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SEXUALIDADES AMORDAÇADAS: A ATUALIDADE DOS FALATÓRIOS DE STELLA DO PATROCÍNIO

SEXUALIDADES AMORDAZADAS: LA ACTUALIDAD DE LOS CONVERSACIONES DE STELLA DO PATROCÍNIO

GAGGED SEXUALITIES: THE TOPICALITY OF STELLA DO PATROCÍNIO’S SPEECHES

Resumo

No contexto atual de retrocessos no campo da saúde mental, dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, os falatórios poéticos de Stella do Patrocínio ecoam como registros de um passado manicomial que insiste em retornar. O objetivo deste artigo é problematizar os falatórios de Stella do Patrocínio, contidos no seu livro póstumo “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (2001), no que se refere às sexualidades. A partir de um diálogo interseccional, tais falatórios permitiram ver uma sexualidade associada a enquadramentos normativos de gênero, raça e classe e seus efeitos nos processos de subjetivação. Além disso, foi evidente a articulação entre a lógica asilar, a biopolítica e a eugenia com os saberes e práticas das ciências psis que tendem à tutela e normalização das sexualidades, principalmente de corpos como o de Stella. Portanto, Stella nos deixa importantes contribuições e questionamentos para o campo da psicologia.

Palavras-chave
Stella do Patrocínio; Sexualidade; Subjetivação; Biopolítica; Saúde Mental

Resumen

En el contexto actual de retrocesos en el campo de la salud mental, los derechos sexuales y los derechos reproductivos, las diatribas poéticas de Stella do Patrocínio resuenan como registros de un pasado asilo que insiste en volver. El objetivo de este artículo es discutir el discurso de Stella do Patrocínio, contenido en su libro póstumo “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (2001), en relación a las sexualidades. A partir del diálogo interseccional, tales chismes permitieron vislumbrar una sexualidad asociada a marcos normativos de género, raza y clase y sus efectos en los procesos de subjetivación. Además, se evidenció la articulación entre la lógica del asilo, la biopolítica y la eugenesia con los saberes y prácticas de las ciencias psi que tienden a la protección y normalización de las sexualidades, principalmente de cuerpos como el de Stella. Por lo tanto, Stella nos deja importantes aportes e interrogantes para el campo de la psicología.

Palabras-claves
Stella do Patrocínio; Sexualidad; Subjetivación; Biopolítica; Salud Mental

Abstract

In the current context of setbacks in the field of mental health, sexual rights and reproductive rights, Stella do Patrocínio’s poetic rants echo like records of an asylum past that insist on returning. The aims of this article is to problematize Stella do Patrocínio’s gabbles, contained in her posthumous book “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (2001), with regard to sexualities. Based on an intersectional dialogue, such talks allowed us to see a sexuality associated with normative frameworks of gender, race and class and their effects on the processes of subjectivation. Furthermore, the articulation between asylum logic, biopolitics and eugenics with the knowledge and practices of the psi sciences that tend to the custody and normalization of sexualities, mainly on bodies like Stella’s, was evident. Therefore, Stella leaves us with important contributions and questions to the field of psychology.

Keywords
Stella do Patrocínio; Sexuality; Subjectivation; Biopolitics; Mental Health

Eu não sei o que fazer da minha vida Por isso eu estou triste E fico vendo tudo em cima da minha cabeça Em cima do meu corpo Toda hora me procurando me procurando E eu já carregada de relação sexual Já fodida Botando o mundo inteiro prá gozar e sem gozo nenhum (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 125)

Iniciando falatórios

Ao mergulharmos nos falatórios poéticos de Stella do Patrocínio, uma mulher que tivera a vida atravessada por trinta anos de institucionalização em hospitais psiquiátricos, percebemos que tais falatórios - como Stella nomeava seus enunciados - se expandem, como quando jogamos uma pedra no rio e são produzidas ondas maiores. Mesmo tendo se passado trinta anos desde sua morte, Stella tem muito a nos dizer, não só sobre as violências inerentes ao regime asilar, mas como tal regime, para além do muros físicos manicomiais, está articulado aos enquadramentos normativos, principalmente acerca das sexualidades em suas intersecções com o gênero, a raça e a classe.

É importante destacar que mesmo com os avanços da Luta Antimanicomial e Reforma Psiquiátrica, temáticas acerca das sexualidades são pouco evidenciadas e problematizadas nesse campo, muitas vezes havendo reprodução de saberes e práticas opressoras nos hospitais psiquiátricos e, também, dentro dos próprios serviços substitutivos (Bessa, 2017Bessa, Juliana Cristina (2017). ‘Deixe-me sentir’: (des)encontros entre sexualidade e o campo da saúde mental em periódicos brasileiros (2001-2014) (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Estadual Paulista, Assis/SP).; Detomini & Rasera, 2018Detomini, Vitor C. & Rasera, Emerson F. (2018). Sexualidade e Saúde mental: Construindo sentidos com pessoas usuárias de um CAPS. Estudos de Psicologia Natal, 23(3), 306-316. http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20180029
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; Machado, 2018Machado, Gustavo Silva (2018). Experiência Macabea: modos de subjetivação e sexualidade em instituições psiquiátricas de longo prazo ou asilares (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC).; Silva, 2015Silva, Angelita Danielle Gouveia (2015). Sexualidade (des) Institucionalizada? A Sexualidade das Moradoras e dos Moradores dos Serviços Residenciais Terapêuticos nos Discursos das suas Profissionais (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE).). Em um contexto de tantos retrocessos no campo da saúde mental - a partir do incentivo às políticas manicomiais, como o investimento na abertura de leitos em instituições psiquiátricas e nas comunidades terapêuticas (Cruz, Gonçalves, & Delgado, 2020Cruz, Nelson Falcão, Gonçalves, Renata W., & Delgado, Pedro G. (2020). Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, 18(3), 1-20. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00285
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; Onoko-Campos, 2019Onoko-Campos, Rosana Teresa (2019). Saúde Mental no Brasil: avanços, retrocessos e desafios. Cadernos de Saúde Pública, 35(11), 1-5. https://doi.org/10.1590/0102-311X00156119
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) -, essas problemáticas se tornam ainda mais agravadas e urgentes de serem debatidas.

Nesse sentido, os falatórios de Stella permitem ver uma sexualidade amordaçada, “agarrada” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 101) que está “Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo/nenhum” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p.125). Uma sexualidade atravessada por um sistema moderno/colonial de gênero (Lugones, 2020Lugones, María (2020). Colonialidade e gênero. In Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 58-91). Bazar do Tempo.), por uma biopolítica (Foucault, 1976/2005Foucault, Michel (1976/2005). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) (Maria E. Galvão, trad.). Martins Fontes. (original publicado em 1976), 1979/2008Foucault, Michel (1979/2008). Nascimento da Biopolítica: Curso dado no Collège de France (1978-1979) (Eduardo Brandão, trad.). Martins Fontes. (Original publicado em 1979), 1977/2018Foucault, Michel (1977/2018). História da Sexualidade 1: A vontade de saber (Maria Thereza Albuquerque & J. A. Albuquerque, trads.). Paz & Terra. (Original publicado em 1977)) e por princípios eugênicos impregnados nas ciências psis, que sustentam o regime asilar. Fica nítido o compromisso historicamente estabelecido por tais ciências, como é o caso da psicologia, com o controle e normalização dos corpos/populações (Figueira & Boarini, 2014Figueira, Fernanda F. & Boarini, Maria Lucia (2014). Psicología e hygiene mental en Brasil: la historia por contar. Universitas Psychologica, 13(5), 1801-1814. http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.upsy13-5.phmb
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), principalmente se tratando de mulheres como Stella. Desse modo, neste artigo temos como objetivo problematizar os falatórios de Stella do Patrocínio, contidos na obra “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral.), no que se refere às sexualidades. Fundamentamos nossa análise a partir do diálogo entre as epistemologias feministas negras e decoloniais e os autores pós-estruturalistas como Michel Foucault. Do ponto de vista metodológico, utilizamo-nos da análise interseccional, a qual é entendida como uma ferramenta teórico-metodológica ou uma sensibilidade analítica, como afirma Carla Akotirene (2019Akotirene, Carla (2019). Interseccionalidade. Pólen Livros.), que busca analisar de forma inseparável as múltiplas estruturas de opressão que atravessam os corpos de formas distintas.

Stella do Patrocínio e as sexualidades amordaçadas

Stella do Patrocínio foi uma mulher negra, pobre, que dizia ser solteira, empregada doméstica e de instrução secundária (Mosé, 2001Mosé, Viviane (2001). Apresentação: Stela do Patrocínio - Uma trajetória poética em uma instituição psiquiátrica. In Stela do Patrocínio (Org.), Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (pp. 19-43). Azougue Editoral.). Nascida em 9 de janeiro de 1941, no Rio de Janeiro, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Francisca do Patrocínio, Stella, segundo Anna Zacharias (2020Zacharias, Anna Carolina V. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira (Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP).), além de ter tido família, fazia planos e circulava livremente pelas ruas. Todavia, em 1962, aos 21 anos de idade, foi internada involuntariamente no Centro Psiquiátrico Pedro II (CPP II), no Rio de Janeiro, pela polícia civil, enquanto caminhava na Rua Voluntários da Pátria (Mosé, 2001Mosé, Viviane (2001). Apresentação: Stela do Patrocínio - Uma trajetória poética em uma instituição psiquiátrica. In Stela do Patrocínio (Org.), Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (pp. 19-43). Azougue Editoral.; Zara, 2014Zara, Telma B. Melo(2014). “Me transformei com esse ‘falatório’ todinho”: cotidiano institucional e processo de subjetivação em Stela do Patrocínio (Dissertação de Mestrado em “Ciências Sociais - Fronteira, Cultura e Identidade, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo/PR).; Zacharias, 2020Zacharias, Anna Carolina V. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira (Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP).).

Após quatro anos encarcerada no CPP II, em 1966, Stella foi transferida para a Colônia Juliano Moreira (RJ), onde foi alojada no Núcleo Teixeira Brandão. A colônia era um local para onde eram enviados os “doentes” considerados crônicos - que não iriam “melhorar” - ou aqueles considerados indisciplinados, como forma de punição (Mauricio Lougon, 1993 citado por Zara, 2014Zara, Telma B. Melo(2014). “Me transformei com esse ‘falatório’ todinho”: cotidiano institucional e processo de subjetivação em Stela do Patrocínio (Dissertação de Mestrado em “Ciências Sociais - Fronteira, Cultura e Identidade, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo/PR).). Ademais, esse era um espaço onde se deixa morrer e onde Stella permaneceu pelo resto da sua vida. Patrocínio faleceu em 20 de outubro de 1992, com 51 anos, nas dependências do Colônia, sendo enterrada como indigente no cemitério de Inhaúme - RJ, “sem direito a placa ou túmulo” (Zacharias, 2020Zacharias, Anna Carolina V. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira (Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP)., p. 110).

Sobre os falatórios poéticos de Stella do Patrocínio, sabemos que os mesmos têm um percurso longo até serem transcritos e organizados no livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral.). Tais falatórios só começam a ser considerados poéticos e gravados pela estagiária Carla Guagliardi no período de atuação do Projeto de Livre Criação Artística, entre 1986-1988, quando a Colônia Juliano Moreira passou por processos de mudanças viabilizadas pela Reforma Psiquiátrica (Zacharias, 2020Zacharias, Anna Carolina V. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira (Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP).). Após o fim do Projeto de Livre Criação Artística, por quase três anos não houve gravação dos falatórios de Stella, e, apenas em 1990, esse trabalho foi retomado com a estagiária em psicologia Mônica Ribeiro de Souza. Souza foi a primeira a transcrever e estruturar tais falatórios em formato de poesia. Posteriormente, essas gravações e transcrições foram organizadas e publicadas no livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”, pela filósofa Viviane Mosé.

Apesar de considerarmos fundamental o aprofundamento sobre a história de Stella, neste artigo pretendemos destacar um aspecto pouco evidenciado da vida da autora, a sexualidade.1 1 Para mais informações sobre outros elementos da história de vida de Stella do Patrocínio para além dos muros manicomiais e durante o período de encarceramento, sugerimos a leitura da dissertação de Ana Zacharia (2020): “Stella do Patrocínio: Da internação involuntária à poesia brasileira”.

Dos poucos trabalhos encontrados que se debruçam nos falatórios e fragmentos biográficos de Stella, apenas nos de Zacharias (2020Zacharias, Anna Carolina V. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira (Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP).) e Zara (2014Zara, Telma B. Melo(2014). “Me transformei com esse ‘falatório’ todinho”: cotidiano institucional e processo de subjetivação em Stela do Patrocínio (Dissertação de Mestrado em “Ciências Sociais - Fronteira, Cultura e Identidade, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo/PR).) constam informações sobre tal questão. Zacharias (2020Zacharias, Anna Carolina V. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira (Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP).) abarca de forma breve, a partir de alguns dos falatórios de Stella, a evidência de abuso sexual sofrido pela mesma. Já Telma Zara (2014Zara, Telma B. Melo(2014). “Me transformei com esse ‘falatório’ todinho”: cotidiano institucional e processo de subjetivação em Stela do Patrocínio (Dissertação de Mestrado em “Ciências Sociais - Fronteira, Cultura e Identidade, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo/PR).), ao analisar o prontuário de Stella, afirma que, em 1988, consta que “não houve informação sobre qualquer atividade sexual” (2014Zara, Telma B. Melo(2014). “Me transformei com esse ‘falatório’ todinho”: cotidiano institucional e processo de subjetivação em Stela do Patrocínio (Dissertação de Mestrado em “Ciências Sociais - Fronteira, Cultura e Identidade, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo/PR)., p. 94). Ou seja, por mais que em muitos dos falatórios de Stella a sexualidade seja explicitada, ainda assim, das informações encontradas sobre ela há apenas um dos trabalhos que cita o relato de abuso sexual, não havendo aprofundamento no tema, e o outro demonstra o registro de uma ausência, uma “falta” de informações.

A ausência de informações sobre a sexualidade diz de uma presença imposta, de uma invisibilidade que visibiliza a falta, a ausência, a não existência de um corpo sexual. Para Michel Foucault (1977/2018Foucault, Michel (1977/2018). História da Sexualidade 1: A vontade de saber (Maria Thereza Albuquerque & J. A. Albuquerque, trads.). Paz & Terra. (Original publicado em 1977)) existem técnicas polimorfas de poder que colocam o sexo em discurso, que penetram e controlam o prazer cotidiano, mas também organizam silêncios. Sobre essa organização de silêncios, Foucault (1976/2018aFoucault, Michel (1976/2005). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) (Maria E. Galvão, trad.). Martins Fontes. (original publicado em 1976)) afirma que é preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer e como são distribuídas as pessoas que podem e as que não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é exigida a umas e a outras.

De acordo com Foucault (1977/2018Foucault, Michel (1977/2018). História da Sexualidade 1: A vontade de saber (Maria Thereza Albuquerque & J. A. Albuquerque, trads.). Paz & Terra. (Original publicado em 1977)), falar de sexo não deve ser algo a ser condenado ou tolerado, mas que deve ser gerido, inserido em sistemas de utilidade, regulado para o bem de todos/as: “O sexo não se julga apenas, administra-se” (Foucault, 1977/2018Foucault, Michel (1977/2018). História da Sexualidade 1: A vontade de saber (Maria Thereza Albuquerque & J. A. Albuquerque, trads.). Paz & Terra. (Original publicado em 1977), p. 27). Assim, essa lacuna sobre a sexualidade nos documentos institucionais que se tem acesso acerca de Stella (Zara, 2014Zara, Telma B. Melo(2014). “Me transformei com esse ‘falatório’ todinho”: cotidiano institucional e processo de subjetivação em Stela do Patrocínio (Dissertação de Mestrado em “Ciências Sociais - Fronteira, Cultura e Identidade, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo/PR).) diz muito de uma forma de administração do sexo em uma instituição asilar, afinal, mesmo não tendo registro de “qualquer atividade sexual”, a própria Stella fala: “...E fico vendo tudo em cima da minha cabeça/Em cima do meu corpo/Toda hora me procurando me procurando/ E eu já carregada de relação sexual/Já fodida/Botando mundo pra gozar sem gozo/nenhum” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p.125). Como é possível um corpo que afirma ser carregado de relação sexual, nem sequer ter a sexualidade levada em conta nos registros oficiais de um hospital em que passou trinta anos de sua vida?

De acordo com Joel Birman (1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé.) no livro “Sexualidade na Instituição Asilar”, a psiquiatria clássica relegou ao plano secundário a sexualidade do/a sujeito/a internado/a. O autor atribui isso ao fato de a individualidade do/a enfermo/a desaparecer na construção dos sistemas nosográficos e a sexualidade ser considerada apenas em sua esfera biológica, com destaque para a finalidade reprodutiva da espécie. Assim, a sexualidade das pessoas institucionalizadas era circunscrita a “um aspecto do corpo animal do sujeito, que poderia alterar-se em função de um processo patológico, configurando sintomas e anomalias que o distanciavam dos padrões de normalidade sexual” (Birman, 1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé., p. 9).

Para Birman (1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé.), o comportamento sexual dos/as internos/as em um hospital psiquiátrico se transforma numa estrutura patológica, destacada como anomalia, como desvio face ao sistema disciplinar. Qualquer expressão de desejo e afeto é considerada como psicopatológica, de modo que a sexualidade dessa população é compreendida de uma forma controversa: ou muito aflorada ou inexistente. Portanto, a sexualidade é posta como problemática por habitar uma zona entre a hipersexualização e a assexualidade (Bessa, 2017Bessa, Juliana Cristina (2017). ‘Deixe-me sentir’: (des)encontros entre sexualidade e o campo da saúde mental em periódicos brasileiros (2001-2014) (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Estadual Paulista, Assis/SP).; Detomini & Rasera, 2018Detomini, Vitor C. & Rasera, Emerson F. (2018). Sexualidade e Saúde mental: Construindo sentidos com pessoas usuárias de um CAPS. Estudos de Psicologia Natal, 23(3), 306-316. http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20180029
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; Machado, 2018Machado, Gustavo Silva (2018). Experiência Macabea: modos de subjetivação e sexualidade em instituições psiquiátricas de longo prazo ou asilares (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC).).

Apesar do espaço asilar se configurar como um espaço disciplinar, com modos específicos de fazer funcionar o dispositivo da sexualidade2 2 A sexualidade é concebida através da sociedade, de um processo de circulação de discursos que implicam não só a regulação e normatização, mas traçam saberes e configuram supostas verdades, por meio de uma rede estabelecida de múltiplas narrativas, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, pressupostos científicos, concepções filosóficas, morais, filantrópicas (Foucault, 1977/2018). Portanto, a sexualidade entendida como dispositivo histórico, é também uma expressão das relações de poder. , permeado por silêncios e tutela, ainda assim, Stella fala: “Só depois da relação sexual é que eu posso carregar tudo pela língua e pela boca” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p.100). Seus falatórios contribuem para preencher algumas das lacunas sexuais gritantes, não registradas no seu prontuário. Portanto, são vestígios do que vaza, do que não pode ser contido, do que escapole da disciplina, da normalização.

Sobre essa produção de resistência que é falar sobre seus próprios estilhaços de sexualidade em um contexto asilar - de patologização do corpo e dos desejos - como fez Stella, Birman (1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé.) afirma que é por meio da sexualidade que o/a internado/a vai tentar se restabelecer como sujeito/a, numa prática transgressora, contra a materialização do poder institucional. O autor destaca, ainda, que o corpo atravessado pelo poder disciplinar pode insurgir, e é através da sexualidade que o corpo encontra espaço para se opor.

Em diálogo com o que é explicitado por Birman (1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé.), Gustavo Machado (2018Machado, Gustavo Silva (2018). Experiência Macabea: modos de subjetivação e sexualidade em instituições psiquiátricas de longo prazo ou asilares (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC).), na sua dissertação “Experiência Macabea” (2018Machado, Gustavo Silva (2018). Experiência Macabea: modos de subjetivação e sexualidade em instituições psiquiátricas de longo prazo ou asilares (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC).), problematiza a articulação entre os modos de subjetivação e a sexualidade em internações psiquiátricas de longo prazo. O autor afirma que, embora o poder disciplinar tenha efeitos devastadores nessas instituições - que dificilmente fornecem espaços para que os/as internos/as sejam sujeitos/as desejantes -, existe algo que escapa, como é o caso das sexualidades. Assim, no tópico seguinte, iremos nos ater à temática silenciada pela instituição, mas falada por Stella: a sua própria sexualidade.

Um corpo sexual atravessado por gênero, raça e classe

No falatório citado na epígrafe que inicia este artigo, Stella diz que não sabe o que fazer da vida e por isso está triste, fica vendo tudo em cima da sua cabeça e do seu corpo, toda hora se procurando, carregada de relação sexual, fodida, botando o mundo inteiro para gozar, mas sem gozo nenhum. A sexualidade nesse falatório parece se atrelar não só ao ato da “relação sexual”, mas aparece também como uma invasão pelo outro, um outro que a deixa sobrecarregada, que consegue gozar às custas do não gozo do seu corpo e da sua cabeça.

Aqui, lembramos das autoras Grada Kilomba e Lélia Gonzalez e suas análises acerca dos efeitos negativos da intersecção entre racismo e sexismo no que se refere aos corpos das mulheres negras, em específico no âmbito das sexualidades. Segundo Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (Jess Oliveira, trad.). Cobogó.), as mulheres negras historicamente tiveram seus corpos sexualizados e vistos como destinados ao trabalho. A imagem da mulher negra estivera associada a duas figuras: a da “mãe negra” servindo como controle de raça, sexualidade e gênero, como justificativa para sua subordinação e exploração econômica, e a mulher negra sexualizada, servindo aos desejos do homem branco (Kilomba, 2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (Jess Oliveira, trad.). Cobogó.).

Nesse sentido, Lélia Gonzalez (2020Gonzalez, Lélia (2020). Por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Zahar.) afirma as noções de “mãe preta”, “doméstica” e “mulata”, apontando para o lugar da mulher negra na formação cultural brasileira, ora como mãe preta, ora como a trabalhadora doméstica, ora como a “mulata” hipersexualizada. Ao aprofundar a análise da figura da “mulata brasileira”, Gonzalez (2020Gonzalez, Lélia (2020). Por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Zahar.) afirma a inclusão dessa categoria como uma objetificação sexual do corpo da mulher negra, sendo tal nomeação derivada da palavra “mula” - animal híbrido, produto de acasalamento de um jumento e uma égua. Assim, há um movimento histórico de animalização desses corpos, não sendo reconhecidos como humanos, e simultaneamente destinados à exploração e ao gozo do outro, do homem branco. As reflexões de Gonzalez apontam que a branquitude3 3 A branquitude, como evidenciam as autoras Maria Aparecida Bento (2002) e Lia Schucman (2012), diz do exercício de manutenção de poder dos brancos, onde a branquitude é sempre um lugar de vantagem estrutural do branco em sociedades estruturadas pelo racismo. Desse modo, os/as sujeitos/as brancos/as ocupam uma posição de privilégio se beneficiando das desigualdades raciais, e sendo colocados/as em um papel de superioridade e como a referência de humano universal. é um sistema que consequentemente torna os corpos de mulheres como Stella vulnerabilizados a todo tipo de exploração e violência, inclusive a sexual.

Assim, pensando que não há uma política sexual unitária, como evidenciou Foucault (1976/2018aFoucault, Michel (1976/2005). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) (Maria E. Galvão, trad.). Martins Fontes. (original publicado em 1976)), a sexualidade dita normalizada - tendo como características a passividade, heterossexualidade, a virgindade e um exercício exclusivo no casamento monogâmico - é aquela imposta às mulheres brancas burguesas. Em oposição, as mulheres colonizadas, não brancas e escravizadas foram caracterizadas ao longo de uma vasta gama de perversões e agressões sexuais, consideradas suficientemente fortes para aguentar qualquer tipo de trabalho (Lugones, 2020Lugones, María (2020). Colonialidade e gênero. In Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 58-91). Bazar do Tempo.). Coadunando, Mara Vigoya (2009Vigoya, Mara Viveiros (2009). La sexualización de la raza y la racialización de la sexualidade en el contexto latinoamericano actual. Revista latinoamericana de estúdios de família, 1, 63-81. http://revlatinofamilia.ucaldas.edu.co/downloads/Rlef1_4.pdf.
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), no artigo “La sexualización de la raza y la racialización de la sexualidad en el contexto latinoamericano actual”, afirma que foram construídos mitos e lendas em torno do que era considerado depravação dos chamados povos “primitivos”, produzindo um ideário da sensualidade aflorada e disponibilidade sexual da mulheres não brancas.

Desse modo, Stella parece corporificar as figuras acima evidenciadas por Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (Jess Oliveira, trad.). Cobogó.), Gonzalez (2020Gonzalez, Lélia (2020). Por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Zahar.), Lugones (2020Lugones, María (2020). Colonialidade e gênero. In Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 58-91). Bazar do Tempo.) e Vigoya (2009Vigoya, Mara Viveiros (2009). La sexualización de la raza y la racialización de la sexualidade en el contexto latinoamericano actual. Revista latinoamericana de estúdios de família, 1, 63-81. http://revlatinofamilia.ucaldas.edu.co/downloads/Rlef1_4.pdf.
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), demonstrando as intersecções que atravessam seu corpo (produzindo-o como tal) e se articulam aos processos de subjetivação, ao falar sobre seu trabalho como empregada doméstica, antes da institucionalização: “Sou profissional: lavo passo/engomo encero cozinho...” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 71); “Eu trabalhava em casa de família/fazia todos os serviços/qualquer um serviço” (Patrocínio, 2001, p. 145), bem como é aquela que fica vendo tudo em cima da sua cabeça e do seu corpo, inclusive a “relação sexual”. Aquela que é carregada de relação sexual - hipersexualizada -, que bota o mundo inteiro para gozar sem gozo nenhum, que é ordenada que deite para ser fodida, como no falatório abaixo:

Tinha terra preta no chão Um homem foi lá e disse Deita aí no chão pra mim te foder Eu disse não Vou me embora daqui Aí eu saí de lá vim andando Ainda não tinha esse prédio Não tinha essa portaria Não tinha esse prédio Não tinha essa portaria Não via tinta azul pelas paredes A parede ainda não era pintada de tinta azul (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 101)

A partir da cena exposta no falatório acima, Stella vai posicionando o cenário em transição, as figuras e os pronomes masculinos, que em conjunto com outros falatórios, não demonstra um momento de prazer e excitação, mas trazem sempre uma associação da relação sexual ao ser agarrada, fodida: “agarrada pra relação sexual e/pra foder” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 102); “Aprendi quando fui agarrada pra relação sexual/E quando fui fodida” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 103); “E eu já carregada de relação sexual/já fodida” (Patrocínio, 2001, p. 125). Essas frases ficam reverberando e remetem aos abusos sexuais não só relatados por Stella, mas aos recorrentes casos desse tipo de violência ocorridos nos hospitais psiquiátricos. Mesmo após trinta anos desde a sua morte, essa problemática e violação exposta por ela continua viva e atual.

O Relatório de Inspeção em Hospitais Psiquiátricos (2020Conselho Federal De Psicologia; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Conselho Nacional do Ministério Público; Ministério Público do Trabalho (2020). Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional (2ª ed.). Autores.), produto da vistoria realizada em 2018 em 40 (quarenta) hospitais psiquiátricos localizados em dezessete estados das cinco regiões do Brasil, revelou que em seis das instituições inspecionadas houve a ocorrência de abuso sexual e estupro, e em quatro dessas foram relatadas suspeitas de assédio e abuso sexual, na maior parte dos casos contra mulheres internadas. O Relatório de Inspeção (2020Conselho Federal De Psicologia; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Conselho Nacional do Ministério Público; Ministério Público do Trabalho (2020). Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional (2ª ed.). Autores.) ainda revelou que as mulheres internadas, mesmo com medo de serem violentadas sexualmente, sentem dificuldades em expor ou falar de algumas situações concretas. Além disso, dentre as dificuldades para a efetivação das denúncias desse tipo de violência, foi identificado que um dos fatores está associado à deslegitimação da palavra das internas: “de não saber se é verdade, porque são pessoas com transtorno mental” (Conselho Federal de Psicologia et al, 2020Conselho Federal De Psicologia; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Conselho Nacional do Ministério Público; Ministério Público do Trabalho (2020). Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional (2ª ed.). Autores., p. 287), inviabilizando ou até mesmo não sendo realizados os encaminhamentos necessários.

Desse modo, ficou perceptível que o encarceramento nos hospitais psiquiátricos contribui para a criação de um cenário favorável para ocorrência de abuso sexual e estupro no cotidiano dos/as internos/as, especialmente das mulheres (Conselho Federal de Psicologia et al, 2020Conselho Federal De Psicologia; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Conselho Nacional do Ministério Público; Ministério Público do Trabalho (2020). Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional (2ª ed.). Autores.). Não é banal, portanto, que Stella imprima uma conotação negativa à relação sexual, de um corpo-território invadido por “um homem”, por “eles”, alguém que ela já não tem forças para sustentar e: “fico vendo tudo em cima da minha cabeça/Em cima do meu corpo” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 125). Um corpo gozado que não goza.

Nesse ponto, Stella chama atenção para uma vivência sexual articulada a um sistema moderno/colonial de gênero (Lugones, 2020Lugones, María (2020). Colonialidade e gênero. In Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (pp. 58-91). Bazar do Tempo.) reproduzido no seio da instituição psiquiátrica. Maria Lugones (2020), em seu artigo “Colonialidade e Gênero”, argumenta que a organização de gênero em um sistema moderno/colonial se assenta no dimorfismo biológico, na organização patriarcal e na heterossexualidade das relações, atravessando não apenas a classificação racial, mas o controle e acesso ao sexo, a autoridade coletiva, a produção do conhecimento e os processos de subjetivação. Pensemos no falatório exposto abaixo:

Eu vejo o mundo e a família O mundo e a família A família que vive no mundo E vive na casa que está sempre no mundo E que está sempre na casa... E a Dra Elisabeth disse assim pra mim E você queria ver mais do que isso pra quê? E você queria ver mais do que isso pra quê? (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 90)

O que mais uma mulher quer ver além de um mundo que só existe a partir da família e da casa? Uma tríade: família, casa e mundo. “E você queria ver mais do que isso pra quê?”. O que mais Stella queria e poderia ver além dessa tríade? Mesmo não performando uma feminilidade hegemônica que delega à mulher branca e burguesa a responsabilidade pela esfera doméstica, pela casa e pela família, a Stella também é imposta essas responsabilidades, e mais: não só pela sua casa e sua família, mas pelas casas e famílias de mulheres brancas, burguesas e das doutoras, como Dra. Elisabeth. Desse modo, quando Stella é interrogada se já: “Viveu junto com homem, com parceiro, não sabe o que é casar?” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 151), ela responde: “Casar é ter um filho durante muitos dias/semanas mês o ano inteiro/ficar com a casa cheia e cheia de preocupação/em si/com o companheiro e os filhos?” (Patrocínio, 2001, p. 151). Ou seja, casamento está totalmente relacionado a um companheiro - homem - e a ter filhos, e esse conjunto significa “Ficar com a casa cheia e cheia de preocupação”.

Desse modo, ficam nítidos os fantasmas da escravização criados e perpetuados pela branquitude colonizadora, a junção entre a mulata, a mãe preta e a doméstica que continuam vivíssimos, corporificados na exploração e violação dos corpos das mulheres negras e pobres, como Stella. Stella permite ver a racialização da sexualidade ou sexualização da raça (Vigoya, 2009Vigoya, Mara Viveiros (2009). La sexualización de la raza y la racialización de la sexualidade en el contexto latinoamericano actual. Revista latinoamericana de estúdios de família, 1, 63-81. http://revlatinofamilia.ucaldas.edu.co/downloads/Rlef1_4.pdf.
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), enredada no sistema moderno/colonial de gênero, em que no final: “Quem passa mal sou eu” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 106). No final é ela quem passa mal, e ainda afirma: “Estava com muito saúde/me adoeceram/me internaram no hospital/e me deixaram internada/e agora vivo no hospital como doente” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 51). Ela não passou mal, nem adoeceu sozinha, todos esses enquadramentos normativos atravessaram seu corpo e seus processos de subjetivação, bem como constituem tentáculos de poder que sustentam os hospitais psiquiátricos.

Sexualidades, processos de subjetivação e biopolítica

A sexualidade falada por Stella está situada em um hospital psiquiátrico, cerceada pelo olhar que tudo vê sem ser visto, que individualiza para controlar e punir corpos não dóceis. Um espaço disciplinar que busca tornar o corpo enlouquecido em um corpo assexual, um corpo que não deseja outros corpos, um corpo infantilizado e tutelado. Nesse contexto, Stella, além de fazer ver a corporificação de um histórico de opressão contra os corpos de mulheres não brancas, permite ver também a reprodução de um enquadramento normativo racista e cisheterossexista no regime asilar, especificamente no que se refere à sexualidade das mulheres institucionalizadas:

Eu fui agarrada quando eu estava sozinha Não conhecia ninguém não conhecia nada Não via ninguém não via nada Nada de cabeças e corpos Nada de casa nada de mundo Eu não conhecia nada eu era ignorante Depois que eu fui agarrada pra relação sexual e pra foder Depois, só depois eu comecei a ter noção e ficar sabendo Antes eu não fazia nada Não dependia de nada Não fazia nada Era como uma parasita Uma paralisia um câncer (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 102)

No falatório acima, a relação sexual é posta como algo anteriormente desconhecido que a fazia ignorante, uma parasita, uma paralisia, um câncer, mas só depois da relação é que ela começa a ter noção, ficar sabendo. Uma ausência de saber prévio. Um sexo que é passivo, invasivo, agressor, “pra foder”. Parece não existir espaço para o prazer de Stella, mas apenas para que ela comece “a ter noção e ficar sabendo”. Nesse emaranhado entre muros manicomiais, ser agarrada, fodida, e passar a ficar sabendo, que Stella afirma ter perdido o gosto, a vontade, o desejo: “Perdi o gosto o prazer o desejo a vontade o querer” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 121).

A sexualidade resumida ao ser “agarrada pra relação sexual” parece gritar que a sexualidade vai além de apenas uma esfera da vida ou de uma dimensão secundária, mas diz de processos de objetivação e subjetivação. De um corpo que é objetificado, sujeito às normas, ao mesmo tempo que se individualiza em meio a essa rede de captura. Um corpo efeito de dispositivos históricos de poder, dentre esses, o dispositivo da sexualidade. Um corpo supostamente “espaço vazio” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 82), que transborda uma enxurrada de sexualização vinda do outro, a ponto de que só “Depois, só depois eu comecei a ter noção e ficar/sabendo” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 102).

o Ocidente não é realmente um negador da sexualidade - ele não a exclui -, mas sim que ele a introduz, ele organiza, a partir dela, todo um dispositivo complexo no qual se trata da constituição da individualidade, da subjetividade, em suma, a maneira pela qual nos comportamos, tomamos consciência de nós mesmos. Em outras palavras, no Ocidente, os homens, as pessoas, se individualizam graças a um certo número de procedimentos, e creio que a sexualidade, muito mais do que um elemento do indivíduo que seria excluído dele, é constitutiva dessa ligação que obriga as pessoas a se associar com sua identidade na forma de subjetividade. (Foucault, 1994/2017, pp. 74-75)

Desse modo, as sexualidades das mulheres enlouquecidas, presas em um hospital psiquiátrico, não só são controladas, interditadas, “agarradas”, de uma forma severa a ponto de perder “o prazer”, como também estão sujeitas a todo tipo de violência e colonização pelos enquadramentos normativos e dispositivos de normalização, tornando a vivência sexual um peso. Um peso a ser carregado “em cima da minha cabeça/Em cima do meu corpo” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 125). Assim, o manicômio se revela como um espaço de interdição dos corpos das mulheres e das suas sexualidades. Quando burlada essa interdição, muitas vezes as vivências sexuais acabam por se configurar restritas à violência sexual e/ou à heteronormatividade.

Sobre o controle das sexualidades de mulheres no contexto asilar, Birman (1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé.) observa que tal instituição é uma instância de reprodução social que mantém e perpetua um quadro de diferenças significativas acerca dos binarismos de gênero. A prática asilar exige de forma caricatural a ritualização do conjunto de normas que sustenta as relações com o corpo próprio e o corpo do/a outro/a; assim, as sexualidades das mulheres são encaradas com mais vigilância que a dos homens, sendo que a prática sexual desses tem menos possibilidades de sujeição a uma conotação patológica (Birman, 1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé.).

Nesse sentido, é possível refletir sobre a associação entre controle sexual e o controle reprodutivo, no caso das mulheres que mantêm relações heterossexuais, mesmo institucionalizadas. Tais relações são as que o contexto asilar mais se ocupa de vigiar, restringindo as sexualidades à heterossexualidade e especificamente ao ato sexual:4 4 Há uma forte invisibilidade nesse espaço para outras formas de sexualidades que não estejam no escopo normativo do sistema moderno de gênero, como se não existissem mulheres lésbicas e bissexuais. Gustavo Machado (2018) afirma que, para alguns profissionais que trabalham no contexto asilar, é muito lógico que as pessoas sejam ordenadas dentro do projeto espacial do hospital de acordo com seu sexo biológico, o que denota dois movimentos: o de negação da possibilidade do sexo e a ideia de que, caso ocorra, todos são heterossexuais. “a relação heterossexual recebe o peso maior do interdito, superando quer a relação homossexual, quer as carícias e os beijos...” (Birman, 1980Birman, Joel (1980). Sexualidade na Instituição Asilar. Achiamé., p. 49). Afinal, as mulheres institucionalizadas, consideradas degeneradas, historicamente não podiam/podem exercer suas sexualidades, principalmente para não reproduzirem pequenas/os degenerados, não habitar a pátria com corpos nascidos de corpos indisciplinados que passariam essa indisciplina às gerações seguintes (Couto, 1994Couto, Rita Cristina C. M. (1994). Eugenia, Loucura e Condição Feminina. Cadernos de Pesquisa, 90, 52-61. http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/892/897
http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/...
). Um dos falatórios de Stella que chama atenção por trazer a problemática da interdição reprodutiva é o transcrito abaixo:

Eu já produzi uma criança no colo outra no corpo Se eu saber que estava produzindo uma criança Pequena De tamanho grande e de saúde Eu também estava com saúde Era Rio de Janeiro Ainda era Botafogo Eu me confundi comendo pão ganhando pão (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 104)

Stella diz já ter produzido “criança no colo outra no corpo”. Sabemos que Stella trabalhou como empregada doméstica em casa de família, cuidava de crianças, a criança produzida no colo. Mas e a criança produzida no corpo? A criança produzida no corpo que ela nem sabia que estava produzindo, pequena, mas de tamanho e de saúde? Qual o destino de uma criança produzida em um corpo não só enlouquecido, mas encarcerado? O que uma instituição psiquiátrica faria com um corpo enlouquecido que “produz criança”?

Antonio Cardoso et al. (2021Cardoso, Antonio J. C., Silva, Gabriela Andrade, Antunes, Renê L. M., Santos, Jaqueline L., Silva, Daniela V., Branco, Samuel M. J., & Bessoni, Enrique A. (2020). Violência institucional e enfermidade mental: narrativas de egressos de um manicômio da Bahia. Saúde Debate, 44(127), 1105-1119. https://doi.org/10.1590/0103-1104202012712
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), em um artigo sobre violência institucional, a partir de narrativas de egressos de um manicômio na Bahia, afirma que, no caso das/os internas/os cujos filhos eram menores de idade - nascidos anteriormente ou durante a internação -, tudo indica que eram encaminhados para adoção, muitas vezes pelos próprios funcionários do hospital. Lembramos também da história de Geralda Siqueira Santiago, que foi estuprada aos 14 anos pelo patrão, na casa onde trabalhava como doméstica, e desse estupro resultou uma gravidez; por isso foi internada no Colônia de Barbacena (Arbex, 2013Arbex, Daniela (2013). Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.). Após o parto, dois anos se passaram e João Bosco, filho de Geralda, foi entregue para adoção, sem seu consentimento.

João e Geralda só foram se reencontrar mais de 40 anos após a separação. Sobre Stella, não sabemos e talvez não tenhamos como saber sobre a tal criança produzida no corpo, mas o seu falatório ressoa casos como o de Geralda e de tantas outras que, entre muros manicomiais, quando não são esterilizadas, eram/são recorrentemente submetidas à aplicação de anticoncepcionais injetáveis, sem seus consentimentos. Thaiga Silva e Marcos Garcia (2019Silva, Thaiga D. Momberg & Garcia, Marcos R. V. (2019). Mulheres e Loucura: a (des)institucionalização e as (re)invenções do feminino na saúde mental. Psicologia em Pesquisa, 13(1), 42-52. http://dx.doi.org/10.24879/2018001200300478
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) afirmam que, no caso das mulheres que são consideradas com transtornos mentais, presume-se que não devam gerar filhas/os. Assim, desde a entrada nos manicômios, é recorrente a aplicação de injeções de anticoncepcionais. Um adendo, no caso das mulheres negras e indígenas, como Stella, a vulnerabilização à esterilização compulsória é agravada (Carneiro, 2003Carneiro, Sueli (2003). Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, 17(49), 117-132. https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000300008
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). A medicalização em excesso desses corpos é outra ferramenta de controle das sexualidades muito utilizada, sendo os psicofármacos considerados essenciais na tentativa de controle das expressões sexuais e da natalidade das mulheres institucionalizadas (Bessa, 2017Bessa, Juliana Cristina (2017). ‘Deixe-me sentir’: (des)encontros entre sexualidade e o campo da saúde mental em periódicos brasileiros (2001-2014) (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Estadual Paulista, Assis/SP).; Detomini & Rasera, 2018Detomini, Vitor C. & Rasera, Emerson F. (2018). Sexualidade e Saúde mental: Construindo sentidos com pessoas usuárias de um CAPS. Estudos de Psicologia Natal, 23(3), 306-316. http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20180029
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; Machado, 2018Machado, Gustavo Silva (2018). Experiência Macabea: modos de subjetivação e sexualidade em instituições psiquiátricas de longo prazo ou asilares (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC).; Silva, 2015Silva, Angelita Danielle Gouveia (2015). Sexualidade (des) Institucionalizada? A Sexualidade das Moradoras e dos Moradores dos Serviços Residenciais Terapêuticos nos Discursos das suas Profissionais (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE).).

Aqui, Stella faz pensar não só na disciplina imposta no espaço asilar, mas também na biopolítica exercida nesse local, em prol do controle do corpo múltiplo - da população - e das sexualidades. Uma biopolítica que diz de quem pode ou não exercer as sexualidades e como exercê-las, sendo esse processo baseado na diferenciação entre sexualidades consideradas normais e àquelas lidas como anormais, dissidentes, perversas e, principalmente, as sexualidades de quem pode ou não “produzir criança”.

Segundo Foucault (1976/2005Foucault, Michel (1976/2005). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) (Maria E. Galvão, trad.). Martins Fontes. (original publicado em 1976)), a biopolítica da população se formou a partir da metade do século XVIII e teve como foco o corpo-espécie, atravessado pela mecânica do ser vivo e como apoio para processos biológicos - a exemplo da natalidade e mortalidade, nível de saúde, expectativa de vida e afins - com todas as condições que podem fazê-lo variar por meio de diversas intervenções e controles regulatórios. Para Foucault (1977/2018Foucault, Michel (1977/2018). História da Sexualidade 1: A vontade de saber (Maria Thereza Albuquerque & J. A. Albuquerque, trads.). Paz & Terra. (Original publicado em 1977)), a partir do século XVII, o sexo, junto com a ideia de “população” - propiciado pelo surgimento do liberalismo e, posteriormente, do neoliberalismo -, passa a ser considerado um problema econômico e político, necessário de ser regulado não pelo rigor de uma proibição, mas por meio de discursos úteis e públicos. Fatores como a taxa de natalidade, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a frequência das relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis e o efeito das interdições e das práticas contraceptivas tornam-se imprescindíveis para análise e controle populacional (Foucault, 1976/2018a).

Assim, é possível notar que os direitos sexuais e os direitos reprodutivos5 5 Os direitos sexuais e reprodutivos (DSDR) fazem parte dos direitos humanos fundamentais, imprescindíveis nas dimensões da cidadania e da vida democrática e que deveriam ser garantidos pelo Estado. das mulheres institucionalizadas em hospitais psiquiátricos se encontram reféns de uma biopolítica alicerçada por ideais eugênicos. Fica nítida aqui a função das ciências psis no exercício da biopolítica. De acordo com Foucault (1975/2018Foucault, Michel (1975/2018). Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975) (Eduardo Brandão, trad.). Martins Fontes. (Original publicado em1975)), a psiquiatria - mas estendemos para as ciências psis no geral - se atribui uma função de proteção, ordem e defesa social generalizada, incluindo um direito de ingerência na sexualidade da família, por meio da noção de hereditariedade.

Em linhas gerais, a psiquiatria, por um lado, fez funcionar toda uma parte da higiene pública como medicina e, por outro, fez o saber, a prevenção e a eventual cura da doença mental funcionarem como precaução social, absolutamente necessária para se evitar um certo número de perigos fundamentais decorrentes da existência mesma da loucura. (Foucault, 1975/2018Foucault, Michel (1975/2018). Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975) (Eduardo Brandão, trad.). Martins Fontes. (Original publicado em1975), p. 101)

No Brasil, de acordo com Rita Couto (1994Couto, Rita Cristina C. M. (1994). Eugenia, Loucura e Condição Feminina. Cadernos de Pesquisa, 90, 52-61. http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/892/897
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), a psiquiatria foi influenciada pelas ideias eugenistas, tendo transformado os limites da normalidade em parâmetros da saúde social, que deveria ser defendida da degeneração. A psiquiatria, oriunda dos aspectos morais do saber médico, torna-se um instrumento de controle da sociedade, atuando inclusive nas relações de gênero. “A trindade somática-física-moral que caracterizava a mulher ideal, sendo sinônimo de normalidade, era o reflexo do que deveria ser a nação, vista como um corpo que tinha de ser higienizado, não só orgânica como moralmente, em prol da eugenia” (Couto, 1994Couto, Rita Cristina C. M. (1994). Eugenia, Loucura e Condição Feminina. Cadernos de Pesquisa, 90, 52-61. http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/892/897
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, p. 53).

Importante acentuar que, conforme afirma Maria Cunha (1989 citada por Couto, 1994Couto, Rita Cristina C. M. (1994). Eugenia, Loucura e Condição Feminina. Cadernos de Pesquisa, 90, 52-61. http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/892/897
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), as ligas eugênicas desaparecem ao longo do tempo, não pelo seu fracasso, mas pelo seu sucesso e inserção nos aparatos do Estado. E não só a psiquiatria, mas a própria psicologia se consolidou como ciência e profissão com base em pressupostos de higienização social, sendo os saberes psicológicos fundamentais para a difusão do ideário da higiene mental (Figueira & Boarini, 2014Figueira, Fernanda F. & Boarini, Maria Lucia (2014). Psicología e hygiene mental en Brasil: la historia por contar. Universitas Psychologica, 13(5), 1801-1814. http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.upsy13-5.phmb
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). Segundo Fernanda Figueira e Maria Lúcia Boarini (2014), a Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923, considerava a psicologia uma das principais áreas do conhecimento como base para diversas intervenções a favor da higiene mental no Brasil, proporcionando-a um significativo desenvolvimento no país.

Stella foi capturada a partir da coalizão das ciências psis: “Me adoeceram/E me deixaram internada” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 51), tornada categoria: “Eles estudando fora da minha cabeça/Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria” (Patrocínio, 2001, p. 69). Stella foi resumida a um corpo que se deixa morrer entre muros manicomiais, com a sexualidade permeada pela patologização, vigilância e violações, como um corpo não passível de desejar e ser desejado. Apenas um corpo enlouquecido, objeto de estudo, encarcerada em prol dos enquadramentos normativos higienistas.

Considerações finais

Stella do Patrocínio e seus falatórios nos permitiram ver uma sexualidade atravessada por enquadramentos normativos racistas, heterossexistas, classistas, capacitistas e coloniais, que são reproduzidos no contexto asilar. Esses enquadramentos tornam a sexualidade patologizada e tutelada, principalmente por causa do risco de reprodução. Dessa forma, as sexualidades vivenciadas por mulheres como Stella, nos hospitais psiquiátricos, só são reconhecidas quando restritas à heterossexualidade, ao mesmo tempo que evidenciam o exercício de uma biopolítica de controle da natalidade em associação com os parâmetros eugênicos.

Todavia, Stella faz ver também uma sexualidade que burla o controle e a gestão dos silêncios manicomiais. À mesma boca e língua que a ensinaram a: “morder chupar roer lamber e dar/dentadas” (Patrocínio, 2001Patrocínio, Stela (2001). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Azougue Editoral., p. 133), é a boca que falou que coloca esse corpo que morde, chupa, lambe e dá dentadas também para falar. Trata-se de falatórios de coragem, de enfrentamentos possíveis em meio às opressões vivenciadas. Falatórios esses que ecoam e sincronizam com as histórias de tantas outras mulheres.

Nesse sentido, os falatórios de Stella do Patrocínio são registros viscerais de um tempo histórico e político passado que mescla com o presente, e dizem de um tipo de projeto político que se fortalece no cenário atual. Projeto esse que impõe a coalizão entre reforço às normas de sexualidade e gênero e o incentivo a políticas manicomiais eugenistas, relegando a determinados corpos o encarceramento em hospitais psiquiátricos e em comunidades terapêuticas. Ademais, a psicologia, como ciência e profissão, ao considerar os falatórios de Stella do Patrocínio como tão válidos quanto quaisquer outros saberes, viabiliza o questionamento e combate as suas amarras históricas que tendem a se aliar a tais projetos até os dias de hoje, e possibilita a promoção de psicologias antimanicomiais que levem em conta os direitos sexuais e os direitos reprodutivos.

Referências

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Notas

  • 1
    Para mais informações sobre outros elementos da história de vida de Stella do Patrocínio para além dos muros manicomiais e durante o período de encarceramento, sugerimos a leitura da dissertação de Ana Zacharia (2020Zacharias, Anna Carolina V. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira (Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP).): “Stella do Patrocínio: Da internação involuntária à poesia brasileira”.
  • 2
    A sexualidade é concebida através da sociedade, de um processo de circulação de discursos que implicam não só a regulação e normatização, mas traçam saberes e configuram supostas verdades, por meio de uma rede estabelecida de múltiplas narrativas, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, pressupostos científicos, concepções filosóficas, morais, filantrópicas (Foucault, 1977/2018Foucault, Michel (1977/2018). História da Sexualidade 1: A vontade de saber (Maria Thereza Albuquerque & J. A. Albuquerque, trads.). Paz & Terra. (Original publicado em 1977)). Portanto, a sexualidade entendida como dispositivo histórico, é também uma expressão das relações de poder.
  • 3
    A branquitude, como evidenciam as autoras Maria Aparecida Bento (2002Bento, Maria Aparecida Silva (2002). Branqueamento e Branquitude no Brasil. In I. Carone & Maria A. Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). Vozes.) e Lia Schucman (2012Schucman, Lia Vainer (2012). Entre o “encardido”, “branco” e “branquíssimo”: Raça,hierarquia e poder na construção da branquitude paulista (Tese de Doutorado, em Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP).), diz do exercício de manutenção de poder dos brancos, onde a branquitude é sempre um lugar de vantagem estrutural do branco em sociedades estruturadas pelo racismo. Desse modo, os/as sujeitos/as brancos/as ocupam uma posição de privilégio se beneficiando das desigualdades raciais, e sendo colocados/as em um papel de superioridade e como a referência de humano universal.
  • 4
    Há uma forte invisibilidade nesse espaço para outras formas de sexualidades que não estejam no escopo normativo do sistema moderno de gênero, como se não existissem mulheres lésbicas e bissexuais. Gustavo Machado (2018Machado, Gustavo Silva (2018). Experiência Macabea: modos de subjetivação e sexualidade em instituições psiquiátricas de longo prazo ou asilares (Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC).) afirma que, para alguns profissionais que trabalham no contexto asilar, é muito lógico que as pessoas sejam ordenadas dentro do projeto espacial do hospital de acordo com seu sexo biológico, o que denota dois movimentos: o de negação da possibilidade do sexo e a ideia de que, caso ocorra, todos são heterossexuais.
  • 5
    Os direitos sexuais e reprodutivos (DSDR) fazem parte dos direitos humanos fundamentais, imprescindíveis nas dimensões da cidadania e da vida democrática e que deveriam ser garantidos pelo Estado.
  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001; e também do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (bolsa produtividade em pesquisa).
  • Consentimento de uso de imagem

    Não se aplica
  • Aprovação, ética e consentimento

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2022
  • Revisado
    29 Set 2022
  • Aceito
    15 Nov 2022
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