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DISPOSITIVO DE RACIALIDADE E SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO NEGRA: ALGUMAS REFLEXÕES POLÍTICAS E PSICANALÍTICAS

DISPOSITIVO DE RACIALIDAD Y SALUD MENTAL DE LA POBLACIÓN NEGRA: ALGUNAS REFLEXIONES POLÍTICAS Y PSICOANALÍTICAS

DEVICE OF RACIALITY AND MENTAL HEALTH OF THE BLACK POPULATION: SOME POLITICAL AND PSYCHOANALYTIC REFLECTIONS

Resumo

Neste texto pretendemos refletir, por meio do entrelaçamento entre o conceito de dispositivo de racialidade (Carneiro, 2023) - como elemento estruturante do campo social - e a constituição do sujeito - tal como formulada na teoria lacaniana - sobre a formação da subjetividade brasileira e, mais especificamente, a produção de adoecimento e sofrimento psíquico da população negra. Ao lado disso, intentaremos apontar o conceito de ética radical da escuta (Silva, 2019) e o conceito de cuidado de si (na perspectiva de Carneiro, 2023, a partir de Foucault, 2002) como ferramentas e estratégias de enfrentamento às dores subjetivas produzidas pelo racismo e pela desigualdade socioeconômica. Por essa via, pretendemos sublinhar a importância de se pensar a política pública de saúde mental levando em consideração a centralidade da questão racial, de gênero, de classe e de território na organização social do Brasil e na produção de subjetividade, de sofrimentos, mas também de alternativas e soluções.

Palavras-chave:
Racismo; Sofrimento; Saúde Mental; População Negra; Escuta

Resumén

En este texto pretendemos reflexionar, a través del entrelazamiento entre el concepto de dispositivo de racialidad (Carneiro, 2023) - como elemento estructurante del campo social - y la constitución del sujeto - tal como lo formula la teoría lacaniana - sobre la formación del brasileño subjetividad y, más específicamente, la producción de enfermedad y sufrimiento psicológico entre la población negra. Paralelamente, intentaremos señalar el concepto de ética radical de la escucha (Silva, 2019) y el concepto de autocuidado (desde la perspectiva de Carneiro [2023], basado en Foucault [2002]) como herramientas y estrategias para afrontamiento del dolor sentimientos subjetivos producidos por el racismo y la desigualdad socioeconómica. De esta manera, pretendemos resaltar la importancia de pensar la política pública de salud mental teniendo en cuenta la centralidad de las cuestiones raciales, de género, de clase y territoriales en la organización social de Brasil y en la producción de subjetividad, de sufrimiento, pero también de alternativas y soluciones.

Palabras-clave:
Racismo; Sufrimiento; Salud mental; Población negra; Escucha

Abstract

Through the concept of racial device (Carneiro, 2023), - as a structuring element of the social field - and the constitution of the subject - as formulated in Lacanian theory - we intend to reflect in this text on the formation of Brazilian subjectivity and, more specifically, on the production of illness and psychological suffering among the black population. In parallel, we will try to point out the concept of the radical ethics of listening (Silva, 2019) and the concept of self-care (from the perspective of Carneiro, 2023, based on Foucault, 2002) as tools and strategies for coping with the subjective feelings produced by racism and socio-economic inequality. In this way, we intend to highlight the importance of thinking about public mental health policies in light of the centrality of issues of race, gender, class, and territory in the social organization of Brazil and in the production of subjectivity, suffering, but also alternatives and solutions.

Keywords:
Racism; Suffering; Mental Health; Black population; Listening

A produção do sofrimento e seus entornos: Notas introdutórias

Nos últimos anos temos observado, no Brasil e no mundo, o aumento - cada vez mais alarmante - dos índices de adoecimento psíquico da população. É notável, nesse panorama, que o gênero, a raça, a classe e o território são categorias diferenciadoras importantes entre quem adoece mais ou menos em nosso país e em outras partes do globo. Esses dados não estão dissociados do processo de aprofundamento das crises oriundas do sistema capitalista e racista no qual vivemos.

Ao desumanizar pessoas, precarizar vidas, mercantilizar a saúde, envenenar os alimentos, minar as possibilidades de cultura, de arte, inferiorizar a importância dos equipamentos públicos de convivência e sociabilidade, destruir os direitos trabalhistas, tornar ainda mais insalubre as condições de emprego, de moradia e de educação, os mecanismos do capital, associados ao racismo estrutural, forjaram marcas traumáticas e seguem produzindo sofrimento, desamparo, silenciamento, invisibilização e adoecimento, especialmente das camadas mais pretas e pobres da população.

Ao contrário do que pode querer o discurso neoliberal que, nos últimos anos, tem divulgado a ideia de que tanto o sofrimento quanto seu tratamento seriam de foro exclusivamente individual, íntimo, privado, aqui a nossa aposta é de que sua produção é também política, social e, portanto, não seria possível a construção de uma saída - significativa de fato- que não seja por uma via coletiva, comum, pública, universal, para todas as pessoas.

Promoção de saúde mental não se faz exclusivamente dentro das quatros paredes de um consultório privado, mas sim - e fundamentalmente - investindo na consolidação de políticas públicas que garantam direitos básicos à toda população. Não existe, nesse sentido, política de saúde mental para a população negra fora do processo de ampliação e consolidação do Sistema Único de Saúde. Ou, ainda, não há como prover condições de saúde mental para a população negra e pobre enquanto não pudermos criar condições de enfrentamento aos mecanismos do capital e do racismo estrutural que adoece e mata brasileiras/os/es todos os dias.

Por isso, ao tratarmos de saúde mental da população negra, pobre e periférica no Brasil, entendemos ser crucial incluir também reflexões sobre as condições estruturais de vida e, portanto, a manutenção das políticas públicas que garantem o acesso aos direitos básicos de moradia, renda, acesso à educação, saneamento básico, alimentação digna e de qualidade. As estratégias de promoção de saúde mental voltadas para a população negra e pobre só faz sentido quando estão associadas às políticas que garantem os direitos básicos de cidadania a essa população. Não é possível pensar em manutenção de saúde mental sem casa, sem comida, sem condições dignas de existência. Nesse sentido, as iniciativas de promoção de saúde mental precisam estar fundamentalmente articuladas à luta e à mobilização política em prol de justiça social.

Com isso, nos parece importante salientar que o presente trabalho se insere num movimento que vem ganhando maiores dimensões nos últimos anos, conduzido pelos movimentos sociais e populares, pelo movimento negro brasileiro, por intelectuais negras/os/es e periféricas/os, cujo objetivo é pautar a centralidade do debate racial articulado ao recorte de classe, no processo de construção de uma sociedade mais igualitária e justa. Mais especificamente, no campo da saúde mental, desde o movimento da reforma psiquiátrica brasileira e da construção cotidiana da luta antimanicomial que vai acumulando saberes e aprofundando reflexões nessa mesma direção.

Ao mesmo tempo, entendemos que esse movimento se posiciona contra uma outra narrativa, apoiada no aparato neoliberal capitalista, que, por sua vez, argumenta em favor da privatização dos serviços públicos de saúde. Ademais, esse aparato sustenta também em uma concepção individualizante das subjetividades e psicologizante dos sofrimentos, em favorecimento de estratégias que visam soluções pontuais e superficiais para uma problemática que é histórica e estrutural.

Ao lado disso, também acreditamos ser importante pontuar que dentro do contexto das reflexões e estudos étnico-raciais brasileiros, em especial daqueles que se dedicam a discutir o campo da saúde mental da população negra, há tendências diversas que, nem sempre, se direcionam ao mesmo projeto político. Nesse sentido, pensamos ser fundamental destacar que estamos filiadas a um entendimento de que qualquer análise da conjuntura brasileira precisa levar em consideração as categorias de raça e classe de forma não dissociada, compreendendo as particularidades históricas da formação do nosso país e seus desdobramentos contemporâneos em nossa dinâmica e organização social, política, econômica e territorial. Com isso, a discussão de racialidade que aqui faremos não se furtará de incluir a dimensão econômica.

Fazemos aqui essa marcação pois compreendemos que as condições de vida e saúde mental do nosso povo não irá avançar, concretamente, sem progressos nas discussões econômicas ou, mais diretamente, sem rompermos com um sistema que sempre irá se movimentar para que essa camada da população esteja sob dominação e exploração.

Nesse sentido, não acreditamos que garantiremos condições de saúde mental e vida digna à população negra permitindo a circulação de algumas poucas figuras negras nos altos escalões ou mesmo autorizando que essas mesmas poucas pessoas façam parte de uma elite econômica. Nesse sentido, nosso projeto não é, em última instância, sermos englobas/os/es e aceitas/os/es pelos mecanismos de um sistema capitalista que seguirá privilegiando poucas/os e matando os nossos. A permanência de uma sociedade dividida em classes não nos contempla. Para nós, o único projeto político que faz sentido é aquele que almeja e constrói uma emancipação coletiva. Ou ainda, não se promove saúde mental da população negra inserindo algumas pessoas pretas no topo explorador da pirâmide social. Portanto, essa não será aqui nossa reivindicação ou direção propositiva.

Da mesma forma, também não acreditamos que será unicamente pela via de uma reconexão com nossas origens ou descendências ancestrais africanas que solucionaremos as atuais mazelas do nosso povo no Brasil. Entendemos que se faz urgente e importante reconhecermos nossas histórias passadas e nossas raízes, porém, esse movimento de forma isolada não irá garantir que a população negra brasileira não siga morrendo nas periferias. Não irá garantir nosso acesso aos direitos sociais e às políticas públicas para uma vida digna. Não irá garantir, tampouco, o desmantelamento das estratégias capitalistas de exploração dos nossos corpos e desumanização do nosso povo. Enfrentamos hoje uma realidade que reflete as consequências de uma sociedade construída a partir de uma intensa desigualdade socioeconômica, na qual a população negra figura, majoritariamente, na base explorada e massacrada da pirâmide. Portanto, promover saúde mental para o povo preto é, também, uma luta por igualdade e justiça social. E não só por representatividade ou reparação narrativa (ainda que reconheçamos, sem qualquer demérito, a importância de lutarmos por ambas).

Partindo desses pressupostos, este texto intentará refletir sobre as marcas subjetivas do racismo e o adoecimento psíquico causado por elas, bem como sobre as possíveis formas de atravessamento, superação e reparação desses mesmos processos.

Faremos essa reflexão nos baseando no arcabouço teórico presente na tese de doutoramento de Sueli Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.), especialmente no conceito de dispositivo de racialidade, articulando-o à teoria lacaniana de constituição do sujeito, dando ênfase ao trabalho feito pelo autor com a figura topológica da Banda de Moebius. Tomando esse caminho teórico-conceitual enquanto baliza metodológica, pretendemos oferecer elementos que nos deem condições de aprofundar e sustentar uma análise menos individualizante da subjetividade e das questões oriundas à saúde mental da população negra brasileira.

O dispositivo de racialidade como elemento estruturador do tecido social e o sofrimento produzido pelo racismo

Na tese de doutorado defendida em 2005, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e publicada em 2023, com o título A construção do outro como não ser como fundamento do ser, Sueli Carneiro estabelece o conceito de dispositivo de racialidade. A ideia se desdobra do conceito de dispositivo de Michel Foucault (2002Foucault, M. (2002). Em defesa da sociedade: curso no Collége de France. Martins Fontes.) e do entendimento da autora de que

as relações raciais no Brasil ... produz e articula poderes, saberes e modos de subjetivação. Preliminarmente a racialidade é aqui compreendida como uma noção relacional que corresponde a uma dimensão social, que emerge da interação de grupos racialmente demarcados sob os quais pesam concepções históricas e culturalmente construídas acerca da diversidade humana. Disso decorre que ser branco e ser negro são consideradas polaridades que encerram, respectivamente, valores culturais, privilégios e prejuízos decorrentes do pertencimento a cada um dos polos das racialidades. (Carneiro, 2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar., pp. 22-23)

Nesse sentido, o dispositivo de racialidade seria um elemento presente de forma estruturante nas relações. E a existência de um dispositivo (esse e qualquer outro) instaura uma divisão no campo ontológico, ou seja, a partir de sua prática passa a existir um “dentro” e um “fora”, ou ainda, “seria a constituição de uma nova unidade em cujo núcleo se aloja uma nova identidade padronizada e, fora dele, uma exterioridade oposta, mas essencial para a afirmação daquela identidade nuclear” (Carneiro, 2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar., p. 28).

Poderíamos dizer, por uma perspectiva psicanalítica, que o dispositivo de racialidade regula, organiza, estrutura também a relação do sujeito com o Outro, deixando nela marcas de diferenciação, produzindo uma “dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator de identificação do normal, e a brancura será sua representação.” (Carneiro, 2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar., p. 31).

O dispositivo de racialidade, com isso, define o desejável e o indesejável, o lugar simbólico a ser ocupado por cada pessoa, a depender da cor da sua pele. Em termos psicanalíticos, poderíamos pensar que o dispositivo de racialidade influi na posição ocupada pelo sujeito no desejo do Outro e, por conseguinte, participa de todos os desdobramentos subjetivos que essa divisão pode produzir.

Isso significa que “o dispositivo de racialidade, ao demarcar a humanidade como sinônimo de brancura, irá redefinir as demais dimensões humanas e hierarquizá-las de acordo com a proximidade ou o distanciamento desse padrão.” (Carneiro, 2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar., pp. 31-32). Isso, consequentemente, produzirá naquelas pessoas não-brancas - ou fora do padrão ideal de brancura - marcas subjetivas que podem vir a se revelar como sofrimento psíquico que, por sua vez, podem ganhar contornos como: sentimentos de inferioridade, de baixa autoestima, de uma autoimagem fragilizada, inseguranças, auto rebaixamento, sobrecargas emocionais advindas das intensas tentativas de agradar ao outro, auto cobranças rígidas e impetuosas, constante sensação de exaustão e esgotamento advindo de movimentos perfeccionistas... e essa lista poderia continuar se desdobrando.

Sendo o dispositivo de racialidade um composto estruturante da tessitura social na qual nos constituímos enquanto sujeitos, podemos também inferir que esse elemento incidirá naquilo que é a produção dos nossos sintomas, traumas e sofrimentos, já que a divisão que a instauração desse dispositivo acarreta é também produtora de marcas subjetivas - benéficas ou prejudiciais - das quais ninguém, brancos e pretos, está ileso.

Porém, no contexto brasileiro, o racismo estrutural está constantemente escamoteado. Ou, pelo menos, sendo alvo de tentativas deliberadas de escamoteamento. Vivemos os efeitos do que se denominou mito da democracia racial que, como nos afirma Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.), é o “discurso que molda as relações raciais” (p. 50) no Brasil. Para a autora, ele cumpre a função estratégica de ser “apaziguador das tensões étnico-raciais” (p. 50). Nesse sentido, podemos refletir que esse projeto político que se mantém, se sustenta e, por isso, depende da imagem oriunda da suposição de que estamos em um país racialmente democrático é o mesmo projeto que também precisa silenciar e invisibilizar as diferenças econômicas e sociais existentes, os traumas, as feridas e as dores negras.

Mais ainda do que calar, o projeto hegemônico capitalista e racista de poder lança mão da morte como política. Como nos alerta Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.), “o biopoder aciona o dispositivo de racialidade para determinar quem deve viver e quem deve morrer” (p. 65). O genocídio da população negra em curso no Brasil não se restringe à morte dos corpos negros, mas alcança também a morte das almas, dos sonhos, da esperança, do desejo de viver. O adoecimento mental da população negra brasileira associado, principalmente, à precarização do Sistema Único de Saúde (que impede que o sofrimento seja acolhido, acompanhado, tratado) é também parte importante e necessária desse projeto de morte. O sofrimento advindo da pobreza, do racismo, das desigualdades que precarizam a vida compõe uma estratégia de dominação, exploração e manutenção do poder que pretende privilegiar alguns poucos produzindo lucro e mercantilizando a vida e a saúde.

Assim, nos parece fundamental evidenciar a centralidade do dispositivo de racialidade na configuração, organização e estruturação das relações sociais no Brasil. Pois, a partir dessa constatação de Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.) podemos passar a discutir a teoria da constituição do sujeito lacaniana que aqui nos será útil.

A constituição do sujeito e as tramas raciais

Desde o famoso aforismo lacaniano que afirma que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (Lacan, ([1972-73] 1985bLacan, Jacques (1985b). O Seminário. Livro 20: Mais ainda. Zahar. (Original publicado em 1972-1973)., p. 22) já podemos inferir a importância do campo do Outro (ou da linguagem) para a constituição do sujeito. É na relação com o Outro que o sujeito adentra o universo simbólico.

O grande Outro (grafado com a inicial maiúscula) tem diversas acepções na obra lacaniana, mas nos interessa aqui a ideia de Outro como “tesouro dos significantes” (Lacan, [1955-56] 1985aLacan, Jacques (1985a). O Seminário. Livro 3: As psicoses. Zahar. (Original publicado em 1955-1956), p. 17), ou seja, como campo simbólico, atravessado e marcado pelo tempo histórico, pela cultura, pela dimensão sociopolítica, pelos discursos. É desde esse caldo que o sujeito emerge enquanto tal, carregando como seu e íntimo, elementos do que à princípio poderia se dizer externo. Sobre isso, o texto lacaniano afirma que

há aqui uma topologia subjetiva, que repousa inteiramente sobre ... o fato de que pode haver um significante inconsciente. Ele parece bem exterior ao sujeito, mas é uma outra exterioridade que aquele que se evoca quando alguém nos apresenta a alucinação e o delírio como uma perturbação da realidade, pois o sujeito permanece apegado a ela por uma fixação erótica. Temos aqui que conceber o espaço falante como tal. (Lacan, [1955-56] 1985aLacan, Jacques (1985a). O Seminário. Livro 3: As psicoses. Zahar. (Original publicado em 1955-1956), p. 165)

Para falar disso, Lacan usa o neologismo “extimité”, referindo-se ao que é íntimo, interior e, ao mesmo tempo, externo, fora considerando que há algo do Outro que habita aquilo que há de mais íntimo em mim. É devido a essa concepção de sujeito que, na perspectiva lacaniana, a figura topológica que melhor o representa é a Banda de Moebius - obtida a partir da junção de duas extremidades de uma faixa/fita antecedida por uma meia torção de uma dessas pontas, de modo que, ao fim, tem-se uma figura que pode dispor, na mesma superfície, de uma face interna e externa da fita.

A perspectiva que estamos defendendo aqui é essa: de que sujeito e campo social são constitutivos entre si, que estão necessariamente e irreversivelmente imbricados. E essa perspectiva está fundamentada nas próprias premissas da psicanálise. Entendemos que o inconsciente, tal qual pensado por Freud, inclui, em sua concepção, o social. Por isso, na lógica do pensamento psicanalítico, a hipótese que separa o sujeito e o campo social, a nosso ver, não se sustenta, como o próprio Freud afirma em seu texto clássico acerca desta questão:

na vida anímica do indivíduo, o outro conta com total regularidade, como modelo, como objeto, como auxiliar e como inimigo, e por isso, desde o próprio começo, a psicologia individual é simultaneamente psicologia social neste sentido mais lato, mas inteiramente legítimo. (Freud, 1921/1996Freud, S. (1921/1996). Psicologia das massas e análise do eu. Imago. (Original publicado em 1921), p. 67)

Em Psicologia das massas e análise do eu, texto freudiano de onde retiramos o excerto acima, o autor irá se debruçar sobre estudos de Le Bon e McDougall para melhor compreender o funcionamento psicológico das massas. Jacques Lacan, lendo Freud, faz duras críticas ao conceito de massa como formulado pelos antecessores de Sigmund Freud; no entanto, extrai desse raciocínio a temática da identificação. Em seus escritos, Jacques Lacan publica um artigo denominado De nossos antecedentes, no qual expõe seu entendimento acerca do texto freudiano. Ele afirma que

nada há nisso que não se justifique pela tentativa de prevenir os mal-entendidos decorrentes da ideia de que haveria no sujeito seja lá o que for que corresponda a um aparelho - ou, como dizem em outros lugares, a uma função própria - do real. Ora, é a essa miragem que se consagra, na época atual, uma teoria doeuque, por se apoiar no reingresso que Freud assegura a essa instância emAnálise do eu e psicologia das massas, comete um erro, já que não há nesse artigo outra coisa senão a teoria da identificação. (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). De nossos antecedentes. In Escritos (pp. 69-76). Zahar. (Original publicado em 1966), pp. 72-73)

Jacques Lacan toma esse texto como uma bússola importante para o que viria a ser, mais tarde, sua teoria do sujeito, uma vez que, a partir desse artigo de Freud, Lacan localiza o que ele chamaria de traço unário, o traço que antecede o sujeito. Segundo Maya (2016Maya, B. E. (2016). Psicologia das massas: método analógico?Stylus, Rio de Janeiro, 32, 181-190., p. 186, grifos do autor):

é à expressão ‘traço único’ que Lacan se prende para desenvolver a teoria, não apenas da identificação, mas também do sujeito. Esse assunto é a base para continuar o que segue no texto de Freud e que ele chama enamoramento e hipnose, no qual mais claramente se vê a relação entre o que se passa no indivíduo e o que se passa na massa, sem confundir um com a outra.

Na leitura que Lacan fará posteriormente, o texto freudiano que analisa o fenômeno das massas trata do que ele desenvolverá enquanto uma teoria da identificação, que irá se constituir como a base teórica para a conceituação lacaniana de sujeito. Ao seguir o raciocínio lacaniano em seu retorno a Freud, percebemos que “ali, onde Freud fala de massa, Lacan fala de linguagem e de discurso, que seria o que vincula o sujeito ao outro” (Maya, p. 186).

O sujeito se constitui, então, na sua relação com o Outro, tesouro dos significantes, ou seja, com o campo social encarnado ou representado pelo pequeno outro, em que sujeito e Outro não são instâncias que preexistem. É essa compreensão que dá consequência ao próprio pensamento lacaniano, que articula os dois conceitos - sujeito e Outro - de um modo que nos parece insustentável qualquer raciocínio analítico que tome ambos como entidades analisáveis separadamente.

Por isso, embora pareçam homólogos, a intervenção da Psicanálise se dá no individual por efeito do coletivo, que chega por a língua, tomada e transmitida pelas primeiras pessoas com quem se põe em contato a criança, imersa, desde o início, no banho da linguagem, em sua estrutura, e não do geral, que seria a massa; daí que, ao se intervir no individual, toma-se o coletivo também, dado que o traço vem do Outro, dando como resultado um sujeito que não é sem Outro, isto é, de um mais outro articulados. (Maya, p. 187)

Nesse sentido, compreendemos, junto com Lacan, que a Psicanálise se ocupa do social ao ocupar-se do sujeito, pois entendemos que não há sujeito sem Outro; não há sujeito fora do campo da linguagem que é, para o pensamento lacaniano, a dobradiça entre sujeito e Outro. Nesse sentido, a lógica do raciocínio que sustenta a teoria do sujeito lacaniano estaria completamente desmembrada se, como dizíamos no início, isolarmos o sujeito em um tubo de ensaio, fora do mundo, como inicialmente afirmamos ser o movimento feito pelo neoliberalismo. Ou, ainda, por qualquer outra perspectiva psicanalítica ou psicológica que intente compreender o sujeito ou a subjetividade como algo passível de ser isolada de seu entorno, tornando-a algo a-histórica, apolítica ou atemporal.

Se não existe um mundo interno sem um mundo externo, eu sem outro, sujeito fora do laço social, não há forma de sustentar qualquer análise - do psiquismo ou da política - que desconsidere os pilares que estruturam o campo social, os discursos, os lugares, as práticas e as relações como as categorias de classe, de raça, de gênero e de território no contexto brasileiro.

Nessa direção, podemos entender que o conceito de dispositivo de racialidade, cunhado por Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.), nos ajuda a compreender, com riqueza de detalhes, os meandros do funcionamento dessas engrenagens estruturais que produzem esse “caldo” de onde o sujeito irá emergir. O conceito da autora nos apoia ainda no sentido de afirmarmos a impossibilidade lógica de concebermos, psicanaliticamente, o processo de constituição do sujeito ou as próprias formações do inconsciente (como o sintoma) de maneira isolada.

Aproximando o conceito de Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.) da teoria de constituição do sujeito lacaniana, estamos buscando especular a hipótese de que a ideia do dispositivo de racialidade parece se apresentar como um elemento componente e organizador dessa tessitura simbólica que engendra o campo do Outro que, por sua vez, é desde onde o sujeito virá a se constituir.

Se o dispositivo de racialidade instaura, no campo das relações, as balizas que irão organizar e hierarquizar a maneira como esses vínculos se constituem, nos parece factível considerá-lo também um elemento importante que nos ajuda a aprofundar nossa compreensão e análise acerca da constituição do sujeito desde o contexto brasileiro.

Se assim pudermos considerar, por consequência, precisaremos refletir sobre os efeitos do dispositivo de racialidade na constituição psíquica da pessoa negra, em sua formação subjetiva, na produção de seus sintomas e sofrimentos.

Ao mesmo tempo, como também nos afirma Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.) a partir das premissas foucaultianas: “todo dispositivo de poder produz sua própria resistência”. Logo, falar apenas do sofrimento produzido, embora necessário, não é suficiente. Pois, ao mesmo tempo, o dispositivo de racialidade promove também possibilidades de ruptura que, em termos de saúde mental, geram movimentos subjetivos curativos e terapêuticos na direção do autocuidado e da emancipação coletiva.

A ética radical da escuta e o cuidado de si como estratégias de produção de saúde mental e resistência

Sabemos que as linhas da história do nosso país foram costuradas com muito sangue, violência e opressão. Ao mesmo tempo, sabemos também que, por outro lado, sempre existiu resistência, organização e luta. Temos um passado colonial e escravagista, mas temos também um passado potente em formas organizativas e inteligentes estratégias de sobrevivência, de emancipação e de transformação social. Não podemos nunca nos esquecer da sabedoria dos nossos ancestrais que produziram experiências bastante avançadas em termos de propostas mais igualitárias de organização social como o quilombo dos Palmares, o quilombo do Quariterê, ou mesmo de movimentações de resistência e busca por emancipação como a revolta dos Malês, a revolta da Chibata, a conjuração Baiana e tantos outros episódios de luta exemplares para o nosso povo.

Nossa história foi de silenciamento, mas também de gritos. De opressão, mas também de rebeldia. De violência, mas também de contra-ataque. De desterro, mas também de união e mobilização. De feridas abertas, mas também de cura. Pela perspectiva psicanalítica, poderíamos dizer que embora o dispositivo de racialidade nos coloque em posição de objeto do desejo do Outro (ou seja, assujeitados), nossa história mostra que também ocupamos a posição de sujeitos de nosso próprio desejo.

E é por isso que, ao acolher e escutar pessoas negras, o que vem à tona é essa complexidade de sentimentos e afetos. A nossa experiência clínica vem nos ensinando muito sobre um tanto de desdobramentos subjetivos possíveis a partir das histórias, vivências e experiências de mulheres cis e transexuais, negras, pobres, periféricas, brasileiras, em todas as suas pluralidades.

Trabalhamos com a ideia de que o silenciamento e a impossibilidade de escuta, produzidos por efeitos históricos, econômicos e políticos, fixam o sujeito em um lugar de invisibilidade e de inexistência, fora do circuito desejante, objetificando-o ou assujeitando-o e, por isso, uma ética radical da escuta (Silva, 2019Silva, A. C. B. (2019). Por uma utopia para as crianças africanas: A incidência do desejo do outro na posição do sujeito na escola [Tese de Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP].) pode servir como estratégia terapêutica e emancipatória, ao propor uma ação na direção oposta, que pode abrir algum deslocamento em termos de posição subjetiva. Ética essa que, a partir da psicanálise, irá prever como fundamental a consideração do sujeito imerso no campo social, político, cultural de um determinado tempo histórico. Escutando, portanto, de forma advertida no que concerne às marcas subjetivas produzidas pelos recortes de gênero, de classe, de raça e de território.

Assim, é essencial que, enquanto filiados à transmissão psicanalítica, interessados que somos pelo sujeito do inconsciente, não percamos de vista o peso atribuído à historicidade por essa vertente teórica. Parece fundamental que, para seguirmos na trilha da ética psicanalítica, possamos não recortar o sujeito de seu tempo e espaço; ao contrário, que possamos não abdicar do trabalho que advém dessa tentativa de se colocar em uma posição de quem olha o mundo em suas ambiguidades, contradições, indeterminações, conflitos, sustentando as perguntas, as incertezas - enquanto forem necessárias e fizerem sentido -, já que entendimentos e interpretações acachapantes da realidade podem ser violentos e silenciadores daquilo mesmo que, enquanto analistas, nos colocamos a ouvir. (Silva, 2019Silva, A. C. B. (2019). Por uma utopia para as crianças africanas: A incidência do desejo do outro na posição do sujeito na escola [Tese de Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP]., p. 121)

É por isso que o conceito de escuta ganha aqui uma dimensão central. Estamos dando, ao conceito, um estatuto de estratégia de resistência (na clínica e fora dela), diante de um cenário capitalista e racista, que insiste em transformar pessoas negras, pobres e periféricas em objetos, mão de obra explorada, alojando-as na posição de rejeitos, dejetos, silenciando-as e obstaculizando suas possibilidades de dizer-se e de ser no mundo.

A escuta, por isso, é também uma ética e um posicionamento político, que aponta na direção do comprometimento com uma efetiva e profunda transformação social, a qual pode ser entendida como único meio de romper, em definitivo, com essa lógica neoliberal “moedora de gentes” e produtora de adoecimento. Essa acepção do conceito é o que denominamos de ética radical da escuta (Silva, 2019Silva, A. C. B. (2019). Por uma utopia para as crianças africanas: A incidência do desejo do outro na posição do sujeito na escola [Tese de Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP].).

Parece-nos interessante ressaltar que, quando colocamos nossa ênfase na escuta, estamos adotando aqui também uma posição política. Ao afirmarmos que há determinadas situações promovidas por certos modos de organização e dinâmica social que criam uma indisponibilidade do outro para a escuta, ou ainda, que produzem ou fabricam deliberadamente apagamentos e silenciamentos, estamos, ao mesmo tempo, sublinhando que não são as pessoas, ou grupos sociais, ou determinado povo, que deixaram de dizer ou narrar sua história, embora isso também possa ocorrer. Assim, não se trata de um que “dá voz” ao outro, o que viria a contrariar a nossa posição ética, enunciada anteriormente, pois essa formulação se ergue justamente sobre a premissa de que um assume o exercício do poder de dar ao outro uma voz. Tratar-se-ia aqui não de uns que não falam - e, por isso, precisariam de uma voz -, mas de uns que não escutam o que, muitas vezes, já está sendo dito há séculos. A questão é: essa história que se narra, essas memórias coletivas que latejam, encontram espaço de escuta e ressonância no Outro? É nesse sentido que a lógica psicanalítica propõe uma subversão daquilo que pode ser encarado como verdade absoluta, como discurso hegemônico, como uma certa tendência ao pensamento totalitário. Pensamos que uma das principais contribuições que podemos extrair da Psicanálise é justamente essa direção que poderíamos denominar de ética radical da escuta, em que ser escutado produz efeitos naquele que fala. Além disso, a oportunidade de escutar alguém produz ainda a possibilidade de que esse alguém ocupe esse lugar de quem poderá falar e ser ouvido, o que significa dizer que, ao nos colocarmos no lugar de analistas, antes de interpretarmos a relação transferencial ou convidarmos um paciente para a associação livre, estamos, em ato, dizendo ‘eu te escuto’. Esse ato, que inaugurou o paradigma psicanalítico a partir da escuta que Freud pôde fazer de sua paciente histérica, diz respeito à função do psicanalista e do que se espera daquele que deseja ensinar: fazer uma aposta na emergência do sujeito. Desse modo, a escuta se instaura aqui como ato capaz de gerar efeitos de simbolização, de elaboração, de restituição narcísica, oferecendo, por isso, a possibilidade de que se interrompa um circuito de repetição, sofrimento e sintoma. O sujeito, a partir de seu lugar de sujeito, pode dizer de si, ser escutado, reconhecido e, assim, ressignificar, separar, lembrar, esquecer, redizer e narrar sua história, operando deslocamentos importantes em sua posição de sujeito no laço social. (Silva, 2019Silva, A. C. B. (2019). Por uma utopia para as crianças africanas: A incidência do desejo do outro na posição do sujeito na escola [Tese de Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP]., pp. 122-123)

Nesse sentido, estamos apostando que, na clínica, a escuta também pode ser uma ferramenta de luta política emancipatória e transformadora da realidade social na qual estamos inseridas/os/es.

Por isso, acreditamos que a ética radical da escuta (Silva, 2019Silva, A. C. B. (2019). Por uma utopia para as crianças africanas: A incidência do desejo do outro na posição do sujeito na escola [Tese de Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP].) pode ser um elemento, dentro do contexto clínico, impulsionador do que Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.) - refletindo com as assertivas foucaltianas e, depois, indo além delas - pensou sobre o cuidado de si, que, para a autora, “diz respeito à possibilidade da construção de sujeitos coletivos libertos dos processos de subjugação e subalternização” (p. 338) e “se realiza no cuidado do outro, na busca coletiva por emancipação” (p. 338).

Na perspectiva de Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.), assim como dentro da perspectiva psicanalítica nos termos que a trouxemos aqui, sujeito e campo social estão estruturalmente amalgamados, seja na produção de seus sofrimentos e sintomas, seja em suas possibilidades de resistência, cura e transformação. Assim como o sofrimento não tem sua produção vinculada a algo estrita e exclusivamente individual, as saídas dele, os atravessamentos, elaborações, simbolizações, ou ainda, as possibilidades terapêuticas e de cuidado, tampouco são unicamente particulares. Pelo contrário, quando estamos partindo da pressuposição da existência do racismo estrutural no Brasil, estamos apontando que qualquer saída que não seja também a partir da ruptura com essa estrutura, não será saída de fato. Nesse sentido, só haverá real emancipação para todas as pessoas por uma via coletiva.

Considerações finais

Ao longo do presente artigo, discutimos elementos que apontam para a necessidade de pensarmos a saúde mental da população negra de forma imbricada ao nosso contexto histórico, social, econômico e político brasileiro. E não como uma problemática individual ou isolada. O racismo estrutural e as desigualdades sociais criam condições de produção de sofrimento de modo que, promover saúde mental no Brasil não pode estar dissociado de um enfrentamento político ao próprio capitalismo, às práticas neoliberais e ao racismo estrutural.

Nessa mesma direção, compreendemos que a promoção de saúde mental para a população negra precisa estar, necessariamente, de mãos dadas com a defesa contundente e irrestrita do Sistema Único de Saúde, da luta antimanicomial, bem como com as mobilizações políticas em prol de avanços nas garantias dos direitos sociais de todas as pessoas. Garantir uma vida digna é um pressuposto básico para promover a saúde mental.

Nos cabe, por fim, salientar o carácter fundamental das políticas públicas de saúde mental no Brasil, especialmente no que tange ao fortalecimento de um viés antirracista em sua concepção, construção e implementação. Sabemos que é pela via da saúde pública, que as pessoas pobres, pretas, periféricas do nosso país podem ter acesso a cuidados e tratamentos em saúde. E, nesse sentido, é preciso sublinhar que não é possível o fortalecimento de políticas sem provimento orçamentário. Uma política pública sem orçamento está esvaziada e despotencializada, criando um terreno fértil para o discurso neoliberal que pretende usar o sucateamento dos serviços públicos para argumentar em favor das privatizações deles.

Ao mesmo tempo, buscamos argumentar ao longo do texto, por meio da articulação entre o conceito proposto por Carneiro (2023Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.) de dispositivo de racialidade e da teoria da constituição do sujeito lacaniana, que ao localizar o racismo como elemento organizador das relações e do campo social que nos constituí, podemos observar seus efeitos em termos de produção de sintomas e sofrimento psíquico da população negra.

Da mesma maneira, o mesmo dispositivo de racialidade, associado ao conceito de ética radical da escuta e cuidado de si, pode nos apontar potencialidades e estratégias de resistência e construção de processos emancipatórios.

Por fim, vivemos em uma sociedade estruturada e organizada pelo racismo, onde estratégias de promoção de saúde mental para a população negra só serão efetivas, de fato, se aliadas a ações políticas que refreiem os efeitos nefastos do capitalismo na vida das pessoas e, em última instância, que construam um rompimento com o modo capitalista de organização da sociedade. Enquanto a vida de uns valer menos que a de outros, enquanto a saúde das pessoas for mercadoria, estaremos enfrentando limitações significativas na implantação de uma política pública de saúde que seja, em seu cerne, antirracista.

Referências

  • Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Zahar.
  • Foucault, M. (2002). Em defesa da sociedade: curso no Collége de France. Martins Fontes.
  • Freud, S. (1921/1996). Psicologia das massas e análise do eu Imago. (Original publicado em 1921)
  • Lacan, Jacques (1985a). O Seminário. Livro 3: As psicoses Zahar. (Original publicado em 1955-1956)
  • Lacan, Jacques (1985b). O Seminário. Livro 20: Mais ainda Zahar. (Original publicado em 1972-1973).
  • Lacan, J. (1998). De nossos antecedentes. In Escritos (pp. 69-76). Zahar. (Original publicado em 1966)
  • Maya, B. E. (2016). Psicologia das massas: método analógico?Stylus, Rio de Janeiro, 32, 181-190.
  • Silva, A. C. B. (2019). Por uma utopia para as crianças africanas: A incidência do desejo do outro na posição do sujeito na escola [Tese de Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP].
  • Financiamento

    Não houve financiamento
  • Aprovação, ética e consentimento

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2023
  • Revisado
    30 Set 2023
  • Aceito
    30 Set 2023
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