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PRÁTICA PSICODRAMÁTICA NO CONTEXTO HOSPITALAR

PSYCHODRAMATIC PRACTICE IN THE HOSPITAL CONTEXT

PRÁCTICA PSICODRAMÁTICA EN EL CONTEXTO HOSPITALARIO

RESUMO

A hospitalização, essencial para recuperação da saúde, costuma ampliar o sofrimento psíquico dos pacientes, na medida em que impõe uma rotina de cuidados, afasta o paciente da família e do meio social. O objetivo deste estudo é apresentar a compreensão psicodramática desse contexto e possibilidades de intervenção. Foi realizada uma articulação teórica com a experiência psicoterapêutica de enfoque psicodramático. Observou-se que a existência de conservas culturais hospitalares e limitações impostas pelo adoecimento gera perda da espontaneidade e cristalização no papel de doente, aumentando o sofrimento e prejudicando a recuperação do indivíduo. O estabelecimento de uma relação télica e o uso de técnicas psicodramáticas mostraram-se relevantes no resgate da espontaneidade e na promoção da saúde mental dos pacientes.

PALAVRAS-CHAVE
Hospitalização; Promoção da saúde; Psicodrama; Prática psicológica

ABSTRACT

Hospitalization, essential for health recovery, usually increases the psychic suffering of patients, as it imposes a care routine, distances the patient from the family and the social environment. The aim of this study is to present possibilities for psychodramatic intervention in this context. A theoretical articulation was carried out with a report of professional experience in Psychology with a psychodramatic approach. It was observed that the existence of hospital cultural preserves and the limitations imposed by illness generates loss of spontaneity and crystallization in the sick role, resulting in suffering and impairing the individual’s recovery. The establishment of a telic relationship and the use of psychodramatic techniques proved to be relevant in rescuing spontaneity and promoting the mental health of patients.

KEYWORDS
Hospitalization; Health promotion; Psychodrama; Psychological practice

RESUMEN

La hospitalización, fundamental para la recuperación de la salud, suele aumentar el sufrimiento psíquico de los pacientes, ya que impone una rutina de cuidados, aleja al paciente de la familia y del entorno social. El objetivo de este estudio es presentar posibilidades de intervención psicodramática en este contexto. Se realizó una articulación teórica con un relato de experiencia profesional en Psicología con enfoque psicodramático. Se observó que la existencia de cotos culturales hospitalarios y las limitaciones impuestas por la enfermedad generan pérdida de espontaneidad y cristalización en el rol de enfermo, resultando en sufrimiento y perjudicando la recuperación del individuo. El establecimiento de una relación télica y el uso de técnicas psicodramáticas demostraron ser relevantes para rescatar la espontaneidad y promover la salud mental de los pacientes.

PALABRAS CLAVE
Hospitalización; Promoción de la salud; Psicodrama; Práctica psicológica

INTRODUÇÃO

A rigorosa rotina hospitalar pode levar os profissionais da saúde à automatização de suas ações, com o foco apenas na doença em detrimento ao sujeito. Não é raro que, em nome da busca pela cura da enfermidade, o paciente seja destituído de seu lugar de sujeito. O hospital, entretanto, nem sempre teve essas características. Ao longo do tempo, o hospital sofreu mudanças até se consolidar como instituição de cura, tal como é hoje. Inicialmente apresentava um caráter religioso, de caridade e assistencialista. Porém, por volta da metade do século XIX, houve uma mudança significativa que transformou a imagem associada ao hospital, deixando de ser um local aonde os menos economicamente favorecidos iam para morrer, passando a ser um lugar onde os doentes poderiam se curar (Mosimann & Lustosa, 2011Mosimann, L. T. N. Q., & Lustosa, M. A. (2011). A Psicologia hospitalar e o hospital. Revista da SBPH, 14(1), 200–232.).

Essa mudança de lugar de caridade para um local de cura teve como principal característica o surgimento do discurso biomédico, que fala da doença, sua classificação e tratamento. Nessa perspectiva, a enfermidade e a cura são o ponto central do trabalho, que por sua vez foca em praticidade e objetividade (Santos et al., 2016Santos, M. P. G., Neves, P. T. & Linhares, T. D. C. (2016). O trabalho do psicólogo na unidade de clínica médica: Atuação, possibilidades e desafios. In L. C. Santos, E. M. F. Miranda & E. L. Nogueira (Orgs.), Psicologia, saúde e hospital: Contribuições para a prática profissional. (pp. 183–200). Artesã.). Tal característica foi essencial para uma atuação mais efetiva no enfrentamento à doença orgânica, entretanto, para uma atuação mais integral ao ser humano, é preciso se atentar a aspectos subjetivos da hospitalização. Durante o processo de hospitalização, o paciente é inserido em um ambiente impessoal, assustador e invasivo, tem sua rotina interrompida e permeada por receios e expectativas, podendo suscitar reações emocionais adversas, dentre as quais, as mais frequentes são a ansiedade e a depressão (Ribeiro et al., 2018Ribeiro, B. B., Silva, V. G., Bandeira, D. G. S. F., & Sousa-Muñoz, R. L. (2018). Sintomatologia depressiva e ansiosa em idosos hospitalizados em hospital geral. Revista Científica do ITPAC, 11(2), 71–78.).

Pacientes dos hospitais gerais costumam apresentar índices elevados de transtornos ansiosos e de humor, o que tende a diminuir a adesão ao tratamento e impacta negativamente no prognóstico, ocasionando maior morbidade e mortalidade aos casos (Macellaro et al., 2018Macellaro, M., Queiroz, V., Pagnin, D., Tedeschi, L. T., Morais, R. Q., Silva, M. M. ... Rodrigues, L. R. (2018). Prevalência de episódios ansiosos e depressivos em hospital geral. Diversitates International Journal, 10(1), 59–69. https://doi.org/10.53357/ISHU9567
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). Essa prevalência tende a ser mais acentuada em pacientes internados, dos mais variados perfis, sejam cardíacos (Allabadi et al., 2019Allabadi, H., Alkaiyat, A., Alkhayyat, A., Hammoudi, A., Odeh, H., Shtayeh, J., ... N. Probst-Hensch (2019). Depression and anxiety symptoms in cardiac patients: a cross-sectional hospital-based study in a Palestinian population. BMC Public Health, 19, 232. https://doi.org/10.1186/s12889-019-6561-3
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), parturientes (Toscano et al., 2021Toscano, M., Royzer, R., Castillo, D., Li, D., & Poleshuck, E. (2021). Prevalence of depression or anxiety during antepartum hospitalizations for obstetric complications: A systematic review and meta-analysis. Obstetrics and Gynecology, 137(5), 881–891. https://doi.org/10.1097/aog.0000000000004335
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), com diabetes (Khan et al., 2019Khan, P., Qayyum, N., Malik, F., Khan, T., Khan, M., & Tahir A. (2019). Incidence of anxiety and depression among patients with type 2 diabetes and the predicting factors. Cureus, 11(3), e4254. https://doi.org/10.7759/cureus.4254
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) e oncológicos (Naser et al., 2021Naser, A. Y., Hameed, A. N., Mustafa, N., Alwafi, H., Dahmash, E. Z., Alyami, H. S., & Khalil, H. (2021). Depression and anxiety in patients with cancer: A cross-sectional study. Frontiers in Psychology, 12, 585534. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.585534
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). Esses transtornos mentais comuns requerem atenção especial, uma vez que estão relacionadas a intenso sofrimento e perda da capacidade funcional, podendo ser prejudiciais à própria recuperação do indivíduo (Ribeiro et al., 2018Ribeiro, B. B., Silva, V. G., Bandeira, D. G. S. F., & Sousa-Muñoz, R. L. (2018). Sintomatologia depressiva e ansiosa em idosos hospitalizados em hospital geral. Revista Científica do ITPAC, 11(2), 71–78.).

Apesar de o hospital ser recorrentemente associado ao tratamento exclusivo de doenças e procedimentos cirúrgicos, é importante lembrar que pessoas com suas enfermidades podem trazer sofrimento psíquico em decorrência de sua internação ou anterior a ela (Luz et al., 2018Luz, J. R. G., Antoni L.; Pereira , J. A., & Viecheneski, J. (2018). O olhar da psicologia hospitalar frente ao paciente. [Apresentação em conferência]. Anais da Jornada Científica dos Campos Gerais, 16, Ponta Grossa, Paraná, Brasil. Disponível em: https://www.iessa.edu.br/revista/index.php/jornada/article/view/954. Acesso em: 20 ago. 2022.
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). Sendo assim, o psicólogo pode colaborar com esse contexto, trazendo um olhar ampliado que enxerga o sujeito em sua totalidade. Por meio da construção de vínculos terapêuticos e de uma postura empática e acolhedora, pode auxiliar o paciente a falar sobre os diversos sentimentos que perpassam o aqui e agora do seu adoecimento, o que é essencial para a compreensão da realidade do indivíduo e promoção da sua saúde mental (Leite et al., 2018Leite, K. L., Yoshii, T. P., & Langaro, F. (2018). O olhar da psicologia sobre demandas emocionais de pacientes em pronto atendimento de hospital geral. Revista da SBPH, 21(2), 145–166.).

Na prática psicológica, a teoria moreniana pode auxiliar a compreender o adoecer e o processo de hospitalização. Nela, o conceito de saúde está intimamente relacionado à espontaneidade, que é a habilidade de dar uma resposta nova e adequada diante de uma situação inédita. Trata-se de uma capacidade plástica de adaptação, mobilidade e flexibilidade do indivíduo (Moreno, 1946/2013Moreno, J. L. (2013). Psicodrama (17ª ed.). Cultrix. (Obra original publicada em 1946)), que no hospital acaba se perdendo diante da realidade dos procedimentos e rigidez da rotina. Com isso, a subjetividade do indivíduo muitas vezes é ofuscada e o trabalho do psicólogo faz-se imprescindível para que o sujeito possa se expressar. É nesse campo que o psicólogo deve possibilitar que o doente fale sobre si, sobre sua enfermidade e seus sentimentos em relação a ela, isto é, busca dar voz ao indivíduo e devolver o lugar de sujeito que o hospital lhe tira (Simonetti, 2018Simonetti, A. (2018). Manual de psicologia hospitalar: O mapa da doença (8ª ed.). Artesã.).

A introdução do pensamento psicodramático no contexto hospitalar, portanto, pode promover uma participação mais ativa e flexível. Através de um trabalho focado na relação, a abordagem psicodramática pode recuperar a espontaneidade perdida do paciente e seu papel de protagonista de sua vida. O objetivo desse trabalho é apresentar uma proposta de atuação psicodramática com pacientes de enfermaria de um hospital geral universitário. Para isso, será abordada a realidade psicológica do paciente sob a óptica do psicodrama, para, em seguida, apresentar intervenções que auxiliem no resgate da espontaneidade e do protagonismo de sujeitos frente seu adoecimento.

MÉTODO

Este trabalho é uma reflexão teórica baseada na experiência profissional da Psicologia de abordagem psicodramática com pacientes internados em enfermarias de um hospital geral no estado de Sergipe. Os pontos principais das intervenções foram relatados em prontuários físicos do paciente e de forma mais detalhada em diários de campo de acesso restrito da psicóloga pesquisadora resguardando o sigilo profissional. Foram realizadas discussões em equipe multidisciplinar bem como em preceptorias gerais e individuais. Posteriormente, a partir de leituras de artigos científicos e capítulos de livros que constituem o arcabouço teórico do Psicodrama e da Psicologia Hospitalar foram realizadas discussões sobre as experiências. Ao longo da explanação deste trabalho foi assegurado o anonimato das informações, preservando-se o sigilo das pacientes por meio de nomes fictícios e alteração dos dados que pudessem identificá-los.

Os resultados serão descritos através de três tópicos: a perda da espontaneidade diante das conservas culturais hospitalares, cristalização de papéis no contexto hospitalar e promoção de saúde no hospital a partir do Psicodrama. Nos dois primeiros tópicos, será abordada a realidade dos pacientes hospitalizados sob a ótica do Psicodrama. No terceiro tópico, serão apresentadas as intervenções psicodramáticas realizadas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Perda da espontaneidade diante das conservas culturais hospitalares

O adoecer produz sérios impactos na vida do ser humano, que, além de sofrer com os efeitos diretos da doença, tais como dores físicas, limitações em sua capacidade funcional, tratamentos diversos e uma série de restrições, tem de lidar muitas vezes com a necessidade de se distanciar de sua casa, seu trabalho e de seus hábitos de vida. Apesar dos processos padronizados de institucionalização no hospital, o indivíduo é um ser singular, que traz marcas da sua história de vida. Isso se evidencia no modo particular com o qual cada um lida com o seu adoecimento. O fato de estar doente afeta as relações sociais do sujeito, que se afasta da convivência familiar e dos amigos gerando impactos para além do corpo físico, interferindo também no psicológico (Luz et al., 2018Luz, J. R. G., Antoni L.; Pereira , J. A., & Viecheneski, J. (2018). O olhar da psicologia hospitalar frente ao paciente. [Apresentação em conferência]. Anais da Jornada Científica dos Campos Gerais, 16, Ponta Grossa, Paraná, Brasil. Disponível em: https://www.iessa.edu.br/revista/index.php/jornada/article/view/954. Acesso em: 20 ago. 2022.
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). O paciente, ao ser hospitalizado, perde sua singularidade e se afasta do seu cotidiano, sofrendo um processo de despersonalização. Além disso, ele se depara com uma rotina hospitalar intensa que leva à perda de controle sobre os próprios horários. Esse fato gera a sensação de perda da identidade e autonomia gerando reações emocionais adversas devido à dificuldade de aceitação da doença e do seu processo de tratamento (Freitas et al., 2017Freitas, A. P. B., Abreu, A. C. O., Coelho, M. B., Peres, T. C., & Alves, I. D. O. L. (2017). Um estudo sobre o papel do psicólogo hospitalar. Revista Científica Semana Acadêmica, 01, 105.).

Tal situação tende a levar o paciente à perda de sua espontaneidade diante das pressões das conservas culturais presentes no hospital. Segundo Moreno (1946/2013)Moreno, J. L. (2013). Psicodrama (17ª ed.). Cultrix. (Obra original publicada em 1946), a espontaneidade consiste em apresentar uma resposta nova, adequada e apropriada diante de uma nova situação. Trata-se de uma capacidade plástica de adaptação, mudança e flexibilidade do eu, imprescindível a um indivíduo num ambiente constantemente mutável. O hospital, dada sua natureza disciplinar que assegura o controle do doente e da doença, costuma levar pacientes a reprimirem sua subjetividade (Foucault, 1978/2021Foucault, M. (2021). Microfísica do poder. Paz e Terra. (Obra original publicada em 1978)). No psicodrama, essa natureza de contenção da subjetividade pode ser entendida como uma conserva cultural, na medida em que diz respeito a tradições e interdições impostas pela sociedade, gerando entraves ao fluir da espontaneidade. Acaba, assim, levando o indivíduo a limitá-la, reprimindo-a (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.).

Esse fenômeno foi observado durante o atendimento hospitalar de Eva, 20 anos, estudante universitária, sem histórico de doenças. Internou-se por um quadro agudo de tetraparesia: uma paralisia parcial que acomete os membros inferiores e superiores. Apresentava também dificuldade para deglutir os alimentos e na articulação da fala. Foi internada para fins de investigação diagnóstica. Portanto, logo após sua hospitalização, iniciou-se uma série de exames e avaliações de diferentes especialidades a fim de se descobrir a origem dos sintomas clínicos.

Toda atenção da equipe se voltou para a descoberta do diagnóstico. No entanto nesse intercurso foi observada pelos profissionais uma intensa mobilização emocional de Eva, que chorava frequentemente dificultando a abordagemdos profissionais que não sabiam como lidar com aquela reação. Foi solicitado o imediato acompanhamento da psicologia, bem como a rápida medicalização da paciente. Tais pedidos realizados pelos profissionais da equipe se voltavam exclusivamente para conter o choro e a mobilização emocional da paciente. Responsabilizar o psicólogo por essa tarefa parecia uma tentativa de manter um distanciamento das manifestações emocionais que tenham dificuldade em manejar e assim evitar que se sintam afetados, preservando uma comunicação fria e objetiva gerando a desumanização no contato com o paciente assim como descrito na literatura (Salto, 2007Salto, M. C. E. (2007). O psicólogo no contexto hospitalar: Uma visão psicodramática. Psicologia Brasil, 5 (39), 12–15.; Silva et al., 2019Silva, T., Foger, D., & Santos P. (2019). Despersonalização do paciente oncológico hospitalizado: uma revisão integrativa. Psicologia, Saúde & Doenças, 20(3), 651–658. https://doi.org/10.15309/19psd200308
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). Esse tipo de pedido ilustra a imagem cristalizada do papel de psicólogo como um bombeiro que apaga incêndios e mantém o hospital funcionando com as mesmas conservas, em nome de sua eficácia terapêutica biomédica.

Além da dimensão institucional, outro fator que interferiu na espontaneidade de Eva foi a sua relação familiar. Em geral, a presença de um familiar acompanhante que tenha vínculo afetivo com o paciente hospitalizado possibilita melhora na sua condição emocional, sendo fonte de apoio, segurança, fortalecimento e, portanto, um auxiliador na superação do processo de adoecimento (Vitória & Assis, 2015Vitória, A. L., & Assis, C. L. (2015). Vivências e estratégias de enfrentamento em acompanhantes de familiar hospitalizado em uma unidade hospitalar do município Cacoal-RO. Aletheia, 46, 16–33.). O psicodrama aponta que uma das principais funções da família é ser espaço de expressão da espontaneidade e da criatividade, servindo de referência básica para o crescimento do eu. Entretanto a existência de regras e tradições familiares muitas vezes limita a capacidade dos indivíduos gerirem suas próprias vidas, sendo necessário traçar estratégias que aumentem seu potencial criativo e espontâneo a fim de que se tornem capazes de resolver os próprios problemas e de se adaptar às diferentes situações que lhes surjam (Carneiro & Rasera, 2012Carneiro, I. R., & Rasera, E. F. (2012). Família, espontaneidade e crise social: O psicodrama de “A vida é bela”. Revista da SPAGESP, 13(1), 23–30.).

No hospital, que é em geral um ambiente onde o paciente, além de lidar com seu sofrimento, precisa conviver com uma série de conservas culturais, como imposições por parte dos profissionais e dos próprios familiares, o psicodrama busca ofertar uma abordagem sensível ao paciente, através de uma relação empática, proporcionando um espaço de escuta e intervenções no sentido de desenvolver atitudes mais espontâneas para lidar com as diversas nuances do adoecimento.

Cristalização de papéis no contexto hospitalar

Além da perda da espontaneidade decorrente da hospitalização, o adoecimento também pode desencadear conflitos existenciais bem como a cristalização de papéis atuados no aqui e agora. Uma das possíveis causas dessas repercussões psicológicas se deve ao fato de a hospitalização representar ao paciente entrar em contato com as próprias limitações diante da imprevisibilidade da doença, coloca-o frente a algo que o desestabiliza e ao mesmo tempo sente-se impotente para mudar a situação (Leite et al., 2018Leite, K. L., Yoshii, T. P., & Langaro, F. (2018). O olhar da psicologia sobre demandas emocionais de pacientes em pronto atendimento de hospital geral. Revista da SBPH, 21(2), 145–166.). Isso, por sua vez, pode acentuar a rigidez do indivíduo e acaba por repercutir em respostas inadequadas no contexto de hospitalização.

Essa cristalização foi observada na paciente Linda, uma jovem de 22 anos, internada com queixa de dores de cabeça, fraqueza muscular e desmaios frequentes. Foi levantada a suspeita de aplasia medular — doença rara da medula óssea na qual ocorre a redução na produção das células sanguíneas — tendo esse diagnóstico sido confirmado ao longo da internação. Linda se mostrava bastante participativa com relação aos procedimentos realizados pelos profissionais, mais otimista e fazendo uso de seus recursos de enfrentamento. Entretanto com o decorrer da hospitalização, passou a se apresentar bastante ansiosa e demandante de fala. Com dificuldade de adaptação ao ambiente hospitalar e de aceitação da doença e das consequentes limitações, passou a ser relatada como resistente às orientações médicas e poliqueixosa.

Segundo a teoria moreniana, a constituição da identidade ocorre por meio dos papéis, que são a menor unidade perceptível de comportamento e estruturam o eu. Cada um deles se relaciona com papéis complementares por meio dos vínculos (Ferreira, 2010Ferreira, I. B. (2010). Dicas a um jovem terapeuta psicodramatista de adolescentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 18 (2), 57-72.) e corresponde a um modo de funcionamento para reagir a situações específicas que envolvem outras pessoas e objetos (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.).

No caso da hospitalização, o medo da morte e o impacto das restrições impostas pelo adoecimento tendem a acentuar o papel de enfermo. Além disso, a pessoa experimenta a suspensão da vida pessoal e profissional, fixando-se ainda mais nesse papel que promove mais sofrimento e perda de espontaneidade (Câmara & Amato, 2014Câmara, R. A., & Amato, M. A. P. (2014). A vivência de pacientes com câncer hematológico sob a perspectiva do psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(1), 85-91.).

Promoção de saúde no hospital a partir do Psicodrama

A promoção de saúde pela perspectiva psicodramática fundamenta-se na ideia de que a oferta de condições para que o indivíduo possa se manifestar de forma espontânea e criativa criando e recriando suas cenas possibilita uma catarse de integração de conteúdos alheios de si mesmo, levando à ressignificação, a uma maior autocrítica e à invenção de formas subjetivas inovadoras e não cristalizadas (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.). Dessa forma, é possível a utilização das técnicas psicodramáticas no contexto da hospitalização, promovendo a saúde mental dos pacientes.

As etapas do processo psicodramático são aquecimento, dramatização e compartilhar (Cukier, 1992/2018Cukier, R. (2018). Psicodrama bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. (6ª ed,). Ágora. (Obra original publicada em 1992)). Entretanto no contexto hospitalar geralmente são necessárias algumas adaptações, visto que, diferentemente do modo de atendimento clínico tradicional, no hospital o psicólogo não possui um setting terapêutico definido. Sem a tranquilidade e a segurança do consultório, os atendimentos ocorrem ao lado dos leitos nas enfermarias concomitantemente aos procedimentos terapêuticos e rotinas hospitalares. Distingue-se ainda em relação a tempo e frequência de atendimento com cada paciente (Cunha et al., 2016Cunha, F. A., Cremasco, G. S., & Gradvohl, S. M. O. (2016). O papel do psicólogo hospitalar segundo os pacientes hospitalizados. Saúde & Transformação Social, 7(2), 34–40.; Moreira et al., 2012Moreira, E. K. C. B., Martins, T. M., & Castro, M. M. (2012). Representação social da Psicologia Hospitalar para familiares de pacientes hospitalizados em Unidade de Terapia Intensiva. Revista da SBPH, 15(1), 134–167.).

Devido às características da rotina hospitalar (enfermarias compartilhadas, barulho, profissionais interrompendo) e às várias limitações físicas que os pacientes possam apresentar, há a necessidade de que o psicodramatista seja criativo e espontâneo adaptando suas intervenções às diferentes situações e à singularidade de cada paciente. Elementos como a dramatização em cena aberta, uso de almofadas e miniaturas geralmente encontram dificuldades no ambiente hospitalar, seja pela falta de privacidade ou de mobilidade do paciente ou ainda devido à necessidade de esterilização de todos os materiais a serem utilizados. Todavia, é possível a prática do psicodrama a partir de seus principais fundamentos teóricos e técnicos, como o resgate da espontaneidade, através da realização da dramatização internalizada e entrevistas no papel.

A partir dos dois casos apresentados, discute-se algumas dessas possibilidades de atuação baseada no psicodrama. A paciente Eva, que apresentou dificuldades na adaptação, foi perdendo aos poucos sua espontaneidade em função tanto das características institucionais quanto da rigidez familiar, a postura da mãe e acompanhante, em geral muito rígida e exigente não admitindo fraquezas ou erros. Anteriormente saudável e funcional, estava bastante mobilizada com o adoecimento repentino e perda quase que completa da autonomia. Isso reverberou em episódios de ansiedade, medos e autocobrança da filha ao longo da internação, sobretudo diante da realização de exames mais complexos.

Relação terapêutica

A primeira forma de resgatar a espontaneidade é a partir da relação terapêutica, que, no psicodrama, é compreendida a partir do fator tele, que se refere a uma percepção interna mútua entre duas pessoas. Pode ser descrito ainda como uma empatia que acontece em ambas as direções; trata-se da base das relações interpessoais (Ferreira, 2010Ferreira, I. B. (2010). Dicas a um jovem terapeuta psicodramatista de adolescentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 18 (2), 57-72.). Com o início das intervenções psicológicas, uma relação télica foi sendo estabelecida entre psicólogo e paciente. Para isso, adotou-se uma abordagem acolhedora, validando suas emoções e a criação de um espaço seguro para que a paciente pudesse chorar e falar sobre sua experiência, bem como promovendo seu desejo de participar das decisões acerca de seu tratamento. Essa postura auxiliou Eva a resgatar sua espontaneidade. Nesse contexto, o desenvolvimento de uma relação télica favoreceu um espaço de acolhimento e espontaneidade em meio ao ambiente hospitalar e suas rigorosas rotinas.

Assim, após entrar em contato com papéis mais espontâneos na relação psicológica, a paciente pôde começar a exercer maior autonomia, posicionando-se de modo mais criativo frente às conservas culturais hospitalares. Em uma das abordagens dos profissionais para medicá-la diante de um episódio de mobilização emocional, Eva afirmou incisivamente: “Não quero ser medicada, eu preciso chorar, por favor, deixe-me chorar!” [sic]. Essa súplica enfatiza os entraves vividos pelos pacientes à expressão espontânea de suas angústias. Tratou-se de um ato espontâneo, pois apresentou uma resposta adequada baseada na própria percepção sobre a importância de expressar sua dor no aqui e agora. Tal expressão dos sentimentos no presente está relacionada à teoria do momento de Moreno, que enfatiza o instante que transforma os sujeitos envolvidos, salientando a relevância de investigar a relação no presente e não no passado, bem como as correntes afetivas no aqui e agora (Gonçalves et al., 1988Gonçalves, C. S., Wolff, J. R., & Almeida, W. C. (1988). Lições de psicodrama: Introdução ao pensamento de J. L. Moreno (11ª ed.). Ágora.).

Ainda que a medicação psiquiátrica tenha sua importância clínica para atenuar o sofrimento da paciente, é importante ouvir e dialogar com os pacientes não só para explicar determinadas condutas, mas principalmente para preservar a autonomia.

A relação télica entre terapeuta e paciente construída ao longo dos atendimentos possibilitou ainda a entrega da paciente à ação dramática, de modo que se sentisse segura e confiante para adentrar em suas fantasias e vivenciar seus medos no aqui e agora.

Em um dos atendimentos, Eva relatou insônia e ansiedade elevada com a proximidade da realização de um exame de ressonância magnética por requerer uma imobilidade por alguns minutos no equipamento. Embora soubesse da importância do exame para a investigação de seu diagnóstico, acreditava não ser capaz de suportar as condições dele, ficando angustiada.

Nessas circunstâncias, foram realizadas perguntas sobre possíveis motivos de seu medo paralisante. Constataram-se dúvidas que poderiam ser ansiogênicas a respeito de como se dá a realização do exame e, por isso, a psicóloga fez uma mediação entre ela e a equipe para que ela pudesse compreender melhor o procedimento. No entanto dadas a persistência dos sintomas psicológicos e a dificuldade de a paciente encontrar respostas sobre seu sentimento de incapacidade que a acompanhava durante toda a internação, a terapeuta propôs uma dramatização a fim de promover insights.

Dramatização internalizada

O setting terapêutico que já vinha sendo construído com a paciente propiciou uma dramatização internalizada, técnica na qual a ação dramática é simbólica e interna (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.), que se mostrou mais adequada considerando-se as limitações da paciente e do ambiente.

O fato de estar em uma enfermaria lotada de pessoas e com bastante ruído, condições comuns às enfermarias hospitalares, reforça a importância do aquecimento para a boa execução das técnicas psicodramáticas. A etapa do aquecimento consiste em preparar o paciente para se desprender de si e das situações aleatórias de seu dia e se concentrar totalmente nas questões a serem trabalhadas na sessão. O aquecimento pode ser inespecífico ou específico. O primeiro tem a finalidade de situar o protagonista na sessão e focar sua atenção em si mesmo. O segundo visa preparar o protagonista para a dramatização e consiste em descrever o cenário, os personagens, o figurino, entre outros (Cukier, 1992/2018Cukier, R. (2018). Psicodrama bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. (6ª ed,). Ágora. (Obra original publicada em 1992)). Assim, com voz baixa, pausada e suave, Eva foi convidada a fechar os olhos e a respirar profundamente algumas vezes. Em seguida, sugeriu-se que se imaginasse na sala onde faria o exame, prestando atenção nas características do ambiente (cor, temperatura, mobília, entre outros).

De acordo com Salto (2007)Salto, M. C. E. (2007). O psicólogo no contexto hospitalar: Uma visão psicodramática. Psicologia Brasil, 5 (39), 12–15., é imprescindível que o psicodramatista crie um cenário em que o paciente possa compartilhar experiências, pensamentos e emoções como também promover estratégias positivas utilizadas no manejo da doença, incorporando-as ao seu dia a dia. Com relação ao caso citado, o aquecimento induziu a paciente a transferir o foco da atenção dos diversos estímulos do ambiente hospitalar para vivenciar seu mundo interno.

Já na etapa da dramatização, trabalha-se na realidade suplementar, no como se em que são utilizadas diversas técnicas (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.). Assim, foi solicitado que observasse a máquina e que entrasse nela. Ao questionar como se sentia, respondeu: “Sinto muito medo, não tenho força suficiente, parece que ela vai me engolir!” [sic].

Em seguida, ao ser indagada sobre situações anteriores semelhantes, Eva pensou por alguns segundos e sorriu como se tivesse tido um insight: “na infância, quando minha mãe exigia que eu tirasse notas boas nas provas, caso contrário me daria uma surra”. Após a dramatização, a psicóloga procurou contrapor a realidade da paciente quando criança com sua realidade atual, para que pudesse elaborar a diferença entre os dois momentos. A realização do exame seria benéfica para ela e não para agradar os outros.

Ficou evidente o impacto que a relação familiar exercia sobre o comportamento de Eva durante o adoecimento. Diante disso, o psicodrama possibilita a observação dos papéis que necessitam de reparação e de como o indivíduo desenvolveu seu papel de doente. Percebe-se, em geral, que nas famílias em que é permitido ao sujeito expressar seus sentimentos, seu discurso transcorre espontaneamente (Câmara & Amato, 2014Câmara, R. A., & Amato, M. A. P. (2014). A vivência de pacientes com câncer hematológico sob a perspectiva do psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(1), 85-91.).

Ao fim da intervenção psicodramática, solicitou-que que a paciente criasse um desfecho para aquela situação. Eva narrou que respirou fundo, fez o exame com coragem, então saiu da máquina, deixou a sala e retornou ao quarto. Com o desfecho da dramatização e o retorno do foco para a realidade, realizou-se o compartilhar, momento para dividir experiências, sentimentos e emoções que surgiram por meio da dramatização. É também onde ocorre a elaboração verbal dos conteúdos que emergiram (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.). Assim, Eva relatou que percebeu que as fantasias dela se relacionavam com o papel anterior da criança que tinha medo de decepcionar os que mais amava. Reconhecendo-se em outros papéis, a paciente pôde realizar o exame.

A ação do psicodramatista no hospital estimula e possibilita que o paciente atue em diferentes papéis, promovendo a ressignificação de antigas situações de sofrimento e a adoção de respostas adequadas diante das circunstâncias emergentes. Para isso, busca-se estimular os clientes a presentificarem conflitos íntimos, fantasias, lembranças do passado ou expectativas e planos futuros, possibilitando uma atuação espontânea no mundo (Câmara & Amaro, 2014Câmara, R. A., & Amato, M. A. P. (2014). A vivência de pacientes com câncer hematológico sob a perspectiva do psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(1), 85-91.). Com o método psicodramático, Eva compreendeu que situações do passado influenciavam seus sentimentos e ações atuais, o que lhe permitiu mudanças de posicionamento diante da sua realidade atual.

Desdobramento do eu no contexto hospitalar

Com relação à segunda paciente, Linda, diante da enfermidade, ela se afastou da vida pessoal e profissional e se fixou em um papel infantil. Suas questões relacionavam-se à cristalização do papel de enfermo passivo, somado ao sentimento de ser negligenciada afetivamente pela família e na maioria das vezes sentia-se sozinha, incompreendida e carente de atenção.

Dessa forma, o objetivo das intervenções psicodramáticas com ela era possibilitar uma ampliação no olhar acerca dos papéis que vinha desempenhando ao longo da hospitalização, possibilitando o surgimento de papéis mais espontâneos e criativos. Assim, em um dos atendimentos, a paciente ao discorrer sobre a sua dificuldade de aceitação da doença referiu sentir como se possuísse dois lados com personalidades distintas sendo um lado adulto e outro infantilizado. Segundo a perspectiva psicodramática, o adoecimento psicológico é um processo que se caracteriza pela carência de espontaneidade e construção de papéis patológicos devido às imposições das conservas culturais ao longo do tempo (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.). Pode-se notar que embora Linda se encontrasse bastante imersa no papel cristalizado de enferma, ainda possuía algum vestígio de espontaneidade. Foi aplicada a técnica do desdobramento do eu, que consiste em possibilitar a interação dos diferentes eus do psiquismo humano os quais podem estar gerando um conflito no mundo interno dos sujeitos (Dias, 2006Dias, V. R. C. S. (2006). Psicopatologia e psicodinâmica na análise psicodramática. (vol. 1). Ágora.), para que Linda mergulhasse em cada um desses papéis visando compreendê-los melhor, distingui-los e resgatar o potencial criativo que havia sido limitado.

Diferente do primeiro caso, a paciente se encontrava em leito de isolamento, o que confere maior privacidade ao atendimento. Com isso, foi possível utilizar técnicas de entrevista no papel. Entretanto a aplicação da técnica no âmbito hospitalar também necessita de outras adaptações mesmo em circunstâncias de privacidade. A maioria dos pacientes possui restrição da mobilidade e está conectada a dispositivos que impedem muita movimentação. Dessa forma, a utilização de objetos do quarto para representar os personagens ou compor o cenário foi uma alternativa viável e criativa.

Linda foi solicitada a escolher objetos da enfermaria para que representasse cada um de seus dois lados. Elegeu o suporte de ferro do soro e um pacote plástico de lenços. Em seguida, após um breve aquecimento específico, a paciente foi entrevistada no papel de ambos os objetos. No papel de pacote de lenço, Linda caracterizou-se como frágil, ingênua e com dificuldade de controlar suas emoções. Quando questionada desde quando se sentia daquela forma, respondeu que desde a infância cria expectativas em relação ao apoio da família e sempre acaba se sentindo frustrada. Linda rememorou emocionada sobre uma situação quando criança na qual precisou ter sido defendida e apoiada, porém não foi acolhida pela família.

Posteriormente, foi feita a entrevista da paciente no papel do suporte do soro. Nomeando o objeto como uma barra de ferro, descreveu-se como forte, corajosa, determinada e resiliente. Ao ser perguntada desde que momento se sentia daquela maneira, respondeu que desde pequena, quando precisou cuidar de si mesma precocemente, pois não tinha apoio familiar.

As lembranças de Linda trouxeram luz a alguns comportamentos infantis da paciente ao longo da internação. Para o psicodrama toda situação pode desencadear um modo de funcionamento fortemente ligado a um complementar interno patológico resultante de modos relacionais primários. A situação conflituosa faz com que o papel fique fixado a um modo relacional que reduz a capacidade de reações espontâneas e saudáveis (Moreno, 1946/2013).

A técnica do desdobramento do eu possibilitou o insight de que após ser diagnosticada com uma doença rara, sentia-se uma pessoa forte em um corpo frágil e isso a havia paralisado; porém se deu conta naquele momento que não é mais aquela criança indefesa, hoje pode ser protagonista de sua vida e de seu cuidado e assim superar as dificuldades atreladas ao adoecimento e à hospitalização. O Psicodrama propicia ao paciente/protagonista a possibilidade de autopercepção e percepção da situação vivenciada, favorece o surgimento de insights e a possibilidade de modificação dos modelos de comportamentos cristalizados ou conservados em comportamentos mais espontâneos e saudáveis (Moreno, 1946/2013Moreno, J. L. (2013). Psicodrama (17ª ed.). Cultrix. (Obra original publicada em 1946)).

Na etapa do compartilhamento, Linda expressou que conseguia entender melhor seus lados e como eles foram construídos ao longo de sua vida, compreendia que ambos constituem o seu eu. Considerava-se pronta para aceitar a sua doença. Logo, os insights culminaram em uma catarse de integração, isto é, um movimento de transformação, criação e criatividade, ampliação da consciência, construção de melhores modelos de sociabilidade (Siqueira et al., 2017Siqueira, P. C. A., Martins, A. M., & Campos, M. G. C. (2017). Do cenário de dor ao encontro consigo: Abordagem psicodramática no bloco cirúrgico oncológico. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 93–99. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170026
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).

A hospitalização, portanto, representa geralmente uma fase difícil na vida do indivíduo, que precisa se afastar de casa até normalizar seu quadro de saúde. Atrelado a isso, tende a perder sua identidade pessoal, o que pode desencadear sentimentos de medo, raiva e desmotivação para aderir ao tratamento (Silva et al., 2019Silva, T., Foger, D., & Santos P. (2019). Despersonalização do paciente oncológico hospitalizado: uma revisão integrativa. Psicologia, Saúde & Doenças, 20(3), 651–658. https://doi.org/10.15309/19psd200308
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), impactando na perda da espontaneidade e na rigidez de papéis.

No consultório, tais questões são alvo do psicodramatista, considerando-se que a perda da espontaneidade pode levar o indivíduo a agir de modo impulsivo e desadaptado em papéis cristalizados. A manutenção da saúde depende do resgate do potencial criativo, impulsionando-o a reagir e tornando-o livre dos sentimentos de resignação e impotência impostos pelas conservas (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.). No hospital, por sua vez, deve-se dar a devida atenção a esses fenômenos, mas é necessário ser cuidadoso visto que o ambiente hospitalar possui características diferentes do consultório (Cunha et al., 2016Cunha, F. A., Cremasco, G. S., & Gradvohl, S. M. O. (2016). O papel do psicólogo hospitalar segundo os pacientes hospitalizados. Saúde & Transformação Social, 7(2), 34–40.), que demandam adaptações da prática psicodramática.

Assim, a despeito dos desafios impostos pelo contexto hospitalar e adoecimento, através da construção de uma relação télica e da utilização de técnicas adequadas, foi possível proporcionar um espaço acolhedor para a expressão e dramatização dos conflitos internos das pacientes. Tais intervenções, culminaram na catarse de integração, que é a mobilização de afetos e emoções facilitando a compreensão dos fenômenos psíquicos que impedem o desenvolvimento de papéis psicodramáticos e sociais (Gonçalves et al., 1988Gonçalves, C. S., Wolff, J. R., & Almeida, W. C. (1988). Lições de psicodrama: Introdução ao pensamento de J. L. Moreno (11ª ed.). Ágora.), o que conferiu maior espontaneidade e papéis mais criativos frente ao adoecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo objetivou apresentar possibilidades de atuação psicodramática a pacientes de enfermarias de hospital geral bem como trazer à luz a realidade do paciente a partir de uma perspectiva moreniana. As características da instituição hospitalar e a ausência de espaço para que o paciente possa se expressar limitam a espontaneidade do sujeito, aumentam a rigidez do papel de doente e acentuam o sofrimento psíquico, gerando entraves ao enfrentamento saudável da doença orgânica. A realização da etapa de aquecimento, utilização de técnicas psicodramáticas como a dramatização internalizada e o desdobramento do eu bem como a etapa do compartilhamento, com as adaptações necessárias, constituem-se um conjunto de estratégias possível e benéfico para a promoção de saúde aos pacientes internados. Através dessas práticas, são ofertadas ao paciente condições para que resgate sua espontaneidade e criatividade, possibilitando insights e mudanças em suas ações no aqui e agora.

É importante destacar que os fenômenos da perda de espontaneidade e da cristalização não são distintos. Eles ocorrem mutuamente. Tanto Linda quanto Eva os vivenciaram, mas, por uma questão didática, foram focados separadamente para que pudessem ser mais evidenciados no ambiente hospitalar. Com isso, o uso do enfoque psicodramático no hospital lança luz sobre os fatores que levam à perda da espontaneidade e ao surgimento de papéis cristalizados, tendo em vista encontrar formas de existência mais saudáveis, refletindo positivamente no tratamento e na recuperação dos pacientes. Além das técnicas aqui apresentadas, muitas outras são possíveis, como as técnicas clássicas de duplo, espelho, solilóquio, entre outras, desde que haja uma relação terapêutica adequada para elas e que se respeitem as especificidades do hospital e a singularidade de cada paciente.

Quanto às limitações desse estudo, a escolha de analisar dois casos permitiu aprofundar o olhar nos fenômenos, entretanto é preciso ter cuidado com generalizações, respeitando o contexto das intervenções e perfil das pacientes, ambas do sexo feminino e com idade em torno de 20 anos. Como sugestões para investigações futuras, salienta-se a necessidade de que sejam realizadas outras pesquisas acerca da abordagem psicodramática em instituições hospitalares, considerando-se a quantidade restrita de estudos sobre a temática encontrados na literatura. Faz-se relevante ampliar o olhar do psicodramatista para os mais diversos contextos, incluindo-se a atuação junto aos acompanhantes, equipe de saúde, bem como aos pacientes do sexo masculino e de outras faixas etárias.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Não aplicável.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

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Editado por

Editora de Seção: Amanda Castro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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