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PSICODRAMA BIPESSOAL NO TRATAMENTO DO EMBOTAMENTO DA ESPONTANEIDADE DECORRENTE DA PANDEMIA DE COVID-19

BIPERSONAL PSYCHODRAMA IN THE TREATMENT OF THE DULLNESS OF SPONTANEITY RESULTING FROM THE COVID-19 PANDEMIC

PSICODRAMA BIPERSONAL EN EL TRATAMIENTO DE LA TORPEZA DE LA ESPONTANEIDAD RESULTANTE DE LA PANDEMIA DE COVID-19

RESUMO

O isolamento social restringiu a liberdade das pessoas e intensificou o psicodrama on-line na pandemia. Este artigo objetiva compreender como o psicodrama bipessoal on-line pode tratar o embotamento da espontaneidade decorrente do isolamento social na pandemia de COVID-19, incluindo etapas, instrumentos e técnicas do atendimento. Foram realizadas cinco sessões de psicodrama bipessoal on-line, em função do contexto da pandemia de COVID-19. O isolamento social pode embotar a espontaneidade. A abordagem do psicodrama bipessoal com suas técnicas traz embasamento para a prática à distância e permite reconhecer conservas culturais, novas possibilidades de desempenho de papéis e treinar a espontaneidade para a sobrevivência após a pandemia de COVID-19.

PALAVRAS-CHAVE
Ansiedade; Isolamento social; Psicodrama; COVID-19

ABSTRACT

The social isolation of recent years has restricted people’s freedom and intensified online psychodrama in the pandemic. This article aims to understand how online bipersonal psychodrama can treat the dullness of spontaneity resulting from social isolation during the COVID-19 pandemic, including stages, instruments and techniques of care. Five sessions of bipersonal psychodrama were performed online, depending on the context of the COVID-19 pandemic. Social isolation can blunt spontaneity. The approach of bipersonal psychodrama with its techniques provides a basis for distance practice and allows recognizing cultural conserves, new possibilities for role playing and training spontaneity for survival after the COVID-19 pandemic.

KEYWORDS
Anxiety; Social isolation; Psychodrama; COVID-19

RESUMEN

El aislamiento social restringió la libertad de las personas e intensificó el psicodrama en línea en la pandemia. Este artículo tiene como objetivo comprender cómo el psicodrama bipersonal en línea puede tratar la torpeza de la espontaneidad resultante del aislamiento social en la pandemia de COVID-19, incluidas las etapas, los instrumentos y las técnicas de atención. Se realizaron cinco sesiones de psicodrama bipersonal en línea, dependiendo del contexto de la pandemia de COVID-19. El aislamiento social puede embotar la espontaneidad. El enfoque del psicodrama bipersonal con sus técnicas, aporta fundamentación a la práctica a distancia y permite reconocer reservas culturales, nuevas posibilidades de desempeño de roles y entrenar la espontaneidad para la supervivencia después de la pandemia de COVID-19.

PALABRAS CLAVES
Aislamiento social; Ansiedad; Psicodrama; COVID-19

INTRODUÇÃO

O mundo está vivendo uma situação de pandemia desde março de 2020 em função do surgimento de um novo tipo de coronavírus (SARS-CoV-2) responsável por causar a doença COVID-19. Vários casos de pneumonia foram identificados na província de Hubei, na República Popular da China em dezembro de 2019. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os coronavírus são uma ampla família de vírus que podem causar uma variedade de condições, desde resfriado comum, como febre, cansaço, tosse seca, até outros sintomas menos comuns, como perda de olfato e paladar, conjuntivite, dor de garganta, cabeça e músculos, além de outras doenças mais graves (World Health Organization [WHO], 2022aWorld Health Organization. (2022a). Accelerating a safe and effective COVID-19 vaccine. Recuperado de: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/accelerating-a-safe-and-effective-Covid-19-vaccine. Acesso em 24 jan. 2022.
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).

À medida que o vírus se propagou, muitos governos estabeleceram planos de contingência e uma série de medidas e restrições foram impostas, dentre elas o isolamento social, que colocou em quarentena mais de 2,6 bilhões de pessoas no mundo. Além disso, foram implementadas outras medidas como o uso de máscaras, adaptação ou fechamento de escolas e negócios, restrições de viagens em âmbito local, nacional e internacional (WHO, 2022aWorld Health Organization. (2022a). Accelerating a safe and effective COVID-19 vaccine. Recuperado de: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/accelerating-a-safe-and-effective-Covid-19-vaccine. Acesso em 24 jan. 2022.
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).

Diante desse cenário, algumas das principais repercussões psicológicas decorrentes do isolamento social e da quarentena mais relatadas, segundo Santos e Rodrigues (2020, p. 4099)Santos, M. F. R. & Rodrigues, J. F. S. (2020). Covid-19 e repercussões psicológicas durante a quarentena e o isolamento social: uma revisão integrativa. Revista Nursing, 23(265), 4095–4106. https://doi.org/10.36489/nursing.2020v23i265p4095-4106
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, foram “solidão, depressão, stress, medo de adoecer e da morte, ansiedade, raiva, frustração, tédio, insônia, tristeza e irritabilidade”.

Um estudo realizado na China, ainda em 2020, durante o surto inicial da COVID-19, com 1.210 pessoas em 194 cidades, evidenciou impactos psicológicos em 53,8% do público, onde 28,8% apresentaram sintomas de ansiedade, 16,5% sintomas depressivos e 8,1% apresentaram níveis de estresse, além de outros sintomas, com impacto moderado a grave, tendo maior impacto entre mulheres e estudantes. A maioria dos entrevistados relataram ficar de 20 a 24 horas por dia em casa (84,7%) e 75,2% afirmaram preocupação com a contaminação dos familiares (Wang et al., 2020Wang, C., Pan, R., Wan, X., Tan, Y., Xu, L., Ho, C. S. & Ho, R. C. (2020). Immediate Psychological Responses and Associated Factors during the Initial Stage of the 2019 Coronavirus Disease (COVID-19) Epidemic among the General Population in China. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(5), 1729. https://doi.org/10.3390/ijerph17051729
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).

Em 26 de novembro de 2021, a OMS designou a variante da COVID-19 B.1.1.529 como uma variante preocupante, denominada Ômicron, principalmente pela capacidade de mutações, facilidade de disseminação e gravidade dos sintomas. Pesquisadores de todo o mundo realizam estudos para entender os aspectos dessa nova variante, inclusive a forma de combate por meio da vacina. A OMS continua a recomendar as ações de saúde pública para reduzir a circulação global do vírus e o esquema completo de vacinação, com base na análise de riscos e em uma abordagem científica (Organização Panamericana de la Salud, 2021Organización Panamericana de la Salud. (2021, 1 dezembro). OMS – Situación actual relativa a la variante ómicron. Organización Panamericana de la Salud. Recuperado de: https://www.paho.org/es/noticias/1-12-2021-oms-situacion-actual-relativa-variante-omicron. Acesso em 24 jan. 2022.
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).

Um esforço global de pesquisa, com apoio da OMS, tem trabalhado para desenvolver, avaliar, produzir e garantir a disponibilidade de vacinas seguras e eficazes contra COVID-19, reconhecidas como uma ferramenta adicional para contribuir com o controle da pandemia (WHO, 2022aWorld Health Organization. (2022a). Accelerating a safe and effective COVID-19 vaccine. Recuperado de: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/accelerating-a-safe-and-effective-Covid-19-vaccine. Acesso em 24 jan. 2022.
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).

Mais de 12 bilhões de doses de vacinas contra COVID-19, cuidadosamente testadas, foram aplicadas com segurança e têm demonstrado alto nível de eficácia em todas as populações. Novas tecnologias de vacinas estão sendo testadas e continuam em monitoramento (WHO, 2022bWorld Health Organization. (2022b). WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard. Recuperado de: https://covid19.who.int/. Acesso em 22 nov. 2022.
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).

A pandemia impôs mudanças na vida das pessoas com uma série de imposições e regras de isolamento, cerceou a liberdade por um longo período e provocou inúmeras perdas e inseguranças, acarretando consequências psicológicas, sociais, políticas e econômicas, o que colaborou para o embotamento da espontaneidade.

A espontaneidade-criatividade caracteriza o núcleo antropológico do homem como indivíduo, constituindo sua essência, sua alma e funciona como catalizador para as ações do homem potencialmente criativo no mundo, em um sentido relacional (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora.). A pandemia de COVID-19 exigiu respostas adequadas às novas situações. O embotamento da espontaneidade está ligado a comportamentos rígidos e automáticos, desproporcionais à realidade.

Uma das estratégias de enfrentamento utilizadas durante a pandemia foi o atendimento psicológico on-line, por meio do cadastro e-Psi, liberado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2020[CFP] Conselho Federal de Psicologia. (2020, 16 março). Coronavírus: Comunicado sobre atendimento on-line. Conselho Federal de Psicologia. Recuperado de: https://site.cfp.org.br/coronavirus-comunicado-sobre-atendimento-on-line/. Acesso em 24 jan. 2022.
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) e sem a necessidade de autorização prévia; medida para atenuar os impactos do vírus na sociedade. E o psicodrama on-line, por meio da clínica psicoterápica, foi uma das formas para contribuir com a promoção da saúde mental e das relações nesse período.

O objetivo deste artigo é compreender como o psicodrama bipessoal on-line pode tratar o embotamento da espontaneidade decorrente do isolamento social na pandemia de COVID-19, auxiliar o paciente a reconhecer novas possibilidades no desempenho de papéis e treinar a espontaneidade, por meio da clínica psicoterápica, além de identificar conservas culturais construídas durante o isolamento. Segundo Bustos (1992)Bustos, D. (1992). Novos rumos em psicodrama: Doença e cura em psicoterapia psicodramática. Ática., a psicoterapia psicodramática bipessoal é uma abordagem terapêutica que se configura pela relação paciente e terapeuta, e considera o homem em conflito, em vez do homem doente, trabalhando o tipo de conflito a partir do desempenho de papéis. Trabalha o conceito moreniano de que o homem é criativo e espontâneo, e que a doença se dá no bloqueio, no embotamento da criatividade e espontaneidade (Martin, 1996Martin, E. G. (1996). Psicologia do encontro: J. L. Moreno. Ágora.).

Este artigo apresenta as etapas, instrumentos e técnicas de um atendimento realizado por meio do psicodrama bipessoal on-line, além de trechos das sessões que evidenciem os avanços alcançados na relação diretor e paciente. Nesse sentido, pretende, por meio do psicodrama bipessoal, tratar o embotamento da espontaneidade decorrente do isolamento social na pandemia de COVID-19.

DESENVOLVIMENTO

Teoria de papéis

A teoria de papéis é abrangente e perpassa todas as dimensões da vida, iniciando no nascimento e seguindo por toda a existência. Não está limitada aos papéis sociais e “deve incluir três dimensões: papéis sociais, expressando a dimensão social; papéis psicossomáticos, que expressam a dimensão fisiológica; e papéis psicodramáticos, que constituem a dimensão psicológica do eu” (Moreno, 1946/1997Moreno, J. L. (1997). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1946), p. 28). Os papéis sociais respondem a generalizações convencionais de acordo com determinantes culturais (Bustos, 1990Bustos, D. (1990). Perigo amor à vista: Drama e psicodrama de casais. Aleph.).

Apesar da formulação original de Moreno (1946/1997)Moreno, J. L. (1997). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1946), Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora. não considera mais os papéis psicossomáticos e adota a seguinte classificação de papéis:

  • Papéis sociais: todos os papéis da vida cotidiana que vivemos em nossas relações;

  • Papéis psicodramáticos: que servem de elo entre os papéis sociais e imaginários, no contexto psicodramático;

  • Papéis imaginários: conservados dentro do sujeito (encapsulados) e não atuados (conservados ou não pela transferência);

  • Papéis de fantasia: não conservados e não atuados, podendo ser jogados dentro e fora do cenário psicodramático;

  • Papéis dramáticos: desempenhados por atores no teatro, cinema e televisão.

Segundo Moreno, como citado em Martin (1996)Martin, E. G. (1996). Psicologia do encontro: J. L. Moreno. Ágora., o ser humano toma consciência de seu eu por meio do desempenho de papéis. Os papéis e as relações entre os diversos papéis revelam a cultura e, paralelamente ao processo evolutivo ao assumir papéis, definem-se os mecanismos de aprendizagem. Como esclarece Moreno (1946/1997, p. 29)Moreno, J. L. (1997). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1946): “o papel é a unidade da cultura; ego e papel estão em contínua interação”.

“Os papéis se agrupam segundo sua dinâmica, configurando clusters ou agrupamento de papéis” (Bustos, 1990Bustos, D. (1990). Perigo amor à vista: Drama e psicodrama de casais. Aleph., p. 76). O primeiro e segundo clusters têm complementares únicos, mãe e pai respectivamente, ou adultos que desempenham esses papéis, e constituem papéis assimétricos. Mais tarde aparecem os papéis simétricos no terceiro cluster, determinado pelas relações de paridade, irmãos ou pares na brincadeira (Bustos, 1990Bustos, D. (1990). Perigo amor à vista: Drama e psicodrama de casais. Aleph.).

Bustos (1990)Bustos, D. (1990). Perigo amor à vista: Drama e psicodrama de casais. Aleph. ainda traz o conceito de papel complementar interno patológico, definido quando a criança tende a reter o papel primário que lhe é conhecido ou garantido, o que pode gerar bloqueios e menor espontaneidade nas relações adultas. Ainda sobre o conceito de papel, Naffah Neto (1979)Naffah Neto, A. (1997). Descolonizando o imaginário. Plexus. ressalta a contradição em opor papéis psicodramáticos e papéis sociais, uma vez que os papéis psicodramáticos surgem quando os sociais são explícitos — uma convergência entre ação e a imaginação. Por outro lado, destaca a veracidade de que “na cisão entre pessoa privada e papel social, a imaginação permanece deslocada da ação real e fechada em si mesma” (Naffah Neto, 1979Naffah Neto, A. (1997). Descolonizando o imaginário. Plexus., p. 212), e complementa que, nesse sentido, a imaginação rompe seu espaço para se fazer verdade — a cristalização de certos papéis, que permanecem não atuados na fantasia.

“Realidade e fantasia coexistem no ser humano o tempo todo”, como destaca Perazzo (2018, p. 106)Perazzo, S. (2018). O mito da cadeira vazia. Revista Brasileira de Psicodrama, 26(1), 102–107. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180020
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sobre o conceito de realidade suplementar, que a define como instância psíquica mediada pela espontaneidade e criatividade, presente em todas as ações do ser humano e permeada pelas relações com seus pares, em constante mudança provocada pela imaginação e pela fantasia.

Para que a cena dramática se concretize, tem-se um processo de cocriação entre paciente, diretor, egos auxiliares e plateia: “um modo relacional mediado por papéis em algo único e novo, ao mesmo tempo de um e de todos” (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora., p. 44). Assim, “a cena psicodramática não passa de uma vitrine de tal funcionamento psíquico, em que nossa realidade suplementar é visível na prática da atuação de nossos papéis psicodramáticos, como expressão e referência de nossos papéis sociais” (Perazzo & Gottlieb, 2016Perazzo, S. & Gottlieb, L. (2016). Psicodrama: Apontamentos e criação. FiloCzar., p. 176).

Espontaneidade-criatividade

A espontaneidade caracteriza o núcleo antropológico do homem como indivíduo, constituindo sua essência, sua alma, e funciona como catalizador para as ações do homem potencialmente criativo no mundo. A espontaneidade-criatividade tende a ser vista como algo único, uma vez que a expressão e o movimento de expansão no mundo se dão por meio da criatividade, em um sentido relacional (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora.).

O homem moreniano, portanto, situa-se no mundo em permanente atuação por meio de um grande repertório de papéis, em que se revela ao mesmo tempo tanto sua dimensão individual quanto sua dimensão relacional. É a integração harmônica entre esses três parâmetros, em constante movimento e mutação e, por isso mesmo, essencialmente dinâmica, que se constitui no único modo de apreendê-lo, compreendê-lo e vivenciá-lo sem segmentá-lo (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora., p. 41).

O indivíduo, diante de uma nova situação, utiliza o fator e (espontaneidade) como guia, apontando-lhe que emoções, pensamentos e ações são mais apropriados, operando como um catalisador psicológico (Moreno, 1946/1997Moreno, J. L. (1997). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1946)).

Uma cena dramática, cocriada por paciente e diretor, no caso do psicodrama bipessoal, tendo por fundamento inicial a espontaneidade-criatividade de cada indivíduo, busca transformar um modo relacional mediado por papéis em algo único e novo, buscando respostas mais criativas e espontâneas (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora.).

Para Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora., a cristalização de certos papéis, que permanecem não atuados na fantasia, constitui o substrato da transferência, que migra como um modo de relação distorcida por meio do cacho de papéis.

A pandemia de COVID-19 exigiu respostas adequadas às novas situações. O embotamento da espontaneidade está ligado a comportamentos rígidos e automáticos, desproporcionais à realidade.

Impactos psicológicos do isolamento social

Desde março de 2020, quando foi decretada a pandemia de COVID-19, diversas medidas foram adotadas, como forma de evitar a propagação do vírus e o colapso do sistema de saúde. Dentre as ações encontravam-se: isolamento social, uso de máscaras, adaptação ou fechamento de escolas e negócios, e restrições de viagens em âmbito local, nacional e internacional (WHO, 2022World Health Organization. (2022a). Accelerating a safe and effective COVID-19 vaccine. Recuperado de: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/accelerating-a-safe-and-effective-Covid-19-vaccine. Acesso em 24 jan. 2022.
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). Tais ações foram sendo implementadas e alternadas pelos governos a depender das fases, gravidades e variantes identificadas ao longo do tempo.

Esse conjunto de ações, especialmente o distanciamento e o isolamento social, que impactaram milhões de pessoas simultaneamente, apontam para diferentes consequências à saúde mental, como destacam alguns artigos, que apesar de ainda escassos são fundamentais para desenvolver estratégias orientadas por evidências.

Estudos realizados por Wang et al. (2020)Wang, C., Pan, R., Wan, X., Tan, Y., Xu, L., Ho, C. S. & Ho, R. C. (2020). Immediate Psychological Responses and Associated Factors during the Initial Stage of the 2019 Coronavirus Disease (COVID-19) Epidemic among the General Population in China. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(5), 1729. https://doi.org/10.3390/ijerph17051729
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relataram que, a distância da família e das relações sociais e o risco de contaminação afeta mentalmente toda a população. Diante disso, estudos sugerem que, junto à disseminação de informações falsas, as preocupações com a escassez de suprimentos, as perdas financeiras e o medo de ser infectado por um vírus potencialmente fatal, de rápida disseminação, cujas origens e natureza ainda são pouco conhecidas, acabam por afetar o bem-estar psicológico de muitas pessoas (Asmundson & Taylor, 2020, como citados em Gomes, 2021Gomes, M. R. S., Silva, L. A. & Barbosa, L. D. C. S. (2021). Psychological impacts of the SARS-CoV-2 pandemic on the world population: An integrative review. Research, Society and Development, 10(6), e50010616286. https://doi.org/10.33448/rsd-v10i6.16286
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).

Lima (2020)Lima, R. C. (2020). Distanciamento e isolamento sociais pela COVID-19 no Brasil: Impactos na saúde mental. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 30(2), e300214. https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300214
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aponta que a pandemia tem atravessado todo o tecido social, não poupando praticamente nenhuma área da vida coletiva ou individual, momento de crise com repercussões na esfera da saúde mental de toda a população.

Impactos na economia e nas questões de ordem social, em função do isolamento, também reforçaram o agravamento das questões emocionais individuais (Ho et al., 2020Ho, C. S., Chee, C. Y. & Ho, R. C. (2020). Mental health strategies to combat the psychological impact of coronavirus disease 2019 (COVID-19) beyond paranoia and panic. Annals of the Academy of Medicine, Singapore, 49(3), 155–160.).

Ainda sobre os impactos psicológicos da pandemia, um estudo realizado com pessoas de 194 cidades da China durante o surto inicial da COVID-19 entrevistou 1.210 pessoas e apontou que 53,8% avaliaram o impacto psicológico como moderado ou grave; 28,8% relataram moderados a graves sintomas de ansiedade; 16,5% relataram sintomas depressivos moderados a graves; e 8,1% níveis de estresse moderados a graves. A maioria dos entrevistados relataram ficar de 20 a 24 horas por dia em casa (84,7%) e 75,2% afirmaram preocupação com a contaminação dos familiares (Wang et al., 2020Wang, C., Pan, R., Wan, X., Tan, Y., Xu, L., Ho, C. S. & Ho, R. C. (2020). Immediate Psychological Responses and Associated Factors during the Initial Stage of the 2019 Coronavirus Disease (COVID-19) Epidemic among the General Population in China. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(5), 1729. https://doi.org/10.3390/ijerph17051729
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).

Wang et al. (2020)Wang, C., Pan, R., Wan, X., Tan, Y., Xu, L., Ho, C. S. & Ho, R. C. (2020). Immediate Psychological Responses and Associated Factors during the Initial Stage of the 2019 Coronavirus Disease (COVID-19) Epidemic among the General Population in China. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(5), 1729. https://doi.org/10.3390/ijerph17051729
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apontaram ainda que pode haver maior impacto entre mulheres e estudantes, nos quais os níveis de estresse, ansiedade e depressão se manifestaram de forma aumentada. Por outro lado, tiveram menor impacto psicológico pessoas que adotaram práticas de prevenção e que consumiram informações por fontes oficiais.

Descrito como o maior experimento psicológico do mundo, que colocou um terço da população mundial, cerca de 2,6 bilhões de pessoas, em quarentena (Hoof, 2020Hoof, E. V. (2020, 3 de abril). Lockdown é a maior experiência psicológica do mundo – e pagaremos o preço. World Economic Forum. Recuperado de: https://www.weforum.org/agenda/2020/04/this-is-the-psychological-side-of-the-Covid-19-pandemic-that-were-ignoring/. Acesso em 24 jan. 2022.
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), o confinamento imposto pela COVID-19 continua “colocando à prova a capacidade humana de extrair sentido do sofrimento e desafiando indivíduos e sociedade, no Brasil e em todo o planeta, a promoverem formas de coesão que amorteçam o impacto de experiências-limites na vida mental” (Lima, 2020Lima, R. C. (2020). Distanciamento e isolamento sociais pela COVID-19 no Brasil: Impactos na saúde mental. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 30(2), e300214. https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300214
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, p. 6).

Assim, algumas estratégias de enfrentamento dos impactos psicológicos sofridos pela população mundial têm sido debatidas por estudiosos.

Uma das estratégias de enfrentamentos utilizadas durante a pandemia foi o atendimento psicológico on-line. Ainda em março de 2020, o CFP (2020)[CFP] Conselho Federal de Psicologia. (2020, 16 março). Coronavírus: Comunicado sobre atendimento on-line. Conselho Federal de Psicologia. Recuperado de: https://site.cfp.org.br/coronavirus-comunicado-sobre-atendimento-on-line/. Acesso em 24 jan. 2022.
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, por recomendação do Ministério da Saúde, da OMS, das Secretarias de Saúde e de autoridades civis, comunicou a liberação do atendimento on-line por meio do cadastro e-Psi, sem necessidade de aprovação prévia, medida para atenuar os impactos do vírus na sociedade.

Diante da impossibilidade e/ou restrição do contato presencial, o atendimento on-line tem contribuído para o controle da ansiedade e o bem-estar físico e psíquico da população (Ho et al., 2020Ho, C. S., Chee, C. Y. & Ho, R. C. (2020). Mental health strategies to combat the psychological impact of coronavirus disease 2019 (COVID-19) beyond paranoia and panic. Annals of the Academy of Medicine, Singapore, 49(3), 155–160.).

Outra estratégia apontada foi a importância da comunicação simples, efetiva e verdadeira por meios oficiais, objetivando reduzir o impacto emocional negativo nas pessoas, o que pode resultar em menor ansiedade, depressão e incerteza sobre a pandemia (Wang et al., 2020Wang, C., Pan, R., Wan, X., Tan, Y., Xu, L., Ho, C. S. & Ho, R. C. (2020). Immediate Psychological Responses and Associated Factors during the Initial Stage of the 2019 Coronavirus Disease (COVID-19) Epidemic among the General Population in China. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(5), 1729. https://doi.org/10.3390/ijerph17051729
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).

Outro ponto relevante para o enfrentamento foi a indicação de atividades físicas e a manutenção de rotinas e tarefas regulares, que puderam ajudar no controle da ansiedade e do sono.

As vacinas surgem como uma das principais ações para o controle da pandemia, em um esforço global de pesquisa para desenvolver, avaliar, produzir e garantir a disponibilidade de vacinas seguras e eficazes. O acesso justo e equitativo às vacinas é que garantirá o processo de vacinação eficaz (WHO, 2020Ho, C. S., Chee, C. Y. & Ho, R. C. (2020). Mental health strategies to combat the psychological impact of coronavirus disease 2019 (COVID-19) beyond paranoia and panic. Annals of the Academy of Medicine, Singapore, 49(3), 155–160.).

METODOLOGIA

Caracterização da pesquisa

Trata-se de pesquisa-ação participativa, social, qualitativa, com foco descritivo de uma realidade social vivida e compartilhada e suas relações. Busca por transformações sociais, em que o pesquisador intervém com o sujeito (Contro, 2009Contro, L. (2009). Veredas da pesquisa psicodramática: entre a pesquisa-ação crítica e a pesquisa-intervenção. Revista Brasileira de Psicodrama, 17(2), 13–24. Recuperado de: https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/103. Acesso em 13 fevereiro de 2022.
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). “A pesquisa social se faz por aproximação, mas, ao progredir, elabora critérios de orientação cada vez mais precisos”, como destacam Minayo e Gomes (2013, p. 10)Minayo, M. C. S., & Gomes, S. F. D. R. (2013). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes..

Este estudo possui foco descritivo, no qual a interpretação dos fenômenos, a atribuição de significados e os dados recolhidos são em forma de palavras ou imagens, não requerem testes de hipóteses e nem o uso de técnicas estatísticas de inferência. Tem ainda caráter exploratório, no qual a pesquisadora propõe “um novo discurso interpretativo para o fenômeno que descreve” (Minayo et al., 2021Minayo, M. C. S., Deslandes, S. F. & Gomes, S. F. D. R. (2021). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes., p. 17), e explicativo, pois busca esclarecer os fatores que contribuem para que os fenômenos ocorram e a relação entre eles (Costa & Costa, 2019Costa, M. & Costa, F. (2019). Metodologia da pesquisa: Abordagens qualitativas. Editora dos Autores.), neste caso, o psicodrama bipessoal on-line no tratamento do embotamento da espontaneidade.

Quanto à forma, foi aplicado o estudo de caso, em um estudo limitado a uma pessoa, acima de 18 anos, inscrita no projeto Viver Acolhe e que apresentou sintomas decorrentes da pandemia — que foram os critérios para a participação.

Participante

A participante — aqui identificada como K — tem 29 anos, é do sexo feminino, é casada, tem um filho de 9 anos e reside no interior de São Paulo. Foi identificada no projeto social Viver Acolhe, criado por psicólogos em especialização na instituição de ensino Viver Mais Psicologia, em formato de psicoterapia breve e on-line, com o objetivo de apoiar a população diante da pandemia de COVID-19 e que oferece acolhimento e suporte psicológico para adolescentes, adultos e idosos em vulnerabilidade emocional. O projeto é voluntário, composto por quatro sessões virtuais de 50 minutos.

A escolha do projeto se deu em função do trabalho voluntário desenvolvido pela pesquisadora, desde abril de 2021, durante a pandemia de COVID-19 e pelo alcance à comunidade durante esse período, o que possibilitou abranger a totalidade do problema investigado em suas múltiplas dimensões (Minayo et al., 2021Minayo, M. C. S., Deslandes, S. F. & Gomes, S. F. D. R. (2021). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes.).

A participante buscou atendimento no projeto Viver Acolhe em função de sintomas emocionais durante a pandemia. No questionário de inscrição relatou como principal problema o “medo de sofrer e ver as pessoas sofrerem”, medo que se agravou no último ano, definido com intensidade 5 em escala de 1 a 5. Trouxe também a dificuldade de dormir como a principal consequência desse problema, além de crise de ansiedade que a levou a um pronto-socorro sem ser constatada nenhuma doença física. Eventos determinantes para a busca do processo psicoterápico.

A escolha da participante incluída no estudo foi feita por amostragem não probabilística, sendo não aleatória, uma vez que foi identificada junto ao projeto e por meio das demandas apresentadas e relacionadas à pandemia.

Etapas e instrumentos

Como instrumento para a coleta e construção dos dados, a pesquisa foi realizada em formato de psicodrama bipessoal breve, com foco psicoterápico. O psicodrama bipessoal é a abordagem terapêutica de origem no psicodrama e que considera o homem em conflito, trabalhando esses conflitos a partir do desempenho de papéis e tendo como ponto inicial o vínculo, relação paciente versus terapeuta (Bustos, 1992Bustos, D. (1992). Novos rumos em psicodrama: Doença e cura em psicoterapia psicodramática. Ática.). A psicoterapia breve se trata de processo “com determinado tempo de duração, mas também com objetivos definidos e precisos, centrados na evolução de um foco” (Ferreira-Santos, 2013Ferreira-Santos, E. (2013). Psicoterapia breve: Abordagem sistematizada de situações de crise. Ágora., p. 494).

As sessões de psicodrama bipessoal foram realizadas em formato on-line, em função do contexto da pandemia de COVID-19.

Como instrumentos básicos para as sessões psicodramáticas foram utilizados: a) paciente: indivíduo que compartilha pensamentos e sentimentos; b) diretor: terapeuta que apoia o paciente na elaboração de seu problema; c) cenário: espaço criado para a cena (Duric & Velijkovic, 2005Duric, Z. & Velijkovic, J. (2005). Psicodrama em HQ: Iniciação à teoria e à técnica. Daimon.). O ego auxiliar neste caso foi substituído por objetos (Cukier, 2018Cukier, R. (2018). Psicodrama bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente (6ª. ed.). Ágora.).

As sessões seguiram as etapas de uma sessão psicodramática, com aquecimento, dramatização e compartilhamento. O aquecimento teve como objetivo facilitar o surgimento da espontaneidade, tanto da terapeuta quanto da paciente, colaborando com o movimento de ir do superficial ao profundo, da periferia para o centro, abrindo espaço para os sentimentos (Bustos, 2005Bustos, D. (2005). O psicodrama: Aplicações da técnica psicodramática. Ágora.). O aquecimento inespecífico consistiu na parte da sessão onde a temática do encontro fica explicito (Naffah Neto, 1997Naffah Neto, A. (1997). Descolonizando o imaginário. Plexus.), já o aquecimento específico preparou a paciente para a dramatização.

Na dramatização foi trabalhada a demanda principal, apontada pela concretização, que consiste, como cita Bustos (2005)Bustos, D. (2005). O psicodrama: Aplicações da técnica psicodramática. Ágora. em dar uma postura dramática aos diversos sentimentos. No compartilhamento foi o momento de sentir os pontos tocados pela dramatização.

Foram utilizadas as técnicas psicodramáticas de inversão de papéis, duplo, espelho, solilóquio, maximização e concretização, além de técnicas auxiliares como átomo social e fantasia dirigida, definidas como produção primária de dados, “quando o pesquisador produz o dado na interação direta com os sujeitos” (Minayo et al., 2021Minayo, M. C. S., Deslandes, S. F. & Gomes, S. F. D. R. (2021). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes., p. 45).

Além dos instrumentos psicodramáticos, foi utilizado, no início do processo de pesquisa, um instrumento de triagem para verificar as situações vivenciadas no contexto da pandemia, instrumento elaborado pela pesquisadora.

Ao fim de cada sessão foi realizada a descrição dos relatos ocorridos durante as intervenções e posterior análise dos dados (Tabela 1).

Tabela 1
Planejamento das sessões.

Análise de dados

O procedimento de análise dos dados observados foi o que permitiu valorizar, compreender e interpretar o que foi observado no estudo, o que em articulação com as leituras teóricas e interpretativas permitiu as inferências explicativas ou de descrição (Minayo et al., 2021Minayo, M. C. S., Deslandes, S. F. & Gomes, S. F. D. R. (2021). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes.).

Ao fim de cada sessão foi realizada a descrição dos relatos ocorridos durante as intervenções. O instrumento de triagem (aplicado no início das quatro sessões) foi analisado de forma descritiva. As informações obtidas foram submetidas à análise e interpretação qualitativa de conteúdo. Como destaca Minayo et al. (2021, p. 26)Minayo, M. C. S., Deslandes, S. F. & Gomes, S. F. D. R. (2021). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes. “a análise qualitativa não é uma mera classificação da opinião dos informantes, é muito mais. É a descoberta de seus códigos sociais a partir das falas, símbolos e observações”.

Dessa forma, os dados foram ordenados, classificados e analisados, garantindo os procedimentos previstos para o tratamento e a análise do material (Minayo et al., 2021Minayo, M. C. S., Deslandes, S. F. & Gomes, S. F. D. R. (2021). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes.). Foram subdivididos por etapas psicodramáticas (aquecimento, dramatização e compartilhamento) e em seguida compreendidos e interpretados à luz da teoria de papéis e da espontaneidade-criatividade de Moreno e de teorias pós-morenianas.

A utilização dos dados foi condicionada à autorização concedida por escrito, conforme legislação do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2016Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Recuperado de: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf. Acesso em 24 jan. 2022.
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) para pesquisas com seres humanos, na Resolução CNS nº 510/16, que prevê consentimento livre e esclarecido: anuência do participante da pesquisa ou de seu representante legal, livre de simulação, fraude, erro ou intimidação, após esclarecimento sobre a natureza da pesquisa, sua justificativa, seus objetivos, métodos, potenciais benefícios e riscos.

RESULTADOS

O instrumento de triagem, aplicado previamente e explorado na sessão de triagem, evidenciou os impactos decorrentes do isolamento social e da pandemia, como mudança da rotina, ausência de atividades, dificuldades para dormir, sentimentos negativos, medo de perder as pessoas, culpa, tristeza, estresse, depressão e ansiedade, além de dificuldade de dar respostas diante das situações ou respostas apáticas ou agressivas. Dos 23 itens, 78% apresentaram nível de concordância alto, acima de 8, em uma escala de 1 a 10.

O distanciamento da família, das relações sociais e o risco de contaminação afetaram a saúde mental da população de forma expressiva (Wang et al., 2020Wang, C., Pan, R., Wan, X., Tan, Y., Xu, L., Ho, C. S. & Ho, R. C. (2020). Immediate Psychological Responses and Associated Factors during the Initial Stage of the 2019 Coronavirus Disease (COVID-19) Epidemic among the General Population in China. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(5), 1729. https://doi.org/10.3390/ijerph17051729
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). Os impactos na economia e nas questões de ordem social, em função do isolamento também reforçaram o agravamento das questões emocionais individuais (Ho et. al., 2020[CFP] Conselho Federal de Psicologia. (2020, 16 março). Coronavírus: Comunicado sobre atendimento on-line. Conselho Federal de Psicologia. Recuperado de: https://site.cfp.org.br/coronavirus-comunicado-sobre-atendimento-on-line/. Acesso em 24 jan. 2022.
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).

A técnica do átomo social permitiu trabalhar as relações da paciente, apresentar dramaticamente as pessoas que são de fato emocionalmente significativas e entender as proximidades, distâncias, vínculos afetivos ou negativos existentes. Para isso, foi utilizada a ferramenta projetiva bandeja de areia on-line, da Oaklander Training (oaklandertraining.org), com bases na Gestalt terapia, adaptada para uso virtual em função da pandemia de COVID-19. Segundo Ramalho (2010, p. 111)Ramalho, C. M. R. (2010). Sandplay psicodramático – um jogo na interface do psicodrama com a psicologia analítica. Revista Brasileira de Psicodrama, 18(2), 107–117. Recuperado de https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/133/119. Acesso em 24 jan 2022.
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, o sandplay psicodramático é uma espécie de “imaginação ativa concreta” que possibilita ao cliente utilizar-se da sua espontaneidade-criatividade, por meio de uma realidade suplementar. A Fig. 1 mostra a imagem construída.

Figura 1
Átomo social.

K escolheu o vulcão para representá-la no centro da tela. Relatou que a figura representa o que foi acumulado ao longo do tempo, e que está em ebulição, podendo entrar em erupção a qualquer momento. Tenta ser legal o tempo todo, diz sim para todos e evita conflitos. Acredita, contudo, que não vai mais conseguir camuflar suas emoções.

Escolheu o robô para representar o filho de 9 anos. Disse que é como se ele não sentisse; ela quer prepará-lo para a vida, pois sabe que ele irá sofrer, como ela sofreu. As representações de mãe como vulcão e de filho como robô se complementam e traduzem a intensidade do vulcão com o robô, que não tem sentimentos. É no filho robô que ela explode e diz os nãos, seu papel complementar ou contrapapel de mãe-filho. Para Moreno (1953/2008, p. 95)Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama. Daimon. (Obra original publicada em 1953), “todo papel é uma fusão de elementos privados e coletivos”, e o papel complementar e antagônico ou correspondente ao outro.

Definiu a ponte como a representação de sua mãe biológica. Foi criada pela avó em função dos problemas de saúde da mãe, que é bipolar. O outro irmão foi definido como o trabalhador, pela responsabilidade, e o marido como o muro, representando a proteção. A avó é a heroína que a criou. Ficou mais clara a relação com irmão mais novo, adulto, com 26 anos e casado, quando o definiu como uma criança. O pai representado pela cerca, denota uma relação reservada, neutra, onde um pode contar com o outro, embora o tenha conhecido aos 14 anos. A tia foi representada como a heroína loira. Sua outra tia, a mulher que pratica yoga, representa uma relação positiva, flexível, calma, aberta. A cachoeira é sua amiga mais próxima, professora e diretora. Representou a família de seu pai por meio dos dois irmãos de 10 e 19 anos, uma criança com a bola e uma árvore. O avô, não representado graficamente, é citado como aquele que a criou e é considerado como seu pai.

Ao final, no compartilhamento, a paciente destacou que a sua percepção do átomo social foi de um parque, algo que refletiu uma desorganização e bagunça. Relatou que a ebulição do vulcão estava relacionada com essa desorganização. O núcleo dessas relações afetivas que se formam em torno da paciente compõe o seu átomo social, a menor estrutura social, e é por meio dessas interações que ela desempenha os papéis e encontra seus papéis complementares.

A partir da técnica do átomo social foi possível perceber a intensidade e conexão emocional entre as pessoas que a paciente elencou como relevantes. Esse movimento, pela imagem construída e elaboração posterior, deu clareza e tornou visíveis os afetos presentes e a forma como lida com cada uma das relações. Na pandemia, e com o isolamento social, essas interações ficaram limitadas, comprometendo o desempenho de papéis.

Ao longo do processo foram identificados sinais de embotamento da espontaneidade, quando a paciente relatou que controlava suas emoções, omitia o que sentia, mantinha-se quieta e se sentia culpada por suas emoções, como forma de preservar o marido, que apresentou síndrome do pânico. O medo de fazer as pessoas sofrerem e perdê-las foi se intensificando ao longo do tempo. Sentia-se culpada por ampliar o risco da família e tendia a guardar os sentimentos. Controlava suas emoções e apresentava, muitas vezes, respostas apáticas às situações e aos sentimentos de negação quanto à pandemia. Sentia-se em constante alerta e com sofrimento e luto antecipado, principalmente com relação à avó. A dificuldade de dar respostas adequadas a essas novas situações, exigidas durante a pandemia, configurou o embotamento da espontaneidade, com o surgimento de comportamentos rígidos e automáticos relatados pela paciente durante o isolamento social. O processo psicoterapêutico passou por buscar o desempenho de papéis mais espontâneos e criativos da paciente e por abandonar as conservas construídas durante o isolamento.

A partir da percepção da paciente sobre “querer evitar que as pessoas que ama sofram”, foram trabalhadas quatro cenas ao longo do processo.

Cena 1: Perda da referência de pai (avô)

Na cena que surgiu, a paciente tem 9 anos, e está em uma edícula ao fundo da casa principal de seus avós, com a avó. Foi criada pela avó e por seu companheiro, a quem chama de mãe e pai. Nesta cena, a avó chorava e contava que o avô estava indo embora e que, a partir daquele momento, elas estariam sozinhas. Nesse momento, em que perdeu sua referência de pai, identificou-se uma possível cena nuclear que originou a angústia de separação. Para Bustos (1990)Bustos, D. (1990). Perigo amor à vista: Drama e psicodrama de casais. Aleph., a criança saudável deve se desprender dos papéis complementares primários para dar lugar a outros papéis complementares. No caso da paciente tais papéis ficaram comprometidos pela situação de conflito vivida e o processo seguiu buscando criar os movimentos necessários para retomar a espontaneidade.

Ao ver a fragilidade da avó, nesta cena, percebeu que precisa ocultar suas emoções para ser amada, o que pode se constituir em uma lógica afetiva de conduta, ressignificada nesta cena através da inversão de papéis. Entende-se como lógica afetiva de conduta “as marcas afetivas resultantes dos primeiros vínculos carregados de um clima emocional desfavorável ao desenvolvimento psicológico, contêm alertas internos que bloqueiam a livre expressão do ser e tornam a conduta repetitiva, massificada e irracional em determinados momentos e vínculos” (Nery, 2018Nery, P. (2018). Vínculos e afetividade: Caminho das relações humanas. Ágora., p. 45). Essa relação primária, de mãe e filha, exercidas por neta e avó, gerou uma transferência e exerceu um poder simbólico sobre a paciente, construindo com ela um modelo de conduta repetitivo, que Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora. denomina personagem conservado e que irá se impor em seus diversos papéis sociais, formando um conjunto transferencial. Para Perazzo (2010, p. 103)Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora., “o status nascendi relacional dessa falta de espontaneidade migra de forma transferencial para os demais papéis”. A dramatização no psicodrama busca “levar o indivíduo a uma expressão espontânea e criativa, que possibilite a recriação dos papéis rigidamente desempenhados na situação real, análoga a da representação” (Naffah Neto, 1975Naffah Neto, A. (1997). Descolonizando o imaginário. Plexus., p. 22).

Cena 2: Conversa com o pai (avô)

Nesta cena, a paciente se viu aos 9 anos, nos passeios de carro com o pai (avô), em uma visita a uma amiga do avô, que acreditava ser a mulher com quem ele passou a viver. Por meio da inversão de papéis foi possível dizer o que antes não foi dito e se colocar também no lugar do avô. O objetivo neste momento foi transformar a cena em uma situação de diálogo que favorecesse o encontro (Naffah Neto, 1975Naffah Neto, A. (1997). Descolonizando o imaginário. Plexus.). Essa experiência vivida por meio da dramatização possibilitou uma expressão espontânea e criativa dos papéis de neta e filha, vividos por K, permitindo posicionar-se de uma nova maneira diante da realidade e possibilitando a reorganização de sua experiência (Naffah Neto, 1975Naffah Neto, A. (1997). Descolonizando o imaginário. Plexus.).

No compartilhamento, momento de expressão afetiva, de sentir e clarificar em que ponto foi tocada pela dramatização (Bustos, 2005Bustos, D. (2005). O psicodrama: Aplicações da técnica psicodramática. Ágora.), a paciente relatou que tirou algo pesado que estava guardado nela, um “bloco”, algo que não imaginava que estava ali, e que não sabia onde estava guardado; e que o que ficou de mais forte dessa vivência foi que não quer ver as pessoas sofrerem, mas precisa deixar as pessoas passarem pelo que elas precisam passar. Relatou que isso ocorre desde que era criança e lembrou-se que optava por assumir o lugar dos irmãos nas brincadeiras e em situações em que eles pudessem sofrer.

Cena 3: Descoberta da gravidez

Por meio da fantasia dirigida, a paciente levou uma cena em que descobriu a gravidez, aos 18 anos e no fim do 1º semestre da faculdade. Nessa época, ela não gostaria de ser mãe, principalmente porque reproduziria o que aconteceu com sua própria mãe, uma forma de desapontar a avó, além do medo de ver um filho sofrer. Nesse momento, entende-se que foi gerada uma conserva de que ser mãe é ter que ver o filho sofrer, o que explica a dificuldade de se ver nesse papel ao receber a notícia da gravidez. A cena se dá no posto de saúde e, por meio da inversão de papéis, ao assumir o papel de enfermeira, foi possível trabalhar os clusters 1 e 2, que dizem respeito aos complementares únicos, mãe e pai, respectivamente, acolhimento e limites (Bustos, 1990Bustos, D. (1990). Perigo amor à vista: Drama e psicodrama de casais. Aleph.), ampliando as formas de se posicionar no mundo e nas relações.

Cena 4: Comunicação da gravidez à família

Outra cena relevante foi o momento de contar a gravidez à família, nesse caso mãe, avó e tia. O objetivo da diretora nesse momento foi oportunizar o olhar de fora da paciente, convidando-a a levar a mulher de hoje àquele momento. Uma oportunidade de retornar àquela cena, no palco psicodramático e treinar a espontaneidade, viver encontros novos e espontâneos, reestabelecendo a tele entre as pessoas (Moreno Z. et al. 2001Moreno, Z. T., Blomkvist, L. D. & Rutzel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora.). Nesse contexto, a mulher de hoje disse à paciente jovem: “você vai ser capaz de formar uma família e tudo que planejar você irá conseguir. Tudo no seu lugar e nada será em vão. Vai assumir os riscos e as consequências”. E voltou a dizer à mãe, à avó e à tia: “vou seguir meu caminho, amo vocês e estarei aqui”. Nesse momento trouxe um insight de que “o sofrimento nos faz mais fortes e precisamos viver”. Como aponta Perazzo (2010, p. 103)Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora., “esse insight dramático contribui decisivamente para acionar um impulso de transformação cênica e vivencial”.

Naquele momento foi feito o duplo da paciente (“por isso não preciso ter medo do sofrimento das pessoas, ele nos faz mais fortes”), técnica psicodramática em que o diretor faz verbalizações breves e precisas no lugar do paciente como forma de expressar sentimentos ou pensamentos que não foram possíveis de serem externalizados por ele (Cukier, 2018Cukier, R. (2018). Psicodrama bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente (6ª. ed.). Ágora.). A diretora sugeriu que a paciente entregasse o “medo de ver as pessoas sofrerem” e a paciente falou à avó, mãe e tia: “entrego a vocês meu medo de ver as pessoas sofrerem”. Nesse momento, identificou-se a tele entre a paciente e as figuras femininas mais relevantes de seu átomo social, em que vivenciou a ação de devolver as expectativas criadas sobre ela.

No compartilhamento, a paciente disse que buscou se impor com a mãe e a avó, o que não fez à época, uma possibilidade de treinar a espontaneidade e viver encontros novos e espontâneos. O objetivo psicodramático é detectar esse conjunto de forças e reverter a situação criando um status nascendi relacional novo, recuperando a espontaneidade perdida ao longo da vida (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora.). Para isso, é preciso buscar o papel imaginário conservado, definido por Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora. como ação reparatória.

Foi possível também, ao final do processo, com o objetivo de resgatar as vivências e os impactos do processo psicoterápico, trabalhar a percepção e suas emoções vinculadas ao corpo. O objetivo naquele momento foi o foco em zonas corporais, buscando articular sensações e movimentos vinculados às emoções vividas (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora.).

A paciente destacou que tudo que viveu refletiu em todo o seu corpo. Conceito que pode ser fundamentado em Castelo de Almeida, citado por Freire (2000, p. 39)Freire, C. A. (2000). O corpo reflete o seu drama: Somatodrama como abordagem psicossomática (2ª. ed.). Ágora.: é através do corpo que “se condicionam todas as experiências e de onde fluem todos os desejos e decisões”. Relatou impactos corporais nas costas, olhos, boca, pescoço, ouvido, peito e barriga. Para cada uma das partes do corpo foi possível, por meio da técnica de inversão de papéis, trabalhar os impactos e as emoções que se constituíram em ações reestruturadoras, visando a compreensão e integração desses elementos.

Para exemplificar o exposto, há o relato sobre o pescoço. A paciente relatou que muitas vezes engoliu as palavras e não falava. Sentia que tinha dificuldade de falar de forma compreensível ao outro. Houve um acúmulo, e estava a ponto de “estourar”. Por isso em alguns momentos “soltava” algo que não queria. Na inversão de papéis trouxe: “foi difícil segurar tudo, tinha muita coisa acumulada aqui e eu não estava aguentando, precisava de uma mudança”. Nesse momento, há a reorganização da conserva construída e reforçada durante a pandemia, cristalizada em suas ações de não expressar o que sentia como forma de não se desestruturar. Nesse caso, a terapeuta, parte integrante da experiência, auxiliou a paciente a recriar ou criar na cena antigas fantasias, que podem dar lugar a novas criações no aqui e agora (Freire, 2000Freire, C. A. (2000). O corpo reflete o seu drama: Somatodrama como abordagem psicossomática (2ª. ed.). Ágora.). Cabe ao terapeuta extrair do paciente a sua percepção mais profunda, por meio da inversão de papéis (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). O forro e o avesso. Ágora.).

No compartilhamento, a paciente destacou os insights sobre a necessidade de respeitar seus limites, de deixar as pessoas viverem o que precisam viver, de ser seletiva com o que “põe pra dentro”, de entender as necessidades e cuidados do seu corpo e de suas emoções.

Por meio do treinamento da espontaneidade dos papéis de mãe, filha, esposa, irmã, neta, reorganização das conservas e novas respostas criativas e espontâneas, percebe-se a melhoria da compreensão das emoções, o reconhecimento de novas possibilidades de desempenho desses papéis, a expressão mais espontânea de suas emoções, maior entendimento da necessidade de respeitar seus limites e identificação e reorganização de conservas culturais construídas durante o isolamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do contexto da pandemia de COVID-19, considerada uma crise de saúde pública que provocou inúmeras perdas e inseguranças, e que gerou impactos psicológicos, sociais, políticos e econômicos, uma das estratégias de enfrentamento foi o isolamento social, como forma de conter a propagação do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde. E o psicodrama on-line, por meio da clínica psicoterápica, foi uma das formas para contribuir com a promoção da saúde mental e das relações nesse período, também considerada uma estratégia de enfrentamento.

Este estudo se propôs a compreender como o psicodrama bipessoal on-line pode tratar o embotamento da espontaneidade decorrente do isolamento social em tempos pandêmicos, buscando reconhecer novas possibilidades no desempenho de papéis, treinar a espontaneidade e identificar conservas culturais construídas durante o isolamento. Para isso, foram utilizadas a psicoterapia breve, as técnicas e teorias psicodramáticas, além das adaptações e aprendizados construídos durante a pandemia quanto ao uso de tecnologias remotas. Aprendizados que mostram a capacidade de inovação e adaptação dos psicodramatistas.

O bloqueio das emoções agravado pela pandemia e os sintomas apresentados em nível máximo na triagem realizada, identificados por um instrumento e entrevista, foram explorados e trabalhados por meio do psicodrama bipessoal on-line, pelas técnicas de inversão de papéis, duplo, espelho, concretização, solilóquio, além das ferramentas do átomo social, fantasia dirigida e das modalidades de psicodrama interno e sandplay (caixa de areia) psicodramático on-line. O embotamento da espontaneidade se manifestou de diferentes formas, por meio de comportamentos rígidos e automáticos, como a dificuldade em dar respostas, negação da pandemia, a não expressão de suas emoções e sentimentos, como forma de não se desestruturar e, assim, preservar a família. Embora os sintomas tenham sido agravados durante o isolamento social, o embotamento da espontaneidade está relacionado a vivências infantis. Além disso, relaciona-se também à lógica afetiva de conduta construída a partir dessas vivências, especialmente aos vinculados ao cluster 1, onde precisa negar ou ocultar suas emoções para ser amada.

Embasadas pelas teorias de papéis, teoria de clusters e da ação reparatória, e por meio da realidade suplementar, foram vivenciadas cenas infantis. Foi identificada e ressignificada uma cena nuclear que pode ter gerado o embotamento da espontaneidade, que perpassa os diferentes papéis da vida da paciente, por meio do conjunto transferencial. A partir disso, foi dada a possibilidade de dar novas respostas àquela situação, testar a espontaneidade e ressignificar a cena e a lógica afetiva de conduta de ter que negar suas emoções para ser amada.

Foi possível reconhecer algumas conservas culturais construídas ao longo do isolamento social, relacionadas à negação da pandemia, de seus impactos e ao medo de perder a família. A partir da identificação e reorganização dessas conservas, e o treino da espontaneidade para o desempenho de papéis mais espontâneos e criativos, houve auxílio à paciente para recriar e dar novas formas às suas ações, importante para a sobrevivência emocional no pós-pandemia. Tais evidências demonstram como o psicodrama bipessoal on-line pode se mostrar eficaz na elaboração do sofrimento mental apresentado.

Este e outros estudos podem contribuir para os avanços na ciência, pesquisa e compreensão da efetividade do tratamento por meio da clínica psicodramática e psicodrama bipessoal on-line, além de reforçar o caráter inovador da metodologia e a capacidade de adaptação dos profissionais psicólogos e psicodramatistas que têm investido em estudar, aplicar e desenvolver ainda mais essa prática no contexto remoto.

Os impactos psicológicos decorrentes da pandemia, a nosso ver, ainda requerem muitos avanços em pesquisa, que possam clarificar a compreensão dos impactos, tratamentos e metodologias aplicadas, uma vez que essas dimensões ainda são pouco conhecidas para um evento mundial considerado inédito, por seu impacto global em vários aspectos, especialmente aquele relacionado ao isolamento social. Entendemos também que este estudo tratou de psicoterapia breve, e novos estudos considerando o psicodrama bipessoal on-line podem ser realizados com um horizonte de tempo mais expressivo e com o foco no treinamento da espontaneidade e suas consequências para a saúde mental.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à participante pela vivência e confiança nesse espaço psicoterapêutico e de pesquisa e ao projeto Viver Acolhe, vinculado à Viver Mais Psicologia pela parceria na identificação da participante para a realização da pesquisa.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Os dados estarão disponíveis mediante solicitação.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.
  • Bustos, D. (1990). Perigo amor à vista: Drama e psicodrama de casais. Aleph.
  • Bustos, D. (1992). Novos rumos em psicodrama: Doença e cura em psicoterapia psicodramática. Ática.
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Editado por

Editora de seção: Heloisa Fleury. https://orcid.org/0000-0001-5084-8390

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2022
  • Aceito
    08 Jan 2023
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