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CORP(O)RALIDADE COMO METODOLOGIA: COMPOSIÇÕES POSSÍVEIS ENTRE ESCREVIVÊNCIA E FILOSOFIA UBUNTU

CORP(O)RALIDADE COMO METODOLOGÍA: POSIBLES COMPOSICIONES ENTRE "ESCREVIVÊNCIA" Y FILOSOFÍA UBUNTU

CORP(O)RALIDADE AS METHODOLOGY: POSSIBLE COMPOSITIONS BETWEEN "ESCREVIVÊNCIA" AND UBUNTU PHILOSOPHY

Resumo

Este artigo explora a Corp(O)ralidade como metodologia científica decolonial, ligada à filosofia Ubuntu e a escrevivência de Conceição Evaristo. Baseado na experiência do autor principal, em oficinas de dança afro no COART - UERJ, em 2019, e nas aulas on-line de Eliete Miranda durante a pandemia de covid-19 em 2020-2021. O trabalho é fruto de uma pesquisa de dissertação de mestrado (2020-2022), que reflete a construção de uma metodologia decolonial. A Corp(O)ralidade enfatiza a oralidade na dança afro, transmitindo os saberes ancestrais dos Orixás. A Teoria Ator-Rede é a metodologia, uma vez que valoriza todos na construção do conhecimento. O conceito Ubuntu destaca coletividade e solidariedade, conectando-nos aos outros. A Escrevivência de Conceição Evaristo compreende a oralidade negra e valoriza o conhecimento das mulheres negras. A pesquisa busca trazer a Corp(O)ralidade enquanto uma metodologia decolonial, que une os entendimentos da filosofia Ubuntu e a oralidade da escrevivência, ambos presentes da dança afro.

Palavras-chave:
Ubuntu; Corp(O)ralidade; Escrevivência; Psicologia; Dança afro

Resumen

Este artículo explora la “Corp(O)ralidade” como metodología científica decolonial, vinculada a la filosofía Ubuntu y la “escrevivência” de Conceição Evaristo. Basado en talleres de danza afro en COART - UERJ en 2019 y clases en línea de Eliete Miranda durante la pandemia de covid-19 en 2020-2021. Resulta de una investigación de tesis de maestría (2020-2022) que refleja la construcción de una metodología decolonial. “Corp(O)ralidade” enfatiza la oralidad en la danza afro, transmitiendo conocimientos ancestrales de los Orixás. La Teoría Actor-Red es la metodología, valorando a todos en la construcción del conocimiento. El concepto Ubuntu destaca la colectividad y la solidaridad. La “escrevivência” de Conceição Evaristo comprende la oralidad negra y valora el conocimiento de las mujeres negras. La investigación presenta “Corp(O)ralidade” como metodología decolonial que une la filosofía Ubuntu y la oralidad de la “escrevivência”, presentes en la danza afro.

Palabras clave:
Ubuntu; Corp(O)ralidade; Escrevivência; Psicología; Danza afro

Abstract

This article explores "Corp(O)ralidade" as a decolonial scientific methodology. "Corpo" means "body" in Portuguese, therefore the concept unites body and orality in a word-juggling. It is based on the main author's experience in Afro dance workshops at COART - UERJ in 2019 and online classes with Eliete Miranda during the covid-19 pandemic in 2020-2021. The work is the result of a Master's thesis research (2020-2022) that reflects on the construction of a decolonial methodology. "Corp(O)ralidade" emphasizes orality in Afro dance, transmitting ancestral knowledge of the Orixás. Actor-Network Theory is the methodology, valuing everyone in the construction of knowledge. The concept of Ubuntu highlights collectivity and solidarity, connecting us to others. Conceição Evaristo's "Escrevivência" encompasses black orality and values the knowledge of black women. The research aims to present "Corp(O)ralidade" as a decolonial methodology that combines the understanding of Ubuntu philosophy and the orality of "escrevivência", both present in Afro dance.

Keywords:
Ubuntu; Corp(O)ralidade; Escrevivência; Psychology; Afro Dance

Introdução

Este artigo é fruto da pesquisa de mestrado intitulada Corp(O)ralidade no dançar afro: desafios e lutos de um pesquisador na pandemia e têm como origem a experiência na oficina de dança afro Coordenadoria de Artes e Oficinas de Criação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (COART/UERJ), no período de março a dezembro de 2019, e nas aulas de dança on-line da dançarina Eliete Miranda, de abril de 2020 a junho de 2021, período no qual estávamos na pandemia covid-19. Iniciamos esta escrita falando com vozes historicamente silenciadas pelas agências do racismo. Nossa escrita transita com o autor principal sendo um homem, negro, brasileiro, psicólogo e doutorando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UERJ, que atuou no campo de dança afro. Também compõem a escrita duas mulheres brancas (orientadoras), uma delas francesa e outra brasileira, e uma mulher negra, brasileira, psicóloga e mestre em Psicologia Social, auxiliando na construção das reflexões e construção metodológica. O texto segue em terceira pessoa do plural e em alguns momentos em primeira pessoa do singular, sendo este último nos momentos de reflexões do campo pelo autor principal. Com o intuito de pensar uma metodologia que seja decolonial e em formas de fazer psi que sejam contra hegemônicas, refletimos sobre as possibilidades epistemológicas que o dançar afro tem na promoção de conhecimento e de novas práticas que façam sentido para a população negra no Brasil. Trabalhamos com uma política de nomes, na qual situamos os autores referenciados na pesquisa, evidenciando aquilo que for propositivo para a discussão. Nesta pesquisa, situamos raça, gênero e nacionalidade dos autores, como forma de romper com o silenciamentos de vozes acadêmicas femininas, negras e do sul global.

A Oficina de dança afro realizada na Coordenadoria de Artes e Oficinas de Criação (COART/UERJ), em 2019, contava com quinze participantes (incluindo a professora de dança), sendo: quatro homens (três negros e um branco), onze mulheres (quatro negras, um indígena e seis brancas) e funcionava semanalmente às segundas-feiras à tarde, tendo duração de duas horas. Na oficina de dança afro on-line (2020-2021), de Eliete Miranda, contávamos com sete participantes: um homem negro (autor principal do artigo) e seis mulheres (duas negras e quatro brancas). A oficina on-line acontecia às quartas-feiras das 10h às 12h, de forma remota. A experiência do campo é trazida e experienciada pelo olhar e pela reflexão de Hebert Santos, porém na perspectiva que descreveremos, entendemos que a construção é coletiva, como nos aponta a filosofia Ubuntu (Ngomane, 2020Ngomane, M. (2020). Ubuntu: Lecciones de sabiduría africana para vivir mejor. Grijalbo Ilustrados.) e a Escrevivência de Conceição Evaristo (2020Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte.). O objetivo principal deste artigo é trazer a experiência vivida do campo de dança afro, e como esse produz uma compreensão decolonial de corpo, filosofia, comunicação e construção de conhecimento. A partir desse entendimento, procuramos dialogar com as construções de práticas de psicologia que abordem e compreendam o corpo em sua pluralidade.

Levando em consideração as vivências como fio condutor da construção da Corp(O)ralidade, metodologia desta pesquisa, nos inspiramos em Conceição Evaristo (2006Evaristo, C. (2006). Becos da memória. Mazza.), como referência em seus estudos sobre escrevivência. Conceição Evaristo é uma mulher negra, escritora e linguista brasileira. Explicando a origem do termo, ela responde para o seminário virtual “A escrevivência de Conceição Evaristo”, iniciativa do Itaú Social em parceria com a MINA Comunicação e Arte, desenvolvida a partir do Projeto Oficina de Autores - Memórias e escrevivências de Conceição Evaristo, lançado em 2018, a autora diz:

Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem também. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos gráficos, do valor da escrita, sem esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos ancestrais. Potência de voz, de criação, de engenhosidade que a casa-grande soube escravizar para o deleite de seus filhos. E se a voz de nossas ancestrais tinha rumos e funções demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita não. Por isso, afirmo: ‘a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los de seus sonhos injustos’. (Evaristo, 2020Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte., p. 30)

Nesta mesma direção se articula Grada Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.), mulher negra, escritora e psicóloga portuguesa, que também nos convoca a pensar sobre os silenciamentos produzidos com a colonização, em seu livro, Memórias da plantação. No primeiro capítulo, a autora aborda o histórico uso das máscaras como forma de tortura e silenciamento, cujos impactos simbólicos perduram até hoje. Inicialmente, as máscaras eram utilizadas para impedir que pessoas negras escravizadas comessem durante a colheita, mas também as privavam de falar, gerando medo. Esse medo de se expressar livremente ainda é sentido por muitas pessoas negras atualmente. Ao usarmos nossas vozes, buscamos ecoar as vozes pretas silenciadas ao longo da história. Escreviver, portanto, reafirma essas vozes que foram e continuam sendo silenciadas.

Grada Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.) e Conceição Evaristo (2020Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte.) fortalecem as vozes negras ao combinar saberes da oralidade e da escrevivência. Na dança afro, encontramos os princípios do Ubuntu. Mungi Ngomane (2020Ngomane, M. (2020). Ubuntu: Lecciones de sabiduría africana para vivir mejor. Grijalbo Ilustrados.), mulher preta sul-africana, explora como essa filosofia ancestral dialoga com a dança afro e a psicologia. Seu livro, Ubuntu. Lecciones de Sabiduría Africana para vivir mejor, apresenta ensinamentos de seu avô, Desmond Tutu, ativista negro sul-africano e ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1984. O Ubuntu valoriza a coletividade, o respeito e a solidariedade, ampliando nossos olhares e interações na pesquisa e psicologia. A diversidade é propositiva, enriquecedora e cria conexões significativas.

Isso reflete o modo de pesquisa do Laboratório afeTAR, um Grupo de Pesquisa e Unidade de Desenvolvimento Tecnológico na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que utiliza diários de campo para valorizar a vivência como fonte de conhecimento. O foco está no campo, potencializando a compreensão e reflexão dos autores. Segundo Jeanne Favret-Saada (2005Favret-Saada, J. (2005). Ser afetado. Cadernos de Campo, 13, 155-161.), os diários de campo permitem revisitar experiências vividas. Nesta abordagem, continuamos revisitando os diários, agregando novas camadas às experiências escritas (Tsallis et al., 2022Tsallis, A., Moraes, M., Vianna, K., Santos, L., Silva, L., Bredariol, T., Aires, J. (2022). Sobre afecTAR: del campo a la escritura como laboratorio. SciComm Report, 2(1), 1-13. https://doi.org/10.32457/scr.v2i1.1645
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). Alexandra Tsallis, uma mulher branca e francesa, lidera o artigo, em conjunto com um coletivo de mulheres psicólogas (Márcia Moraes, Jackeline Aires, Beatriz Balbino, Juliana Bravo, Keyth Vianna, Loise Lorena, Monique Brito, Rebecca Teodoro, Sonalle Azevedo e Tereza Bredariol) e uma estudante de Psicologia (Larisse Ribeiro). Nove são mulheres brancas e duas são mulheres negras (Loise Lorena e Sonalle Azevedo), todas brasileiras.

Tal é a importância da descrição (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Edufba; Edusc.), quando chegamos a boas descrições, não precisamos de explicações. Esta é a proposta do Laboratório afeTAR: testamos uma escrita capaz de transbordar o campo, uma escrita que aproxima, que transporta a leitora e o leitor à nossa experiência. Acontece que, o que à primeira vista pode parecer uma simples metáfora, os testes de torção como tratamento metodológico adequado, faz ver o que não seria possível para quem não estava lá o que foi aprendido no campo. (Tsallis et al., 2022Tsallis, A., Moraes, M., Vianna, K., Santos, L., Silva, L., Bredariol, T., Aires, J. (2022). Sobre afecTAR: del campo a la escritura como laboratorio. SciComm Report, 2(1), 1-13. https://doi.org/10.32457/scr.v2i1.1645
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, tradução nossa)

Bruno Latour, presente na citação anterior, é um homem branco, francês e sociólogo, criador da Teoria Ator-Rede. Essa forma de relatar e de escrever o diário de campo é baseada em camadas de escrita em que valorizamos as afetações existentes. Produzimos uma primeira escrita, seguindo de uma nova camada na qual inserimos mais detalhes ao ocorrido e assim por diante, promovendo o máximo possível formas de embarcar o/a leitor/a. Dessa forma, nos encontramos com uma escrita parcial, coproduzida, que imprime as afecções e as condições de feitura (Tsallis et al., 2022Tsallis, A., Moraes, M., Vianna, K., Santos, L., Silva, L., Bredariol, T., Aires, J. (2022). Sobre afecTAR: del campo a la escritura como laboratorio. SciComm Report, 2(1), 1-13. https://doi.org/10.32457/scr.v2i1.1645
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). Esta forma de escrita sensível é unida, neste artigo, com a Escrevivência (Evaristo, 2020Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte.), pois aqui a experiência é vivida e a escrita é atravessada pelo viés da negritude. Pensamos também essa articulação como uma artesania, um processo tecido a mão que se desdobra nesta pesquisa (Quadros, 2015Quadros, L. C. T. (2015). Uma trama tecida com muitos fios: o pesquisar como processo artesanal na Teoria Ator-Rede. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 15(4), 1181-1200.). Laura Quadros é uma mulher branca, brasileira e psicóloga.

Rememorar: possibilidades do dançar com Sankofa

No dia 19 de agosto de 2019, iniciamos o módulo II da oficina de dança afro no COART/UERJ. Voltar depois de 2 meses de férias teve seus prejuízos, é um desconectar que acaba nos afastando e nos desmembrando da dança. Após o período de recesso, voltamos aos exercícios de repetição dos passos e ‘limpeza’ dos movimentos. Por todo o primeiro semestre, me mantive em conhecer os elementos afros e repeti-los para que fixassem em minha memória. Fizemos o aquecimento básico, de andar pela sala, inicialmente devagar e em seguida aumentando o ritmo. Tudo isso sempre com cabeça erguida e olhar guiando a direção do andar. Em seguida, fizemos os movimentos de flexionar os joelhos e subir ao ritmo da música. Ao final do aquecimento, a professora Eliete nos propôs algo diferente, pôs uma música com ritmo bastante lento, com uma melodia calma. Pediu que andássemos pela sala sentindo a música e que trouxéssemos um pensamento que nos acometia. Fui possuído por profundos sentimentos de tristeza, de medo e insegurança, que já me cercavam a um tempo. Os anseios de alguém perto de se formar que não sabe como dará os próximos passos, a tristeza de não ter a presença dos meus pais nesse momento de conquista e toda uma sobrecarga de pesos que preciso carregar em minha trajetória. Fui totalmente imerso nessa enxurrada de sentimentos pesados e sofridos. Em seguida, ouvi Eliete dizer, ‘faça um movimento que represente esse sentimento’. Não conseguia pensar em um movimento que representasse aqueles sentimentos, tentei alguns movimentos que sentia meu corpo rejeitar, era difícil executar essa tarefa. Após algumas tentativas, fiz um movimento de levantar e descer os braços que pareceu confortável e decidi me manter nele. Fechei os olhos, pra deixar que o corpo se apoderasse do movimento. Conforme eu me mantinha nele, ouvia que a música ficava levemente agitada e meu corpo sentia a necessidade de seguir aquele ritmo. Me senti entrando num estado diferente de consciência corporal, eu sentia e sabia os movimentos que estava fazendo, mas não guiava esses movimentos, eles aconteciam. Eu não conseguia diferenciar o que era meu corpo, minha mente e o espaço físico que ocupava, era como se tudo fosse uma coisa só. A música continuou a agitar cada vez para algo mais forte e rápido e, nesse momento, senti meu corpo girar e girar com muita velocidade. Emergiu nesse momento um grande sentimento de liberdade. Eu não via as outras pessoas, não enxergava o espaço, era tudo junto, como se todos ali fossemos um só. Acredito que isso tenha relação com o senso de coletividade, como Ubuntu. Minha saia amarela girava e fazia parte de mim, ela se abria como um grande girassol a procura da luz solar, como se eu estivesse à procura de minha energia, de meu axé. Meus braços batiam como asas enquanto eu girava sem muita noção do espaço. Ao fundo, podia ouvir a voz de Eliete dizendo, ‘FAZ MAIOR!!’, ‘FAZ COM INTENÇÃO!!’ Meu corpo respondia a esses estímulos e intensificava-se no movimento. Naquele momento, percebi que eu era o Sankofa, voando e pousando em minha ancestralidade. Trazendo através do corpo minha história. Ao sobrevoar meu passado, pude rememorar o quanto a dança sempre fez parte de minha vida. Minha família sempre se unia pra me ver dançar, nas festas em casa, na escola. Voando, pude ver que a dança me conectava com minha mãe, que ela me ensinou a dançar frevo e que depois de sua morte, tive a oportunidade de me dedicar ao frevo em meu colégio no ensino médio e me apresentar. Na época foi apenas mais uma apresentação de dança, mas neste momento de rememorar pude enxergar o quanto aquela apresentação foi um modo de mantê-la comigo e contar sua história, através do meu corpo. Pelo alto, vendo meu passado, pude perceber que apesar da negritude adoecida pelo racismo que minha mãe passava para mim, ela ainda era uma mulher negra, que carregava consigo vários elementos da negritude. Depois de um tempo nesse processo, Eliete reduziu gradativamente a música, até que pudéssemos parar e tirar um momento de racionalizar e sentir o que aconteceu. (Santos, 2019b1 1 Santos, H. S. (2019b). Diário de campo. Rio de Janeiro. )

Através desse trecho de diário de campo, consigo refletir sobre a existência do rememorar, junto do entendimento do sankofa, um pássaro da cultura Akan, que significa voltar ao passado e retornar ao presente ressignificando-o. A professora de dança Eliete Miranda, nos explicou no início da primeira aula o significado do Adinkra Sankofa.

Ao explicar o sentido de dançar afro, a professora de dança definiu a dança afro com o uso do pássaro Sankofa (San = voltar; Ko = ir; Fa = pegar). Esse pássaro, segundo a mitologia, consegue acessar o passado e trazer um novo sentido ao presente. Este Adinkra da cultura Akan, antiga Costa do Ouro (atual Gana), fala sobre olhar atrás e aprender com seu passado. Deste modo, a dança afro também pode servir como um local de busca ao passado para ressignificar nosso presente e futuro. Pesquisando sobre o Adinkra Sankofa, encontrei o site Todos os negros do mundo onde a turismóloga Jessica Cerqueira (negra), do AfroeducAÇÃO nos explica um pouco sobre o símbolo Sankofa. Ela nos conta que os povos que foram escravizados, esculpiam o símbolo do pássaro em ferro e usavam em diversos lugares, como grades e portões das casas. O símbolo não era compreendido pelos colonizadores, mas os povos vindos da África reconheciam o Sankofa esculpido, trazendo uma potência de sentimentos de esperança e resistência. (Santos, 2019aSantos, H. S. (2019a). O dançar afro no caminhar ancestral: remembrar, rememorar e reconhecer [Monografia de graduação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ]., p. 30)

Rememorar significa revisitar memórias ancestrais, a fim de torná-las vivas no hoje. Faz-se necessário atentar-nos para as memórias compostas nos objetos, na cultura, na arte, na filosofia, na oralidade, na religião e em todos os lugares onde a ancestralidade negra deixa seu legado. A memória ancestral tem papel importante no contar das narrativas através da dança. Ao dançar, narramos as memórias através do corpo, muito do que havia sido perdido ou esquecido, é lembrado naquele espaço. Rememorar é conhecer seus passos ao longo do tempo (passado, presente e futuro) e expressar seus sentimentos e emoções através de todo seu conhecimento adquirido no dançar, articulando-o com seu conhecimento pessoal (nossas vivências e ancestralidade). O ato de rememorar se torna importante no período atual, refletindo a necessidade de se construir, ou reconstruir, corpos que precisam resistir no cenário remoto.

Ubuntu como chão

Quando praticamos a dança afro, entramos em contato com uma vivência grupal. Criamos aquele espaço de diálogo em conjunto e produzimos os caminhos das discussões no coletivo. Nesse sentido, entendemos que a dança afro caminha juntamente com os preceitos da filosofia Ubuntu.

Na filosofia Ubuntu, o ser é entendido como um ser do coletivo. Conheci o Ubuntu em contato com o ensaio ‘Ubuntu como modo de existir: Elementos gerais para uma ética afroperspectivista’ escrito pelo Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Renato Nogueira (negro), que também é coordenador do Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin), integrante do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) da UFRRJ. Segundo Nogueira (2011Nogueira, R. (2012). Ubuntu como modos de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista da ABPN, 3(6), 147-150.), Ubuntu pode ser traduzido como ‘o que é comum a todas as pessoas’, é uma filosofia vinda dos povos Bantus. Os povos Bantus foram um dos vários povos africanos como, os Yorubás e os Jêjes, que também compuseram a diáspora africana para o Brasil na época da escravidão. Com essa noção de coletividade e cooperação, as construções não são individuais, ocorrem com a participação indireta ou direta de outras pessoas. (Santos, 2019aSantos, H. S. (2019a). O dançar afro no caminhar ancestral: remembrar, rememorar e reconhecer [Monografia de graduação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ]., grifos do autor)

Nessa filosofia, quem somos está atrelado com quem nos relacionamos, pois só somos uma pessoa através das outras pessoas. Tudo que aprendemos e fazemos está diretamente envolvido pelos outros/as que estão ao nosso redor. O conceito de Ubuntu é construído pelo conjunto de valores de coragem, compaixão e conexão, de acordo com Mungi Ngomane (2020Ngomane, M. (2020). Ubuntu: Lecciones de sabiduría africana para vivir mejor. Grijalbo Ilustrados.) O cuidado com o próximo ocupa um lugar para além da empatia, trata-se, sim, do entendimento que nossas ações impactam na vida do outro, o que, consequentemente, tem ações na vida de todos ao redor, incluindo a nossa. No espaço de dança afro, temos essa construção de uma atmosfera que seja de todos/as, por e para todos/as os/as envolvidos/as. Tudo é compartilhado: pensamos na construção da aula juntos, nos temas, na feitura de cada saia, que música queremos dançar, o que estamos vivenciando, sentindo, quais as afetações tivemos nas aulas, em que os passos nos mobilizam. Esse aspecto pertencente à dança afro enfatiza a importância de se membrar para além do nosso espaço de dança.

Para entender melhor a filosofia de vida do Ubuntu e sua relação com a dança, exploramos o livro Ubuntu: Lições de sabedoria africana para viver melhor de Mungi Ngomane, que compartilha sua vivência, e esclarece como o Ubuntu pode criar uma sociedade acolhedora. O Ubuntu ensina a nos unirmos para superar problemas e diferenças, coexistindo em paz e harmonia, independentemente de cultura ou origem. Olhar para o exterior amplia nossa visão das situações. O lema-chave é “um indivíduo não é nada sem os outros”, enfatizando a importância da conexão social para uma vida melhor e uma sociedade mais justa e igualitária. Todos, inclusive nossos inimigos, são importantes na construção de cada pessoa.

Vale destacar que, apesar do Ubuntu buscar coletividade, harmonia e união, não devemos ignorar nosso bem-estar nem aceitar injustiças, violência ou preconceito. Os preceitos do Ubuntu são valiosos, mas requerem a adesão das pessoas envolvidas para serem efetivos. Mungi Ngomane nos lembra da pergunta de Nelson Mandela: “o que podemos fazer para melhorar nossa comunidade?” (Ngomane, 2020Ngomane, M. (2020). Ubuntu: Lecciones de sabiduría africana para vivir mejor. Grijalbo Ilustrados.), e assim, trazer à tona os ensinamentos da filosofia. O conceito de Ubuntu vai além das aparências superficiais, convidando-nos a explorar uma compreensão mais profunda das situações que enfrentamos. Isso implica no exercício do “não saber”, evitando visões limitadas e buscando diferentes perspectivas para enriquecer nosso entendimento do mundo ao nosso redor.

Ao praticar o Ubuntu, reconhecemos a importância do cuidado com nós mesmos e com os outros. Valorizamos o bem-estar físico e mental, buscando estabelecer conexões afetivas sólidas com as pessoas ao nosso redor. Cada contribuição que expressa cuidado nos coloca em uma posição que valoriza nossa humanidade, reconhecendo a singularidade de cada indivíduo, apesar das adversidades. Buscar conexões profundas com base em valores compartilhados fortalece nossas relações sociais e constrói uma base sólida para a convivência em comunidade. Estarmos presentes e disponíveis para apoiar uns aos outros, especialmente nos momentos de dificuldade, é essencial para uma vida significativa. Compreendendo e valorizando a diversidade, acolhendo as diferenças e reconhecendo a riqueza de perspectivas na sociedade, promovemos relações inclusivas e superamos preconceitos e estereótipos.

O bom humor é uma poderosa ferramenta para enfrentar adversidades com leveza e resiliência. Cultivá-lo estimula soluções criativas para obstáculos. Mentalidade leve e construtiva ajuda a manter calma e clareza diante de situações complexas, encontrando saídas efetivas. O bom humor está ligado ao autocuidado, priorizando o bem-estar emocional e mental. Enfrentar estresse e adversidades com tranquilidade auxilia na resolução de desafios. Sentindo-nos emocionalmente bem, oferecemos apoio genuíno às pessoas ao nosso redor, construindo relações saudáveis e significativas.

“Ubuntu nos diz que uma boa comunicação é a base para construir uma rede de suporte forte” (Ngomane, 2020Ngomane, M. (2020). Ubuntu: Lecciones de sabiduría africana para vivir mejor. Grijalbo Ilustrados., p. 2189, tradução nossa). A importância da comunicação é destacada pelo conceito de Ubuntu, o qual nos ensina que uma boa comunicação é a base para construir uma rede de suporte forte. Aprender a ouvir é uma habilidade essencial nesse processo. A escuta ativa envolve estar presente e verdadeiramente interessado no que os outros têm a dizer. Ao compreender suas necessidades e desafios, podemos oferecer apoio adequado e construir laços mais profundos com as pessoas.

Obtivemos o conhecimento do Ubuntu dentro do espaço de dança, e grande parte do que foi aprendido na dança vem de Eliete Miranda. Além disso, aprendemos com a leitura de Ngomane que, por sua vez, aprendeu com seu avô, Desmond Tutu, que aprendeu com seus ancestrais e assim por diante. Destacamos que não estamos aqui para essencializar o Ubuntu como uma filosofia sem percalços e atravessamentos. Os processos têm seus embaraços e construções complexas, mas que, a partir disso, possamos pensar em soluções mais firmes. Trazer a filosofia para este texto demarca uma aposta na ancestralidade como uma fonte ousada de conhecimentos e aprendizados. O Ubuntu nos convoca a uma implicação maior para com o outro e com nós mesmos, sendo um legado importante de nossa ancestralidade afro-brasileira.

Corp(O)ralidade

Dançar de forma remota ainda tem muitos entraves que são difíceis de superar, como o ritmo. De forma a exemplificar, trazemos um trecho do diário de campo como cena, com o intuito de mostrar os entraves do ritmo na dança remota, mas apesar disso como uma via possível:

Eliete colocou uma música agitada e pediu para que batêssemos o pé no chão de forma intercalada (um pé de cada vez) no ritmo da música. Fizemos isso até pegarmos o tempo da batida. Em seguida, incluímos palmas que batiam no ritmo dos pés. Quando conseguimos um movimento uniforme, ela pediu para que fizéssemos isso andando em círculos e agora com os punhos cerrados na altura da cintura, com os braços subindo e descendo no ritmo dos pés. Com esse cenário remoto, tive dificuldade em ouvir bem o som da música e com meu ambiente de casa. Minha cadela, Bela, começou a pular em cima de mim enquanto dançava, então resolvi prendê-la na cozinha até que a aula terminasse. Com isso, ela começou a latir, e meus ouvidos se dividiam entre ouvir a música e ouvir os latidos, em ritmos diferentes. Juntamente com isso, começou o barulho de uma obra no apartamento vizinho. Meus movimentos ficaram sem conexão, pois não havia um som com ritmo uniforme para que meu corpo pudesse se expressar. Na verdade, ele se expressava nesse caos de sons e ritmos do meu ambiente, criando um movimento também caótico. Apesar desses travamentos de se trabalhar remotamente, fechei os olhos e tentei ao máximo me concentrar na música, e por alguns momentos consegui, até que não consegui me concentrar. Pensava: CONCENTRE-SE na música! ‘AU AU AU AU AU...’, mas logo era jogado a dançar conforme o latido. CONCENTRE-SE! ‘PÁ PÁ PÁ...’ mas logo dançava com o martelar da obra... CONCENTRE-SE! e quando me dei conta, dancei com um ritmo de latidos, marteladas e a música que chegava em um tempo diferente pra mim em relação aos outros alunos, tudo ao mesmo tempo. Bem, o ritmo era o caos. E, apesar de não conseguir com êxito dançar e me expressar pela música tocada, eu me expressava através do caos, um caos de sons, ambientes e de uma pandemia. Ao final da aula, Eliete me indagou: ‘Hebert, você estava fora do ritmo!’ em seguida, logo liguei o microfone e... ‘AU AU PÁ AU PÁ AU AU PÁ AU AU PÁ PÁ PÁ PÁ...’ Antes que eu pudesse falar algo, Eliete notou o caos de sons e disse: ‘agora entendi porque estava dançando daquele jeito’. Com isso, pude notar que meu corpo já estava comunicando e se expressando, dizendo algo que não estava pronto pra dizer, mas ainda assim era como ele queria se expressar e como queria comunicar o que eu estava vivendo. (Santos, 20212 2 Santos, H. S. (2021). Diário de campo. Rio de Janeiro. )

Na dança afro on-line, meu corpo se abre para criar movimentos que expressem som e sentimento, mesmo que não seja fluente. O som único que ouço mistura os ensinamentos de Eliete Miranda com os sons de meu ambiente, incluindo os latidos de Bela. Cada aluno lidou com som e ritmo diferentes. A professora enfrenta o desafio de entender nossos movimentos em meio a vários ambientes sonoros. O delay também dificulta percebermos se estamos ritmados. Esses obstáculos tornam a expressão de sentimentos e emoções caótica, refletindo o ritmo e o sentimento caóticos que enfrentamos. A dança é uma via para expressar nossas vivências.

Nas aulas on-line, percebi a importância da oralidade na dança afro, destacada pela limitação do ambiente virtual. Os saberes ancestrais afros são transmitidos oralmente, tornando-se cíclicos e adaptáveis pela história contada por diferentes pessoas. Dançar com a oralidade envolve conhecer os passos, a relação com os Orixás e suas histórias, e expressar-se com esses ensinamentos. Além do impacto na dança, a oralidade pode abrir novos caminhos na pesquisa, representando a população negra como sujeitos ativos, não apenas objetos de estudo. Luiza Rodrigues de Oliveira (2019Oliveira, L. R. (2019). A afrocentricidade, a oralidade e a ancestralidade na pesquisa em psicologia: O encontro com mulheres negras que não escrevem. In L. C. Toledo Quadros, M. Oliveira Moraes, & I. S. Bonamigo (Eds.), Pensar, fazer e escrever: o PesquisarCOM como política de pesquisa em psicologia (pp. 01-584). Unochapecó.), psicóloga negra brasileira, discute a diferença entre história oral e oralidade. Enquanto a história oral busca tirar a história negra da margem, a oralidade representa nossa marca ancestral como sujeitos ativos, possibilitando uma abordagem inclusiva e respeitosa ao pesquisar nossa cultura e conhecimentos.

Sendo assim, a construção de um Corp(O)ral se mostra como uma via possível de deslocamentos e criação de mundos, sendo um referencial que conversa com a negritude. Nesse aspecto, surge a reflexão atrelada à psicologia preta (Veiga, 2019Veiga, L. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal, Rev. Psicol., 31(nspe.), 244-248.) de como a Corp(O)ralidade pode ser propositiva nos acolhimentos dos corpos pretos dentro do setting terapêutico. Para Lucas Veiga (2019Veiga, L. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal, Rev. Psicol., 31(nspe.), 244-248.), o racismo e a violência são os produtos diretos da máquina colonial de produção de subjetividade. São produções que operam um corte social e definem quem sofre ou exerce violência. Lucas Veiga é um homem preto, brasileiro e psicólogo. Penso que essa oralidade constrói corpo, se trata de uma prática Corp(O)ral, de construir corpo pela via da oralidade que, com isso, se comunica com a dança. Nesse sentido, a oralidade “faz fazer”. Para Alexandra Tsallis, Marcia Moraes, Ronald Arendt e Arthur Ferreira (2006Tsallis, A., Leal Ferreira, A., Moraes, M., & Arendt, R. (2006). O que nós psicólogos podemos aprender com a teoria ator-rede. Interações, XII(22), 57-86.) “no processo que ‘faz fazer’ não cabe estabelecer causalidade, não há o ‘fazer-agir’ causal”. Então não é que a oralidade faz agir no processo de dançar, mas ela cria uma comunicação que gera novas formas da rede se comunicar. A palavra Corp(O)ral é propositalmente escrita assim, devido aos movimentos da dança costumarem ser circulares. Nesse sentido a letra “O” segue em maiúsculo, protegida pelos parênteses e conectando corpo e oralidade enquanto marcas do saber ancestral. Ronald Arendt e Arthur Ferreira são homens brancos, brasileiros e psicólogos.

A composição é circular, a “roda” é protegida e, nesta prática, o corpo narra sua história, rememora e se remembra. A proteção dos parênteses tem como função não fechar por completo o círculo que une, mas de proteger ao mesmo tempo que expande. Assim como uma pedra jogada em um lago imóvel cria ondulações que se estendem para longe do epicentro, aqui temos o “O” como uma pedra que cai no centro da palavra gerando a onda, composta pelos parênteses, que amplifica o termo para um entendimento além da palavra em si. Uma escrita que circula e dança. Sendo assim, a Corp(O)ralidade é uma escrita dançada, uma palavra que movimenta.

A circularidade também remete à coletividade dentro dos valores da cultura afro-brasileira. Também tem ligações com o movimento e os processos de renovação. O conhecimento é transmitido dentro das rodas, como nas rodas de samba, de capoeira e de dança afro. Nesta circularidade não temos um início nem um fim, o conhecimento circula pela roda sem sabermos onde começa ou onde termina. O tempo também se mostra algo circular, pois transitamos na dança afro o passado, o presente e o futuro enquanto tempos que se comunicam. A oralidade como principal fonte de conhecimentos, é passada pela boca, que - assim como o “O”, que une as palavras corpo e oralidade - é um círculo que transmite saberes e sabores. Essa letra também comporta o “O” dos Orixás, que são fundamentais no dançar afro e estão em nosso centro de conhecimento. Este Corp(O)ral transmite seus saberes ancestrais nos movimentos, expressando seus sentimentos e emoções associados aos Orixás e a suas representações

A escrevivência de Conceição Evaristo (2020Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte.) nos guia pensando e escrevendo as narrativas, conforme vivenciadas, a fim de transportá-las para a escrita. Quando narramos o que o corpo fala, escrevemos a escrevivência do corpo. Nesse sentido, pensamos a Corp(O)ralidade como um outro lugar da escrevivência, marcada por um corpo que se comunica, que conta história, que se expressa e, o escrever se dá com o corpo enquanto partida de comunicação. Logo, a Corp(O)ralidade é a escrevivência do corpo. Na escrevivência, percebemos o quanto a oralidade presente nas culturas afros tem sua importância quando pensamos em escrever vivências. A oralidade é um fio condutor do transmitir dos saberes e conhecimentos e, quando transportamos isso para a escrita, devemos levar em consideração as características que compõem o contar das histórias dentro da oralidade. Escrever as vivências ocupa o lugar de se esforçar em tornar a escrita o mais próxima possível de como esse conhecimento é repassado pela oralidade, de modo a tornarmos a história rica em detalhes, sentimentos, emoções, imagens. A própria escrevivência tem seu lugar de construção conceitual na imagem da mulher preta (Evaristo, 2020Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte.). Sendo assim, a escrevivência procura dar voz à representação da mãe preta, levando em consideração todo o histórico de suas opressões étnicas e de gênero, sofridas no seio da sociedade escravocrata. Escrever a partir das vivências das mulheres pretas, é escrever no mais alto grau que o ser humano foi silenciado.

No dia 20/10/2021, recebemos no WhatsApp do Centro de Cidadania LGBTI-Maré (CCLGBTI-Maré) uma imagem de um rapaz negro e gay que foi morto dentro de sua casa. Assim, fomos para a rua conversar com a população e saber o que houve, se aquilo havia sido um caso de homofobia. O corpo estava ao lado da cama, como numa posição de oração, de joelhos ao chão, sem roupa, com queimaduras no corpo e uma faca cravada no pescoço, da parte de trás para a frente. O ambiente estava revirado, ensanguentado com um frio assustador. Eu já vi muitas mortes dentro da favela onde cresci, mas essa foi uma das cenas mais assustadoras que já vi na vida. Eu e a Coordenadora do CCLGBTI-Maré, Gilmara Cunha, que é mulher trans e preta, ficamos no local juntamente com funcionários do Centro de Cidadania, tentando assegurar que ninguém tiraria o corpo antes de uma perícia no local. Perícia numa favela? Sim, estávamos tentando garantir o mínimo de dignidade e justiça com aquele corpo preto gay. Ficou tarde e fui para casa, mas Gilmara Cunha permaneceu lá. Meu corpo estava exausto, tenso, rígido. Por volta de 22h recebo a seguinte mensagem de nossa Coordenadora: “Gente, estou acabada, e muito triste. A mando da polícia, tivemos que colocar o corpo do rapaz na Av. Brasil, para que o rabecão pudesse tirar de lá. Está lá o corpo estirado no chão, sem roupa. Essa é a dignidade que temos para nossa população”. Eu não consigo mais fazer reflexões sobre isso, eu estou cansado. Tive uma noite péssima em sentir tão de perto o desespero de ver um corpo preto morto que foi jogado em plena avenida brasil, sem direitos, sem humanidade. Bem, essa é a necropolítica estampada em nossa cara. Acordei na manhã seguinte disposto a cuidar dos danos e das marcas presentes. Eu também sou um corpo negro e gay, não posso morrer. Preciso continuar, com lágrimas nos olhos, dores no coração, com a respiração cansada. Fui para minha sessão de terapia, resolvi fazer uma comida para mim, cuidar do meu corpo. E resolvi dançar. Comecei afastando os móveis para ter espaço na sala, ainda sinto o corpo fraco, faço isso com calma. Coloquei minha saia amarela, ela realmente me traz uma cor nesse dia frio e cinza. Sentei-me no chão e tentei olhar pra dentro de mim, no que tinha ficado de toda essa situação e dessa morte tão cruel. Meu corpo sofria, meu coração estava apertado no peito, minha respiração ficou mais pesada e minha garganta tinha um bolo. Coloquei o álbum “Cânticos Sagrados do Candomblé” de Xirê Àlágbé, e fui sentindo as batidas. Senti vontade de dançar com Omolu, pois é um Orixá que fala de saúde/doença, vida/morte. Omolu é um Orixá com bastante ligações com energias da terra e dominante nos poderes de cura e de adoecimento. O Orixá geralmente é visto coberto de palhas, que eram usadas por sua mãe de criação Yemanjá, para curá-lo de suas feridas no corpo. Com isso, me levanto, coloco para tocar as Cantigas de Omolu e começo a me movimentar. Mantenho os olhos fechados, cabeça para baixo e coluna levemente curvada para a frente. Faço movimentos circulares passando uma perna cruzando a outra e com as mãos abertas que se movimentam para frente e para trás, como se eu estivesse tirando algo do meu caminho e jogando para fora. Os dedos indicadores se posicionam levemente para cima, onde situamos o tempo de vida. Faço esse movimento repetidas vezes e conforme a música agiliza o ritmo, meu corpo reage fazendo o mesmo. Sinto meu corpo chorar não só pelos olhos, mas por toda a extensão do corpo, pelos dedos, mãos, peito e pernas. Sinto o corpo trêmulo, mas ao mesmo tempo firme em se manifestar na dança. Nesse momento já estou girando e mesclando passos com outros Orixás. Não consigo descrever nesse momento os passos que eu fazia, mas sentia uma energia em mim trabalhando com os movimentos e liberando energias que eu não conseguia expressar. Girar era o movimento que mais fazia circular toda essa troca energética. Eu dançava com tudo que tinha em mim e tudo aquilo que recebi daquele rapaz brutalmente assassinado. Meu corpo dançava e lutava clamando para que esse rapaz pudesse encontrar paz, descanso e justiça. Meu corpo também dançava para que eu me reestruturasse e pudesse cuidar dos meus irmãos, e que eu pudesse ter a força para guerrilhar como Ogum e lidar com toda a lógica que nos mata e nos faz morrer. (Santos, 2021, diário de campo)

Esta passagem de diário de campo nos ajuda na compreensão de como a escrevivência reafirma vozes para além de uma escrita solitária ou de si mesmo Através da minha escrita das vivências, minha voz é atravessada pelas vozes que ecoam em mim, que vivem em mim. Segundo a própria explicação de Conceição Evaristo, a escrevivência não seria equivalente a uma escrita narcísica, pois não se limita a uma história somente sobre si (Evaristo, 2020). Nosso espelho não é o espelho de Narciso que reflete apenas nossa imagem, nosso espelho é o de Oxum e de Iemanjá (Evaristo, 2020Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte.). Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.) também fala da problemática de entenderem a escrita do próprio corpo como algo narcísico. Segundo Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., p.63), “descolonizando o conhecimento Escrever sobre o próprio corpo e explorar os significados do corpo pode, obviamente, ser visto como um ato de narcisismo ou de essencialismo”. Porém, a autora conclui que esta é uma estratégia muito importante utilizada por mulheres negras africanas ou em diáspora para se (re)posicionar dentro da academia.

Com base nestes ensinamentos de Conceição Evaristo e Grada Kilomba, pensamos que a Corp(O)ralidade, enquanto metodologia, transmite a vivência corporal de si próprio e dos corpos que se conectam conosco. Somos um construto subjetivo dentro de um entendimento coletivo do corpo. Nosso espelho não é só o de Oxum, é também o espelho de Iemanjá, e assim não vemos apenas por uma perspectiva individualizante, mas nos vemos através de outras possibilidades de espelhos que refletem nosso rosto, dos que vivem em nós e os rostos que nos antecedem, os de nossa ancestralidade. Essa construção subjetiva de sujeito, que é coletiva, também é marcada pelo agenciamento do racismo enquanto marcador que tenta ao máximo reduzir e destruir nossa subjetividade negra.

Quando danço, o corpo do rapaz transita pelo meu corpo e ao mesmo tempo que danço para mim, também danço para ele. Meu corpo na dança é um diálogo entre mim, o rapaz que foi assassinado, Omolu e milhões de outras existências que perpassam minha história. Meu corpo é consumido por memórias e por sentimentos. Sinto dor, desespero e angústia e, conforme danço, sinto a liberdade tomando conta do meu corpo, a sensação de uma paz que foi feita ao liberar e extravasar aquela energia acumulada. Com os passos de Omolu, sinto meu corpo lidando com as memórias que me tocaram e me percebo criando contornos para o que vivenciei. Com esses contornos, penso o quanto preciso me fortalecer, não só para não morrer nesse sistema, mas também para poder estar junto com os meus iguais nessa luta de não morrer.

O histórico de violência perpassa a existência negra há gerações e ainda vivenciamos tanto a violência que ocorre hoje, como a violência que acontece desde a chegada forçada dos/as negros/as escravizados/as. Dentro da escrevivência, falar do sofrimento, da dor, das feridas, também é uma forma de dar uma atenção a elas, refletir as experiências vindas delas e, assim, poder trazer algum contorno de como podemos nos cuidar e viver para além disso. E como, através da Corp(O)ralidade, podemos escreviver diretamente com o corpo, no contar das narrativas que estão para além de nosso próprio corpo.

Aberturas

Num sentido atemporal, Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.) nos lembra o quanto passado e presente coexistem na experiência de negritude. Desse racismo nas estruturas e nas instituições que retroalimentam as violências que ocorrem desde os períodos de escravidão. Nesse sentido, a temporalidade cíclica, que também podemos chamar de atemporalidade, nos faz transitar pela violência que ocorre no hoje e atualiza os períodos coloniais. A intenção aqui é descolonizar o fazer científico, trazendo o protagonismo da escrevivência como método e condutor na criação do entendimento da corp(O)ralidade.

Com o auxílio de nossas memórias ancestrais, encontramos mecanismos que possibilitam escreviver nossas narrativas de vida, sentimentos e emoções. No dançar afro, escrevemos essas vivências com o corpo, contamos para nós mesmos e para os/as outros/as o que estamos vivendo através dos movimentos dos Orixás. Cada Orixá conta-nos uma história, mostra-nos os seus sentimentos, vulnerabilidades, emoções e ensina-nos a expressar isso com o corpo e mesclar com o que estamos sentindo. Dançar afro precisa do sentimento. Quando precisei viver o luto, precisei me fortalecer. Sabendo quem era Ogum, conhecendo sua força, seus passos e sua coragem de enfrentar os inimigos, dancei conforme o conhecia e precisava de seus ensinamentos, para poder enfrentar o luto. Quando minha autoestima estava precisando de ajuda, me abracei com Oxum e busquei através dos seus passos os ensinamentos que me fortalecem a ver o melhor de mim. Juntamente com Iansã, aprendi a voar alto e a buscar coragem para mudanças. A necessidade de limpar os pensamentos e trazer o novo para meu interior.

Através de todos os problemas caóticos vividos em tempos de covid-19, encontrei a necessidade de olhar o que restava de propositivo na prática de dança on-line. Com isso, me concentrei em compreender a oralidade presente na dança afro como algo grandioso. Assim, me concentrei em compreender o quanto a oralidade era fundamental para a expressão do dançar afro. A partir disso, a Corp(O)ralidade chega como essa escrevivência do corpo.

Caminhando para o fim, é importante lembrar os pontos chaves aqui discutidos: É importante revisitar o passado, principalmente em momentos de crises. Rememorar é uma excelente ferramenta para que possamos relembrar antigos ensinamentos que podem ajudar na atualidade; a dança afro promove um espaço que se aproxima dos pensamentos da filosofia Ubuntu, ensinamentos sobre viver em coletivo que podemos transportar para a vida como um todo, e a Corp(O)ralidade enquanto escrevivência do corpo na dança afro.

Assim como Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.) e Oliveira (2019Oliveira, L. R. (2019). A afrocentricidade, a oralidade e a ancestralidade na pesquisa em psicologia: O encontro com mulheres negras que não escrevem. In L. C. Toledo Quadros, M. Oliveira Moraes, & I. S. Bonamigo (Eds.), Pensar, fazer e escrever: o PesquisarCOM como política de pesquisa em psicologia (pp. 01-584). Unochapecó.), pensamos que o protagonismo da negritude é uma forma de romper com a marginalização dos estudos afro-brasileiros trazendo-o para o centro das discussões raciais. A oralidade não deve ser encarada como uma forma de pesquisa secundária a um fazer universalizado. Ela é tanto protagonista quanto uma outra forma de fazer ciência, qual seja, decolonial. Assim, nossa existência negra não é meramente um objeto de estudo à parte, mas ocupa o devido lugar de destaque na academia. Por fim, deixamos nesse círculo, nessa roda, a esperança de um futuro em que nosso fazer possa trazer mais corpos pretos para a academia e para atuarem como profissionais psi. Assim, olharemos as discussões raciais não como área específica e sim como um estudo centrado em todo o campo de pesquisa e atuação como clínico.

Referências

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  • Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. In C. L. Duarte & I. Nunes (Eds.), Escrevivência: à escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (pp. 26-47). Mina Comunicação e arte.
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  • Quadros, L. C. T. (2015). Uma trama tecida com muitos fios: o pesquisar como processo artesanal na Teoria Ator-Rede. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 15(4), 1181-1200.
  • Santos, H. S. (2019a). O dançar afro no caminhar ancestral: remembrar, rememorar e reconhecer [Monografia de graduação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ].
  • Tsallis, A., Leal Ferreira, A., Moraes, M., & Arendt, R. (2006). O que nós psicólogos podemos aprender com a teoria ator-rede. Interações, XII(22), 57-86.
  • Tsallis, A., Moraes, M., Vianna, K., Santos, L., Silva, L., Bredariol, T., Aires, J. (2022). Sobre afecTAR: del campo a la escritura como laboratorio. SciComm Report, 2(1), 1-13. https://doi.org/10.32457/scr.v2i1.1645
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  • Veiga, L. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal, Rev. Psicol., 31(nspe.), 244-248.

Notas

  • 1
    Santos, H. S. (2019b). Diário de campo. Rio de Janeiro.
  • 2
    Santos, H. S. (2021). Diário de campo. Rio de Janeiro.
  • Financiamento

    Hebert Santos: Bolsa CAPES de Doutorado - Número do processo - 88887.667875/2022-00. Laura Quadros: Bolsa Programa Jovem Cientista Do Nosso Estado - FAPERJ - Nº do processo-e-26/200.231/2023. Alexandra Tsallis: Bolsa Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística - Edital Prociência 2021, de acordo com a Deliberação 47/2019 (11274326) - Processo SEI-260007/008822/2020. Loíse Lorena e Alexandra Tsallis: Bolsa QUALITEC 2023 - bolsas para profissionais nas unidades de desenvolvimento tecnológico (UDTS) (laboratórios e incubadoras) da UERJ - Edital de Seleção 72 (41441720) - Processo SEI-260007/041772/2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2023
  • Revisado
    29 Set 2023
  • Aceito
    09 Out 2023
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