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A experiência de injustiça na vida diária: uma análise preliminar em três grupos sociais

The experience of injustice in daily life: a preliminary analysis with three social groups

Resumos

Embora haja pouca pesquisa relacionando a fenomenologia da injustiça às experiências reais das pessoas que infligem ou sofrem injustiça, alguns estudos sobre experiências de injustiça na vida diária demonstraram que as pessoas usam o termo injustiça de forma mais ampla do que os psicólogos sociais. Este estudo pretende confrontar esses e outros achados da pesquisa prévia em justiça com dados brasileiros, obtidos em três grupos. Através da técnica de relato retrospectivo, 99 adolescentes, 100 universitários e 98 trabalhadores descreveram uma injustiça sofrida, seus pensamentos, sentimentos e reações à situação. Os resultados indicaram a influência do tipo de grupo sobre vários aspectos relacionados ao evento injusto. Contrariamente ao que diz a Teoria da Equidade, a injustiça mais frequente foi acusação injustificada e a reação mais frequente foi a não-reação e a resignação. Discute-se a utilidade informativa desses resultados para uma revisão da teoria e a necessidade de pesquisas transculturais sobre injustiça.

experiência de injustiça; eqüidade; reação à injustiça


Although there is pratically no research relating the phenomenology of injustice to actual experiences of people who inflict or suffer injustice, some studies on everyday experiences of injustice have demonstrated that people use the term injustice in a broader sense than social psychologists. This study compares these and other findings from previous research on justice with Brazilian data from three groups. Through retrospective reports, 99 teenagers, 100 undergraduates, and 98 workers described an injustice they had suffered, their thoughts, feelings and reactions to it. The results showed the influence of the type of group on several aspects related to injustice. Contrary to what was predicted by Equity Theory, the most frequently reported events were unjustified blaming, and the most frequent reaction was non-acting and resignation. These results are discussed in terms of their informational utility to a revision of Equity Theory and to cross-cultural research on justice.

experience of injustice; equity; reaction to injustice


A experiência de injustiça na vida diária:

uma análise preliminar em três grupos sociais

Eveline Maria Leal Assmar11 Endereço para correspondência: Rua Antônio Basílio, 345, ap. 201 , 20511-190, Rio de Janeiro, RJ - E-mail: assmar@ruralrj.com.br2 Os sujeitos podiam relatar várias emoções, algumas vezes da mesma categoria, outras vezes de categorias diferentes 3 Os sujeitos podiam relatar, naturalmente, várias reações ou conseqüências da injustiça sofrida 4 Grupo 1 - trabalhadores; Grupo 2 - estudantes de psicologia; Grupo 3 - adolescentes

Resumo

Embora haja pouca pesquisa relacionando a fenomenologia da injustiça às experiências reais das pessoas que infligem ou sofrem injustiça, alguns estudos sobre experiências de injustiça na vida diária demonstraram que as pessoas usam o termo injustiça de forma mais ampla do que os psicólogos sociais. Este estudo pretende confrontar esses e outros achados da pesquisa prévia em justiça com dados brasileiros, obtidos em três grupos. Através da técnica de relato retrospectivo, 99 adolescentes, 100 universitários e 98 trabalhadores descreveram uma injustiça sofrida, seus pensamentos, sentimentos e reações à situação. Os resultados indicaram a influência do tipo de grupo sobre vários aspectos relacionados ao evento injusto. Contrariamente ao que diz a Teoria da Equidade, a injustiça mais frequente foi acusação injustificada e a reação mais frequente foi a não-reação e a resignação. Discute-se a utilidade informativa desses resultados para uma revisão da teoria e a necessidade de pesquisas transculturais sobre injustiça.

Palavras-chave: experiência de injustiça, eqüidade, reação à injustiça

The experience of injustice in daily life:

a preliminary analysis with three social groups

Abstract

Although there is pratically no research relating the phenomenology of injustice to actual experiences of people who inflict or suffer injustice, some studies on everyday experiences of injustice have demonstrated that people use the term injustice in a broader sense than social psychologists. This study compares these and other findings from previous research on justice with Brazilian data from three groups. Through retrospective reports, 99 teenagers, 100 undergraduates, and 98 workers described an injustice they had suffered, their thoughts, feelings and reactions to it. The results showed the influence of the type of group on several aspects related to injustice. Contrary to what was predicted by Equity Theory, the most frequently reported events were unjustified blaming, and the most frequent reaction was non-acting and resignation. These results are discussed in terms of their informational utility to a revision of Equity Theory and to cross-cultural research on justice.

Key words: experience of injustice, equity, reaction to injustice.

A Teoria da Equidade (Adams, 1965; Homans, 1961; Walster, Berscheid, & Walster, 1973; Walster & Walster, 1975), pioneira no estudo da justiça na Psicologia Social, postula que o "justo é o proporcional": justiça é, então, eqüidade. Postula ainda que a percepção de "ineqüidade" gera distress, e que este estado emocional desagradável (raiva na vítima e culpa no vitimador) impulsiona as pesssoas envolvidas a reagir cognitiva ou comportamentalmente para reduzir ou eliminar o distress e, assim, restabelecer a eqüidade.

Entre as muitas críticas de que foi alvo a Teoria da Equidade, destacam-se como principais: a concepção unidimensional e simplista de justiça ao reduzi-la tão somente à eqüidade (Utne & Kidd, 1980; Deutsch, 1985); sua visão conservadora, pela ênfase dada à perspectiva do perpetrador da injustiça, refletindo práticas econômicas particulares e incorrendo, portanto, em um bias sócio-histórico (Furby, 1986); o desprezo do caráter interacional da relação de troca, ao testar suas formulações teóricas com sujeitos isolados em laboratório, comparando-os a um "outro não identificado" e observando-os em suas respostas à injustiça, sem acesso a qualquer informação senão as julgadas relevantes pelos pesquisadores (Kidd & Utne, 1980; Furby, 1986).

Não obstante o inegável valor heurístico da Teoria da Eqüidade - haja vista a intensa atividade experimental subsequente - Deutsch (1985) assinalou corretamente que "praticamente não há pesquisa relacionando a fenomenologia da injustiça às experiências reais das pessoas que infligem ou sofrem injustiça" (p. 132). De igual modo, poucos são os estudos disponíveis para a compreensão da sensibilidade diferencial à injustiça por parte de vítimas e de vitimadores. Em conseqûencia, é ainda reduzido o conhecimento sobre as experiências subjetivas de injustiça. O que, de fato, as pessoas pensam e sentem quando se confrontam com eventos injustos, e como essas cognições e sentimentos orientam suas ações?

Para Tyler, Boeckmann, Smith e Huo (1997), tal indagação resume o foco central da psicologia da justiça: compreender o que as pessoas pensam que é certo ou errado, justo ou injusto e como tais julgamentos são por elas justificados. Segundo esses autores, esse enfoque justifica-se pelo fato de que a justiça é essencial às pessoas dentro dos grupos sociais, uma vez que seus pensamentos, sentimentos e comportamentos são afetados pelos julgamentos que fazem sobre a justiça ou injustiça de suas experiências. Os sentimentos das pessoas sobre justiça constituem base importante para suas reações aos outros.

À luz dos estudos de Deutsch (1985) acerca da fenomenologia da injustiça, através de metodologias diferenciadas, torna-se mais fácil entender o porquê de sua crítica à psicologia social da justiça, tal como desenvolvida pelos teóricos da eqüidade. Segundo ele, a abordagem da justiça tem sido muito psicológica e insuficientemente sócio-psicológica. Isto é, ela focalizou o indivíduo, ao invés da interação social, na qual a justiça emerge. A justiça nasce do conflito: os valores e procedimentos que a definem desenvolvem-se através do processo de barganha pelo qual ela é negociada. Em estudo exploratório em que compara os significados subjetivos da injustiça e da frustração, Deutsch ressalta o caráter social-moral da injustiça, na medida em que são violadas normas sociais (valores, regras, procedimentos) que definem o que é justo e o que é injusto. Assim, a experiência de injustiça é mais do que pessoal, pois afeta o indivíduo também como membro de um grupo social e atinge até os demais membros desse grupo.

Com base em uma série de outras pesquisas sobre o sentido da injustiça, esse mesmo autor destaca dois aspectos principais: a maior sensibilidade à injustiça por parte das vítimas do que dos beneficiários, e que se pode tornar ainda maior se houver apoio social para o reconhecimento da injustiça e opções viáveis de mudança; a importância dos fatores ideológicos na percepção de desigualdades como injustas e na prontidão para apoiar mudanças sociais com o objetivo de eliminar tais desigualdades.

Para Mikula (1986), dificuldades de ordem metodológica e ética justificam, até certo ponto, o conhecimento restrito sobre o que pensam e sentem as pessoas quando se percebem injustamente tratadas por outras. A fim de dar conta dos processos e conteúdos cognitivos e afetivos subjacentes à percepção e reação à injustiça, há que se recorrer aos auto-relatos das pessoas, seja através de relatos retrospectivos de experiências passadas de injustiça, seja através de técnicas passivas de role playing, tendo em vista os impedimentos éticos, ou os cuidados extremos implicados na provocação deliberada de situações de injustiça via método experimental.

A análise comparativa da pesquisa experimental em justiça (Teoria da Eqüidade) com a pesquisa não experimental sobre a fenomenologia da injustiça na vida diária, empreendida por Mikula e colaboradores (Mikula & Schlamberger, 1985; Mikula, 1986; Mikula, Petri, & Tanzer, 1990), revela pontos de contato entre ambas, mas, fundamentalmente, aponta para divergências que merecem reflexão cuidadosa. Tomando como ponto de partida os próprios conteúdos oferecidos pelos participantes de suas pesquisas acerca de suas vivências reais de injustiça, esses autores propõem um sistema de classificação dos tipos de injustiça, analisando ainda as interrelações entre cognições, emoções e ações reportadas pelos sujeitos. A partir desse confronto, concluem pela discrepância óbvia entre os eventos reportados e as situações de injustiça tipicamente consideradas em pesquisas prévias. Em primeiro lugar, as pessoas usam o termo injustiça de forma mais livre do que os psicólogos sociais, em geral, o fazem, ainda que alguns dos eventos descritos como injustos sejam consistentes com a compreensão científica do fenômeno. Em segundo lugar, o tipo de injustiça mais frequentemente relatado foi a acusação injustificada ou atribuição indevida de responsabilidade, seguido de avaliação injusta ou não reconhecimento de performance e de esforço, e como terceira categoria mais frequente, a violação de promessas e acordos. Poucas vezes foram mencionadas questões de pagamento injusto ou distribuição de bens materiais, comumente usadas por pesquisadores da teoria da eqüidade. A grande variedade de eventos descritos como injustos pelos sujeitos, ampliando consideravelmente o significado do termo injustiça, indica a necessidade de aprofundarem-se os estudos da fenomenologia da injustiça para que se possa alcançar uma conceitualização mais refinada dessas experiências.

Por outro lado, as consequências dos eventos injustos especificadas pelos estudos de Mikula e colaboradores (1985, 1990), bem como os dados referentes à mudança, ou não, do julgamento do evento ao longo do tempo, parecem estar em desacordo com a pressuposição da teoria da eqüidade de que as pessoas injustamente tratadas restauram a justiça, comportamental ou cognitivamente. Apenas poucos sujeitos conseguiram restaurar ativamente a justiça, mas a maioria deles não mudou sua percepção do evento, continuando ainda a se sentir injustamente tratada, mesmo tendo decorrido algum tempo do evento.

Os resultados obtidos com relação à impossibilidade ou inutilidade de agir contra o tratamento injusto demonstraram que muitas pessoas tendem a se resignar diante da injustiça; elas não negaram a ocorrência da injustiça e nem sua importância, mas simplesmente não consideraram a hipótese de intervir diretamente contra ela. Esse achado é de vital importância se comparado à inevitabilidade de se fazer algo, real ou psicologicamente, para a restauração da eqüidade, prevista pela teoria. A resignação ao próprio destino parece ser uma alternativa viável de restauração da justiça, além das ações compensatórias ou das distorções cognitivas.

Finalmente, as respostas emocionais à injustiça, indicadas pelos participantes das pesquisas, coincidem com as proposições dos teóricos da eqüidade: raiva, ódio e indignação constituíram as emoções mais frequentemente mencionadas pelas vítimas, ainda que muitas outras emoções, fenomenologicamente diferentes, tenham sido reportadas, como por exemplo, surpresa, desamparo, tristeza.

Em estudo experimental, realizado no Brasil, sobre a percepção e reação à injustiça na perspectiva da vítima, Assmar (1995) extraiu algumas conclusões acerca do fenômeno em pauta. Os resultados relativos à percepção de justiça/injustiça indicaram que as predições da teoria da eqüidade não se aplicam integralmente a sujeitos brasileiros: eles não vivenciaram a violação da eqüidade como injusta, pelo menos com a intensidade que se poderia esperar a partir das proposições básicas dessa teoria. Trata-se, então, de avaliar até que ponto uma teoria concebida em uma cultura pode se aplicar a outra cultura, diferente em suas raízes históricas, com características socioeconômicas e educacionais próprias e com valores e práticas religiosas também distintos. A aparente "dessensibilização" à injustiça, demonstrada pelos sujeitos brasileiros, pode estar indicando que a crença na proporcionalidade talvez não seja tão universal quanto afirmam os teóricos da eqüidade. Em um certo sentido, parece não ter força, na cultura brasileira, a crença em valores que alimentem a confiança em retornos ou resultados recompensadores a todos aqueles que invistam esforço, tenacidade e competência em suas atividade (expectativas inerentes à crença na proporcionalidade). Alternativamente, aqui ganham força os refenciais "levar vantagem em tudo" e a certeza da impunidade aos que assim procedem, pelo menos para os que conseguem ser bem sucedidos. Aliado ao repertório de comportamentos que resultam desse tipo de orientação, somam-se as experiências como espectadores de uma conjuntura sócio-econômica instável e oscilante, que sinaliza, com certa regularidade, uma despreocupação histórica em obedecer a regras convencionadas por planos econômicos: a todo momento, mudam-se os planos, mudam-se as regras. Sob essas perspectivas, não causa estranheza que os critérios de inobservância da eqüidade e de mudança arbitrária de regras, usados no experimento para a definição da injustiça, não tenham causado nos sujeitos o impacto preconizado pela teoria da eqüidade.

Por outro lado, esse mesmo estudo evidenciou a necessidade de incluir a variável "interação social" na teorização sobre justiça, especialmente na reação à injustiça. A presença real do beneficiário de uma injustiça na situação experimental (teoricamente definida como injusta) pode ser decisiva na escolha do tipo de resposta das vítimas: diante de um outro "de carne e osso" (e não fictício, como na pesquisa em eqüidade) modificam e diversificam seus padrões de conduta, revelando maior plasticidade comportamental frente à injustiça do que imaginavam os teóricos da eqüidade. Talvez as alternativas de responder à injustiça, previstas pela teoria, sejam as únicas disponíveis para quem se vê em condições de isolamento no setting experimental. Quando, porém, a vítima se vê diante de um outro, identificado e beneficiado por uma decisão injusta, e diante do próprio vitimador (no caso, o experimentador), pode ser capaz de manter intacta a percepção de injustiça, sem necessariamente ter que desfazê-la. Quaisquer que sejam seus motivos, pode simplesmente aceitar a injustiça, resignar-se a ela ou adiar o confronto com ela. Essas são também evidências, em sujeitos brasileiros, em favor da idéia de que haveria outras condutas restauradoras da justiça, além das preconizadas pelos teóricos em eqüidade.

Tendo em mente os aspectos centrais aqui abordados - a importância da dinâmica da interação social real, a relevância da dimensão cultural no estudo da justiça, a necessidade de relacionar o estudo teórico e empírico da justiça às experiências reais das pessoas que sofrem ou cometem injustiças - propõe-se uma linha de investigação sobre a fenomenologia da injustiça, tal como vivida, sentida, pensada ou imaginada pelas pessoas em sua vida diária.

Este estudo, parte de uma pesquisa mais ampla, propõe-se a identificar e analisar as experiências de injustiça vivenciadas por três grupos sociais: o que pensam, sentem e como reagem as pessoas quando se percebem como injustamente tratadas. Visa-se comparar os resultados obtidos com os da pesquisa prévia em eqüidade e os do estudo sobre a fenomenologia da injustiça na vida diária (Mikula, 1986). De modo específico, hipotetizou-se que haveria diferenças entre os três grupos no que diz respeito aos tipos de evento percebidos como injustos, ao contexto social de ocorrência, à relação de poder entre vítima e vitimador, às emoções suscitadas pela injustiça, bem como às reações e conseqüências para a vítima da situação injusta.

Participantes

Participaram da pesquisa 297 sujeitos, distribuídos em três grupos: 100 estudantes de psicologia, 99 adolescentes (13 a 19 anos) e 98 funcionários de um organização pública.

Como, em geral, os estudos de Mikula (1986) foram realizados com estudantes universitários, a diversificação dos grupos atende ao propósito de comparar as diversas experiências de injustiça sofridas, haja vista a presunção de que a natureza e a tipicidade dessas experiências podem variar de grupo para grupo. O próprio Mikula (1986) discute o caráter restritivo de algumas de suas conclusões por estarem baseadas apenas em relatos de situações injustas vividas por universitários.

Instrumento e Procedimento

A metodologia de coleta de dados utilizada foi a de relato retrospectivo, através da qual foram reportadas experiências passadas de injustiça. O questionário, baseado em Mikula (1986), constou de seis perguntas. Na primeira, pedia-se ao sujeito que descrevesse um episódio injusto de sua vida, no qual se tivesse sentido uma vítima da situação, que relatasse como ocorreu e o que exatamente o tinha feito sentir-se injustiçado. Seguiam-se perguntas sobre quando e onde ocorreu, o tipo de relacionamento com o causador da injustiça, o que pensou e sentiu diante do evento, reações e conseqüências da injustiça. A aplicação do instrumento foi individual, com tempo livre, cabendo ao próprio sujeito preencher o questionário.

Os relatos foram analisados com base no sistema de codificação proposto por Mikula (1986), adaptado e ampliado para dar conta das especificidades dos conteúdos oferecidos pelos sujeitos brasileiros. A classificação dos dados nas diferentes categorias e subcategorias foi realizada por três juízes, e os casos que suscitaram divergências foram reanalisados para uma decisão final consensual. Cumpre assinalar que boa parte dos sujeitos, ao descreverem o episódio injusto, não se limitaram a indicar apenas um tipo de emoção ou de reação diante da situação. A fim de preservar a fidelidade dos relatos e de não empobrecer seus conteúdos, foram classificadas todas as respostas dos sujeitos, quer se enquadrassem em uma mesma categoria, quer, em categorias diferentes. Nesses casos, portanto, as categorias de análise não são mutuamente excludentes.

A análise preliminar dos relatos ensejou a sistematização dos dados em cinco categorias gerais: eventos provocadores de injustiça, contextos sociais de ocorrência da injustiça, relação de poder entre vítima e vitimador, emoções suscitadas pela experiência vivida e reações e conseqüências da injustiça.

Os resultados referentes aos eventos provocadores de injustiça demonstraram que os quatro tipos de evento mais freqüentemente reportados coincidem com os obtidos por Mikula (1986), havendo apenas uma inversão na terceira e quarta posições. Assim, a maior freqüência de experiências de injustiça é de ‘acusação ou censura injustificada’, tanto no grupo total (33,33%) quanto em cada um dos subgrupos. Seguem-se ‘avaliação injusta ou não reconhecimento de esforço ou de desempenho’ (14,47%), mais citada por estudantes, universitários ou adolescentes, entre os quais são mais típicas essas experiências; ‘punição injustificada’ (10,77%), com maior freqüência entre adolescentes, e ‘traição de confiança’ ( 9,76%), igualmente enfatizada pelos dois grupos de adultos. Esses resultados reforçam as conclusões de Mikula quanto à discrepância em relação ao tipo de injustiça considerado na pesquisa prévia em equidade cujas situações de injustiça referiam-se basicamente a pagamentos injustos ou distribuição ‘inequitativa’ de recursos materiais. A destacar ‘eventos traumáticos’ como a quinta categoria de injustiça mais frequente (6,73%), não mencionada nos estudos de Mikula, mas que parece traduzir os efeitos da violência urbana brasileira sobre os indivíduos. ‘Embargo de direitos’ e ‘violação de promessas e acordos’ (ambas com 5,72%) foram citados principalmente por trabalhadores e estudantes universitários. As demais categorias não tiveram expressividade numérica no conjunto de participantes: ‘abuso de poder e status’, ‘fraude ou engano’, ‘não admissão do erro pelo vitimador’, ‘qualidade do tratamento interacional’, ‘exigências descabidas’ e ‘intromissão indevida’ foram citados por menos de 4% dos sujeitos.

Os seis tipos de eventos provocadores de injustiça, de maior incidência no grupo total, foram submetidos à análise estatística, tendo sido apoiada a hipótese de que a natureza das experiências de injustiça difere nos três grupos estudados (x² = 24,64; gl 10; p< 0,01).

Quanto aos contextos sociais em que ocorreram as injustiças, a Tabela 1 demonstra que os mais freqüentes correspondem às áreas mais essenciais da vida, não havendo diferenças acentuadas entre eles, quando se leva em conta o grupo total: local de trabalho aparece com o mais alto percentual (23,90%), vindo logo a seguir família e escola (ambos com 21,21%) e relações entre amigos ou namorados (19,19%).

Tabela 1
-

Alguns aspectos chamam atenção na Tabela 1. Em primeiro lugar, a relativa estabilidade das referências à família, nos três grupos, resultado que não surpreende por se tratar a família do vínculo sócio-afetivo mais básico e duradouro da vida. Em segundo lugar, a inversão entre as freqüências máximas e mínimas dos contextos ‘local de trabalho’ e ‘escola’, nos grupos de trabalhadores e adolescentes: apenas um caso de injustiça no trabalho foi citado entre os adolescentes, mas são maioria as injustiças na escola (40 casos). Já entre os trabalhadores, apenas três casos referiram-se à injustiça na escola e mais da metade deles descreveram injustiças no trabalho. Destaque-se ainda que, por ser uma vivência tipicamente relevante de adolescentes, é nessa faixa etária que se verifica a maior freqüência de injustiças entre amigos ou namorados (26 casos), quase o dobro do obtido entre os trabalhadores. Vale assinalar também a ocorrência de relatos de eventos injustos em lugar público (11,11%), relacionada aos eventos traumáticos, já assinalados anteriormente.

Os dados relativos aos sete tipos de contexto social foram submetidos à análise estatística, tendo sido constatado, conforme o esperado, que os contextos sociais de ocorrência de injustiça são significativamente diferentes entre os grupos (c²= 89,19; gl= 12; p<0,001).

A análise dos dados referentes às relações de poder entre vítima e vitimador revelou que trabalhadores, estudantes universitários e adolescentes não diferem entre si (

A Tabela 2 reúne as respostas dos sujeitos em relação às emoções suscitadas pela vivência de injustiça, agrupadas em subcategorias que, presume-se, refiram-se a emoções qualitativamente diferentes.

Tabela 2

As respostas emocionais do tipo ‘raiva, indignação, revolta’ foram as mais freqüentes, tanto no grupo total (44,87%), quanto nos três subgrupos (adolescentes, com 52,38%, trabalhadores, com 42,73% e estudantes de psicologia, com 40,34%. A segunda subcategoria mais citada é a representada por emoções mais passivas, tristeza e mágoa, quer no grupo total (21,99%), quer nos subgrupos, estudantes de psicologia (24,37%), trabalhadores (23,08%) e adolescentes (18,10%). A ressaltar ainda o aparecimento da emoção ‘medo’, não mencionado por pesquisas prévias, mas que se justifica em função da percepção de eventos traumáticos (assalto, assédio sexual) como injustos.

Com o objetivo de se comparar os subgrupos em relação às emoções suscitadas pela experiência de injustiça, foi utilizado o teste de comparação entre proporções entre duas amostras independentes (Viera, 1994). Nesse sentido, e considerando-se apenas as quatro subcategorias de emoções com freqüências mais expressivas, os grupos foram comparados dois a dois em cada uma delas. Do total de 12 comparações, ocorreram diferenças significativas em cinco delas. Os adolescentes diferiram significativamente dos trabalhadores (z = -2,5; p<0,05) e dos estudantes de psicologia (z = -3; p<0,05) na subcategoria mais frequentemente citada, raiva, indignação e revolta, bem como na subcategoria de emoções do tipo perplexidade e surpresa, a segunda mais freqüente (z = 5; p<0,05 e z = 5; p<0,05, respectivamente). Enquanto, no primeiro caso, os adolescentes registraram a freqüência mais alta, no segundo, ocorreu o inverso, já que nenhum deles, curiosamente, indicou ter sentido surpresa ou perplexidade. No que se refere às emoções mais passivas, o único resultado significativo ficou por conta da diferença entre proporções nos subgrupos de trabalhadores e estudantes de psicologia na subcategoria desamparo e desespero diante da injustiça que lhes foi infligida (z = 2, p<0,05).

Quanto às reações e conseqüências da injustiça, o exame da Tabela 3 permite constatar que a subcategoria ‘não fazer nada’, ‘aceitar ou resignar-se à injustiça’ alcançou o percentual mais alto tanto no conjunto dos participantes (34,40%), quanto nos três subgrupos, observando-se, porém, uma tendência decrescente desse resultado na medida em que se passa do grupo de adolescentes (39,71%) para o grupo dos estudantes de psicologia (37,78%) e para o grupo de trabalhadores (25,90%). De qualquer forma, essas são evidências empíricas em desacordo com as predições da Teoria da Equidade de que as pessoas buscam sempre restaurar a justiça, cognitiva ou comportamentalmente.

Tabela 3

Considerando-se que as três primeiras subcategorias correspondem a reações mais relacionadas à intervenção na situação (ainda que fracassadas, ou apenas consideradas) e as três últimas referem-se a reações mais passivas, podem-se identificar alguns padrões de resultados: entre os trabalhadores, a tendência é de percentuais mais altos nas subcategorias de intervenção, e mais baixos nas de maior passividade (62,59% x 37,41%); já entre os adolescentes, inverte-se o padrão, concentrando-se os percentuais mais altos nas reações mais passivas, e os mais baixos, nas reações de intervenção na situação (40,44% x 59,56%). Quanto aos universitários, houve um equilíbrio entre os dois conjuntos de respostas, não se podendo concluir por uma ou outra tendência (51,85% x 48,15%).

O teste de comparação entre proporções de duas amostras independentes (Viera, 1994) foi também utilizado para confrontar os grupos, dois a dois, no que se refere à freqüência de respostas à injustiça em cada uma das cinco subcategorias mais citadas, bem como nas subcategorias agrupadas. A Tabela 4 resume os resultados.

Tabela 4
-

Conforme se pode observar na Tabela 4, quando se agrupam as subcategorias em função de se tratarem de respostas ativas diante da injustiça, o número de trabalhadores que intervém diretamente na situação é significativamente maior do que o de estudantes de psicologia (z = 2,2; p<0,05) e o de adolescentes (z = 4,4; p<0,05), e o número de universitários é significativamente maior do que o de adolescentes (z = 2,2; p<0,05). Quando se trata, porém, de reações de passividade, inverte-se a tendência, com os adolescentes aparecendo com freqüência significativamente maior do que os trabalhadores (z = -4,4; p<0,05) e os universitários (z = -2,2; p<0,05).

Pode-se verificar também que em oito das quinze comparações realizadas, tomando-se cada subcategoria de reação em separado, ocorreram diferenças significativas entre as proporções de sujeitos, notadamente quando se comparam trabalhadores com adolescentes. Destaque-se ainda que, nesses casos, embora sejam diferentes as formas de responder à injustiça, as tendências de maior ou menor passividade diante da injustiça seguem os padrões gerais acima assinalados.

Discussão e Conclusões

A análise dos relatos retrospectivos sobre as experiências de injustiça vivenciadas pelos três grupos sociais estudados propicia algumas informações úteis à comparação com a pesquisa prévia em eqüidade e com os trabalhos de Mikula e seus colaboradores acerca da fenomenologia da injustiça na vida diária.

Entre brasileiros, verifica-se também a grande variedade de eventos descritos como injustos pelos participantes. Injustiça é, portanto, um conceito mais amplo do que os pesquisadores em eqüidade supõem, confirmando-se os pontos de vista de Mikula (1986), de que as pessoas não aplicam o termo injustiça apenas a situações de violação da proporcionalidade. Nesse sentido, os resultados deste estudo replicam os achados de Mikula (1986) com relação à grande incidência de associações entre injustiça e acusação injustificada ou atribuição indevida de responsabilidade, e, portanto, a não exclusiva conexão entre injustiça e ausência de eqüidade.

Se, como para esse autor, a Psicologia Social vem negligenciando a definição de critérios precisos que distingam julgamentos de justiça de outros tipos de julgamentos morais, a concordância no uso do termo ‘injustiça’ entre os participantes de pesquisas e a definição científica , embora bastante elucidativa, certamente não será o critério mais apropriado.

Constata-se também a especificidade de certos eventos em função do tipo de grupo social considerado. Amplia-se, por um lado, o significado do termo injustiça, mas, por outro, relativiza-se a concepção de injustiça, já que um tipo de injustiça pode ser visto como mais saliente e relevante para um grupo do que para outro.

Os dados obtidos com relação à inevitabilidade ou inutilidade de agir contra o tratamento injusto demonstram que muitas pessoas tendem a se resignar diante da injustiça. Elas não negam a ocorrência da injustiça, nem sua importância, nem sequer as consequências negativas que se seguem, mas, simplesmente, não consideram a hipótese de intervir diretamente na situação. Esse achado é de vital importância se confrontado com as proposições da Teoria da Eqüidade, segundo as quais as pessoas sempre buscam restabelecer a justiça, real ou psicologicamente. A passividade diante da injustiça é um dado marcante neste estudo: poderia estar aí uma característica mais típica da cultura brasileira? No entanto, se como Mikula (1986) afirma, por conta de resultados empíricos com estudantes austríacos, que a resignação ao próprio destino também pode ser vista como uma alternativa viável de restauração da justiça, fica em aberto uma indagação, que somente estudos transculturais podem tentar responder.

A grande incidência de respostas emocionais de raiva e ódio constitui apoio empírico adicional à predição da Teoria da Eqüidade quanto ao distress da vítima. No entanto, a ocorrência consistente de outras emoções (tristeza, mágoa, surpresa, perplexidade) sugere a necessidade de também considerá-las na conceitualização das experiências de injustiça. À luz dos dados de Mikula e dos deste estudo, conclui-se que a percepção de injustiça pode também gerar emoções mais passivas, o que, de certo modo, permite explicar tantas reações de resignação à injustiça sofrida. Da mesma forma, emoções mais fortes (raiva) explicariam as tentativas, ainda que fracassadas ou apenas consideradas, de modificar a injustiça, através de atos direcionados ao vitimador ou à intervenção direta na situação.

Alguns achados deste estudo coincidem com os de Mikula e seus colaboradores (1985, 1990), ao mesmo tempo em que, como os de Mikula (1986), contestam algumas das proposições básicas da Teoria da Eqüidade. Podem-se interpretar essas divergências como uma restrição à aplicabilidade da Teoria da Eqüidade em culturas diferentes daquela em que foi concebida? Ou se trata, na realidade, de avaliar em que medida a compreensão do senso comum acerca da injustiça pode contribuir para a reelaboração ou refinamento da compreensão científica do fenômeno?

Finalmente, conclui-se pela necessidade de aprofundar os estudos sobre as experiências reais de injustiça, pois seus resultados poderão vir a contribuir para o desenvolvimento da teorização sobre justiça e o melhor entendimento de sua fenomenologia. No entanto, é indispensável que se considerem diferentes grupos sociais, porquanto os resultados deste estudo, ainda que preliminares, trazem evidências empíricas no sentido de demonstrar que alguns aspectos diretamente relacionados à vivência da injustiça - tipo de evento percebido como injusto, contexto de sua ocorrência, determinadas respostas emocionais e comportamentais - podem diferir de grupo para grupo, da mesma forma que diferem suas experiências sociais, suas expectativas diante da vida, seus julgamentos e avaliações dos eventos com que se defrontam no dia-a-dia. O conhecimento dessas diferenças, assim como o das semelhanças, pode ser útil à teoria e pesquisa em justiça.

Recebido em 17.01.97

Revisado em 22.02.97

Aceito em 28.07.97

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    Endereço para correspondência: Rua Antônio Basílio, 345, ap. 201 , 20511-190, Rio de Janeiro, RJ - E-mail:
    2
    Os sujeitos podiam relatar várias emoções, algumas vezes da mesma categoria, outras vezes de categorias diferentes
    3
    Os sujeitos podiam relatar, naturalmente, várias reações ou conseqüências da injustiça sofrida
    4
    Grupo 1 - trabalhadores; Grupo 2 - estudantes de psicologia; Grupo 3 - adolescentes
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 1999
    • Data do Fascículo
      1997

    Histórico

    • Aceito
      28 Jul 1997
    • Revisado
      22 Fev 1997
    • Recebido
      17 Jan 1997
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