para tratar dos processos de produção da subjetividade moderna e da formação profissional em Psicologia de dois grupos de estudantes: franceses e brasileiros.

Pelo caminho percorrido, podemos identificar movimentos que se iniciam lentamente por meio de citações de Deleuze e Guattari, a partir de 1986, como menção à leitura crítica dos autores ao inconsciente freudiano, ampliam-se para a sua referência em dois poemas intensivos, seguem via convocação de conceitos, alguns mencionados brevemente, outros constituindo ferramenta de análise de acontecimentos decorrentes de realização de pesquisas. Os próprios conceitos em sua emergência nas publicações conectam-se em forma de rizoma, ganham fluxo e passam a nos afetar: micropolítica, cartografia do desejo, transversalidade, transversalidade institucional, grupo-sujeito e grupo-sujeitado, territorialização - desterritorialização - reterritorialização, processos de subjetivação, modos de subjetivação capitalístico, modos de singularização coletivas, revoluções moleculares, ritornelo, multiplicidade, reinvenção dos sujeitos. Há todo um conjunto de conceitos que vão produzindo outros universos de referência; encaminham novos problemas e produzem tensionamentos outros em relação ao real. Nesse sentido, os conceitos vão ganhando consistência não apenas no modo como se produz determinado entendimento sobre o mundo, isto é, a sua representação. Eles têm a potência de produzir mundos.

Em conexão com a cartografia realizada, é interessante situar que a esquizoanálise passa a atuar na psicologia brasileira no fim da década de 70, e na década de 80, por meio de uma crítica às práticas e políticas instituídas. Suely Rolnik, que trabalhou com Deleuze e Guattari em Paris, e o psiquiatra argentino Gregório Baremblitt mediaram esse processo de propagação da esquizoanálise na psicologia brasileira (Hur, 2013Hur, D. U. (2013) Esquizoanálise e política: proposições para a Psicologia Crítica no Brasil. Teoría y crítica de la psicología 3, 264-280. http://www.teocripsi.com/ojs/index.php/TCP/article/view/111/95
http://www.teocripsi.com/ojs/index.php/T...
). A partir da cartografia realizada é possível vislumbrar como aconteceu essa inserção com relação à psicologia social via publicação na revista Psicologia & Sociedade neste primeiro momento que envolve o período de 1987 a 2001.

Considerações finais

Em nosso passeio-esquizo, mais que história, buscamos construir um mapa. Nesse sentido, a noção de pesquisa bibliográfica passou a ser pensada não mais como um modo de representação, mas uma experimentação-intervenção por meio da cartografia. Tudo que mencionamos emergiu do processo. Não buscamos entender nem investigar a história como um já-aí, isso porque a riqueza da cartografia reside na potência do produzir. É isso fabricar para si um Corpo Sem Órgão: produzir e fazer passar intensidades (Deleuze & Guattari, 2012bDeleuze, G. & Guattari, F. (2012b). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia vol. 4 (2ª ed.). Editora 34.).

Se tínhamos qualquer objetivo, ele consistiu exatamente nisso. Não era de forma alguma o fim, mas o meio4 4 Barros e Kastrup (2009, p. 58) discutem que “o cartógrafo se encontra sempre na situação paradoxal de começar pelo meio, entre pulsações. Isso acontece não apenas porque o momento presente carrega uma história anterior, mas também porque o próprio território presente é portador de uma espessura processual”. , processo que possibilitou a expressão da história da revista Psicologia & Sociedade narrada através de seus afetos, memórias e atores. Compreendemos que sua história foi forjada em meio a muita luta, cujo empenho congregou muitos atores, constituindo tramas cujos laços se cruzam no nascimento da ABRAPSO e se intensificam para muitas direções. A sua escrita comporta inicialmente a produção de memórias dos encontros da Psicologia Social pelo Brasil: entrevistas, palestras, mesas-redondas. Depois, cada vez mais amplia-se com a publicação de artigos recebidos de muitos diferentes lugares.

Também foi pelo meio que iniciamos a cartografia das referências ligadas a Deleuze e Guattari e/ou à esquizoanálise publicadas na revista, no período de 1986 até 2001. Cabe ressaltar que, entre os trabalhos cartografados ao longo desta viagem, a utilização de tal referencial esteve vinculada mais a uma tentativa de mapear movimentos de sua emergência na revista do que acompanhar como os conceitos seriam postos em funcionamento nos contextos de atuação para efetuarem transformações micropolíticas. Nessa direção, observamos que a esquizoanálise marca presença na psicologia brasileira desde o fim da década de 1970 e emerge em sua primeira publicação da revista Psicologia & Sociedade em 1987, constituindo fluxos de presença, com movimentos mais ou menos intensos, por meio de citações de Deleuze e Guattari, de conceitos cunhados por eles e de suas obras, que se vinculam a textos compostos por discussões contemporâneas, pesquisas e poemas.

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  • Tejera, M. E. S. (1989). A Questão do Coletivo. Psicologia & Sociedade , 3(6), 81-88.

Notas

  • 1
    Associação Brasileira de Psicologia Social.
  • 2
    Deleuze e Guattari (2012aDeleuze, G. & Guattari, F. (2012a). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia vol. 3 (2ª ed.). Editora 34., p. 52) definem hecceidades como acontecimentos: “acontecimentos cuja individuação não passa por uma forma e não se faz por um sujeito.
  • 3
    Para mais informações sobre cartografia por meio de pesquisa bibliográfica, ver Donhauser e Bonamigo (2019Donhauser, L. & Bonamigo, I. S. (2019). Cartografando a pesquisa bibliográfica: tessitura de um método interventivo e participativo. In Pensar, Fazer e escrever: o PesquisarCOM como política de pesquisa em Psicologia (pp. 75-104). Argos.).
  • 4
    Barros e Kastrup (2009Passos, E. & Benevides, R. (2009). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina., p. 58) discutem que “o cartógrafo se encontra sempre na situação paradoxal de começar pelo meio, entre pulsações. Isso acontece não apenas porque o momento presente carrega uma história anterior, mas também porque o próprio território presente é portador de uma espessura processual”.
  • Financiamento

    Não houve financiamento
  • Consentimento de uso de imagem

    Não se aplica
  • Aprovação, ética e consentimento

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2022
  • Revisado
    25 Mar 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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