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PERSPECTIVAS INDÍGENAS ANTIRRACISTAS SOBRE O ETNOGENOCÍDIO: CONTRIBUIÇÕES PARA O REFLORESTAMENTO DO IMAGINÁRIO

PERSPECTIVAS INDÍGENAS ANTIRRACISTAS SOBRE EL ETNOGENOCIDIO: APORTES A LA REFORESTACIÓN DE LO IMAGINARIO

ANTI-RACIST INDIGENOUS PERSPECTIVES ON ETHNOGENOCIDE: CONTRIBUTIONS TO THE REFORESTATION OF OUR IMAGINARY

Resumo

O artigo analisa as especificidades do racismo anti-indígena e sua relação com os marcos temporais da colonização. Em uma abordagem qualitativa e bibliográfica, elenca eixos do apagamento das identidades indígenas (etnogenocídio). São eles, a exigência de habitação em terra demarcada; a língua indígena; a aparência estereotipada e as noções de “descendente” e “pardo”. Foram lidos 37 Trabalhos de Conclusão do Curso de Licenciatura Indígena da Mata Atlântica, da Universidade Federal de Santa Catarina, de autoria de acadêmicos guarani. Os argumentos centrais destes trabalhos foram enfatizados, sobretudo os relativos à identidade indígena guarani e à branquitude. Através da Plataforma Scielo, foi realizada análise dos artigos sobre branquitude, publicados entre 2018 e 2022. Nela foi constatado um apagamento das questões indígenas. Nos trabalhos guarani foram apontadas as especificidades do racismo anti-indígena, congregadas na categoria etnogenocídio. A pesquisa conclui apontando a importância das cosmogonias indígenas e suas temporalidades como meios de reflorestar o imaginário.

Palavras-chave:
Racismo anti-indígena; Etnogenocídio; Reflorestamento do imaginário; Descolonização; Psicologia antirracista

Resumen

El artículo analiza las especificidades del racismo antiindígena y su relación con los hitos temporales de la colonización. En un enfoque cualitativo y bibliográfico, enumera ejes de borradura de las identidades indígenas (etnogenocidio). Ellos son: el requisito de vivienda en terrenos demarcados; la lengua indígena; la apariencia estereotipada y las nociones de “descendiente” y “moreno”. Fueron leídos 37 Trabajos Finales de la Carrera Indígena de la Mata Atlántica, de la Universidad Federal de Santa Catarina, escritos por académicos guaraníes. Se enfatizaron los argumentos centrales de estas obras, especialmente los relativos a la identidad indígena guaraní y la blanquitud. A través de la Plataforma Scielo se realizó un análisis de artículos sobre la blanquitud, publicados entre 2018 y 2022. La investigación reveló una eliminación de las cuestiones indígenas. En las obras guaraníes se destacaron las especificidades del racismo antiindígena, agrupadas en la categoría de etnogenocidio. La investigación concluye señalando la importancia de las cosmogonías indígenas y sus temporalidades como medios de reforestación del imaginario.

Palabras clave:
Racismo antiindígena; Etnogenocidio; Reforestación del imaginario; Descolonización; Psicología antirracista

Abstract

This research paper analyzes the specificity of anti-indigenous racism and its relationship with the temporal milestones of colonization. In a qualitative and bibliographical approach, it lists axes of erasure of indigenous identities (ethnogenocide). They are: the requirement for living on demarcated land; the indigenous language; the stereotypical appearance and the notions of “descendant” and “brown”. 37 Final Papers from the Atlantic Forest Indigenous Degree Course, from the Federal University of Santa Catarina, authored by Guarani academics, were read. The central arguments of these works were emphasized, especially those relating to Guarani indigenous identity and whiteness. Through the Scielo Platform, an analysis of articles on whiteness, published between 2018 and 2022, was carried out. It revealed an erasure of indigenous issues. In Guarani works, the specificity of anti-indigenous racism were highlighted, grouped under the ethnogenocide category. The research conclusion points out the importance of indigenous cosmogonies and their temporalities as means of reforesting the imagination.

Keywords:
Anti-indigenous racism; Ethnogenocide; Reforestation of the imaginary; Decolonization; Anti-racist psychology

Introdução

Historicamente, povos indígenas têm sido tomados como “objetos de pesquisa” em estudos protagonizados por pesquisadores não indígenas das mais diversas áreas. Para além do mérito, da qualidade ou não destas pesquisas, este trânsito verticalizado teve, como um de seus efeitos, o estabelecimento de uma narrativa homogeneizadora sobre povos indígenas, a qual oblitera o lugar de sujeito e das práticas de resistências desses mesmos povos contra a colonização (Smith, 2018Smith, Linda Tuhiwai (2018). Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Ed. UFPR.). Apenas mais recentemente a presença indígena nas universidades tem sido possível, de maneira que temos retomado também este território como um lugar de disputa e de afirmação de nossas identidades, lutas e modos de vida.

Para além do lugar de quem é apenas pesquisado e enunciado por outras vozes, nossos povos têm buscado um protagonismo acerca de suas próprias comunidades, não se limitando a falar, pesquisar e refletir sobre si como coletivo, mas também contribuindo para outras análises, inclusive em debates sobre raça, etnia e branquitude. Tais contribuições têm a potencialidade de expandir percepções da Psicologia em sua atuação, não apenas sobre povos indígenas, mas sobretudo com povos indígenas na crítica às ideologias colonialistas que ainda persistem nos mais variados campos da profissão.

O objetivo geral deste artigo é contribuir para um letramento referente às especificidades do racismo anti-indígena partindo de perspectivas indígenas. As reflexões aqui apresentadas são, em parte, referentes à minha pesquisa de doutoramento, na qual realizei uma pesquisa bibliográfica que resultou na leitura integral e na análise de 37 trabalhos de conclusão de curso (TCC) produzidos pelas primeira e segunda turmas do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica na UFSC. Desta leitura e análise, selecionei os argumentos centrais (que mais adiante apresento) referentes à identidade guarani e a sua perspectiva em relação à branquitude, buscando trazer para a discussão as principais perspectivas presentes em ambas as turmas.

A outra parte da pesquisa bibliográfica foi realizada através da análise de produções de autores/as não indígenas de referência na temática da branquitude e dos estudos étnico-raciais. A principal plataforma utilizada foi a Scielo e minha pesquisa teve como recorte o período de janeiro de 2018 até maio de 2022. O volume de publicações sobre branquitude neste contexto totalizou 24 artigos. Em minha análise, observei que nenhum destes trabalhos se dedicou a refletir acerca da relação entre branquitude e povos indígenas. Pesquisei em cada um, através do instrumento de pesquisa por palavra-chave, os termos “índio” e “indígena” e analisei o contexto em que eram mencionados. Na absoluta maioria dos casos, estes termos estiveram presentes apenas como itens de frases de enumeração, como “negros, quilombolas, amarelos, indígenas”, sem que houvesse uma análise mais aprofundada sobre a relação entre o racismo anti-indígena e a branquitude.

Além disso, parte da pesquisa bibliográfica realizada consistiu na análise da coletânea “Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil”, lançada em 2017 pela editora Appris, organizada por Tania Muller e Lourenço Cardoso (2017Müller, Tânia & Lourenço, Cardoso (2017). Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Appris.). Privilegiei a análise deste livro por ser um dos únicos, até então, que tinham a branquitude como tema central, mas também por ser uma obra com uma autoria composta por uma grande diversidade de autores/as, de diferentes áreas de saber. Porém, também nesta obra nenhum dos capítulos dedicou-se a refletir centralmente sobre povos indígenas e branquitude. Para a ocasião deste artigo, não farei uma análise mais detalhada de cada capítulo, sendo importante pontuar, no entanto, que o resultado que tive foi de que nos trabalhos de autoria não-indígena havia um grande apagamento das especificidades indígenas na discussão sobre racismo no Brasil, estando os artigos em sua maioria voltados à reflexão sobre o racismo anti-negros/as. O objetivo de minha pesquisa foi chamar a atenção para este apagamento nos estudos do campo por parte dos pesquisadores não indígenas e ao mesmo apresentar que os trabalhos de autoria indígena, mais especificamente do povo guarani, que já vêm apresentando contribuições para este debate.

Apesar de já haver um robusto debate sobre raça não ser uma categoria biológica e sim política (Munanga, 2004Munanga, Kabengele. (2004). Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói, EDUFF. https://repositorio.usp.br/item/001413002
https://repositorio.usp.br/item/00141300...
), observei que em alguns trabalhos ainda persiste a ideia de que raça definiria algo “biológico”, enquanto “etnia” designaria a dimensão cultural. Em outros casos1 1 A explicação detalhada sobre cada texto analisado encontra-se em minha tese (Núñez, 2022). , etnia é utilizado como termo sinônimo de raça. Além do desconhecimento da diferença entre uma categoria e outra, uma hipótese levantada por Kabengele Munanga (2004) é que este uso do termo etnia, em muitos casos, viria como uma forma de “atenuar” o termo raça, como se de alguma forma etnia fosse mais “sutil”.

Historicamente, povos indígenas têm sido objetos de estudo em áreas como a da etnologia e, em um campo maior, na antropologia. Desta forma, ao mesmo tempo que povos indígenas têm sido hiper visibilizados no debate étnico, têm sido invisibilizados no debate racial (Núñez, 2022Núñez, Geni (2022). Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude [Tese de Doutorado em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC].).

Não pretendo sugerir que não mais utilizemos as categorias raça, etnia ou étnico-racial, mas alertar para seus sentidos, limites e possibilidades. Assim, tanto falar de povos indígenas apenas a partir da ideia de raça quanto de etnia incorre em um corte de nossas especificidades, uma vez que nosso pertencimento coletivo a nossos povos/etnias passa justamente pelo imbricamento dessas dimensões. Falar de etnia, para nossos povos, não é um debate opcional ou complementar, pois nossa cultura é quem somos, é por meio desta memória que cada povo constrói sua singularidade. Por isso, também é insuficiente falar em etnocídio (relacionado ao extermínio simbólico das culturas) ou em genocídio (relacionado ao extermínio concreto e material) como violências completamente independentes entre si, pois nossas culturas também são materiais e quando uma língua indígena, por exemplo, é morta, nós também morremos um pouco com ela.

A partir da análise dos TCCs de autoria guarani foi possível compreender, na perspectiva guarani, que a branquitude é definida menos por uma tonalidade de pele e muito mais sobre um certo modo de viver e de se relacionar com o mundo. Ela estaria expressa não apenas nas relações entre humanos, mas na própria crença nessa divisão entre humanos e animais, que, em nossos povos, não se apresenta dessa forma, já que compreendemos que os demais seres são também nossos parentes e não nos vemos como o ponto de progresso, evolução e civilização. Como nos ensina o cacique Babau (2019Babau, Cacique (2019). Retomada. PISEAGRAMA, 13, 98-105.) tupinambá, nós indígenas acreditamos que todos os seres devem poder viver com dignidade. Tampouco adotamos a ideia de que ser comparado aos demais bichos é motivo de ofensa pois, para nós, tal comparação nos orgulha, ainda que compreendamos o sentido racista com que esse tipo de animalização costuma ser enunciado. Como lembra Deivison Faustino (2017Faustino, Deivison (2017). Frantz Fanon, a branquitude e a racialização: aportes introdutórios a uma agenda de pesquisas. In T. Muller & L. Cardoso (Orgs.), Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil (pp. 125-138). Appris.), no mundo colonial, a noção de humano está intimamente colada à branquitude, de maneira que quem não é branco é visto como menos humano. Mas, como pontua Ailton KrenakKrenak, Ailton (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras. (2021Krenak, Ailton & Campos, Yussef (2021). Lugares de origem. Jandaíra.), agora somos nós que não queremos ser incluídos neste “clube vip” do humano.

Autores guaranis como José Benites (2015Benites, José (2015). O direito à saúde pública para os guarani: o caso da comunidade Mymba Roka [Trabalho de Conclusão de Curso (licenciatura intercultural indígena do sul da Mata Atlântica), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC].) e Eunice Antunes (2015Antunes, Eunice (2015). Nhandereko nhanhembo'e nhembo' e a py Sistema nacional de educação: um paradoxo do currículo diferenciado das escolas indígenas guarani da Grande Florianópolis [Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC].) relacionam colonização e branquitude à ideia de propriedade privada e à imposição dos diferentes marcos temporais coloniais, bem como à tentativa de dominação e exploração de seres humanos e não humanos, a não concomitância, característica das monoculturas de pensamento2 2 https://carlisleindian.dickinson.edu/teach/kill-indian-him-and-save-man-r-h-pratt-education-native-americans#:~:text=This%20resource%20includes%20the%20full,and%20Correction%2C%20held%20in%20Denver . Assim como ocorre com as noções de raça e etnia, a categoria de branquitude também deve ser localizada, para que o ponto de vista não indígena não seja considerado universal sobre o tema e sim como apenas um dentre outros.

A autodefinição guarani também não foi pautada em um fenótipo específico, mas pelo pertencimento coletivo ao povo guarani, sua cultura, língua, costumes, espiritualidade e modo de vida que o caracterizam, marcado pela relação de parentesco e afeto com os demais seres, sem que se estabeleça com eles uma relação de propriedade e hierarquia.

Apresento a seguir um debate sobre alguns eixos do etnogenocídio, categoria que proponho como possibilidade para nomear as especificidades das violências que sofremos como povos indígenas. Estes eixos foram construídos a partir da análise dos TCCs de autoria indígena, bem como a partir da pesquisa partilhada na oralidade e em formatos escritos por parentes como Laís Santos Maxakali, Casé Tupinambá, além da minha própria vivência como ativista indígena.

Eixos do etnogenocídio

A invasão de nossos territórios se iniciou em torno de 1500, mas não é um processo finalizado, pois é atualizado até os dias de hoje. Na intenção de expandir este projeto colonizador, uma das grandes ofensivas do Estado e de parte da sociedade civil vem sendo justamente a tentativa de deslegitimação das identidades indígenas e suas coletividades, uma vez que é através dessas organizações coletivas que demandamos o direito ancestral ao território.

Apesar da conquista do Artigo 231 da Constituição Federal (1988Constituição da República Federativa do Brasil(1988). Constituição de 1988. Senado Federal.), no qual se reconhece o direito indígena aos próprios modos de vida e ao território tradicionalmente ocupado, sabemos que tem havido uma grande distância entre essas promessas e seu cumprimento. Esta demora do Estado em garantir o que a Constituição preconiza diz menos sobre sua falha ou exceção e muito mais sobre sua normalidade. Afinal, como diz Achille Mbembe (2018Mbembe, Achille (2018). Necropolítica. N-1, Edições.), a burocracia estatal, seus entraves e lentidão no que diz respeito ao cumprimento dos direitos de nossos povos, ao mesmo tempo que age com extrema celeridade quando se trata da punição a quem considera como “suspeito”, é parte de sua própria necropolítica.

A perseguição contra nossas línguas, costumes e modos de vidas tem sido, em grande parte, orientada pelo racismo religioso, que desde o princípio da colonização vem inspirando e sendo inspirado pelo projeto de conversão e catequização colonizadora. A ideia de Brasil vem justamente do objetivo de tornar esse território um local cuja língua oficial é a língua portuguesa; cuja religião oficial é o cristianismo; cujo modo de ser da população deve ser direcionado ao trabalho expropriado pelo capitalismo, ou seja, um grande sistema de monoculturas (da terra, da fé, da sexualidade, dos afetos). Como nos ensina Ailton Krenak, monocultura é a imposição monolítica de um mundo só (Krenak & Campos, 2021Krenak, Ailton & Campos, Yussef (2021). Lugares de origem. Jandaíra.).

Um dos grandes objetivos dos colonizadores tem sido nos converter a uma homogeneização que lhes favoreça. Com isso, tentam nos reduzir a uma série de estereótipos, criados por eles próprios, que buscam inviabilizar a pluralidade e multiplicidade que nos caracterizam como povos indígenas.

Até a promulgação da Constituição de 1988 nós, povos originários, éramos tidos oficialmente como uma categoria social de transição, ou seja, a expectativa era de que conforme nos tornassem civilizados/cristãos/humanos, deixaríamos de ser selvagens/bárbaros/animais. É fundamental que tenhamos, uma visão crítica sobre estes termos, uma vez que, embora se apresentem como uma simples descrição da realidade, em verdade, trata-se de invenções políticas, cujos efeitos se fazem sentir. No discurso do capitão genocida Richard Henry Pratt percebemos o quanto havia (e ainda há), para muitos, uma oposição entre ser indígena/selvagem e cristão/civilizado/humano3 3 Partilhado de forma oral em rede social por Valdelice Veron, filha de Marcos Veron. https://www.instagram.com/p/Cei4p1_um_w/?igshid=YmMyMTA2M2Y= , ele dizia: “mate o índio nele e salve o homem”. Uma vez finalizado o processo de apagamento e destruição de nossos costumes, línguas e modos de vida, desaparecia “o índio” e o que restaria seria apenas mais um homem/cristão/civilizado. É por isso que tenho dito que dividir as violências que sofremos entre etnocídio (compreendido como o apagamento cultural) e o genocídio (entendido como o apagamento literal através da produção da morte) não dá conta da profunda inter-relação que há entre um movimento e outro. Inclusive, o próprio conceito de genocídio, em sua origem, trazia como fundamental a dimensão cultural e simbólica, mas por conta de uma série de silenciamentos, hoje não é desta forma que a palavra genocídio é pensada (Núñez, 2022Núñez, Geni (2022). Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude [Tese de Doutorado em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC].). Proponho, desta forma, a categoria etnogenocídio, pois

não há como um genocídio indígena não ser também etnocida, assim como não há como o etnocídio não fazer parte do genocídio, justamente porque nossa cultura, línguas, costumes e modos de vida não são apenas nossa cultura apartada de quem somos, mas é nossa própria identidade, é nossa vida. Como dizia o cacique guarani kaiowa Marcos Veron “esto que ves aquí es mi vida, mi alma, si me separas de esta tierra, me quitas la vida.”4 4 Ver mais em: http://jornalismojunior.com.br/guarani-em-sao-paulo-a-comunidade-indigena-do-jaragua/ (Núñez, 2022Núñez, Geni (2022). Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude [Tese de Doutorado em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC]., p. 56)

A seguir, desenvolverei alguns dos eixos do etnogenocídio, processo profundamente atravessado pelo racismo e que busca dar continuidade à invasão de nossos territórios (subjetivo, inclusive), objetivando deslegitimar nossas existências.

Da exigência de habitação em terra demarcada

O mesmo Estado que tarda em demarcar nossos territórios é justamente aquele que exige que a confirmação da identidade das pessoas indígenas seja feita mediante a comprovação de que habitam em uma terra demarcada. Um dos efeitos na não demarcação é uma maior dificuldade no acesso a direitos relacionados à saúde, educação e segurança.

O próprio fato de que a decisão sobre demarcar ou não nossos territórios esteja em mãos de não indígenas é expressão da colonização, que vem buscando retirar nossa autonomia sobre nosso próprio território, ao mesmo tempo que colocam a si mesmos na posição de “donos da terra”. Esta ideia de propriedade e posse da terra não é presente em nossos povos, uma vez que não percebemos os seres (humanos ou não humanos) como objetos ou produtos a serem comprados ou vendidos.

A própria divisão entre rural e urbano não foi construída por nós, pois entendemos que onde quer que estejamos aqui, estamos em terra indígena.

Carlos Everaldo Coimbra e Ricardo Ventura Santos (2000Coimbra, Carlos & Santos, Ricardo (2000). Saúde, minorias e desigualdade: algumas teias de inter-relações, com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Revista Ciências e Saúde Coletiva, 5(1), 01-07., p. 5) pontuam que “a presença indígena nas cidades brasileiras é, em geral, caracterizada por uma inserção marcadamente periférica, vivendo em grupos de tamanho variável, situados nas favelas mais pobres, onde são alvo de forte discriminação”.

Como elucida a liderança guarani mbya David Karai Popygua5 5 Modelo de RANI disponível em: http://tawaieh.blogspot.com/2012/01/rani.html (2020Popygua, Davi (2020). “Guarani em São Paulo: a comunidade indígena do Jaraguá”. Entrevista concedida a Gustavo Zanfer. ECA-USP: Jornalismo Junior. https://jornalismojunior.com.br/guarani-em-sao-paulo-a-comunidade-indigena-do-jaragua/
https://jornalismojunior.com.br/guarani-...
, s/p), “se tem que demarcar a terra, deveria demarcar para o juruá, para ele viver ali em um lugar e respeitar o resto. Afinal, a aldeia está na cidade ou a cidade está na aldeia? Quem veio primeiro?”

Vale ressaltar que há múltiplos trânsitos indígenas, com narrativas singulares em cada etnia. Este é um ponto especialmente importante quando pensamos na tese do Marco Temporal, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF). Nesta tese, só teria direito a demandar demarcação de terra aquele povo que conseguisse provar que estava no mesmo local à data da promulgação da Constituição de 1988. Além da expulsão forçada, em diversos de nossos povos, a ideia de transitoriedade, de movimento e mudança de território faz parte da própria cosmogonia, sendo, novamente, um gesto do racismo religioso como colocar como critério universal a fixidez e a imutabilidade, características do deus cristão (Machado, 2021Machado, Roberto (2021). Nietzsche e a verdade. Paz & Terra.).

Em nosso povo guarani, temos como um dos marcadores mais importantes de nossa identidade a caminhada, o guata porã, a boa/bela caminhada, de maneira que a noção de movimento está presente em nossa própria espiritualidade.

A proposital lentidão dos processos demarcatórios não está, desta forma, descolada da negação das identidades indígenas. Ambas fazem parte de um ciclo que se reforça mutuamente: se só tem direito a demandar demarcação de território quem é indígena e não é reconhecido como indígena quem não vive em terra demarcada, o paradoxo prossegue.

Inclusive, essa exigência quanto ao local onde se vive não se apresenta a outros povos, pois a relação íntima que se construiu entre território, raça e etnia tem especificidades históricas para povos originários (indígenas e quilombolas). Não observamos, por exemplo, pessoas brancas apresentando-se como "brancas-urbanas" ou “brancas-rurais”, o lugar onde moram, quando mencionado, acaba aparecendo como uma informação complementar e não como uma hifenização indissociável do fato de serem brancos. Já com povos indígenas vemos que a expressão “índio-urbano” muitas vezes traz, implicitamente, uma ideia de “índio falso”. Casé Angatu Tupinambá frisa que “o etnocídio é a negação da nossa existência ao afirmar que, para ser índio ou quilombola, é preciso que as pessoas vivam como no século XVI" (Angatu, 2019).

A negação da identidade indígena é conveniente de muitas formas para a continuidade do projeto capitalista e colonial. Um exemplo disso percebemos no encarceramento, em que muitas vezes pessoas indígenas são compulsoriamente marcadas como pardas, o que lhes tira o acesso aos direitos específicos (Ribeiro et al., 2020Ribeiro, Luis, Cardoso, Cristina & Silva, Sandra (2020). Coronavírus, aprisionamento e saúde indígena: a invisibilidade do etno-genocídio de Estado. Confluências, 22(2), 311-334., p. 330).

Também na retirada do acesso à saúde a negação da identidade indígena segue sendo central. Os/as autores/as salientam que, durante a pandemia da Covid-19, além de haver uma subnotificação das mortes de indígenas em contexto urbano em decorrência deste vírus (produzidas não só “biologicamente”, mas também acentuadas pela negligência racista), havia uma resistência de secretarias de saúde indígena ao atendimento a indígenas em contexto urbano, inclusive impondo maior dificuldade no acesso à vacinação prioritária (Ribeiro, et al., 2020Ribeiro, Luis, Cardoso, Cristina & Silva, Sandra (2020). Coronavírus, aprisionamento e saúde indígena: a invisibilidade do etno-genocídio de Estado. Confluências, 22(2), 311-334.).

Um dos efeitos desse tipo de etnogenocídio é, reafirmo, a subnotificação estatística, pois é através dela que se subnotificam dados de encarceramento, saúde, educação, um extermínio ao mesmo tempo perpetrado pela violência policial, pela fome e encarceramento quanto pelas políticas de negação de identidade indígena.

No movimento indígena, há o posicionamento de que todo este território, para além das fronteiras de estado e de país, é terra indígena. Angélica Kaingang (2017Kaingang, Angélica (2017). In “Daniel Munduruku: eu não sou índio, não existem índios no Brasil”. Nonada, https://www.nonada.com.br/2017/11/daniel-munduruku-eu-nao-sou-indio-nao-existem-indios-no-brasil/
https://www.nonada.com.br/2017/11/daniel...
, s/p) pontua que já ouviu "muitas vezes que 'lugar de índio' é no mato. Mas que mato está sobrando pra nós?".

Tanto indígenas que vivem na cidade quanto indígenas que vivem em aldeias não demarcadas passam por violências específicas perpetradas pelo Estado, que se vale desse critério para criar barreiras no acesso a direitos. É preciso pontuar que os parentes que vivem em contexto de terra demarcada continuam sendo alvo de uma série de violências brutais. Desde 1500, em nenhum contexto povos indígenas têm realmente vivido com plena segurança e a demarcação de terra é uma redução de danos importante, mas, que não dá conta de erradicar o racismo e o etnogenocídio.

Compreendemos que não deixamos de ser indígenas por não vivermos todos em terra demarcada, pois essa delimitação, além de nos ser estrangeira e posterior ao nosso direito congênito ao território, não dá conta da nossa compreensão do que é um território. Compreendemos que nosso próprio corpo-mente-espírito também é parte da terra, nossas línguas, costumes e modos de vida é o que orientam nossa identidade.

Da exigência do falar a língua indígena

O mesmo Estado que criminaliza e perseguiu nossas línguas indígenas é quem cobra que “índio de verdade” seria apenas aquele fluente em sua linguagem originária.

Desde o início da invasão, a catequização demonizava línguas indígenas e essa perseguição prosseguiu séculos depois, agora junto de outros mecanismos, ainda que a evangelização compulsória persista nos dias de hoje, agindo nesse mesmo sentido, de tentar impor não só a língua portuguesa, mas o modo de pensar do branco (Felippe, 2007Felippe, Guilherme Galhegos (2007). Variações discursivas sobre os registros sacramentais: batismo, confissão e matrimônio nas reduções jesuíticas (1609-1640) [Dissertação de Mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS].).

Nessa narrativa salvacionista, que continua contemporânea, percebemos uma inversão que reifica o etnogenocídio, pois em nome do bem, do desenvolvimento e da civilização, há justamente a (tentativa de) destruição e extinção de nossos povos. Nesse caso, apenas “o outro” é visto como o “diferente”, enquanto o branco, o não indígena, é visto como o ponto de partida da normalidade (Kilomba, 2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.). Quando dizem, portanto, que todos devem ser iguais, todos devem ser o mesmo povo, a referência são os não indígenas, não costuma se dizer que a assimilação será dos brancos aos modos de vida indígena. Aliás, este nunca foi um projeto político de nossos povos, que nunca objetivaram subjugar todos os demais povos aos nossos deuses ou às nossas perspectivas como se fossem universais.

Da invasão em 1500, passando pelo Diretório Pombalino e o período da Ditadura Militar até os dias atuais, as violências não foram diminuindo conforme a passagem cronológica do tempo, uma vez que a própria ideia de progresso e desenvolvimento opera justamente contra nossos povos.

Apesar destas perseguições, muitos de nossos povos conseguiram resistir e manter suas centenas de línguas originárias vivas. Uma das resistências está na retomada das línguas e seu fortalecimento, iniciativa que acontece em conjunto com a retomada do território, que é compreendido em sua dimensão cosmogônica. Além disso, a própria “língua portuguesa” também tem sido ressignificada, com entonações, termos e modos de fala que imprimem expressões indígenas e afro (Martins, 2003Martins, José de Souza (2003). A proibição da língua portuguesa. Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2007200309.htm
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opinia...
). Há uma grande diversidade entre povos indígenas, pois há etnias que puderam preservar plenamente suas línguas originárias e há outras que, mesmo havendo uma perda significativa da língua, ainda conseguiram impedir seu total desaparecimento.

A perseguição contra línguas indígenas faz parte, também, da violência do etnogenocídio, pois como assinala Bartolomé Clavero, há que se questionar

Por que políticas que ameaçam línguas e outras dimensões culturais de um particular grupo humano não são consideradas genocidas? Por que se usa a palavra genocídio apenas quando se relaciona com assassinatos em massa e, muitas vezes, sem ao menos referir o fato de que o objetivo é a destruição de um grupo humano diferenciado? . . . ainda que claramente objetivem causar o desaparecimento do grupo enquanto tal? (Clavero, citado por Palmquist, 2018Palmquist, Helena (2018). Questões sobre genocídio e etnocídio indígena: a persistência da destruição [Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal do Pará, Belém/PA]., p. 49)

Da exigência de uma aparência correspondente ao estereótipo “cara de índio”

A ideia de que “índio é tudo igual” na aparência, nas línguas e nos costumes é parte do mesmo processo colonizador de tentativa de deslegitimação da diversidade indígena (Munduruku, 2017Munduruku, Daniel (2017). Fala Pública na 63ª Feira do Livro de Porto Alegre. https://www.nonada.com.br/2017/11/daniel-munduruku-eu-nao-sou-indio-nao-existem-indios-no-brasil/
https://www.nonada.com.br/2017/11/daniel...
). No Brasil, somos cerca de 375 povos e contamos com 275 línguas indígenas (Baniwa, 2011Baniwa, Gersem (2011). Educação para manejo e domesticação do mundo entre a escola ideal e a escola real - Os dilemas da educação escolar indígena no Alto Rio Negro [Tese de Doutorado em Antropologia - Universidade de Brasília, Brasília/DF].).

A imagem estereotipada da pessoa indígena como o “índio” que está sempre e necessariamente nu, pintado, com cabelos lisos, pretos e olhos puxados, é, ainda, bastante veiculada nas escolhas, nas festividades como Carnaval (Kayapó & Brito, 2015Kayapó, Edson & Brito, Tamires (2015). A pluralidade étnico-cultural indígena no Brasil: o que a escola tem a ver com isso? Mneme - Revista de Humanidades, 15(35), 38-68.). Ao mesmo tempo que este “índio de verdade” é alocado no passado, em 1500, a pessoa branca é vista como contemporânea, pertencente ao local e ao tempo, sem que seja vista como “de fora”, ainda que sua chegada neste território seja resultado de um processo posterior. A branquitude, em sua ilusão de superioridade (Schucman, 2012Schucman, Lia (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana [Tese de Doutorado em Psicologia, Universidade do Estado de São Paulo, São Paulo/SP].), também formula sua noção de tempo autocentrada, colocando a si como critério de evolução, desenvolvimento e progresso, ao passo em que projeta em nós seu contraste.

Considerando as centenas de etnias que temos no Brasil e também o processo (muitas vezes forçado) de miscigenação, reconhecemos que a diversidade fenotípica indígena é vasta. Este deslocamento temporal que nos associa a seres do passado também é posto em cena quando, ainda que se preencha as exigências racistas de moradia em aldeia demarcada, a fluência em língua indígena e a “cara de índio”, persiste a desqualificação da identidade através do tempo. Afinal, se a pessoa indígena usa celular, veste roupas que não indígenas usam, isso já seria sinal de sua “modernidade” e, logo, de sua “falsa” indigeneidade.

É imprescindível que os critérios raciais aplicados a pessoas não-indígenas não sejam acriticamente utilizados para povos indígenas pois, como ressalta Casé Angatu (2019Angatu, Casé (2019, 31 de janeiro). “Nós não somos os donos da terra, nós somos a terra” Entrevista concedida a Ricardo Machado. Revista Unisinos (IHU - online), 527(27), https://www.ihu.unisinos.br/582140-nos-nao-somos-donos-da-terra-nos-%20somos-a-terra-entrevista-especial-com-case-angatu-xukuru-tupinamba
https://www.ihu.unisinos.br/582140-nos-n...
), somos da cor da terra e ela tem todas as cores. Além disso, diferentemente do que acontece com outros grupos raciais, definidos pela cor (branca, preta, parda e amarela), indígena não é uma palavra que designe uma cor, pois nossas identidades coletivas não são definidas pelo olhar do colonizador sobre nossos povos, mas sim a partir de nossa própria etnia.

O fenótipo estereotipado do que seria um “indígena de verdade”, a exigência de habitação em terra demarcada e de falar língua indígena são todos meios do etnogenocídio questionar a legitimidade das identidades indígenas, são ações que “sempre estiveram e estão relacionadas à espoliação das terras indígenas, tentando destruir um direito ancestral, originário, congênito, natural, relacional e existencial aos diferentes territórios” (Angatu, 2021Angatu, Casé (2021). Tupixuara Moingobé Ñerana. Revista Espaço Acadêmico, 21(231), 13-24., p. 17).

Para além do fenótipo, parte do racismo anti-indígena está no estranhamento a atividades que “não tenham cara de índio”, em um sentido mais amplo, que nos dissociam de tudo quanto não veem como “primitivo” em seu marco temporal.

A noção de “descendente” e sua relação com a produção do “pardo”

Como dito, a classificação pela cor da pele e/ou miscigenação genética produz necessariamente o apagamento indígena, em que se tem apenas a caracterização do “moreno”, “pardo”, “descendente”, entre outros termos. Para o Estado, quanto maior o número de “descendente de índio” em vez de “índios de verdade” tanto mais facilitado o processo de retirada das terras originárias.

Atualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(2012). Censo Brasileiro de 2010. Autor.) divide a categoria cor/raça em cinco grupos: indígena, preto, branco, amarelo e pardo. Antes disso, no primeiro recenseamento (1872), havia a categoria “caboclo”, que pretensamente representaria “índios e descendentes de índios com brancos”. Ou seja, o termo “descendente” já consta desde este primeiro momento.

Apenas em 1991 o termo indígena foi incluído nos censos oficiais, de maneira que, por mais de um século, não houve sequer a possibilidade de marcação de racialidade indígena. Caboclos, sertanejos, bugres, pardos, mestiços, morenos foram e continuando sendo parte de um vocabulário social que define povos indígenas. Estes termos têm contingências históricas e geográficas, cada região constrói suas próprias formas de designar a racialidade indígena.

O parente Kum Tum Akroá Gamela ilustra esse ponto, quando partilha uma violência etnogenocida sofrida por seu povo, Gamela, que teve sua identidade indígena negada em uma pesquisa que os nomeou como “camponeses”. Ele explica que

não é só o governo, mas é um conjunto de instituições do Estado que vão negando a existência da gente, quando dizem, por exemplo, que somos uma comunidade que nem teve o reconhecimento formal pela FUNAI. Por que estão dizendo que são uma comunidade, mas se nem tiveram o reconhecimento formal pela FUNAI? Isso é cantiga antiga, é tutela . . . nós não somos “índios” mesmo, nós somos Gamela . . . Não, não sou índio: eu sou um povo. (Milanez et al., 2019Milanez, Felipe, Sá, Lucia, Krenak, A., Cruz, Felipe, Ramos, Elisa, & Jesus, Genilson (2019). Existência e diferença: o racismo contra povos indígenas. Revista Direito e Praxis, 10(3), 2161-2181. https://www.scielo.br/j/rdp/a/3SxDNnSRRkLbfh3qVFtmBDx/
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, p. 2173, grifo meu)

Foi como pardos que Pero Vaz de Caminha descreveu em suas cartas as pessoas indígenas que vira. Então, embora esta associação entre pardo e indígena já remonte deste período, tem sido um esforço do movimento indígena reforçar que, embora não nos reivindiquemos politicamente como pardos, não podemos ignorar que é desta forma que somos descritos em uma série de instâncias públicas.

Sabemos que, na década de 1970, o movimento negro constatou que havia uma grande similaridade nos dados sociais das populações preta e parda, do ponto de vista da violência policial, violência obstétrica, empobrecimento, dentre outras. Esta constatação motivou a adoção da categoria negro/a como sendo a resultante destas duas outras, preto/a e pardo/a (Carneiro, 2005Carneiro, Sueli (2005). A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. [Tese de Doutorado em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP].). Esta aposta tem sido adotada por diversas organizações como o Estatuto da Igualdade Racial, ainda que o próprio IBGE não adote em suas categorias o termo negro/a. Reconhecemos a importância política deste gesto, uma vez que foi a partir dele que foi possível fortalecer uma série de políticas que compreendem que a população não branca é a maioria no Brasil. No entanto, é fundamental que se reconheça que não são apenas pessoas negras as designadas como pardas. Há vasta documentação (parte da qual citada ao longo deste texto), que testifica o apagamento indígena.

O que permanece como válido é que persiste uma grande hierarquia entre brancos e não brancos no Brasil, no que diz respeito a desigualdades sociais, mas estas populações não podem ser homogeneizadas.

Uma das comprovações acerca do quanto a população indígena também tem sido marcada como parda aparece justamente em alguns de seus principais documentos, o RANI (Registro Administrativo de Nascimento de Índio). Em pesquisa que realizei em modelos de RANIs divulgados publicamente6 6 Silva, Timóteo, (Timóteo Popygua) (2017). “Depoimento: Verá Tupã Popygua Timóteo da Silva”. Revista Continente, 1(1), 1-03. , observei que, embora haja o campo para afirmação étnica, há em muitos também o campo “cor”, em que o preenchimento pardo continua presente. A associação de pessoas indígenas à identidade parda é, muitas vezes, documentada em seu próprio registro de identidade. O parente Kum Tum Akroá, do povo Gamela, reforça essa crítica quando denuncia que

O Estado negou a nossa existência, mas nós continuamos existindo, e todo dia a gente tem que provar que existe. Tem que provar ao Estado brasileiro que a gente existe, tem que provar à Universidade, tem que explicar que a gente existe. Os cartórios se negam a registrar nossas crianças como indígenas, dizendo que só podem ser registradas como “pardas”: essa é uma forma violenta de racismo. Uma forma de intimidação que está ligada à questão da terra: ao aceitar que uma criança carregue a identidade de indígena, o Estado está aceitando que essa criança tenha direito à terra. (Milanez et al., 2019Milanez, Felipe, Sá, Lucia, Krenak, A., Cruz, Felipe, Ramos, Elisa, & Jesus, Genilson (2019). Existência e diferença: o racismo contra povos indígenas. Revista Direito e Praxis, 10(3), 2161-2181. https://www.scielo.br/j/rdp/a/3SxDNnSRRkLbfh3qVFtmBDx/
. https://www.scielo.br/j/rdp/a/3SxDNnSR...
, p. 2172)

Toda essa pluralidade de termos para se referir a “descendentes” indígenas vem sendo utilizada de forma estratégica pelo Estado, que convenientemente reforça nossa subnotificação. Quando observamos os dados demográficos no Brasil, percebemos que os locais onde há maior percentual da população parda são justamente territórios onde há um grande contingente de povos indígenas. Alguns exemplos: no estado do Pará, 76,7% da população é declarada como parda; na região metropolitana de Manaus, 5,2% da população se afirma indígena, 75% parda e 3,1% preta, ou seja, se a soma acionada for pardo+preto, teríamos que 78,1% das pessoas desta região seriam negras, algo que não se sustenta se lembrarmos que Amazonas é maciçamente um território ocupado por indígenas (IBGE, 2012). Dentre os muitos efeitos políticos do apagamento indígena na categoria pardo, um dos mais nefastos é a própria invisibilização do racismo como uma violência que incide também sobre pessoas indígenas, daí a importância de haver uma reformulação da maneira como os censos vêm sendo feitos, considerando que estes “recenseamentos nacionais são reconhecidos como uma das principais fontes para subsidiar as políticas públicas, pois além de caracterizar a população, produzem informações nacionalmente representativas de grupos minoritários, geralmente submetidos a expressivas vulnerabilidades sociais” (Marinho et al., 2019Marinho, Gerson, Bastos, João, Longo, Luciene, & Tavares, Felipe (2019). Classificação de cor/raça de filhos em domicílios indígenas no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 35, 1-12., p. 7).

Considerações finais

Como ilustrado ao longo deste texto, boa parte das violências contra povos indígenas operam a partir de uma certa ideia de tempo, linear e colonial. Esta noção de tempo aparece não só no campo das políticas institucionais, mas como uma influência na própria construção epistemológica, de áreas como a Psicologia.

O exercício de problematizar as especificidades do racismo contra pessoas indígenas também é um convite para que pensemos acerca do tempo que dá sentido à lógica colonial. Afinal, também em nossa área há um vocabulário acerca das fases do desenvolvimento, do progresso e amadurecimento humano que podem trazer exatamente esta mesma perspectiva evolucionista, em que o tempo seria linear e gradativo.

Historicamente, nós povos indígenas somos colocados como seres primitivos, não só no sentido literal do termo, dos povos primeiros, mas sobretudo como povos atrasados, que não atingiram a maturação, o amadurecimento, que, por sua vez, estariam justamente em povos ditos civilizados, estes sim, evoluídos. Em obras como Totem e Tabu e outros trabalhos (1913-1914), de Sigmund Freud (1974Freud, S. (1974). Totem e tabu. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud(Vol. 13, pp. 11-191). Imago.), há uma ilustração deste tipo de lógica, ainda que ela não esteja presente apenas na psicanálise freudiana, pois, como já dito, perpassa toda a psicologia hegemônica, indo além da própria psicologia.

Seja em textos clássicos e canônicos, seja em leituras contemporâneas, nós povos indígenas seguimos sendo, com frequência, associados ao atraso, à “infância”, ao que não é desenvolvido, ao que vai na contramão do progresso. Seríamos o primeiro estágio, a ser superado, enquanto as sociedades ditas civilizadas seriam o último a ser alçado. É por meio deste tipo de pensamento que a tutela contra nossos povos insiste em se afirmar, inclusive quando lembramos que a atuação da Psicologia com povos indígenas nem sempre tem respeitado nossa autonomia, costumes e modos de vida.

Aprender sobre o racismo anti-indígena pode ser uma das maneiras de consolidar um letramento anticolonial que nos auxilie a não perpetuar posturas epistemológicas e metodológicas inspiradas na universalização. Questionemos, então, teorias e práticas que adotam um posicionamento segundo o qual, se há recorrência de condutas em um determinado povo, isso quer dizer que em todos os povos do mundo (quer lhe sejam conhecidos ou não), a humanidade se comportaria sobre as mesmas bases. Nesse sentido, é fundamental que a Psicologia, ou melhor, que as psicologias consigam tomar para si o exercício de não mais partir da universalização colonial para definir seus critérios do que conta como pessoa, do que avaliam como verdadeiro, moral, bom ou mau, buscando guiar-se pela laicidade como uma postura ética inescapável de seu fazer profissional.

Neste ponto, reforço a importância de que perspectivas guarani, e indígenas em geral, sejam cada vez mais escutadas e reconhecidas como epistemologias válidas para se pensar e combater o racismo e o etnogenocídio, pois, além do diagnóstico das violências coloniais, também apontam pistas para o reflorestamento do imaginário e de outros tempos.

Afinal, é justamente desta noção de tempo linear, evolutivo, progressivo, que uma série de violências acontece não apenas entre humanos, mas contra os demais seres, vistos como seres inferiores, descartáveis, menos evoluídos que os humanos e, portanto, passíveis de dominação. Em nossos povos não adotamos este tempo e é por isso que as hierarquias entre humano e animal, natureza e cultura, mente e corpo, dentre tantos outros binarismos, não se apresentam em nossas cosmogonias. Para nós, nem o tempo que passou necessariamente é um atraso, nem o que virá será um avanço, entre idas e vindas, ou em descontinuidades, como diria Michel Foucault (2010Foucault, Michel (2010). A Arqueologia do Saber. Forense Universitária.).

Como assinala o filósofo guarani Timóteo Popygua, para nós o tempo é espiralar, não tem começo nem fim. Por isso, compreendemos que a saúde, que é sempre coletiva, está na concomitância e na simultaneidade que caracterizam a diversidade das florestas, muito mais que nas monoculturas, que só veem um caminho, uma verdade, uma vida possível, a própria.

Referências

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    » https://www.ihu.unisinos.br/582140-nos-nao-somos-donos-da-terra-nos-%20somos-a-terra-entrevista-especial-com-case-angatu-xukuru-tupinamba
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Notas

  • 1
    A explicação detalhada sobre cada texto analisado encontra-se em minha tese (Núñez, 2022).
  • 2
    https://carlisleindian.dickinson.edu/teach/kill-indian-him-and-save-man-r-h-pratt-education-native-americans#:~:text=This%20resource%20includes%20the%20full,and%20Correction%2C%20held%20in%20Denver
  • 3
    Partilhado de forma oral em rede social por Valdelice Veron, filha de Marcos Veron. https://www.instagram.com/p/Cei4p1_um_w/?igshid=YmMyMTA2M2Y=
  • 4
    Ver mais em: http://jornalismojunior.com.br/guarani-em-sao-paulo-a-comunidade-indigena-do-jaragua/
  • 5
    Modelo de RANI disponível em: http://tawaieh.blogspot.com/2012/01/rani.html
  • 6
    Silva, Timóteo, (Timóteo Popygua) (2017). “Depoimento: Verá Tupã Popygua Timóteo da Silva”. Revista Continente, 1(1), 1-03.

Notas

  • Financiamento

    Bolsa CAPES Demanda Social

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2023
  • Revisado
    25 Set 2023
  • Aceito
    25 Set 2023
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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