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PRÁTICAS COTIDIANAS CONSTITUINDO MÚLTIPLAS VERSÕES DA CRIANÇA COM COMPORTAMENTOS EXTERNALIZANTES: UM ESTUDO DE CASO

PRÁCTICAS COTIDIANAS CONSTITUYENDO MÚLTIPLES VERSIONES DEL NIÑO CON COMPORTAMIENTOS EXTERNALIZANTES: UN ESTUDIO DE CASO

EVERYDAY PRACTICES CONSTITUTING MULTIPLE VERSIONS OF CHILDREN WITH EXTERNALIZING BEHAVIORS: A CASE STUDY

Resumo

Visando compreender as múltiplas versões de realidade produzidas nas práticas cotidianas da rede relacional de uma criança à qual se referem problemas de comportamentos externalizantes, no campo da saúde mental, este artigo relata um estudo de caso, realizado em 2017, a partir das abordagens da Teoria Ator-Rede e das Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. O referente empírico da pesquisa é um menino com hipótese diagnóstica de TDAH e TOD, articulado com actantes humanos e não humanos em dimensões diversas de suas relações. Os resultados expõem as interatuações cotidianas, atravessadas por conflitos intergeracionais, produzindo realidades e sentidos heterogêneos, no trânsito entre ideias aparentemente antagônicas (angelical-diabólico/criança-adulto). A criança, com seus comportamentos diversos, tal qual os adultos, atua e é atuada em relações de poder, numa coprodução fluida de conflitos e entendimentos que expressam versões sempre incertas e localizadas do que seria “a criança com comportamentos externalizantes”.

Palavras-chave
Saúde mental comunitária; Transtornos do comportamento infantil; TDAH; Teoria Ator-Rede; Psicologia Social

Resumen

Con el objetivo de comprender las múltiples versiones de la realidad que se producen en las prácticas cotidianas de la red relacional de un niño a la que se refieren los problemas de comportamiento externalizante, en el campo de la salud mental, este artículo relata un estudio de caso, realizado en 2017, a partir de los enfoques de la Teoría Actor-Red y Prácticas Discursivas y Producción de Sentidos en la Vida Cotidiana. El referente empírico de la investigación es un niño con hipótesis diagnóstica de TDAH y TND, articulado con actantes humanos y no humanos en diferentes dimensiones de sus relaciones. Los resultados exponen las interacciones cotidianas, atravesadas por conflictos intergeneracionales, produciendo realidades y significados heterogéneos, en el tránsito entre ideas aparentemente antagónicas (angelical-diabólica/niño-adulto). Los niños, con sus diferentes conductas, al igual que los adultos, actúan y son actuados en relaciones de poder, en una fluida coproducción de conflictos y entendimientos que expresan versiones siempre inciertas y localizadas de lo que sería “el niño con conductas externalizantes”.

Palabras clave
Salud mental comunitaria; Trastornos de la conducta infantil; TDAH; Teoría del Actor-Red; Psicología Social

Abstract

Aiming to understand the multiple versions of reality produced in the daily practices of a child’s relational network to which externalizing behavior problems refer, in the field of mental health, this article reports a case study, carried out in 2017, based on the approaches of the Actor-Network and Discursive Practices and Production of Meanings in Everyday Life. The empirical referent of the research is a boy with a diagnostic hypothesis of ADHD and ODD, articulated with human and non-human actants in different dimensions of their relationships. The results expose everyday interactions, crossed by intergenerational conflicts, producing heterogeneous realities and meanings, in the transit between apparently antagonistic ideas (angelic-diabolical/child-adult). Children, with ir different behaviors, just like adults, acts and are acted upon in power relations, in a fluid co-production of conflicts and understandings that express always uncertain and localized versions of what would be “the child with externalizing behaviors”.

Keywords
Community mental health; Child behavior disorders; ADHD; Actor-Network Theory; Social Psychology

Introdução

Os chamados comportamentos externalizantes ganham destaque em estudos contemporâneos sobre saúde mental na infância e adolescência devido à sua elevada relação com a produção de queixas, sobretudo escolares, que têm sido associadas a síndromes psicopatológicas e a possíveis psicodiagnósticos e terapêuticas, com crescentes índices de prevalência (Lima, 2012Lima, R. C. (2012). Três Tópicos sobre a Relação entre DSM e Política. In F. Kyrillos-Neto, & R. Calazans (Orgs.), Psicopatologia em Debate: controvérsias sobre os DSMs (pp. 95-111). EdUEMG.; Santos, Queiroz, Barreto, & Santos, 2016Santos, L. M., Queirós, F. C., Barreto, M. L., & Santos, D. N. (2016). Prevalence of Behavior Problems and Associated Factors in Preschool Children from the City of Salvador, State of Bahia, Brazil. Revista Brasileira de Psiquiatria, 38(1), 46-52.). O termo comportamentos externalizantes surgiu na década de 1960 nos EUA com estudos multidisciplinares coordenados pelo psiquiatra Thomas Achenbach para, a partir de técnicas psicométricas, avaliar problemas comportamentais e emocionais em crianças e adolescentes em idade escolar e classificar sintomas psicopatológicos (Achenbach, & Rescorla, 2001Achenbach, T. M. & Rescorla, L. A. (2001). Manual for lhe ASEBA Preschool forms & Profiles. University of Vermont, Research Center for Children, Youth & Families.). Segundo Achenbach e Rescorla (2001), reações impulsivas e que propiciam conflitos com o ambiente, como inquietude, desobediência, desatenção, agressividade, contestação, provocação, ruptura de regras etc., ficam classificadas como comportamentos externalizantes.

A avaliação de padrões repetitivos e persistentes de comportamentos externalizantes se constituiu como base para o diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), do Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) e do Transtorno de Conduta (TC), nomeados por alguns autores como transtornos externalizantes (Fiorini, Gastaud, & Ramires, 2019Fiorini, G. P., Gastaud, M. B., & Ramires, R. R. (2019). Comparando a Psicoterapia Psicodinâmica de uma menina com modelos de Psicoterapia Psicodinâmica e Terapia Cognitivo-Comportamental. Psico, 50(3), e30464.; Lima, 2012Lima, R. C. (2012). Três Tópicos sobre a Relação entre DSM e Política. In F. Kyrillos-Neto, & R. Calazans (Orgs.), Psicopatologia em Debate: controvérsias sobre os DSMs (pp. 95-111). EdUEMG.). A produção sócio-histórica da categoria conceitual comportamentos externalizantes como problema de saúde mental se dá de forma bastante imbricada com a categoria infância, também constituída em processos sócio-históricos.

De acordo com Sarmento (2018Sarmento, M. J. (2018). A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporânea, 8(2), 385-405.), a infância pode ser entendida como uma categoria social tocante a um grupo que se diferencia de outros não apenas pela faixa etária ou fase de desenvolvimento, mas também por um conjunto de qualidades e sentidos atribuídos que fazem supor homogenia e a distinguem como um grupo minoritário, isto é, com status identitário e social inferiorizado. A história ocidental apresenta significações da infância que iniciam com a noção da criança como passiva e incapaz, passando à identificação da criança ativa, portadora de desejos e produtora de sentidos, até a ideia de criança como coprodutora e integrante da sociedade e da cultura (Prout, 2010Prout, A. (2010). Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Cadernos de Pesquisa, 40(141), 729-750.; Sarmento, 2018Sarmento, M. J. (2018). A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporânea, 8(2), 385-405.; Valença, 2017Valença, V. L. C. (2017). A participação das crianças no cotidiano: da progressão individual às reproduções coletivas. Educação Unisinos, 21(1), 3-11.). No entanto, apesar dos avanços na produção dos direitos sociais da infância entre os conceitos de proteção, liberdade e participação, as práticas sociais diversas, incluindo a ciência, ainda submetem as crianças a severos e naturalizados processos de controle, inferiorização e silenciamento (Prout, 2010Prout, A. (2010). Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Cadernos de Pesquisa, 40(141), 729-750.; Sarmento, 2018Sarmento, M. J. (2018). A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporânea, 8(2), 385-405.; Valença, 2017Valença, V. L. C. (2017). A participação das crianças no cotidiano: da progressão individual às reproduções coletivas. Educação Unisinos, 21(1), 3-11.).

O silenciamento infantil diz do ato de ignorar, invalidar e/ou excluir a expressão dos entendimentos, saberes e vontades da criança, perante o rebaixamento do seu valor social, dando preferência ao discurso do adulto sobre os temas da infância, sejam pais/responsáveis, profissionais do cuidado e/ou especialistas (Sarmento, 2018Sarmento, M. J. (2018). A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporânea, 8(2), 385-405.). Uma revisão sistemática de literatura com enfoque empírico, realizada no âmbito deste estudo, trouxe como resultado uma constante do silenciamento infantil nas pesquisas acerca dos comportamentos externalizantes na infância, nos três eixos disciplinares da Saúde Coletiva (Guimarães & Silva, 2021Guimarães, A. & Silva, L. A. V. (2021). A Saúde Coletiva e a criança com comportamentos externalizantes: uma revisão de literatura. Physis, 31(4), e310424.).

Guimarães e Silva (2021Guimarães, A. & Silva, L. A. V. (2021). A Saúde Coletiva e a criança com comportamentos externalizantes: uma revisão de literatura. Physis, 31(4), e310424.) apontam ainda desencontro discursivo e escasso diálogo interdisciplinar sobre o tema na Saúde Coletiva, principalmente entre os eixos da epidemiologia e das ciências sociais em saúde, com aproximações precárias no eixo da política, planejamento e gestão em saúde. Especialmente no que se refere aos estudos das ciências sociais em saúde, o foco tem sido a problematização da psicopatologia da infância, com críticas aos processos psicodiagnósticos e às práticas de medicalização e medicamentalização da infância (Guimarães & Silva, 2021). Assim, em favor da oposição ao discurso biomédico, ficam negligenciados os modos e processos de constituição dos comportamentos infantis ditos problemáticos, um horizonte fértil para estudos nas ciências sociais e humanas em geral ou especialmente na Psicologia Social.

Buscando preencher lacunas observadas, o objetivo deste estudo foi compreender as múltiplas versões da criança com comportamentos externalizantes constituídas nas práticas cotidianas. Este trabalho se distingue por considerar a criança como ator central do conhecimento acerca de si mesma e por explorar, nas práticas cotidianas, as controvérsias de atores dispostos em uma rede de relações complexas e dotada de repertórios peculiarizados por diferentes histórias e lugares de saber-poder-fazer. Portanto, o estudo se justifica pelo potencial de produzir conhecimentos inovadores que possam inspirar teorizações e contribuir para a discussão de políticas públicas em saúde mental para a infância, considerando as práticas e sentidos produzidos no jogo cotidiano das relações acerca do binômio infância e comportamentos externalizantes.

Abordagem teórico-metodológica

Para alcançar o objetivo proposto neste estudo, foram adotados como referenciais teórico-metodológicos duas abordagens do cotidiano para uso concomitantemente. Com enfoque nas práticas do dia a dia que performam as realidades, as abordagens da Teoria Ator-Rede (TAR) e das Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano (PDPSC) corroboram na proposta de afastar-se de generalidades, romper com oposições dicotomizadas e considerar a complexidade, a multiplicidade, a instabilidade, o hibridismo, a dinâmica e as mediações do mundo social (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o Social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. EDUFBA/Edusc.; Prout, 2010Prout, A. (2010). Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Cadernos de Pesquisa, 40(141), 729-750.; Spink, 2013Spink, M. J. (Org.). (2013). Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. (Edição Virtual). Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.).

Em sua vertente da performatividade, a TAR enfatiza a maneira como, através de redes relacionais, as realidades se colocam em cena em processos fluidos, contínuos, precários e inacabados (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o Social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. EDUFBA/Edusc.; Mol & Law, 2004Mol, A. & Law, J. (2004). Embodied Action, Enacted Bodies: the example of hypoglycaemia. Body & Society, 10(2-3), 43-62.). Assim, atores, ou actantes, humanos e não humanos - pessoas e outros elementos da natureza, instrumentos, máquinas, ideias, discursos, dispositivos, instituições etc. -, constituídos nas relações estabelecidas em rede, são mediadores que atuam e são atuados, compartilhando características de outros, transformando e produzindo forças que (re)configuram as realidades (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o Social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. EDUFBA/Edusc.).

Já a abordagem das PDPSC, fundada na Psicologia Social Discursiva, enfatiza processos de associação de ideias implicados na produção de sentidos e os diversos e circunstanciais posicionamentos discursivos dos actantes humanos na rede (Spink, 2013Spink, M. J. (Org.). (2013). Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. (Edição Virtual). Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.). Tomam-se repertórios interpretativos como conjuntos de sinais de comunicação, sejam verbais (signos linguísticos) ou não verbais (símbolos, imagens, gestos etc.), reunidos a partir do acesso, apropriação e assimilação pelo indivíduo em seu “tempo vivido” e organizados em memórias identitárias, que vêm à tona nas práticas cotidianas, demarcando possibilidades de construção discursiva e de sentido (Spink, 2013Spink, M. J. (Org.). (2013). Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. (Edição Virtual). Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.).

De posse desses referenciais, o/a pesquisador/a social do cotidiano deve inserir-se na rede, rastrear as interatuações de actantes e relatar práticas e controvérsias, captando as negociações de sentidos e os posicionamentos de actantes a performar versões de realidades (Despret, 1999Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent. Lês Empecheurs de Penser en Rond.; Moraes, 2011Moraes, M. (2011). Pesquisar: verbo ou substantivo? Narrativas de ver e não ver. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 6(2), 174-181.).

O local de pesquisa foi um município interiorano de médio porte localizado em uma microrregião próxima ao litoral de um estado da região Nordeste do Brasil, que somava condições favoráveis ao estudo, dentre as quais a cobertura de 90% na Atenção Primária à Saúde com a Estratégia Saúde da Família e a alta prevalência de transtornos externalizantes atendidos em um Ambulatório de Saúde Mental com especialidade infanto-juvenil.

Os critérios para seleção do actante de referência do estudo foram: ser criança de idade entre seis e doze anos incompletos - segunda infância (Lei n. 8.069/1990Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
); ter hipótese diagnóstica de transtornos externalizantes; ser usuária do SUS; ser estudante de escola pública; e ter histórico relacional que sugerisse complexidade, fertilidade e viabilidade para a pesquisa.

A criança foi selecionada para o estudo mediante consulta a prontuários do Ambulatório de Saúde Mental do município e acessada a partir de visitas à sua residência e à sua escola. Os critérios de exclusão foram a associação de comportamentos externalizantes com hipótese diagnóstica de transtornos orgânicos e/ou com a ocorrência de violência parental e/ou abuso sexual. Tendo como critério a relevância para a constituição do objeto, os demais actantes humanos foram selecionados através de um mapeamento da rede de relações da criança.

Os dados foram produzidos em seis meses de imersão do pesquisador (primeiro autor) em campo, a partir das técnicas de análise documental de prontuários de saúde da criança, entrevistas narrativas autobiográficas e episódicas com a criança e com cuidadores profissionais e na família, assim como observação participante em locais de sociabilidade da criança, com o suporte de diário de campo e roteiros semiestruturados.

Os referenciais da TAR e das PDPSC orientaram o plano de análise e interpretação de dados, de modo a compor um modelo específico baseado em categorias empíricas para a descrição contínua do fluxo das interatuações entre os actantes humanos e não humanos, bem como do fluxo das associações de ideias na produção de sentidos entre os actantes humanos.

Em observância ao disposto na Resolução nº 466 (CNS, 2012Conselho Nacional de Saúde - CNS. (2012). Resolução n. 466/2012. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf.
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o projeto de pesquisa referente a este estudo foi registrado na Plataforma Brasil do Ministério da Saúde, submetido a Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado mediante Parecer Consubstanciado em agosto de 2017.

Resultados e Discussão

A criança com comportamentos externalizantes, objetivada no actante-rede de referência deste estudo, que escolheu o codinome Davi, é performada nas práticas cotidianas, nas interatuações de actantes humanos e não humanos dotados de historicidade. É a historicidade que faz agregar a cada actante partes de outros com os quais se dispuseram em interatuações, constituindo seus modos de projeção do ser-devir (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o Social: uma introdução à Teoria Ator-Rede. EDUFBA/Edusc.; Despret, 1999Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent. Lês Empecheurs de Penser en Rond.; Mol & Law, 2004Mol, A. & Law, J. (2004). Embodied Action, Enacted Bodies: the example of hypoglycaemia. Body & Society, 10(2-3), 43-62.; Spink, 2013Spink, M. J. (Org.). (2013). Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. (Edição Virtual). Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.).

Davi é um menino de 10 anos de idade, racializado como negro, o terceiro dos cinco filhos de sua mãe, morador de uma comunidade periferizada onde atua uma facção criminosa ligada ao comércio de substâncias psicoativas proibidas. Viveu com os pais biológicos até os 4 anos e, com a separação do casal, passou a morar com a avó materna, junto com a mãe e os dois irmãos mais velhos, de pais diferentes. Por conta de brigas entre os pais, Davi viajou com a mãe e os irmãos para outro estado, ao encontro da tia, com quem conviveram por dois anos, até retornarem para a casa da avó, ao tempo em que a mãe iniciou um novo relacionamento. Quando tinha 7 anos, sua mãe o deixou com os dois irmãos sob os cuidados da avó materna e foi viver em outra cidade com o novo companheiro, com quem teve mais dois filhos. Por decisão da avó, seu irmão mais velho, que deixava de frequentar a escola, passou a morar com o pai em outro bairro da cidade. Davi visita o pai biológico, tios, primos e avós paternos, que são seus vizinhos. Sente saudades da mãe, que o visita às vezes, mas pensa que ela só gosta dos filhos mais novos, com os quais convive. Diz que quando crescer quer ser médico “para curar as pessoas”, ou advogado “para soltar as pessoas”.

No final do ano de 2016, Davi foi levado por sua avó ao Ambulatório de Saúde Mental (ASM), com queixas de problemas de comportamento e encaminhamento solicitado pela psicóloga do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS). A criança recebeu diagnósticos preferenciais de TDAH e TOD, e testou terapia psicofarmacológica com Cloridrato de Metilfenidato (Ritalina®), descontinuada após dois meses, sem retorno ao ASM. Em 2017, Davi cursava o 4º ano do ensino fundamental em uma escola da rede municipal, era vinculado à Unidade de Saúde da Família (USF) e ao CRAS. Na escola, por solicitação da diretoria, a turma de Davi foi atendida pelo Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD), que consiste de atividades de cunho pedagógico-disciplinar executadas pela Polícia Militar. Por indicação da técnica psicóloga do CRAS, Davi foi atendido em unidade do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), onde fazia refeições e praticava atividades artísticas, esportivas e de lazer.

O Quadro 1 apresenta, a partir de nomes fictícios, os demais actantes humanos participantes da pesquisa, atuantes na rede de relações com Davi:

Quadro 1
Participantes do estudo a partir das relações estabelecidas com Davi, a criança de referência do estudo de caso

Em uma rede de relações complexas, os problemas de comportamento atribuídos a Davi se constituíram em linhas de histórias compartilhadas entre os actantes, de modo a compor biografias individuais e coletivas. As entrevistas narrativas autobiográficas deram conta de fragmentos de histórias pessoais dos actantes humanos e possibilitaram, na análise das práticas discursivas, o acesso a repertórios interpretativos que expressaram conflitos intergeracionais acerca das práticas da infância, cruzando dimensões de valores ético-morais compartilhados e de segurança pública e comunitária. Conflitos intergeracionais se referem a diferenças socioculturais entre duas ou mais gerações, que podem ser efeitos de transformações do ambiente, mudanças de valores e/ou conflitos de interesse entre gerações mais novas e gerações mais velhas (Anjos, Gomes, Oliveira, & Silva, 2019Anjos, J. S. M., Gomes, L., Oliveira, M. L. C., & Silva, H. S. (2019). Atitudes sobre a Velhice: Infância, Adolescência, Avós e a Intergeracionalidade. Revista de Psicologia da IMED, 11(2), 147-165.).

Com aparente divisão por antagonismo, as categorias empíricas foram tratadas de modo a demonstrar a fluidez de versões da “criança com comportamentos externalizantes”, a partir das relações de Davi, em extensões de intervalos categoriais. Assim, por analogia a um termômetro, os distintos episódios discutidos a partir dos intervalos categoriais expõem o trânsito gradual e fluido em uma mesma escala, na medida de “temperaturas”, que podem ser interpretadas em versões do frio ao calor. Nesse sentido, a intenção é descrever, em cada escala, como actantes humanos e não humanos se posicionam e/ou são posicionados, constituindo versões do objeto. Essa foi a maneira escolhida para manejar e comunicar associações e dissociações nas interatuações entre actantes, de modo a fragilizar generalidades conceituais estabelecidas sobre o binômio infância e comportamentos externalizantes e, quiçá, vislumbrar a conciliabilidade de ideias que, em geral, se apresentam como oposições dicotomizadas.

Desse modo, realidades possíveis são descritas como efeito e fonte de relações constituídas com negociações, imprevistos, avanços, regressos, performatividades, transformações (Despret, 1999Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent. Lês Empecheurs de Penser en Rond.; Mol & Law, 2004Mol, A. & Law, J. (2004). Embodied Action, Enacted Bodies: the example of hypoglycaemia. Body & Society, 10(2-3), 43-62.; Moraes, 2011Moraes, M. (2011). Pesquisar: verbo ou substantivo? Narrativas de ver e não ver. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 6(2), 174-181.).

Do “angelical” ao “diabólico”

Quando eu acordo eu vou assistir televisão, aí, quando tá passando desenho diabólico eu tiro do canal e boto na... na oração. Aí, eu fico escutando e quando acaba a oração eu pego e vou pra casa da mãe do meu pai, fico lá brincando com meu primo ... (Davi, 10 anos, criança de referência do estudo)

Foi com essa narrativa que Davi começou a falar sobre si, quando perguntado sobre o que fazia durante o dia desde o momento em que acordava. Como actante humano, o actante-pesquisador-autor (primeiro autor) entrou na rede de relações de Davi se apresentando como alguém que queria conhecê-lo e a algumas pessoas ao seu redor para escrever sobre a sua história. No primeiro momento de entrevista, o discurso cristão neopentecostal foi ativado na rede de modo a ajudar Davi na narrativa da sua história, talvez de acordo com o que se associaria à ideia de uma criança “do bem” ou “angelical”. Esse posicionamento discursivo de Davi em sua narrativa autorreferida poderia ter sido tomado pelo pesquisador como “recalcitrância”, se o esperado fosse ter contato imediato com comportamentos disruptivos. Ou, talvez, como “docilidade”, se o esperado fosse desconstruir imediatamente o rótulo de “criança com comportamentos externalizantes” sobre a criança de referência do estudo.

Mas, com uma postura fenomenológica constituída em exercício de reflexividade pelo primeiro autor, expectativas e pressupostos teóricos e conceituais foram colocados em suspenso, num esforço por observar, apreender e traduzir cenas e narrativas a partir do que se mostra, conforme se mostram a partir de si mesmas (Heidegger, 2009). Assim, as narrativas podem ser compreendidas como modos de administrar associações que são múltiplas, distantes das ideias de verdade, mentira ou ilusão (Despret, 1999Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent. Lês Empecheurs de Penser en Rond.). Para tanto, evoca-se a ideia de versões, que devem ser trabalhadas e retrabalhadas pelo actante-pesquisador-autor em registros textuais fluidos/instáveis do ser-devir das realidades (Despret, 1999; Moraes, 2011Moraes, M. (2011). Pesquisar: verbo ou substantivo? Narrativas de ver e não ver. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 6(2), 174-181.).

Davi demostrou domínio sobre o discurso neopentecostal, que tem presença forte em sua comunidade, com uma igreja a poucos metros da sua casa, a qual visita às vezes. Signos desse repertório neopentecostal encontram-se articulados a outros actantes de suas narrativas:

Pesquisador: O que é desenho diabólico?

Davi: Tipo Pica-Pau, Chaves...

Pesquisador: Como assim, é diabólico?

Davi: É ... Não tem o bico do Pica-Pau? Ele não fica assim? [imitou o movimento das batidas do bico do Pica-Pau] Ele usa como arma, como revólver.

Davi traz então a arma, que circula em sua comunidade nas mãos de policiais e de comerciantes de substâncias psicoativas proibidas. A arma consta da rede de relações de Davi como um equipamento associado à ideia de demonstração de força/poder, performado de modo negativo ou positivo, a depender de como está posicionado no episódio narrado. Na narrativa acima, o actante não humano “arma” é atuado por Davi com o sentido de que outras coisas, como o bico do Pica-Pau, também podem ser usadas como arma; e isso é qualificado como diabólico, a partir do discurso neopentecostal.

Pesquisador: Ah... E quem diz que o Pica-Pau é diabólico?

Davi: O pastor.

Pesquisador: E você vai pra a igreja?

Davi: De vez em quando... Tem uma perto da minha casa. Tem a minha casa, passa umas cinco casas e é a igreja... Eu vou sozinho. É pertinho.

Pesquisador: E você acha que é diabólico o desenho?

Davi: Eu acho que é diabólico.

Em interatuações com Davi em sala de aula, o seu caderno entra em cena com poucas escritas de lições e com desenhos diversos, dentre os quais revólveres e fuzis e um Pica-Pau com um cigarro no bico, descrito por seu colega de turma como “o Pica-Pau fumando maconha”. Com tom ameno e, por isso, sem prejuízo, as narrativas foram confrontadas:

Pesquisador: Mas você desenha o Pica-Pau, né?

Davi: Eu parei agora. Depois que o pastor disse que o Pica-Pau é diabólico, eu parei.

Pesquisador: E você acha que o Diabo é o quê?

Davi: Ele era um anjo, aí, ele teimou com Deus e Deus mandou ele embora. Ele foi lá e se tornou um destruidor de vidas.

O discurso cristão neopentecostal circula e atua na rede de relações de Davi, constituindo associações com a ideia de guerra entre o bem e o mal, representados nas figuras de Deus e do Diabo e com as ideias de cobrança, punição, culpa, necessidade de melhora. “Teimar”, o que o Diabo teria feito com Deus, é uma prática de Davi, reconhecida em suas narrativas e que faz com que a sua avó, Marília, e o seu pai biológico briguem consigo. Segundo as narrativas de Nanci, técnica psicóloga do CRAS, o “avô”, companheiro da avó Marília, o chama de “diabo”, de “demônio”, quando Davi faz algo não aceito. Davi é cobrado a melhorar o comportamento pela professora Bernadete e pela avó, e, quanto a isso, ele diz: “Mas eu tô parando, eu tô melhorando. É sério”. Davi se mobiliza em projeções de devir para não ser “mandado embora” e para se distanciar da imagem de “um destruidor de vidas”.

Com o fluir da entrevista, Davi comunica suas versões, sem a necessidade de estar preso à construção de narrativas fixadas em um único ideal. Davi relata brigas com seu irmão de 12 anos, tendo a avó como mediadora, e expõe situações em que é provocado e reage, bem como situações em que provoca e arca com os efeitos da sua atuação.

Nessa direção, narra episódios em que descreve seus comportamentos agressivos de forma bastante aberta, às vezes de pé e interpretando as cenas com gestos e movimentos, contando em detalhes atos de violência que, pode-se dizer, o aproximariam do “diabólico”. Davi sustenta a narrativa de suas atuações agressivas na figura de linguagem “atacar o foco”, para referir uma impulsividade violenta semelhante à de seu pai, em resposta a provocações:

Davi: No dia que os menino tava me pertubando, eu fui lá e ataquei o foco. Ela [a orientadora social no SCFV] veio me separar do menino lá.

Pesquisador: Você fez o quê?!

Davi: Eu ataquei o foco. Ela foi lá, foi me separar do menino.

Pesquisador: Como é atacar o foco?

Davi: Quando eu fico enraivado, eu começo a chorar e fico com o olho assim [inclinou os olhos para trás]. Aí, ela foi lá, foi me separar; aí, uma chamada [Verônica - orientadora social no SCFV] foi lá e me furou bem aqui [na mão].

Pesquisador: Furou com o quê?

Davi: Sem querer, ela furou com a unha dela grande. Aí, ela falou: “Queta!”. Aí, eu falei: Vá tomar no seu... Vá tomar no seu “não sei aonde”. Ela falou: “O quê?”

Pesquisador: Mandou tomar onde? Pode falar, não tem problema, não. Você pode falar o que você quiser comigo na entrevista.

Davi: Eu falei: Vá tomar no seu cu! Ela falou: “O que, rapaz?” Eu falei: É isso mesmo que a senhora ouviu. Vá tomar no seu cu! Ela foi lá e me deu suspensão. Aí, quando eu cheguei em casa, mainha [avó] perguntou por que eu mandei a [orientadora social] tomar no cu, eu falei: Porque ela me furou. Ela me furou e foi separar, mas se ela não separasse eu ia matar o menino. Eu tava garrado aqui nele, ó [no pescoço].

Por sua vez, os atos de carinho de Davi relatados por ele mesmo e por diferentes actantes humanos da sua rede, para os adultos, o aproximam do ideal socialmente compartilhado de criança. Os atos de Davi são narrados em trânsito entre o angelical e o diabólico, o bem e o mal, sempre de modo fluido e precário: “Porque, na verdade, ele é um menino carinhoso. Mas, eu não sei o que acontece que ele quer o tempo todo tá procurando problema” (Verônica, 27 anos, orientadora social no SCFV).

Do ideal de criança ao ideal de adulto

A brincadeira, a espontaneidade, o carinho e o choro são lugares comuns do ideal de criança que fazem parte das práticas cotidianas de Davi. No entanto, em suas interatuações, discursos relacionados a gênero e sexualidade entram em ação com vocabulários, gestos e atitudes que representam lugares comuns para o ideal de adulto ou ganham tons classificados como abusivos, porque ultrapassariam o socialmente aceito até mesmo para o ideal de adulto:

E o mais engraçado é assim... Que no primeiro dia de aula eu arrumei a árvore dos sonhos. Eu pedi que cada um botasse o nome e o que queria ser. Ele quer ser ginecologista. Ele não quer ser médico, não. Ele quer ser gi-ne-co-lo-gis-ta... Depois eu chamei ele e falei: Por que ginecologista? “Porque ginecologista só vê o xibiu das mulé”. A visão dele é sexo, é sexual. “Porque eu vou ver um bocado de buceta, professora” (risos). Então, assim... Por quê? Não é que ele quer ser médico... Mas só que, mesmo assim, eu uso esse ginecologista pra botar ele pra estudar: Como é que você vai chegar a ser um ginecologista se você não estudar? “Tchum! Eu vou ser!” Como? Me diga aí os meios... Porque você vai ter que fazer vestibular, fazer faculdade, ser bom na faculdade, pra depois fazer a residência pra ginecologia. “E é assim, é, professora?” (Bernadete, 54 anos, professora da turma de Davi na escola)

Davi era um menino que falava muita pornografia. Isso também era muito difícil, porque a gente chamava a atenção dele que não podia falar aquilo, que não era o momento, que ele era uma criança... Eu diria, pornografia, assim, palavras obscenas. Contar coisas não. Mas falar palavras pornográficas... Davi fala coisas que parece que é adulto. (Verônica, 27 anos, orientadora social no SCFV)

Nas narrativas acima, primeiramente, a professora escuta, sente estranhamento, mas atua no sentido de esvaziar o conteúdo sexual e enfatizar a profissão almejada por Davi para valorizar os estudos. Nesse sentido, a professora tenta trazê-lo para mais perto do ideal de criança, conciliando o ideal de adulto em seu porvir. Já a orientadora social, em sua narrativa, se posiciona como censora do conteúdo sexual, tentando impor a Davi o ideal de criança.

Davi segue em trânsito precário nas suas interatuações cotidianas a produzir múltiplas e distintas socialidades e materialidades entre os ideais compartilhados de criança e de adulto. Ou seja, elementos heterogêneos são circunstancialmente associados de maneiras diversas em interatuações acerca de Davi, com transformações dinâmicas, instabilidades e fluidez no tempo e no espaço - socialidades (Mol & Law, 2004Mol, A. & Law, J. (2004). Embodied Action, Enacted Bodies: the example of hypoglycaemia. Body & Society, 10(2-3), 43-62.). Assim, fragilizando demarcações conceituais fixadas no âmbito das ideias sobre a infância e a adultez, múltiplas formações ou versões de realidade se constituem a partir dos elementos que atuam e são atuados em cada cena - materialidades (Mol & Law, 2004Mol, A. & Law, J. (2004). Embodied Action, Enacted Bodies: the example of hypoglycaemia. Body & Society, 10(2-3), 43-62.).

Com os limites entre os ideais de criança e de adulto fragilizados nas controvérsias das interatuações cotidianas, é possível admitir instabilidade também na composição do binômio “infância e comportamentos externalizantes”. Conceituados por Achenbach e Rescorla (2001Achenbach, T. M. & Rescorla, L. A. (2001). Manual for lhe ASEBA Preschool forms & Profiles. University of Vermont, Research Center for Children, Youth & Families.) como reações impulsivas da criança ou adolescente que produzem conflitos com o ambiente, os “comportamentos externalizantes” também se produzem em interatuações cotidianas entre actantes diversos que performam as múltiplas realidades. Ou seja, os comportamentos reativos e os conflitos se constituem nas interatuações entre actantes e não exclusivamente a partir do corpo da criança com suas supostas reações impulsivas. Por extensão, os conflitos interatuados no cotidiano produzem queixas tanto da parte de Davi, a criança de referência deste estudo, como da parte dos adultos em sua rede de relações.

Ante o exposto, Davi pode ser interpretado de maneira mais aprofundada, não como uma criança que parece adulto, mas como um actante humano pertencente a uma geração específica de infância, que transita em linhas de histórias compartilhadas com outros actantes diversos, incluindo humanos de outras gerações com memórias identitárias de infância heterogêneas, que interatuam realidades e conflitos que desestabilizam ideais generalistas.

Dos constituídos aos constituintes

O que mais emerge enquanto determinantes nas narrativas acerca dos comportamentos considerados problemáticos em Davi, nas versões de actantes humanos, tem relação com o seu ambiente familiar e social-comunitário, problematizando o afastamento da mãe, o crime e a violência na comunidade, os conteúdos distantes do ideal de criança acessados por Davi etc. Mesmo tendo dado encaminhamento para a cuidadora de Davi levá-lo à consulta psiquiátrica no ASM, a técnica psicóloga do CRAS, como os demais actantes fora da atenção à saúde, prioriza o enfoque socioassistencial em suas narrativas:

Davi já gosta de desenhar fuzil, revólver. Eu acho que não tem como essa realidade do bairro não influenciar no comportamento dele. Ainda mais quando tem gente da família envolvida. E o trabalho da gente é mostrar outras coisas, outras possibilidades pra fortalecer ele em relação a essas influências... Tem a questão do ambiente, do bairro que ele mora, da família, das figuras parentais. Tudo isso constrói os comportamentos da criança. Então, eu acho que deve ser olhado o ajustamento familiar, os vínculos familiares, a relação com a escola... Os pais, em geral, não querem colaborar. Também, são pais de baixa renda, que têm dificuldades em compor os papeis parentais. Então, fica mais fácil ir ao [ASM/psiquiatra] ou ao neurologista... A avó [Marília] insiste que o menino [Davi] precisa tomar remédio (Nanci, 34 anos, técnica psicóloga do CRAS que atende à família de Davi)

Ele me conta muita história de violência. Do bairro. E ele tem irmão [tio] que eu acho que é do tráfico. E, como ele fala, o irmão [tio] é perigoso. Ele fala de arma... Mas a mainha dele é sagrada, que é a vó, né? A mainha dele ... (Bernadete, 54 anos, professora da turma de Davi na escola)

A agente comunitária de saúde da USF não identifica Davi como uma criança com problemas de comportamento, valoriza a importância de fatores familiares e sociocomunitários e articula os repertórios interpretativos socioassistencial e da saúde:

E aí, eu acho assim, tem que primeiro passar pelo médico [da família] pra o médico avaliar, depois tem que passar pela psicóloga [do Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF] pra ela também acompanhar, avaliar, porque pode ser problema mental ou pode ser outro problema no convívio com a família, né? Mudança de comportamento pode ser também isso, né? Na família, quando a mãe separa do pai, quando a mãe entrega à vó... Então tudo isso pode, né? Mexe também com a cabeça da criança... Pode ser também isso, essa mudança repentina, né? Depois, conforme seja, vê se encaminha pra um especialista, um psiquiatra ou um neurologista (Maiara, 34 anos, agente comunitária de saúde que atende à família de Davi)

Chegando ao ASM, as narrativas do médico especialista em psiquiatria da infância e adolescência, assim como os registros no prontuário de Davi, expressam uma lógica distinta de atuação. Nesse sentido, as narrativas do paciente infantil e dos demais actantes humanos consultados sobre os seus “comportamentos problemáticos”, interatuados pelos profissionais do ASM, passam pelo crivo da psicopatologia, num checklist de sintomas atribuídos ao corpo da criança e relacionados a fatores de risco ambientais, para chegar a um raciocínio diagnóstico biomédico e a uma solução farmacológica:

Porque quanto mais detalhes, quanto mais dados, sobre as rotinas, sobre as experiências, sobre os comportamentos, sobre as emoções daquela criança, melhor... Até porque os pais, eles tendem a ter um bom olhar longitudinal porque eles acompanharam a criança em diferentes épocas da vida... Enquanto que a escola tem um bom olhar transversal e comparativo porque o professor está diante de algumas crianças por dia ao mesmo tempo, então quando alguma tem algum tipo de comportamento... que está fugindo muito do esperado pra os demais, ele consegue observar e sinalizar isso, né?... Até porque na psiquiatria vários transtornos mentais tendem a ter uma abertura de sintomas, um início muito parecido um com o outro. Por exemplo: qual é o transtorno que pode gerar irritabilidade? Praticamente todos. A pessoa pode ficar irritada... por um TDAH, por um TOD, por autismo... Então, a gente tem que avaliar não só o sintoma, mas o contexto em que ele se apresenta, o porquê que ele se apresenta, o como que isso se apresenta... Pra poder chegar num raciocínio diagnóstico, né? Então, diante de uma criança que teve comportamentos hiperativos, irritabilidade, várias são as hipóteses... Então, a gente tem que avaliar pra chegar a uma melhor conclusão... Nesse processo, a gente já pode testar algum medicamento pra o alívio dos sintomas... Porque aqui a gente atende as crianças que estão com algum tipo de transtorno, que foi por isso o encaminhamento pra cá (Gabriel, 31 anos, médico especialista em psiquiatria infantil no ASM)

Marília, avó e principal cuidadora de Davi na família, expressa o seu próprio entendimento sobre os comportamentos do neto, mas também repercute ideias de outros lugares de saber onde interatua na mediação de conflitos e queixas. Marília tem um filho de 22 anos que já fez tratamento psicofarmacológico, então conhece os efeitos da atuação do medicamento na rede. Ao narrar a experiência de dois meses administrando o Cloridrato de Metilfenidato (Ritalina®) em Davi, Marília descreve que o neto dormia mais cedo e ficou mais quieto, mas, depois, quando parou de usar, ficou como era antes. O medicamento pode ser traduzido, nesse sentido, como promessa de paz para a cuidadora:

Ó, sei não. Tá difícil. E pra acabar de piorar, eu fui lá na outra semana no [ASM] saber da moça da marcação da consulta. Ela disse: “Ó, mãe, no dia 4”. Eu não esqueci? Eu esqueci, agora estou com vergonha de procurar essa menina. Será que vai marcar mais? Eu acho que não. (Marília - 58 anos, avó e principal cuidadora de Davi)

Davi tem conhecimento dos processos referentes ao uso de medicamentos como solução para os seus comportamentos indesejados; narra em detalhes a sua consulta com o psiquiatra infantil em agosto de 2016 e seus desdobramentos:

Pesquisador: E no dia que sua avó levou você pra o médico do [ASM] como foi?

Davi: Eu perguntei a ela [avó] se era CAPS [ASM] de doido, que eu não era doido. Ela foi lá e falou que não era, não, que era coisa de psicólogo, essas coisa, pra viajar, pra fazer essas coisa. Eu fui lá disse a ela que não ia, não, e saí correndo. Ela foi atrás de mim, me pegou e me arrastou... Eu: huaaaa, aaah... Aí, a médica falou que era pra eu ir pra [a capital do estado] ver se eu tenho diabete, essas coisa [a família do pai de Davi tem histórico de diabetes]. Ela foi lá, deu o papel [Questionário SNAP-IV, de avaliação de TDAH] à mainha pra ver se eu tinha dificuldade de brincar. “Presta atenção?” “Bate em alguém no colégio?” Minha vó respondeu lá tudo errado. Porque ela acha que eu tenho que tomar remédio pra ficar queto. Mas eu não preciso, não.

Pesquisador: E a médica disse mais o quê?

Davi: Ah... Minha vó pegou o papel lá, respondeu lá, mas depois ninguém mais veio dizer nada pra gente.

Davi descreve os seus comportamentos com qualificadores e afetos que não aparecem nas narrativas de outros actantes humanos da rede. As narrativas de outros sobre os comportamentos não aceitos de Davi se aproximam mais do “porquê”, vislumbrando soluções. Já as narrativas de Davi têm uma proximidade maior do “como” os comportamentos acontecem, por vezes recorrendo à linguagem da generalidade: “Eu sou que nem meu pai, quando eu ataco o foco ninguém me segura”. E em outros momentos, ainda que semelhantes, atuando de forma diversa: “Aí, eu fui lá e falei: eu não vou querer atacar meu foco, não”.

Com o intervalo categorial “dos constituídos aos constituintes” é possível dizer, pela fluidez das versões performadas do objeto - a criança com comportamentos externalizantes - que as realidades alcançadas neste estudo se assentam em processos constituintes. Tanto em relação às narrativas episódicas dos actantes humanos, muitas vezes trazidas em linguagem de generalidade, como, consequentemente, em relação ao binômio “infância e comportamentos externalizantes”, nada fica estabelecido seguramente como constituído.

Os supostos constituídos só podem existir como efeito discursivo de narrativas em linguagem de generalidade, que também atuam e são atuados na rede, em ontologias políticas. Ou seja, os constituídos são frágeis e precários, se transformam a cada nova cena ou narrativa, com múltiplas versões performadas em correlações de força/poder que produzem condições de possibilidade para o ser-devir de realidades moldadas e remoldadas nas práticas cotidianas - ontologias políticas (Martin, Spink, & Pereira, 2018Martin, D., Spink, M. J., & Pereira, P. P. G. (2018). Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado: uma entrevista com Annemarie Mol. Interface Comunicação Saúde Educação, 22(64), 295-305.). Em outras palavras, socialidades, materialidades e performatividades em movimento, circunstancialmente associando e dissociando actantes diversos num jogo dinâmico de práticas e sentidos, produzem realidades que são múltiplas e precárias. Contudo, as sinuosidades desses processos na dinâmica ontológica das performatividades não excluem as ideias de algo constituído ou estável, presentes nas narrativas em linguagem de generalidade, como projeções do ser-devir.

Ponderações Continuadas

Abordando “a criança com comportamentos externalizantes”, este estudo se constituiu com propósito de explorar os modos como actantes humanos e não humanos interatuam em negociações de práticas e sentidos, performando saberes locais e versões múltiplas do objeto. Com um estudo de caso foi possível acompanhar uma rede de relações ampla e complexa, onde humanos e não humanos tanto constituíram versões do objeto como fragilizaram as categorias conceituais que o compõem: a infância e os comportamentos externalizantes.

O campo empírico deste estudo sinaliza a importância de um maior intercâmbio de conhecimentos acerca do tema, de modo a transcender pela transdisciplinaridade o lugar das especialidades e valorizar a escuta da(s) criança(s), historicamente silenciada(s) em seus saberes sobre si, suas queixas, vontades, necessidades etc. Os crivos das especialidades, ao enfatizarem os “porquês”, se distanciam do “como”, que emerge com os saberes do usuário dos serviços, que defendemos aqui como ator central do conhecimento acerca de si mesmo. Trata-se, portanto, de conhecer as lógicas dos saberes, dos repertórios interpretativos e dos sentidos produzidos pela criança acerca dos temas que lhe dizem respeito; ou seja, não apenas traduzi-los ou filtrá-los a partir dos crivos específicos de “especialidades” que muitas vezes impõem soluções unilaterais. Saliente-se, a criança de referência deste estudo de caso pôde expressar a sua força na produção e interpretação das realidades ao seu redor com materialidades legítimas, disputando poder e narrativas em sua rede de relações.

O crescimento vertiginoso de queixas de comportamento infantil e diagnósticos relacionados ao conceito de comportamentos externalizantes talvez seja efeito de uma revolução silenciosa, ainda que precária, das crianças. Com o acesso mais facilitado a informações, as crianças adquirem maior repertório para compor estratégias de atuação e, também, de enfrentamento diante de sofrimentos muitas vezes relacionados a abusos e silenciamentos. Assim, as crianças tendem a romper com o ideal socialmente compartilhado de infância para gerações mais velhas e a produzir, sempre em ações distribuídas com outros actantes, os conflitos que têm sido associados à psicopatologia infantil. Daí também a importância de se promover nos campos multidisciplinares um intercâmbio entre gerações e entre os territórios de cultura, que produzem crianças e infâncias múltiplas.

Relações de hierarquia e poder de adultos sobre as crianças não prescindem de reações impulsivas, como a agressividade, o grito, a ameaça, a contestação ou a provocação, muitas vezes em padrões repetitivos e persistentes, como aqueles tomados como base para o diagnóstico dos transtornos externalizantes em crianças e adolescentes. As crianças têm suas queixas sobre os comportamentos dos adultos muitas vezes silenciadas, enquanto os adultos tendem a legitimar entre si, nos espaços institucionais ou especializados que comandam, as suas queixas sobre os comportamentos das crianças.

Assim, para pensar a saúde mental infantil, este estudo tenta contribuir, principalmente, com a ideia de reconhecimento amplo das crianças como produtoras de sentidos, saberes e cultura. Estudos futuros, também aderentes ao campo da Psicologia Social, podem explorar de forma mais aprofundada a associação de relações de gênero e étnico-raciais com os diagnósticos baseados no conceito de “comportamentos externalizantes”, bem como os conflitos entre as culturas territoriais de centros e periferias.

Referências

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  • Financiamento

    Não se aplica.
  • Consentimento de uso de imagem

    Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Revisado
    13 Maio 2022
  • Aceito
    02 Set 2022
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