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PSICOTERAPIA PSICODRAMÁTICA DE GRUPO ON-LINE: REINVENÇÕES DO AQUECIMENTO

PSICOTERAPIA PSICODRAMATICA DE GRUPO ON-LINE: REINVENCIONES DEL CALENTAMIENTO

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo discutir práticas de psicoterapia psicodramática de grupo on-line com ênfase no Aquecimento. A hipótese é que o Aquecimento elaborado especificamente para o atendimento on-line contribui para o alcance de um estado grupal mais espontâneo. O norte teórico deste trabalho consiste nas etapas de Aquecimento propostas por Davoli (1999) através da experiência com teatro Espontâneo. Assim, discute-se cada etapa a partir do relato de algumas experiências na condução de um grupo de psicoterapia on-line. A partir dessas experiências, conclui-se, então, que o Aquecimento concebido para esse contexto específico proporciona resultados satisfatórios em termos de espontaneidade grupal.

PALAVRAS-CLAVE
Psicoterapia psicodramática de grupo; Aquecimento; Psicoterapia on-line

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir las prácticas de psicoterapia psicodramatica grupal on-line con énfasis en el calentamiento. La hipótesis es que el calentamiento diseñado específicamente para la atención en línea contribuye al logro de un estado grupal más espontáneo. El norte teórico de la obra son las etapas de calentamiento propuestas por Davoli (1999) a partir de la experiencia con el teatro Spontâneo. Así, cada etapa se discute teniendo en cuenta el relato de algunas experiencias en la realización de un grupo de psicoterapia on-line. A partir de estas experiencias, afirmamos que el calentamiento diseñado para este contexto específico brinda buenos resultados en términos de espontaneidad grupal.

PALABRAS-CLAVE
Psicoterapia psicodramática grupal; Calentamiento; Psicoterapia on-line

ABSTRACT

This paper aims to discuss online group psychodramatic psychotherapy practices with an emphasis on warm-up. The hypothesis is that the warm-up step, specifically designed for Online care, contributes to the achievement of a more spontaneous group state. The theoretical north of the work is the warm-up stages proposed by Davoli (1999) from the experience with Spontaneous Theater. Thus, each stage is discussed taking into account the report of some experiences in conducting an online psychotherapy group. From these experiences, we affirm that the warm-up designed for this specific context provides good results in terms of group spontaneity.

KEYWORDS
Group psychodramatic psychotherapy; Warming-up; Online psychotherapy

INTRODUÇÃO

O trabalho com grupos em psicodrama é bastante diverso, e tal diversidade tem se ampliado a cada nova conjunção de forças e modos de viver no mundo. Como exemplo, temos os atos espontâneos, o psicodrama público, os grupos terapêuticos temáticos e focais, os grupos terapêuticos processuais de longo prazo (que serão mais enfatizados neste trabalho), grupos autodirigidos (relativamente comuns na formação de psicodramatistas didatas e supervisores) etc. Por força das circunstâncias atuais (pandemia por Covid-19 e isolamento social), temos experienciado todas essas modalidades de trabalho psicodramático de grupo de maneira remota em larga escala. Há procura pelo atendimento psicoterápico on-line por diversas outras razões, dentre elas, a dificuldade de mobilidade e o fato de muitos clientes morarem em lugares com poucos ou nenhum terapeuta, culminando, inclusive, na Resolução n.º 011/2018Resolução CFP n. 11 (2018). Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP n. 11/2012. Conselho Federal de Psicologia. do Conselho Federal de Psicologia, para regulamentação dessa prática (Vidal & Castro, 2020Vidal, G. P., & Castro, A. (2020). O Psicodrama clínico on-line: Uma conexão possível. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, 28(1), 54-64. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196...
). Nessa Resolução, definem-se os termos nos quais este trabalho pode ocorrer, tanto em atendimentos individuais quanto em grupais, autorizando atendimentos e consultas psicológicas através de tecnologias de comunicação, de forma síncrona e assíncrona. A resolução também obriga que o/a profissional especifique quais recursos tecnológicos são utilizados para garantia do sigilo; que informe seus clientes a este respeito; e que atualize anualmente um cadastro específico no conselho de classe, para prestação desse tipo de serviço.

A princípio, diante do que parecia ser a única alternativa — suspensão dos encontros terapêuticos grupais por tempo indeterminado —, muitos psicodramatistas se lançaram no desafio de manter seus grupos terapêuticos psicodramáticos de forma remota; outros, inclusive, criaram novos grupos, reunindo participantes de diferentes partes do país e residentes de outros países — todos na busca por proporcionar tudo o que se preza no trabalho com grupos em geral e, em especial, o que se preza no psicodrama. Afinal, se estávamos atendendo no modo bipessoal (ou psicodrama a dois, em que participam apenas terapeuta e cliente) de maneira remota, não deveríamos deixar de atender aos grupos. Davoli (1999, p. 80)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora. questionou: “Se o lócus da saúde/doença se dá nos grupos, por que temos deixado de atender grupos?”. Esse questionamento, trazido há alguns anos, segue merecendo nossa atenção enquanto psicodramatistas, especialmente em um momento da humanidade considerado crítico, caótico e iatrogênico pelas mais diversas razões (pandemia, polarização política, desastres ambientais, enfim, a lista seria enorme).

Assim, das garantias básicas para uma psicoterapia de grupo psicodramática on-line emergem os principais desafios: a) assegurar o sigilo grupal sem controle do ambiente onde se dá a sessão, para cada participante; b) aquecer o grupo e manter a fornalha do aquecimento acesa sem o contato físico; c) acessar os sinais do corpo no processo terapêutico através de uma tela (desafio para todo o grupo, não somente para o terapeuta), mapeando suas pistas e dando voz a elas; d) legitimar as interações, mesmo quando ocorrem interrupções devido à queda de conexão; e) administrar o cansaço da tela e o consequente desaquecimento provocado por ele; f ) conduzir o trabalho cênico prescindindo do espaço físico e de todos os recursos que ele oferece, por meio da criação de estratégias de interação entre participantes e entre protagonista e ego auxiliar.

Diante do exposto, o objetivo deste trabalho é discutir a prática e os desafios da psicoterapia psicodramática de grupo on-line, abordando reflexões teórico-conceituais, estratégias técnicas, experimentações e possibilidades (às vezes, impossibilidades também), com atenção especial ao aquecimento. No momento da construção desta escrita, a autora conduzia dois grupos de psicoterapia psicodramática on-line, e neste trabalho serão apresentadas algumas experiências a partir de apenas um deles. Vale ressaltar que as experiências aqui discutidas não se pretendem modelos a serem seguidos, como fórmulas conservadas sobre como atuar, mas fontes de inspiração para novas reinvenções, no contexto de cada grupo. Além disso, partiremos do pressuposto de que o investimento no aquecimento especificamente contextualizado para o atendimento remoto é de grande importância para proporcionar um estado de maior espontaneidade grupal.

É necessário evidenciar que não defendemos a equivalência ou a mera transposição do psicodrama realizado presencialmente para o contexto on-line. São práticas que exigem cuidados singulares e possuem potenciais e limitações diferentes, ainda que ancoradas nos princípios básicos da ética profissional e nas bases filosóficas e conceituais da socionomia. Ao reduzirmos a atuação on-line a uma transposição do trabalho presencial, negligenciamos uma série de desafios, como os citados acima, além de aspectos críticos, tais como os caminhos das relações humanas em tempos de contato físico muito reduzido.

Trataremos da psicoterapia psicodramática de grupo on-line como uma modalidade de atuação, sem subjugá-la (quando focamos apenas nas perdas decorrentes da ausência do contato físico) nem tampouco romantizá-la (quando focamos apenas nas suas vantagens, tal como a de reunir pessoas de diferentes lugares). Este trabalho sustenta-se também no fato de que a psicoterapia psicodramática de grupo on-line tem sido a alternativa encontrada por vários grupos, e em alguns casos aparenta ser uma estratégia que se estabelecerá, especialmente para os grupos que viabilizam encontros entre pessoas de cidades, países e culturas diferentes.

Foram inúmeras experiências de congregação em psicodramas focais on-line, em vivências psicodramáticas, cursos e também no último Congresso Brasileiro de Psicodrama (inteiramente on-line), em que se mencionou a importância de poder reunir pessoas de diferentes regiões do Brasil de maneira mais acessível financeiramente (ou seja, mais pessoas puderam conhecer o trabalho de grandes profissionais sem o ônus de uma viagem para outro estado). Considerando essa realidade, este artigo visa também contribuir para o desenvolvimento da proposta teórico-prática da sociatria nos tempos atuais.

METODOLOGIA

Este trabalho consiste em um relato de experiência discutido a partir de categorias propostas por Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora.. Assim, para discutir a prática, desafios e possibilidades da psicoterapia psicodramática de grupo on-line, recorremos às subetapas do aquecimento propostas pela autora supracitada no seu trabalho sobre aquecimento para o Teatro Espontâneo, adotando essa referência como inspiração para recriação de estratégias de aquecimento de grupo no trabalho remoto.

Exporemos também o relato de algumas intervenções realizadas junto a um grupo terapêutico processual que se reúne desde 2016, com alguma rotatividade entre seus membros, mas que manteve a mesma conformação desde o momento em que passamos a realizar nossas sessões on-line, até o momento de confecção deste trabalho. As sessões on-line ocorrem através da plataforma Zoom e as participantes acessavam a sala através de link e senha enviados pelo aplicativo WhatsApp.

O grupo era formado por quatro mulheres entre os 25 e 35 anos e se reunia semanalmente por duas horas a cada sessão. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo suas identidades devidamente preservadas nos relatos. Vale ressaltar que esse termo foi apresentado às participantes logo que ingressaram no grupo. As sessões foram registradas manualmente em um diário de campo.

AQUECIMENTO É A CONEXÃO QUE NÃO “CAI”

É possível afirmar que a preparação que se faz para ajuste do aporte teórico, técnico e tecnológico em torno de uma sessão também compõe o aquecimento. Espírito Santo (2017) afirma, ao discutir o aquecimento do diretor, que o processo prévio de aquecimento pode ser chamado de preaquecimento do diretor, e que pode se dar com o ego auxiliar, o protagonista e a plateia. Assim, o “Preaquecimento é a parte do processo de preparação que ocorre dentro de uma pessoa e sem a intervenção do diretor” (Bustos, 2005 como citado em Espírito Santo, 2017, p. 10). Diante dessa afirmação, iniciaremos abordando aspectos simples, porém não menos importantes, de certa recontratação do processo psicoterápico no atendimento on-line.

Ao ingressar num processo terapêutico processual bipessoal ou grupal, é importante que se realize um contrato, e neste contrato algumas especificidades devem ser incluídas, no caso do trabalho remoto. Consideramos especialmente relevante inserir no contrato e nos acordos iniciais o respeito ao sigilo. No caso do atendimento grupal on-line, cada participante deve estar comprometido em realizar a sessão num lugar em que esteja sozinho/sozinha (o que também vale para a modalidade bipessoal), preferencialmente com uso de fones de ouvido, pois numa situação de invasão de privacidade (sobre a qual há relatos relativamente comuns), preserva-se o conteúdo de fala trazido pelos outros membros do grupo. Outra questão pertinente à recontratação é, ainda, que cada participante se responsabilize por sua conexão. Recomendamos também que a sessão seja cobrada normalmente caso alguém perca a conexão de internet no momento da sessão ou haja muita oscilação na rede. Essas orientações, quando oferecidas de maneira objetiva, contribuem para que o grupo se organize e se corresponsabilize pelo momento da sessão.

O Aquecimento de uma sessão psicodramática é não somente uma etapa, como também uma condição para atos espontâneos de modo geral. Considerado por Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora. como a própria matriz da criação, o aquecimento é apresentado pela autora em cinco subetapas, separadas para efeitos didáticos, a partir de sua experiência com teatro Espontâneo. Utilizaremos essa referência, mas é importante ressaltar que o foco aqui não é a formação de atores de teatro Espontâneo, mas a inspiração para fomento da espontaneidade no atendimento remoto em uma das fontes primordiais do Psicodrama, o Teatro Espontâneo. Portanto, tomaremos por empréstimo a subdivisão da autora para a nossa apresentação de estratégias no trabalho remoto. As subetapas descritas por Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora. são: a) ambientação; b) grupalização; c) preparação para o papel de ator; d) preparação para o papel de autor; e) preparação da plateia.

Para a autora, na ambientação devem-se utilizar os recursos que o ambiente oferece, considerando o espaço físico e familiarizando os participantes com ele, não perdendo de vista que “o ambiente deve ser muito bem conhecido e reconhecido” (Davoli, 1999Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora., p. 81). Pensando no trabalho on-line, a ambientação será realizada em ambientes físicos que diferem de um membro para o outro e, muitas vezes, acontece num ambiente inteiramente virtual (grupo do WhatsApp por exemplo, em que as pessoas combinam datas, horários, informam imprevistos e às vezes acontecimentos das próprias vidas a serem objetos de trabalho na sessão).

Seguindo a ideia de utilização do que o ambiente oferece, apresentamos uma estratégia experimentada no grupo terapêutico que traremos como exemplo neste trabalho. Em uma das sessões, propusemos que cada pessoa apresentasse seu ambiente para o grupo, caminhando por ele com seu notebook, tablet ou celular. O objetivo foi construir conexões, estreitar vínculos entre participantes e reforçar a segurança e confiança no sigilo, uma vez que as participantes estavam acostumadas a encontros presenciais até eclodir a pandemia por Covid-19. Assim, foi dada a seguinte consigna:

Mostre onde você faz a sessão, apresente os cantinhos e objetos que você mais habita e/ou utiliza, mostre se tem portas ou janelas e, se possível, não se acanhe pela possível bagunça. Façamos um pacto: eu mostro minha bagunça e você mostra a sua.

Ao mesmo tempo em que o ambiente era explorado, cada pessoa era estimulada a se sentir de fato entrando no mundo do outro, experimentando cada cantinho, cama, porta, travesseiro etc., deixando-se afetar e atrair pelos elementos presentes no ambiente do outro. Exemplo: uma das pessoas deste grupo faz a sessão de dentro de seu carro na garagem do condomínio. Ela, então, mostrou seu carro, a cadeirinha do filho, brinquedos, pastas etc. E em outros momentos, quando uma pessoa fazia a sessão de um novo ambiente, era convidada a apresentar o novo ambiente para o grupo também. Segue o breve relato do aquecimento da sessão citada como exemplo:

Relato 1: ambientação on-line (o aquecimento pelo ambiente)

Na sessão estavam presentes todas as participantes. Uma delas estava na casa dos pais, em uma cidade do interior, e começou mostrando como o ambiente onde ela estava era diferente naquele dia. As colegas fizeram algumas perguntas, brincadeiras, num clima bem descontraído. Sugeri que todas segurassem seu dispositivo (tablet, celular, notebook) e, uma por vez, mostrassem seu ambiente, apresentassem objetos ou cantinhos que consideravam importantes, ao mesmo tempo em que as demais ficariam atentas a cada detalhe apresentado, sentindo-se como quem de fato entra na vida e no ambiente da outra, observando as próprias sensações nessa viagem.

Em seguida, propusemos que as participantes observassem se algo em algum dos ambientes visitados provocou afetação, curiosidade ou alguma emoção diferenciada. Assim, cada pessoa falou qual elemento que lhe chamou a atenção num ambiente que não era o seu próprio, que foram: uma janela voltada para a rua, o banheiro de uma suíte, um violão e uma pasta de documentos dentro do carro de uma participante. Cada pessoa foi aquecida e entrevistada no papel do objeto escolhido. A participante Valéria (nome fictício) estava com um bebê, seu primeiro filho, enfrentando dificuldades anteriores à maternidade para conquistar sua independência financeira e emocional, julgando-se incapaz e insegura. Essa pessoa escolheu a pasta de documentos do carro de outra participante como elemento que mais a afetou. Segue trecho da entrevista de Valéria no papel da Pasta de documentos:

Terapeuta: Olá, pasta de documentos, me fale um pouquinho sobre você. Como você é?

Pasta de documentos: Eu sou organizada, prevenida e responsável...

Terapeuta: Sabe, Valéria, ela está com algumas dificuldades na vida em relação à independência financeira, autoconfiança... O que você diria a ela?

Pasta de documentos: Valéria, eu sou o que você precisa neste momento: organização. Afinal, de agora em diante, nunca mais você estará sozinha...

Nesta mesma sessão, outra participante foi entrevistada no papel do banheiro de suíte da casa de uma das participantes, que era solteira e tinha um quarto com banheiro exclusivo para si. A participante que escolheu este banheiro é mãe de duas crianças pequenas e cuida do pai idoso. Segue um trecho da entrevista de Carolina no papel do banheiro de suíte:

Terapeuta: Banheiro de suíte, qual é sua característica mais marcante?

Banheiro de suíte: Eu sou a liberdade. Eu ofereço privacidade e gero nostalgia em Carolina... Ela não sabe mais o que é ter privacidade, precisa criar um banheiro de suíte como eu na vida dela.

Outro ponto relevante, não somente sobre a ambientação na etapa do aquecimento, mas sobre o uso de iniciadores físicos de modo geral, é que, além de poder “entrar” no ambiente físico do outro através da imagem, pode-se também utilizar objetos intermediários fáceis de encontrar (roupas, utensílios de higiene e objetos da vida cotidiana, do mundo “trivial”), de modo que todas as pessoas possam partilhar da experiência com os recursos disponíveis. Vale reforçar que o uso dos objetos intermediários é muito difundido no Psicodrama. Perazzo (2018)Perazzo, S. (2018). O mito da cadeira vazia. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, 26(1), 101-107. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180020
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afirma que o objeto intermediário no psicodrama remete ao uso da técnica da cadeira vazia de Moreno, desdobrando-se no uso de diversos outros objetos (almofadas, tecidos, fotografias, máscaras etc.). Guimarães (2020)Guimarães, L. A. (2020). Imagodrama: Uso de bonecos e objetos-auxiliares em psicodrama individual e on-line. Revista Brasileira Psicodrama, São Paulo, 28(2), 106-117. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20039
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discute o uso dos objetos intermediários no atendimento on-line, inclusive os classifica (em objetos auxiliares, objetos mediadores e objetos criativos).

A função imaginativa estará sempre ativada em quaisquer das experiências, mesmo que não se utilizem exatamente os mesmos objetos intermediários. Nesse sentido, Naffah (1979)Naffah, A. N., Neto (1979). Psicodrama: Descolonizando o imaginário. Brasiliense. discute a noção de “iniciador mental” como inviável, pelo simples fato de que “as imagens mentais são sempre possibilitadas por uma condição que lhes é anterior e fundamental e que, por essa mesma razão, é a única que pode ‘iniciar’ algo” (p. 67). Assim, a função imaginativa sempre estará na captura de toda experiência, seja com iniciadores físicos ou não. Um exemplo disso foi quando a psicodramatista Michele Carvalo Nogueira (2020)Nogueira, M. C. (2020). Contribuições do Psicodrama para elaboração do luto. I Jornada do Psicodrama On-line da Profint. Profint Profissionais Integrados., no aquecimento de sua vivência sobre luto na primeira Jornada de Psicodrama On-line da Profint, Federada de Aracaju (SE), em julho de 2020, propôs que todos entrassem e observassem como se sentiam dentro de uma cabana. Para isso, pediu que todos procurassem um lençol, manta, tecido ou casaco e “entrassem” nele(a) como se fosse uma cabana. Mesmo que utilizando objetos diferentes entre si, encontrados nos ambientes de cada pessoa, o grupo, de modo geral, alcançou um bom nível de aquecimento na proposta da vivência.

Outro aspecto interessante, do ponto de vista da ambientação, é que no contexto de atendimento on-line habita-se um espaço virtual bem comum atualmente, que são os grupos de WhatsApp, redes sociais etc. Inevitavelmente, os contatos que acontecem nesses grupos virtuais (que não são menos reais, pois produzem práticas e discursos) estarão em jogo no processo de aquecimento. Em uma sessão relatada a seguir, as participantes começaram a trocar mensagens através do grupo de WhatsApp que criamos para fins meramente operacionais (horários, cronograma, ausências etc.). O tema em debate entre elas estava mobilizando o grupo, que chegou absolutamente disponível para ele na sessão. Neste momento, estávamos há quase três meses em quarentena, e sentimentos como saudade e carência estavam muito presentes. Assim, optamos por flexibilizar a regra da “finalidade estritamente operacional” do grupo de WhatsApp, passando a manejar essas mensagens com o olhar do Aquecimento, algumas vezes até lendo algumas delas em sessão. É importante ressaltar que não são realizadas intervenções pelo WhatsApp, os conteúdos são abordados apenas no momento da sessão. Porém, arriscamos não ter uma atitude muito restritiva em relação ao que as participantes conversavam entre si neste ambiente virtual. Segue breve relato:

Relato 2: cadê meu São João?

Esta sessão ocorreu num feriado importante para a maioria das cidades do Nordeste brasileiro, quando se festeja o dia de São João. Os festejos juninos congregam pessoas de todas as idades, de diferentes grupos e classes sociais. Muitas pessoas acendem fogueiras em frente a suas casas, reúnem amigos, fazem comidas típicas e dançam ao som da sanfona. É um festejo realmente constitutivo da cultura nordestina e, no ano de 2020, pela primeira vez, vivia-se uma noite de São João sem festejo.

Feito esse preâmbulo, o que ocorreu antes desta sessão foi que, no grupo de WhatsApp, as participantes perguntaram se haveria a sessão mesmo sendo na noite de São João. O Governo do Estado havia antecipado esse feriado para manter o comércio fechado por mais um dia, no início da pandemia, quando nem se imaginava o quanto ela iria perdurar. Então, confirmamos que haveria sessão, a não ser que o grupo optasse por desmarcá-la. O grupo consentiu em fazer a sessão e começou a lamentar, por mensagens, a falta que fazia o São João na rua, principalmente o estranhamento que sentiam em passar uma noite de São João dentro de suas casas. Uma das participantes afirmou: “prefiro fazer sessão para não ficar triste pensando nisso, prefiro nem pensar!”. As mensagens sobre isto continuaram e percebemos que esses afetos estavam efervescentes naquele momento, então propusemos que as participantes enviassem pelo grupo de WhatsApp uma música típica de São João de que elas gostassem muito, para representar aquele momento para abordarmos em sessão.

A sessão começou com um silêncio nada comum naquele grupo, como se o que havia a ser dito já tivesse sido dito pelas mensagens trocadas pelo celular. Então compartilhei minha tela com o YouTube, expondo o vídeo de cada música escolhida. Todas ouviram as músicas com envolvimento, emoção e cantando junto, quando sabiam cantar. Sugeri que trouxessem apenas uma única palavra sobre o que estavam sentindo naquele momento, e as palavras foram: conexão, felicidade, saudade e angústia.

Nesse momento, o processo de grupalização (iremos abordá-lo mais adiante) já acontecia pelo simples ato de ouvir atentamente a música escolhida pela outra pessoa. As pessoas que escolheram “felicidade” e “conexão” formaram um subgrupo e o outro subgrupo se formou com as duas pessoas que trouxeram como sentimento a “saudade” e a “angústia”. Elas tiveram alguns minutos entre si para criarem uma cena curta, com início, meio e fim. Antes de iniciarem as cenas, sugerimos que as personagens descrevessem o ambiente em que estavam, as pessoas que nele havia (se houvesse), se era dia ou noite, como uma ambientação simbólica para Aquecimento específico.

As duas cenas criadas trouxeram, coincidentemente, um diálogo entre duas pessoas com projeções para o futuro: a primeira (grupo da “angústia” e da “saudade”) trouxe as participantes dois anos depois, conversando pela janela de casa como vizinhas (fazendo referência a uma das músicas, “Esperando na Janela”, de Gilberto Gil) e comentando que a vacina contra a Covid-19 estava para chegar. Essa cena proporcionou acesso aos medos e inseguranças em relação à pandemia e a quão mais inconformada e com dificuldade de adaptação à situação uma participante estava, através das falas de sua personagem. No compartilhar, ela afirmava que não esperava que a colega, no papel da saudade, dissesse que a vacina viria apenas em dois anos e isso a deixou desesperada, com falas como “não me vejo usando máscara por dois anos” e “não sei se aguento isso”.

A segunda cena (inspirada nos sentimentos de “felicidade” e “conexão”) acontecia cinco anos depois, numa festa junina ao redor de uma fogueira, sem mais haver pandemia. Na cena, havia um diálogo entre uma personagem que era a participante já divorciada (no momento da sessão, ela estava casada) e a segunda personagem, que era a outra participante casada e com filhos (naquele momento, ela não tinha filhos e pensava em se separar do companheiro). A cena trouxe acesso a diversas expectativas e à maneira como as participantes se sentiam naquele lugar projetado para o futuro, com inversão de papéis entre a participante casada e a divorciada, experimentando as nuances desses papéis na cena, conectando-as com seus conflitos atuais e seus desejos não declarados até então. Uma delas, a que estava muito inclinada a se separar do companheiro, afirmou durante um solilóquio que se sentia muito feliz naquele papel: casada com o mesmo companheiro e com filhos. Esta participante afirmou ainda, no compartilhamento, que “no fundo” sabia que era isso que queria, mas que ainda lhe faltava algo que não sabia nomear.

À medida que as participantes iam se apropriando daquelas personagens, mais se interessavam nos desfechos das cenas, com sugestão e experimentação de novos desfechos por parte do grupo como um todo.

No compartilhar, as falas foram unânimes em torno da importância de termos recorrido às mensagens trocadas pelo WhatsApp com as ressonâncias que a suspensão dos festejos juninos provocou no grupo, com destaque para uma fala que afirmava ter sido “muito importante começar a sessão sem falar. Começar a sessão falando vinha me trazendo mais angústias às vezes, eu também não queria pensar”.

Um dos diversos objetivos do Aquecimento é o favorecimento do contato télico. A tele é discutida por Nery (2010)Nery, M. da P. (2010). Grupos e intervenção em conflitos. Ágora. como “reciprocidade em algumas dimensões da existência humana ou sensibilidade mútua profunda” (p. 35). Essa sensibilidade mútua se construiu na medida em que o grupo se sentiu ouvido desde o princípio (mensagens de WhatsApp) e dispôs-se a ouvir e a se envolver com as sensações experimentadas pelas outras participantes através das músicas.

Seguindo as subetapas do Aquecimento propostas por Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora., a grupalização seria a preparação das pessoas para que se tornem grupo. A grupalização, segundo a autora, envolve a inserção do grupo num projeto dramático comum — que ultrapassa o simples “conhecer-se” pelo nome, idade ou profissão —, configurando a entrega coletiva ao processo psicoterápico de grupo. O Teatro Espontâneo oferece muitas possibilidades para produção de grupalização, com larga utilização de exercícios no espaço físico. O foco do processo de grupalização é, de maneira resumida, “trabalhar os grupos em grupo” (Davoli, 1999Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora., p. 82). Então, como podemos fazer isto no contexto remoto?

Percebemos que quando passamos a atender o grupo terapêutico de maneira remota, há uma preocupação em relação às falas “atropeladas” e aos microfones abertos ao mesmo tempo. Notamos também que essa preocupação pessoal resvalou no grupo, pois apesar de já se conhecerem e de terem vivido vários momentos conjuntamente, as participantes estavam obedecendo excessivamente o tempo de fala, a sequência, “a vez de cada uma”. O que sentimos foi certo desaquecimento e perda da espontaneidade nos primeiros encontros on-line com o grupo. Foi necessária a recriação de novo ritmo grupal para que voltássemos a realizar ações coletivas, com exercícios para que as participantes superassem o desafio de prestar atenção em si mesmas e nas demais participantes, simultaneamente e através da tela.

Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora. alerta sobre a importância, em uma cultura marcada por narcisismo e individualismo, do aprendizado de se complementar a ação de outra pessoa, o que abre espaço para a espontaneidade nas relações em grupo. Na busca por esse resgate do grupo para atuação por via remota, algumas estratégias utilizadas se deram a partir de jogos dramáticos já conhecidos (exemplo: “o outro significativo me apresenta”, adaptado no grupo para “o outro significativo conta como estou hoje”). Outra estratégia utilizada no grupo on-line tem sido dar oportunidade para que algum participante realize a entrevista no papel para aquecer outro participante na personagem. Por exemplo, a protagonista está no papel de sua irmã e, em vez de a terapeuta iniciar a entrevista no papel, estimular que alguma outra participante o faça primeiro, com perguntas como “o que vocês perguntariam à irmã para que possamos conhecê-la melhor?”.

Como na psicoterapia psicodramática grupal os participantes também são, em muitos momentos, egos auxiliares, há também de haver certo cuidado para o preparo no papel de ego auxiliar, para o qual traremos a preparação no papel de ator apresentada por Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora.. No contexto de psicoterapia psicodramática on-line, a estratégia mais recorrente tem sido a entrevista no papel, para que tanto o protagonista como o ego auxiliar se aqueçam no papel de alguma personagem. Porém, há que se cuidar com o excesso de entrevista, que pode ter o efeito oposto (desaquecimento). Assim, é importante que a direção auxilie os participantes do grupo com consignas como:

Resgate (ou crie, no caso de personagens imaginárias) o tom de voz desta pessoa/criatura/sentimento, a maneira com que ela se mexe enquanto fala, seus gestos e expressões mais marcantes... Vai trazendo isso pro seu corpo e pra sua face, para sua voz.

Um dos desafios para conduzir um grupo terapêutico on-line é a ausência do corpo em interação, o que torna mais difícil criar um ambiente acolhedor (Weinberg, 2020Weinberg, H. (2020). Online Group Psychotherapy [Webinar]. American Association of Group Psychotherapy.). Nessa direção, é recomendável que, precedendo uma entrevista no papel, exista um Aquecimento corporal, seja para relaxamento, seja para energização maior. Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora. propõe que haja no Aquecimento do Teatro Espontâneo o preparo do corpo e da voz, então, após esses exercícios, podemos sugerir, sempre que alguém for assumir o papel de algum complementar, que escute o relato do outro “com o corpo inteiro”. Escutar com o corpo inteiro, afirmou Naffah (2014)Naffah, A. N., Neto (2014). A psicanálise e a herança de Nietzsche sob a forma de dez mandamentos. In S. M. Paulon (Org.), Nietzsche psicólogo: A clínica à luz da filosofia trágica (pp. 145-165). Sulina., é escutar dionisicamente, como se ouve música, deixando-se afetar pelo discurso do outro.

Podemos propor, no Aquecimento no papel, que a pessoa traga para si os gestos e também o tom de voz daquela personagem. E ainda que o sujeito não conheça pessoalmente a personagem que irá encarnar, sugerimos que ele construa para si esta personagem como imagina que ela seja, enfatizando que o protagonista pode ir sugerindo alterações ao longo da cena (por exemplo, quando uma pessoa é escolhida pelo protagonista para atuar num contrapapel da vida dele).

Ainda sobre essa reconfiguração da relação com o corpo no atendimento grupal on-line, Weinberg (2020)Weinberg, H. (2020). Online Group Psychotherapy [Webinar]. American Association of Group Psychotherapy. alerta que ficamos mais sensíveis às expressões faciais, já que elas estão em close. Acrescentamos que isso vale para todo o grupo, não apenas para a terapeuta. Percebemos que os membros do grupo também refinam a habilidade de perceber alterações emocionais através da expressão facial dos colegas, bem como da terapeuta. Não raro ouvimos comentários como “que cara foi essa que você fez quando falei disso?” ou “sua cara não tá boa hoje, notei assim que abriu a câmera”.

É importante também que se criem condições para que os conteúdos trazidos no grupo sejam viáveis para a dramatização, o que Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora. chama de preparo para o papel de autor. Esses cuidados no contexto on-line não diferem tanto em relação ao contexto presencial, em que precisamos nos atentar para a criação de personagens, apresentação de um contexto e de elementos cênicos para trabalho de alguma situação. Além disso, é fundamental manter o envolvimento de todos do grupo na cena, seja convidando ou propondo a entrada na cena no lugar de alguma personagem já existente, seja trazendo novos personagens. Para que isso ocorra, as pessoas que não estão em interação cênica podem, por exemplo, manter a câmera fechada, para que apenas quem estiver em cena apareça, simulando um “palco” virtual, abrindo suas câmeras no momento em que forem solicitadas ou quando a cena se encerrar. Participei de algumas vivências e workshops em que diretores utilizaram muito bem essa estratégia, porém em grandes grupos. Em se tratando de um pequeno grupo, como o que trouxemos como exemplo, há sessões na quais as pessoas estão cansadas de um longo dia de trabalho ou de cuidado com filhos pequenos, e o contato visual é necessário para mantê-las de fato como uma plateia, ou seja, disponíveis e aquecidas para assumir uma personagem, um fundo musical, novos desfechos etc.

Muitas vezes esse cansaço esteve mobilizando todos do grupo: a mim e às participantes. A saudade do São João, o cansaço com a rotina doméstica, trabalho e filhos em casa sem poderem ir à escola, tudo isso obviamente também nos atravessava. Referimo-nos à pandemia: talvez seja a primeira vez em que clientes e terapeutas vivem o mesmo drama ao mesmo tempo, ao menos nesta escala e intensidade. O último relato aborda exatamente os limites impostos por essa circunstância:

Relato 3: enfrentamento de limites e dificuldades

Trataremos aqui das limitações do Aquecimento quando diretora e grupo se encontram em um estado de cansaço muito grande em relação ao excesso de atividades on-line, com longos períodos de exposição às telas, além da própria saudade de encontros presenciais, já que este era, anteriormente, um grupo de sessões presenciais. Duas das quatro participantes já tinham relatado muito cansaço com o uso da tela, pois também trabalhavam por via remota já há alguns meses, afirmando chegar à sessão com sono e com a mente cansada. Esse também era um sentimento da diretora. Seguiram-se daí algumas sessões exclusivamente verbais e que deixaram a diretora com a sensação de frustração enquanto psicodramatista, sentindo-se desaquecida e também saudosa do contato presencial. Pensa-se em possibilidades de mudança de horário (da noite para o dia), o que tornaria o encontro inviável para quase todas, devido a horários de trabalho e cuidado com filhos. O que fazer?

Uma das grandes alegrias de acompanhar um grupo por alguns anos é ver que o grupo amadurece, melhora suas formas de comunicação e, em algumas situações especiais, nos aquece mais do que nós a ele. Uma das participantes disse, nesse período de desaquecimento, que se sentia cansada e que gostaria que a diretora retomasse uma postura mais diretiva, como quando começamos o grupo, anos atrás. Além disso, falou de maneira empática que reconhecia e entendia também o cansaço da diretora e propunha que nós buscássemos outras formas de interação naquele momento tão difícil — fala muito pertinente, pois apesar de ser um grupo maduro e aberto, aquele momento pedia uma espécie de recomeço, de (re)treino de papéis de clientes de grupo, agora on-line. Assim, passamos então a resgatar estratégias e jogos de reconexão que proporcionaram um novo ânimo para o grupo e um reaquecimento também para a diretora, a partir da premissa de que se deve, sim, confiar no grupo. Este é um aprendizado que reforça que a diretora ou diretor de grupos deve buscar um posicionamento global em relação ao outro, incorporando o papel de terapeuta-interventor-observador-participante (Nery, 2010Nery, M. da P. (2010). Grupos e intervenção em conflitos. Ágora.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das experiências discutidas neste trabalho, observamos que é fundamental dar ênfase à ideia de que a criatividade e a espontaneidade devem ser resgatadas, estimuladas e cuidadas, inclusive em se tratando do papel de diretora de grupo. Existem diversas propostas de Aquecimento de grupos nas diferentes abordagens grupais, e em todas elas entendemos que o movimento do grupo é generoso e dá a tônica do Aquecimento que precisa acontecer naquele momento.

Neste ponto, cabe a nós, psicodramatistas, a responsabilidade de jamais esquecermos de que as “receitas de bolo” existem, mas que os caminhos mais profícuos serão sempre os que se apresentam no aqui-e-agora.

O Aquecimento no processo psicodramático será sempre volúvel, pedindo atenção constante ao contexto. Quando trabalhamos com grupos on-line, temos um delineamento de contexto que, por si só, promove alterações na conformação subjetiva do grupo, que já não se vê de corpo inteiro (a não ser que se proponha algum exercício para isto), que, ao mesmo tempo, vê-se em close a todo momento, e que precisa ser mais calorosamente estimulado a interagir e se conhecer intimamente, já que a expressão corporal de acolhimento estará literalmente enquadrada na tela.

As propostas de ambientação, grupalização, preparação para ser ego auxiliar e para ser autor (Davoli, 1999Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora.) se oferecem como boas pistas para a expansão da atuação no contexto de atendimento remoto, como já exposto anteriormente. Afirmamos serem pistas, não um modelo, e concluímos que o investimento no Aquecimento especificamente para as condições de atendimento on-line proporciona bons resultados, em termos de espontaneidade grupal.

A proposta descrita por Davoli (1999)Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora. foi a inspiração para atuação que se desdobrou neste trabalho, mas outras fontes de inspiração no Psicodrama têm oferecido um aporte para as novas práticas de psicoterapia por via remota. Observamos que elas concordam, em princípio, que não se deve transpor o processo presencial para o atendimento on-line. Fleury (2020)Fleury, H. J. (2020). Psicodrama e as especificidades da Psicoterapia On-line. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, 28(1), 1-4. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20203
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20203...
, por exemplo, afirma que a “criatividade será mais produtiva quanto mais estiver apoiada nas especificidades desse novo setting terapêutico” (p. 3). Assim, cabe a nós, psicodramatistas, criar estratégias de Aquecimento que promovam o mesmo papel da espontaneidade-criatividade no processo psicodramático em contexto remoto.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Todos os dados foram gerados ou apresentados neste estudo.
  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

REFERÊNCIAS

  • Davoli, C. (1999). Aquecimento: Caminhos para a dramatização. In W. C. Almeida (Org.), Grupos: A proposta do Psicodrama (pp. 77-88). Ágora.
  • Fleury, H. J. (2020). Psicodrama e as especificidades da Psicoterapia On-line. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, 28(1), 1-4. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20203
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  • Guimarães, L. A. (2020). Imagodrama: Uso de bonecos e objetos-auxiliares em psicodrama individual e on-line. Revista Brasileira Psicodrama, São Paulo, 28(2), 106-117. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20039
    » https://doi.org/10.15329/2318-0498.20039
  • Naffah, A. N., Neto (1979). Psicodrama: Descolonizando o imaginário Brasiliense.
  • Naffah, A. N., Neto (2014). A psicanálise e a herança de Nietzsche sob a forma de dez mandamentos. In S. M. Paulon (Org.), Nietzsche psicólogo: A clínica à luz da filosofia trágica (pp. 145-165). Sulina.
  • Nery, M. da P. (2010). Grupos e intervenção em conflitos Ágora.
  • Nogueira, M. C. (2020). Contribuições do Psicodrama para elaboração do luto. I Jornada do Psicodrama On-line da Profint Profint Profissionais Integrados.
  • Perazzo, S. (2018). O mito da cadeira vazia. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, 26(1), 101-107. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180020
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  • Resolução CFP n. 11 (2018). Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP n. 11/2012. Conselho Federal de Psicologia.
  • Vidal, G. P., & Castro, A. (2020). O Psicodrama clínico on-line: Uma conexão possível. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, 28(1), 54-64. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196
    » https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196
  • Weinberg, H. (2020). Online Group Psychotherapy [Webinar]. American Association of Group Psychotherapy.

Editado por

Editor de seção: Fernando Costa Cordovio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2020
  • Aceito
    20 Mar 2021
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