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O futuro professor como sujeito em formação: reflexões sobre a significação da atividade de ensino1 1 Editor responsável: Carlos Miguel da Silva Ribeiro. https://orcid.org/0000-0003-3505-4431 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Yasmin Fonseca (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

Resumo

Este artigo, que parte de uma pesquisa de doutorado voltada à formação de professores que ensinam matemática, intenciona analisar como futuros professores se percebem como sujeitos que se encontram em formação, no movimento de significação da atividade docente. Fundamentados na Teoria Histórico-Cultural, apresentamos a organização de um experimento formativo com acadêmicos de Licenciatura em Matemática. A análise dos dados da pesquisa, através dos três episódios elencados, possibilitou evidenciar alguns aspectos, como as mudanças dos motivos para tornarem-se professores de matemática; a compreensão da formação docente como um processo contínuo; e as mudanças de qualidade da atividade de ensino, que permitiram aos futuros professores se perceberem como sujeitos que se encontram em formação.

Palavras-chave
formação de professores que ensinam matemática; educação matemática; atividade de ensino

Abstract

This article discusses a doctoral research on the training of Mathematics teachers, analyzing how future teachers perceive themselves as subjects under training within the signification movement of the teaching activity. Grounded on Cultural-Historical Theory, it describes a formative experiment conducted with undergraduates of a Mathematics Teaching degree. From three episodes analyzed, the results highlight aspects that allowed future teachers to perceive themselves as subjects under training, such as changes in the motivations for becoming Mathematics teachers, understanding of teacher education as an ongoing process, and changes in the quality of teaching activity.

Keywords
mathematics teacher training; mathematics education; teaching activity

Apontamentos iniciais

Historicamente, a formação inicial de professores acumula indicadores considerados insatisfatórios em decorrência de diversos fatores, entre os quais se encontram as formações aligeiradas, muitas vezes frágeis em aspectos teóricos e práticos, oriundas de cursos nos quais didática e metodologias não passam de discursos técnicos acerca do ensinar (Pimenta & Lima, 2012Pimenta, S. G., & Lima, M. S. L. (2012). Estágio e docência. Cortez., p. 6), gerando distanciamento entre as práticas de formação e as práticas passíveis de realização na educação básica (Fiorentini et al., 2002Fiorentini, D., Nacarato, A. M., Ferreira, A. C., Lopes, C. A. E., Freitas, M. T. M., & Miskulin, R. G. S. (2002). Formação de professores que ensinam matemática: Um balanço de 25 anos da pesquisa brasileira. Educação em Revista, (36), 137-160.; Gatti, 2010Gatti, B. (2010). Formação de professores no Brasil: Características e problemas. Educação e Sociedade, 31 (113), 1355-1379.). Muitos cursos de Licenciatura em Matemática vêm alterando suas estruturas curriculares nos últimos anos no Brasil, incorporando práticas pedagógicas e estágios nos semestres iniciais, assim como vêm participando de programas que trazem subsídios para a formação inicial como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid). Sabemos do impacto dessas mudanças, especialmente em relação ao Pibid, implementado há mais de 10 anos, através de pesquisas como de Borowsky (2017)Borowsky, H. G. (2017). Formação docente no Clube de Matemática: O projeto orientador de atividade [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Maria]. e Fraga (2017)Fraga, L. P. (2017). A organização do ensino como desencadeadora da atividade de iniciação à docência: um estudo no âmbito do PIBID-Interdisciplinar Educação Matemática [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Maria]. Repositório UFSM. https://repositorio.ufsm.br/handle/1/14117
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, mas a discussão ainda é relevante, tendo em vista o longo caminho a ser percorrido na melhoria da qualidade da formação de professores no Brasil.

Com a intenção de contribuir com as discussões acerca dessas temáticas e de outros aspectos que permeiam a formação de professores que ensinam matemática, fundamentadas pela Teoria Histórico-Cultural, desenvolvemos uma pesquisa de doutorado em Educação. Nosso objetivo foi investigar o processo de significação da atividade de ensino do futuro professor de matemática no movimento de aprendizagem da docência em um espaço formativo para o ensino de medidas. Especificamente neste artigo, cujos dados compõem a referida tese, visamos analisar como futuros professores se percebem como sujeitos que se encontram em formação, no movimento de significação da atividade docente. Intencionamos analisar momentos nos quais os acadêmicos participantes evidenciem a apropriação de elementos inerentes à prática docente, que, de modo geral, constituem o processo de se tornarem professores.

Primeiramente, no intuito de situar o leitor no contexto abordado, explicitaremos alguns fundamentos teóricos que nortearam a investigação. Em seguida, apresentaremos a organização metodológica do trabalho e três episódios extraídos do experimento formativo desenvolvido durante a pesquisa. Finalizando, delinearemos algumas considerações acerca dos indicativos revelados nos episódios.

Alguns pressupostos teóricos: contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a formação de professores

A base teórica da pesquisa que originou esse artigo é a Teoria Histórico-Cultural, elaborada por Lev Semenovich Vigotski4 4 Existem distintas grafias para Vigotski em português. Neste artigo, optamos por utilizar “Vigotski”, com exceção de citações literais e referências de outros autores que apresentem de forma diferente, nas quais a forma com que seu nome aparece da obra citada será mantida. (1896-1934) e seus seguidores. Os trabalhos e as pesquisas de autores pautados na perspectiva histórico-cultural nos interessam, em especial, porque entendem o ser humano a partir do processo de desenvolvimento das suas funções psicológicas superiores por meio do seu processo de aprendizagem e apropriação da cultura, assumindo a educação como fundamental no processo de humanização. Nessa perspectiva, discutiremos alguns elementos emergentes de suas obras, no intuito de que possam contribuir para o acompanhamento das reflexões acerca dos dados do nosso trabalho.

As aquisições das aptidões humanas desenvolvidas ao longo do tempo se encontram em fenômenos objetivos da cultura material e espiritual, como destaca Leontiev (1978)Leontiev, A. N. (1978). O desenvolvimento do psiquismo. Horizonte Universitário.. Para se apropriar desses resultados,

a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo de educação.

Nessa direção, acontece o processo de humanização, definido por Saviani (2000)Saviani, D. (2000). Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações. Autores Associados. como “… o processo através do qual o homem produz a sua existência no tempo” (p. 96), que acontece graças à “produção e reprodução em cada indivíduo particular das máximas capacidades já conquistadas pelo gênero humano” (Martins, 2007Martins, L. M. (2007). A formação social da personalidade do professor: Um enfoque vigotskiano. Autores Associados., pp. 15-16). Esse processo é desenvolvido a partir da apropriação de toda produção e expressão cultural do trabalho humano; suas necessidades ultrapassam a simples existência e sobrevivência biológica, garantindo uma existência cultural indissociada da educação escolar.

À mesma medida que a humanidade evolui e progride, o acúmulo do conhecimento historicamente produzido aumenta, e, com isso, a tarefa do processo educativo se torna cada vez mais complexa. Logo, a educação escolar, intencionalmente organizada pelo professor, precisa atender às especificidades dos processos de objetivação dos conhecimentos científicos e à apropriação de significados por parte dos alunos.

A escola se constitui como um espaço que oferece elementos favoráveis ao desenvolvimento humano, ao mesmo tempo em que participa da construção desses elementos, ou seja, ela tem papel central no desenvolvimento dos alunos. É, ao criar e propiciar condições para que os estudantes se apropriem dos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade por meio de mediações planejadas, organizadas e intencionais, que pode ser promovido o desenvolvimento. Tal como nos aponta Saviani (2000)Saviani, D. (2000). Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações. Autores Associados., a existência da escola está justamente direcionada a “propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber” (p. 23).

Em vista disso, a educação escolar se concretiza como um processo privilegiado de socialização de conhecimentos historicamente sistematizados, em que o professor desempenha a mediação necessária entre o aluno e o conhecimento. Em consequência, o ensino se configura como mediador entre aprendizagem e desenvolvimento, a partir da formação de conceitos e do aparecimento das funções psicológicas superiores. Nessa perspectiva, destacamos a importância da organização de espaços em que o futuro professor tenha oportunidade de compreender tais questões, determinantes em sua prática.

Muitos trabalhos na área da educação matemática vêm discutindo acerca da formação de professores de matemática, abordando trajetórias de formação e de profissionalização docente, assim como sobre identidade do professor de matemática e identidade profissional. No nosso caso, amparadas no referencial teórico explicitado, optamos por trazer outro enfoque, pautado nos princípios orientadores da significação da atividade de ensino.

Nesse contexto, nossa preocupação esteve voltada à formação do professor que ensina matemática, que, assim como professores de outras áreas, se desenvolve e se constitui como docente por meio do seu trabalho. Ratificamos Moretti (2007)Moretti, V. D. (2007). Professores de matemática em atividade de ensino: Uma perspectiva histórico-cultural para a formação docente [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital USP. https://doi.org/10.11606/T.48.2007.tde-05102007-153534
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, quando aponta, dentro da perspectiva histórico-cultural, que é pelo trabalho que o homem se constitui enquanto tal, então, é por meio do trabalho que o professor se constitui como professor, especificamente pelo seu trabalho – a atividade de ensino.

O trabalho docente, configurado como prática social, é um movimento intencional de troca de conhecimentos e relações que deve ser visto como elemento imprescindível no processo de humanização de professores e alunos. Assim, entendermos a necessidade de que a formação inicial se constitua de tal forma que os futuros professores tenham possibilidades de se apropriar de significados sociais definidos como essenciais para o seu trabalho. Um significado social importante na atividade de ensino do professor é sua função nessa unidade dialética, que envolve ensino e aprendizagem. Suas ações atingem essa finalidade de acordo com o modo como organiza o ensino, a partir do momento em que sua atividade de ensino, com todos os elementos que a compõem, se configura como atividade de aprendizagem para o aluno.

A desarticulação, que muitas vezes ocorre nos cursos de licenciatura entre conhecimentos disciplinares e pedagógicos, tem sido um problema frequente na organização de currículos para a formação inicial de professores, conforme aponta Libâneo (2014)Libâneo, J. C. (2014). A integração entre o conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico na formação de professores e a contribuição da teoria do ensino de Vasili Davidov. In J. C. Libâneo, Adeus professor, adeus professora (pp. 50-70). Cortez.:

Na concepção tradicional de ensino, o professor é visto como alguém que transmite conhecimentos com base na lógica da disciplina ensinada, sendo muito comum a afirmação de que para ensinar uma disciplina basta dominar seu conteúdo. O conhecimento pedagógico é entendido, neste caso, meramente como repertório de técnicas de ensino. Desse modo, boa parte dos professores ignora o fato de que o conhecimento profissional de quem se dedica ao magistério compõe-se, ao menos, de dois requisitos, a do domínio do conteúdo de uma disciplina e a do domínio de saberes e habilidades para ensinar esse conteúdo. (pp. 54-55)

Quando ignoram esses dois aspectos, os professores correm risco de se caracterizarem como especialistas da disciplina, ou ainda de realizarem suas ações amparadas no senso comum. Tencionamos superar essa visão, tendo em vista que o ingresso na escola exige muito mais do que o previsto inicialmente, como nos aponta Lopes (2009)Lopes, A. R. L. V. (2009). Aprendizagem da docência em matemática: O Clube de Matemática como espaço de formação inicial de professores. Ed. Universidade de Passo Fundo.. Para exercer sua profissão, o professor precisa de

conhecimentos que ultrapassem os relacionados à sua disciplina específica, pois a opção por ser professor deve conduzir a mais do que um simples exercício de uma profissão; deve levar a um engajamento social e político ao “abraçar de uma causa”: a educação. (p. 55)

Esse comprometimento pode emergir e se manifestar na atividade de formação através das ações que a conduzem. As necessidades individuais dos futuros professores, quando compartilhadas, compõem o processo formativo, de modo que cada ação efetivada encaminha a satisfação do objetivo comum do grupo: apropriar-se dos conhecimentos necessários ao trabalho do professor.

Acreditamos em processos formativos que valorizem e promovam interações sociais, o estudo e a problematização de múltiplas atividades de ensino e, no nosso caso, da aprendizagem de matemática. Além disso, é fundamental compreender a matemática como objeto de ensino e aprendizagem e como produto cultural que compreende epistemologia, história, necessidades de criação, transformação e apropriação. O ensino da matemática, então, não se restringe a ensinar uma matemática qualquer, envolve também estabelecer relações com esse conhecimento e o modo de organizar o seu ensino.

Se a atividade de ensino é complexa e ser professor na situação histórico-social atual é um desafio, o processo de formação de um professor não tem como ser simples ou fácil.

A dinâmica do mundo impõe à escola um movimento que deve ser acompanhado pelo professor, tanto no âmbito das relações pessoais com os alunos quanto na evolução do conhecimento. Daí a necessidade de se pensar em formar um profissional de maneira que esteja preparado não para cada um dos acontecimentos isolados que enfrentará no dia a dia, mas para poder acompanhar tal processo.

(Lopes, 2009Lopes, A. R. L. V. (2009). Aprendizagem da docência em matemática: O Clube de Matemática como espaço de formação inicial de professores. Ed. Universidade de Passo Fundo., p. 55)

O estágio é um espaço importante na formação do professor de matemática, especialmente por proporcionar melhor compreensão do processo de ensino e aprendizagem de matemática. Nessa perspectiva, destacamos um artigo que nos auxilia a entender as relações estabelecidas neste espaço. Na pesquisa oriunda de um projeto de mapeamento e estado da arte da pesquisa brasileira sobre o professor que ensina matemática, Lopes et al. (2017)Lopes, A. R. L. V., Paiva, M. A. V., Pereira, P. S., Pozebon, S., & Cedro, W. L. (2017). Estágio curricular supervisionado nas licenciaturas em matemática: reflexões sobre as pesquisas brasileiras. Zetetiké, 25(1), 75-93. mapeiam, descrevem e analisam pesquisas voltadas ao Estágio Curricular Supervisionado no que tange aos seus objetivos, principais resultados e conclusões. A partir da análise de 20 trabalhos que versavam sobre a temática (datados do período de 2001 a 2012), os autores destacam o aumento das pesquisas sobre o tema, bem como a compreensão do estágio enquanto etapa que não se restringe à finalização do curso, mas que atua como articulador entre a escola de educação básica e a universidade, sendo um espaço primordial para entender a complexidade da profissão e constituição da identidade docente.

Compreendendo essas questões, no contexto do nosso trabalho, buscamos organizar situações em que os sujeitos tivessem a possibilidade de se apropriar de conhecimentos que podem ser considerados essenciais a sua formação como professores. Nossa intenção é que, de modo geral, essas ações apresentem elementos relacionados ao significado do trabalho docente e à possibilidade de constituir-se como professor a partir de sua própria organização.

Percursos metodológicos da pesquisa

No intuito de compreender o objeto em estudo evidenciando indicativos do processo de significação da atividade de ensino pelos futuros professores, organizamos a proposta metodológica da pesquisa na perspectiva de um experimento formativo. O termo “experimento” aparece nos trabalhos de Vigotski (2003)Vigotski, L. S. (2003). Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Ícone. para indicar suas pesquisas. Para o autor, a análise experimental trazia a possibilidade de revelar a essência do processo de formação de conceitos, especificamente a partir de uma investigação realizada em etapas que contemplam o movimento do pensamento do sujeito. Apoiando-se nessa proposta, Libâneo (2007)Libâneo, J. C. (2007). Experimento didático como procedimento de investigação em sala de aula [texto não publicado]. Pontifícia Universidade Católica de Goiás. apresenta o experimento formativo como uma intervenção pedagógica por meio de uma determinada metodologia de ensino, que visa provocar mudanças e que tem como base a atuação do ensino no processo de aprendizagem.

Nosso experimento formativo foi desenvolvido em 16 encontros realizados em um semestre letivo, com a participação de 10 acadêmicos do curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal de Santa Maria, na disciplina de Estágio Supervisionado de Matemática no ensino fundamental. Contando com a colaboração das duas professoras formadoras da disciplina, esse acompanhamento envolveu diferentes ações: estudos e discussões relativas à ementa da disciplina, leituras e discussões teóricas sobre a aprendizagem da docência do professor de matemática, assim como organização, planejamento e desenvolvimento de atividades de ensino sobre o conteúdo de medidas com os futuros professores envolvidos. Salientamos que essas ações coincidiam com o período em que esses estudantes desencadeavam sua regência em turmas dos anos finais do ensino fundamental.

Abordamos distintas temáticas durante os 16 encontros formativos, das quais destacamos as seguintes: aprendizagem da docência; estágio como espaço de aprendizagem da docência, organização do ensino; matemática como produto cultural e humano; conhecimentos específicos e pedagógicos; objeto de ensino do professor; situações desencadeadoras de aprendizagem; conhecimento empírico e teórico; movimento lógico-histórico de constituição do conhecimento matemático; e planejamento e avaliação no processo de ensino e aprendizagem.

Na realização deste trabalho, o estágio supervisionado no curso de Licenciatura em Matemática dessa instituição era realizado no último ano do curso após o cumprimento de todos os pré-requisitos estabelecidos na matriz curricular, sendo, no penúltimo semestre, o estágio referente ao ensino fundamental e, no último semestre, o referente ao ensino médio. Para realizar a matrícula nos estágios, os acadêmicos já deveriam ter cursado disciplinas de caráter pedagógico, disciplinar e didático, tais como Didática da Matemática I e II, Educação Matemática I e II e Laboratório de Ensino de Matemática, nas quais já tiveram a oportunidade de realizar algumas atividades de observação e inserções pontuais na escola.

Como opções para registrar os momentos da pesquisa e evidenciar a expressão e a manifestação de aprendizagens e mudanças de qualidade no processo formativo dos futuros professores envolvidos, consideramos observação, diários de campo da pesquisadora, áudio e videogravações. Após a produção e o registro dos dados, com a intenção de organizar, sistematizar, interpretar e analisar os dados e as informações obtidas, utilizamos episódios (Moura, 2004Moura, M. O. (2004). Pesquisa colaborativa: Um foco na ação formadora. In R. L. L. Barbosa (Org.), Trajetórias e perspectivas da formação de educadores (pp. 257-284). Editora Unesp.) e unidades de análise (Vigotski, 2000Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. Martins Fontes.).

Em relação aos episódios, consideramos que podem ser reveladores da natureza e da qualidade das ações. Eles se constituem por “frases escritas ou faladas, gestos e ações que constituem cenas que podem revelar interdependência entre os elementos de uma ação formadora” (Moura, 2004Moura, M. O. (2004). Pesquisa colaborativa: Um foco na ação formadora. In R. L. L. Barbosa (Org.), Trajetórias e perspectivas da formação de educadores (pp. 257-284). Editora Unesp., p. 276), assim como podem ser definidos como momentos em que se evidenciam situações de conflito que podem levar à apropriação de um novo conhecimento, à aprendizagem de um novo conceito.

Os episódios selecionados evidenciaram, por sua vez, as unidades de análise. Nós as entendemos como unidades lógicas do pensamento científico-teórico, como meio de apreensão do movimento de um conceito a outro e um modo de interpretar com maior profundidade o objeto de estudo. Ao utilizarmos unidades de análise, pautamo-nos no método desenvolvido por Vigotski (2000)Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. Martins Fontes. em suas investigações, na qual a

análise decompõe em unidades a totalidade complexa. Subentendemos por unidade um produto de análise que, diferente dos elementos, possui todas as propriedades que são inerentes ao todo e, concomitantemente, são partes vivas e indecomponíveis dessa unidade. (p. 8)

Nessa direção, a fim de atender o objetivo da pesquisa, o experimento formativo foi organizado de forma a viabilizar condições para que os acadêmicos se apropriassem de conhecimentos relevantes para desenvolver a atividade de ensino, compreendendo-a como a atividade principal do professor, a partir de um espaço compartilhado de aprendizagem da docência.

Reflexões com futuros professores de matemática: percebendo-se como sujeitos em formação

A análise dos dados na pesquisa de doutorado permitiu sintetizá-los em quatro unidades de análise, a saber: (i) o futuro professor como sujeito em formação; (ii) a escola como lugar social do trabalho do professor; (iii) o conhecimento matemático como orientador da organização do ensino; e (iv) o compartilhamento como promotor da mudança de qualidade das ações. Estas unidades convergem com as reflexões apontadas por Lopes (2018)Lopes, A. R. L. V. (2018). Processos formativos e a aprendizagem da docência: alguns princípios orientadores. In M. T. C. Trevisol, N. Feldkercher, & D. P. Pensin (Orgs.), Diálogos sobre formação docente e práticas de ensino. (pp. 107-134). Mercado de Letras., que destaca alguns princípios orientadores e fundamentais para a discussão sobre formação de professores. Esses princípios partem de resultados de estudos do GEPEMat5 5 Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática (GEPEMat/UFSM). que se voltam aos processos de ensino e aprendizagem de matemática escolar.

Especificamente neste artigo, apresentaremos a unidade “o professor como sujeito em formação”, cujo foco se centra na análise do modo como futuros professores se percebem como sujeitos que se encontram em formação. Para isso, os três episódios selecionados contemplam momentos nos quais as falas dos acadêmicos evidenciam a apropriação de elementos inerentes à prática docente, que, por conseguinte, constituem o processo de tornarem-se professores.

Ao abordarmos o papel em que se encontra o futuro professor no contexto da pesquisa que originou esse artigo, faz-se importante compreender os motivos – na perspectiva de Leontiev (1983)Leontiev, A. N. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Pueblo y Educación. – que os sujeitos manifestaram em relação à escolha por cursar Licenciatura em Matemática. Essa compreensão ocorreu durante manifestações dos acadêmicos nos encontros, contudo, apresentamos, nesse momento, apenas um excerto no qual ficam evidentes alguns indicativos a partir de reflexões oriundas da discussão de um questionário realizado com os estagiários no segundo encontro do experimento formativo.

Episódio 1: Caminhos para a licenciatura: expectativas iniciais com o curso de matemática

No processo de conhecermos os acadêmicos, realizamos um questionário e, nesse episódio, trazemos as respostas dos sujeitos para a seguinte questão: o curso de Licenciatura em Matemática correspondeu às expectativas iniciais? Comente um pouco sobre suas experiências na trajetória do curso. Além de registrar de forma escrita, foi oportunizado um momento em que todos puderam expor oralmente suas respostas e compartilhar experiências, e é desse momento que parte este episódio.

  1. Maria: “Então, eu acabei me frustrando um pouco no começo… porque saí do ensino médio e vim direto para a faculdade, acho que a maioria aqui, né … então, acabei reprovando em algumas cadeiras, tive bastante dificuldade matemática, ainda tenho, mas corri atrás e consegui recuperar. Pensei em desistir, até o 3º semestre não sabia se era isso o que eu queria, fiz acompanhamento psicológico, o teste vocacional, e deu matemática. O ingresso no projeto Pibid Matemática, também me ajudou a permanecer no curso”.

  2. Catarina: “A minha impressão é um pouco diferente. Achei bom eles terem colocado licenciatura e bacharelado diferentes, achei interessante desde o começo a gente ter o contato com a licenciatura.… Não tive tanta dificuldade no conteúdo matemático; pensei algumas vezes em desistir porque não sabia realmente o que queria, mas acabei ficando e não me arrependo. Fui monitora do PIC por um semestre e de trigonometria por um ano e meio, e, até agora, foram essas experiências que eu mais tive proveito na graduação”.

  3. Alaídes: “Para mim, no começo, foi bem difícil. Várias vezes o curso não correspondeu às expectativas, mas também não foi um desastre. Reprovei em algumas disciplinas no começo, vários professores do curso de matemática vieram falar para eu desistir do curso”.

  4. Breezy: “Que incentivo, hein?”

  5. Professora Ane: “Professores do curso de matemática?”

  6. Alaídes: “Vários... Daí, no meio do curso, comecei a dar aula particular, comecei a observar em algumas cadeiras, comecei a me motivar mais e querer ficar na matemática… Aí, depois, mais pra frente, um amigo me convidou pra dar aula no Alternativa [cursinho popular pré-vestibular], onde tive as melhores experiências possíveis e também as piores, mas foi aí que eu percebi que tinha resultado ser professor, que o que queria mesmo era o curso de matemática”.

  7. Professora Lis: “Valeu a pena continuar o curso”.

  8. Luiza: “O primeiro semestre foi bem difícil pra mim, eu tinha muitas lacunas do ensino fundamental e ensino médio e pensei em desistir várias vezes”.

  9. Julia: “Pra mim também foi difícil”.

  10. Luiza: “A gente começou junto [Luiza e Julia], chorou muito”.

  11. Julia: “É, a gente ia bem no EM no EF, aí, aqui, em uma prova tirar 3,3, meu Deus do céu. Nossa, foi difícil … e a gente sempre foi de estudar bastante, foi um baque bem grande em algumas disciplinas. Mas outra coisa, também, algumas disciplinas do curso são muito voltadas à parte teórica e, muitas vezes, não relacionam determinado conteúdo com a sala de aula, com os alunos”.

  12. Antônia: “Bom, eu também acho que falta um pouco mais da preocupação com a escola, pouco contato com a comunidade escolar. Eu acho que, em muitas cadeiras, poderia ser trabalhado um pouco mais, relacionar, dar sugestões, ou abordar alguma questão de como poderia ser levado pra escola”.

  13. Agatha: “Eu me assemelho muito com a Antônia e a Catarina, entramos juntas, também tive um baque ao sair de casa … O que me ajudou muito na graduação foi ter entrado no PET, me ajudou muito a me motivar mais no curso em si, porque eu tinha muita dúvida no primeiro semestre. No primeiro ano, eu tinha muita dúvida se era isso que eu queria, depois eu acabei me estabilizando e, ano passado, eu comecei a dar aula no Alternativa, e isso eu acho que floresceu a professora dentro de mim”.

Nesse primeiro episódio, somos apresentados às experiências dos acadêmicos nos primeiros semestres e ao longo do curso de licenciatura. Nas expressões orais que compõem o episódio, percebemos vivências, angústias e experiências particulares que apontam três aspectos em especial: as principais dificuldades encontradas no início da licenciatura, as ações que impulsionaram a permanência no curso e as intenções para o trabalho como professor.

A maioria dos acadêmicos manifestou gostar da docência e sempre ter afinidade com a área da matemática, entretanto, todos revelaram ter passado por alguma dificuldade durante a graduação. Em relação aos aspectos mais ressaltados pelos licenciandos, o destaque, de modo geral, foi relacionado às frustrações no início do curso, com reprovações e dificuldades em relação aos conteúdos matemáticos, e a adaptação à universidade e à cidade, assim como dúvidas sobre a permanência no curso.

Contribuindo com nossa análise, Dias e Souza (2017)Dias, M. S., & Souza, N. M. M. (2017). A atividade de formação do professor na licenciatura e na docência. In M. O. Moura (Org.), Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural (pp. 183-210). Loyola. destacam que, ao olharmos de forma aligeirada para a realidade dos cursos de licenciatura, é possível detectar que o acadêmico ingressante não desconhece a profissão almejada e, portanto, seus motivos seriam convergentes com a escolha. Contudo, ao refletir mais detalhadamente, podemos, como dizem as autoras,

argumentar sobre a provisoriedade de suas escolhas e a possibilidade de terem sido definidas, por exemplo, pela proximidade de sua residência à faculdade, pela influência de amigos ou familiares, ou mesmo pela obtenção de boas notas em determinada disciplina durante o ensino básico. Nesses casos, a ação de prestar um vestibular para um curso de licenciatura é engendrada por motivo compreensível, e não eficaz, já que o motivo da escolha não coincide com o propósito ao qual o curso de dirige. (p. 187)

De acordo com o proposto, o conflito que existe entre a expectativa e a realidade encontrada no curso de formação é uma das causas de dúvida em relação à permanência dos acadêmicos, motivadas pela caracterização da divergência entre o motivo inicial de ingresso no curso e o objetivo social para o qual a formação é dirigida. Contudo, o decorrer do curso pode apresentar novos subsídios ao acadêmico, o que acaba transformando seus motivos, especialmente ao compreender as exigências diferenciadas em relação à matemática estudada na educação básica.

Leontiev (1983)Leontiev, A. N. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Pueblo y Educación. ressalta dois tipos de motivos que podem ser relacionados ao ingresso e à continuidade do curso de licenciatura pelos sujeitos:

alguns motivos, ao estimular a atividade lhe conferem um sentido pessoal; os denominaremos motivos dotantes de sentido. Outros, coexistentes com eles, assumem um papel de fatores impulsionadores – positivos ou negativos – os denominaremos motivos-estímulo.6 6 No original: “unos motivos, al estimular la actividad le confieren a la vez un sentido personal; los denominaremos motivos dotantes de sentido. Otros, coexistentes con ellos, asumiendo el papel de factores impelentes – positivos o negativos – en ocasiones extraordinariamente emocionales, afectivos, están privados de la función de conferir sentido; los denominaremos convencionalmente motivos-estímulos”. (p. 166)

O distanciamento entre expectativas e realidade encontrada ressalta os motivos de os sujeitos procurarem a licenciatura. A superação das dificuldades encontradas e a mudança de motivos apenas compreensíveis para motivos geradores de sentido (Leontiev, 1983Leontiev, A. N. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Pueblo y Educación.) podem acontecer, especialmente, mobilizadas por ações como as referidas pelos acadêmicos.

Entre os elementos desencadeadores da mudança de motivos, identificamos que, ao longo da discussão, sintetizada no episódio 1, todos os acadêmicos apontaram que ações realizadas durante o período da faculdade impulsionaram sua permanência no curso, fortalecendo a certeza de que tinham optado pelo curso certo, ou que, ao menos, gostariam de concluí-lo.

Todas as vivências dos acadêmicos, desde a educação básica e, especialmente, no curso de licenciatura, fomentam suas intenções com o trabalho que desenvolverão a partir de então. O elo entre essas vivências se encontra no fato de propiciarem aos acadêmicos se visualizarem no papel de professores, interagindo com alunos, realizando planejamentos, organizando e avaliando suas ações. As experiências que tiveram com os professores do curso, sejam positivas ou negativas, indicam os parâmetros de suas próprias ações, assim como a influência da participação em projetos ou monitorias também fortalece e orienta os primeiros caminhos a seguir.

Trazemos novamente Dias e Souza (2017)Dias, M. S., & Souza, N. M. M. (2017). A atividade de formação do professor na licenciatura e na docência. In M. O. Moura (Org.), Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural (pp. 183-210). Loyola. para ancorar os destaques dos acadêmicos, uma vez que

quando o licenciando se torna professor e inicia sua atuação na escola, os elementos da sua experiência enquanto era estudante da educação básica e os conhecimentos específicos que fizeram parte de sua formação na universidade adquirem novos significados. A atuação na escola propicia a manifestação de novas relações entre aquilo que ele aprendeu na universidade e a realidade escolar. (p. 198)

As preocupações dos estagiários com o primeiro contato com suas turmas envolveram a superação de dificuldades que eles mesmos tinham passado em sua vida escolar, principalmente no que diz respeito a desenvolver “atividades diferenciadas”, ensinar de forma clara e estabelecer um bom relacionamento com seus alunos, professores e funcionários da escola.

As intenções dos acadêmicos em estabelecer algumas relações com as escolas reforçam o movimento de se compreenderem como futuros professores, ainda em formação, especialmente quando afirmam quererem contribuir com a aprendizagem dos seus alunos, com uma transformação em suas condições de vida, para aproximar e tornar acessível o conhecimento matemático a todos os alunos, entendemos que apresentam relações importantes para o comprometimento com a atividade do professor.

Percebemos a intenção de que o trabalho dos futuros professores se voltasse para o desenvolvimento das potencialidades dos seus alunos, da direção do que aponta Vigotski (2001)Vigotski, L. S. (2001). Uma contribuição à teoria de desenvolvimento da psique infantil. In L. S. Vigotski, A. R. Luria, & A. N. Leontiev, Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Ícone., de que “um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele” (p. 114). Na visão do autor “o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento” (p. 114), o que destaca a relevância da forma pela qual os conteúdos escolares devem ser organizados, de maneira a promover na criança o que ainda não está formado, alcançando níveis superiores de desenvolvimento.

Isso posto, apresentamos o segundo episódio, que ilustra uma das ações desenvolvidas – a leitura de um texto – e os diálogos gerados na discussão entre os acadêmicos sobre a atividade do professor. A intenção é retratar um momento recorrente ao longo do experimento formativo, de estudos teóricos de textos e artigos que orientaram discussões acerca dos elementos que envolvem a atividade do professor.

Episódio 2: Discutindo sobre a atividade do professor: Enxergando-me no texto

Apresentamos neste momento um pequeno trecho de falas nas quais os acadêmicos destacam as principais ideias abordadas em um artigo acadêmico e estabelecem relações com as suas vivências. O artigo tem o intuito de apresentar a análise do processo de formação experienciado pelo estagiário Allan, em sua passagem de aluno a professor.

  1. Agatha: “Bom, eu gostei bastante da leitura do texto, eu acho que me identifiquei mais com esse texto do que com o outro, porque, vendo tudo o que o Allan falava, a gente fica pensando ‘isso podia acontecer também quando eu tivesse em sala de aula’, então, eu gostei muito desse texto, achei bem produtiva a leitura”

  2. Antônia: “Eu achei a leitura mais fácil desse do que do outro, por ser algo mais próximo do que estamos vivenciando também, mesmo que mais longo o texto, fluiu melhor.… O que o texto traz?

  3. Dionfantina: “Outra coisa é a questão de a gente estar preparado pra situações não acontecerem do jeito que foi planejado, nem sempre”.

  4. Professora Ane: “Nem sempre vai ser realizado do jeito que a gente pensa, né?”

  5. Alaídes: “O que também me chamou a atenção é que ele achou que a aula foi maravilhosa e, quando foi pro grupo, não era bem assim … tu sempre pode achar que a aula foi boa e, depois, tem que refletir sobre como foi a aula”.

  6. Professora Ane: “É, e talvez essa possibilidade que ele teve de refletir com os colegas fez com que ele começasse a pensar de forma diferente”.

  7. Professora Lis: “Esse ‘refletir’ dele, na verdade, não foi só o pensar sobre, no sentido de se foi boa ou não a minha aula, mas ele refletiu no sentido de buscar ressignificar, discutir sobre isso. Então, ele conseguiu chegar nessa conclusão de que de fato não foi tão boa como ele achava”.

  8. Professora Ane: “Mais alguma ideia tinha no texto?”

  9. Antônia: “Eu destaquei a parte, não lembro onde, que o conhecimento, as experiências que a gente tira do estágio, não é só o que acontece dentro da aula, é a troca de diálogo com os outros professores, a tua inserção na comunidade escolar também”.

  10. Professora Ane: “Isso é legal, você aprender com o colega, com o outro”.

  11. Alaídes: “Planejar a sua aula e não ficar só pra ti, conversar com os colegas do trabalho, outros professores, ter a reflexão de que pode melhorar. Outra questão foi na hora que ele não sabia o significado do algoritmo”.

  12. Maria: “Uma coisa que me chamou muito a atenção foi na hora que ele [Allan] erra o conceito de matriz perante a turma. Mas, no intervalo o professor regente diz que o ‘professor não erra’, somente comete um engano? Mas então ele pensou, ‘não, erra sim, e eu devo falar isso pros meus alunos’. E eu achei isso muito interessante porque se tem uma ideia de que o professor é perfeito, que ele sabe tudo, que ele não pode errar e isso não é verdade, é necessário assumir nossos erros!”

  13. Professora Lis: “E isso cria, falo pela minha experiência, uma relação de confiança com o aluno no sentido de que o aluno deixa de ver o professor em outro patamar, se estabelece um contrato didático”.

  14. Professora Ane: “Fortalece no sentido de confiança, porque o aluno pensa se ele me ensinar alguma coisa errada ele vai voltar atrás, então eu posso confiar que aquilo que ele tá falando realmente é verdade”.

O episódio 2 ilustra um momento importante que foi fortalecido ao longo do experimento formativo: os estudos e as leituras que embasaram as discussões dos acadêmicos acerca de suas próprias experiências. Entendendo, assim como Leontiev (1983)Leontiev, A. N. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Pueblo y Educación., que a necessidade origina a atividade humana, quando esses estudos derivavam da necessidade de organizar o ensino, poderiam ser indicativos da constituição da atividade de ensino dos futuros professores.

A identificação dos acadêmicos com o texto, em razão de seu momento de formação e de sua proximidade com a temática abordada, mobilizara a reflexão acerca de alguns aspectos, por vezes inesperados, que permeiam a prática docente, a relevância das discussões em grupo e as aprendizagens que acontecem no espaço escolar. A compreensão dos elementos que permeiam a atividade docente enquanto processo humano é um dos elementos importantes para a formação da personalidade do professor. Martins (2007)Martins, L. M. (2007). A formação social da personalidade do professor: Um enfoque vigotskiano. Autores Associados. destaca que a personalidade é uma formação psicológica instituída como resultado das transformações das atividades pautadas na relação do indivíduo com o meio físico e social.

Qualquer projeto educativo deve reconhecer a importância da personalidade do professor, atentando para o fato de que uma das exigências para o desenvolvimento das capacidades humanas é a apropriação da cultura, material, científica e teórico-técnica, condição preliminar para a interpretação da realidade, superação da aparência em direção à essência e para o estabelecimento de relações mais conscientes consigo e com o mundo (Martins, 2007Martins, L. M. (2007). A formação social da personalidade do professor: Um enfoque vigotskiano. Autores Associados.).

Ressaltamos as falas 5 e 11 do licenciando Alaídes que destacaram a parte em que Allan “achou que a aula foi maravilhosa e, quando foi pro grupo, não era bem assim” e também a importância de “conversar com os colegas do trabalho, outros professores, ter a reflexão de que pode melhorar”, o que ilustra a necessidade de discussões e reflexões em grupo, além da certeza de que essa troca compreende aprendizagens com o outro e, no caso dos estagiários, com os colegas acadêmicos, professoras orientadoras de estágio, professores regentes e demais colegas na escola.

Moura (2004)Moura, M. O. (2004). Pesquisa colaborativa: Um foco na ação formadora. In R. L. L. Barbosa (Org.), Trajetórias e perspectivas da formação de educadores (pp. 257-284). Editora Unesp. defende que a educação é obra do coletivo de professores, e que o educador se constitui justamente na coletividade do espaço escolar, ou seja, no processo de compartilhar com os colegas e com os professores, principalmente, as responsabilidades, as reflexões sobre suas aulas, sobre o ensinar matemática, tendo em vista o objetivo comum que os une no comprometimento com a educação pública.

Ao compreender a coletividade que permeia o trabalho dos professores, o acadêmico em formação tem a possibilidade de organizar e orientar suas ações a partir dos objetivos comuns, seguindo esse movimento ao ingressar na escola, assim como, ao iniciar sua atuação, as experiências vividas como estudante e os conhecimentos que fizeram parte de sua formação adquirem novos significados (Dias & Souza, 2017Dias, M. S., & Souza, N. M. M. (2017). A atividade de formação do professor na licenciatura e na docência. In M. O. Moura (Org.), Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural (pp. 183-210). Loyola.). É a atuação na escola que viabiliza a manifestação de novas relações entre o contexto escolar e os conhecimentos apropriados na universidade.

Por fim, corroborando a ideia do autor, destacamos em relação a esse episódio, a fala 9, em que a acadêmica Antônia ressaltou uma parte do texto que nos diz “que o conhecimento, as experiências que a gente tira do estágio não é só o que acontece dentro da aula, é a troca de diálogo com os outros professores, a tua inserção na comunidade escolar também. A possibilidade de aprender sobre o espaço escolar com os outros sujeitos da escola pode ser explicada naquilo que Vigotski (2000)Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. Martins Fontes. denomina “Zona de Desenvolvimento Proximal” (ZDP)7 7 Sabemos das diversas perspectivas que existem a respeito desse conceito e das diferentes formas de apresentação ou tradução (zona de desenvolvimento próximo, zona de desenvolvimento iminente etc.), no entanto, neste artigo, adotamos a nomenclatura mais usual. – distância entre o nível de desenvolvimento real (que compreende as funções psicológicas já alcançadas) e o nível de desenvolvimento potencial (que se caracteriza como os futuros passos no desenvolvimento do sujeito). Aprender com os professores mais experientes, com a equipe diretiva, os pais e a comunidade em geral, atuando na ZDP, é o que garante compreender mais detalhadamente o trabalho docente, chegar mais próximo de todos, uma vez que

as especificidades de cada escola, o jeito particular em que as relações entre os componentes do grupo são construídas e postas em prática, a interação que vai sendo tecida entre eles, influenciam diretamente na vida do aluno e na sala de aula.

(Pimenta & Lima, 2012Pimenta, S. G., & Lima, M. S. L. (2012). Estágio e docência. Cortez., p. 25)

Nossa intenção com os textos selecionados para compor o experimento formativo foi suscitar reflexões acerca de conhecimentos relacionados à atividade docente. Entendemos que dialogar com o referencial teórico e com os aspectos mais importantes desse momento formativo faz-se necessário no processo de aprender teoricamente sobre a realidade. Por meio dessa prática, é possível estabelecer, de forma teórica, as relações com suas vivências ou expectativas, além de apropriar-se de novos conhecimentos, sejam matemáticos ou sobre o processo de ensino e aprendizagem.

Nessa direção, destacamos a possibilidade de os acadêmicos encontrarem-se em atividade de estudo nesse momento, e em outros, durante o experimento formativo, como essencial para que eles se percebam sujeitos em formação, uma vez que estavam exercendo um papel ativo nesse processo, e esse fato implica que eles estivessem se entendendo como sujeitos dessa atividade. Para estar em atividade (Leontiev, 1983Leontiev, A. N. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Pueblo y Educación.), há a necessidade de o indivíduo atuar ativamente, mobilizado por uma necessidade particular, nesse caso, voltada à apropriação de conhecimentos fundamentais para a docência.

No dizer de Vigotski (2001)Vigotski, L. S. (2001). Uma contribuição à teoria de desenvolvimento da psique infantil. In L. S. Vigotski, A. R. Luria, & A. N. Leontiev, Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Ícone., o aprendizado é um “aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas” (p. 103), o que resulta em uma unidade entre os processos de aprendizagem e de desenvolvimento interior. A compreensão dessa unidade pelo professor permite que as ações por ele planejadas viabilizem a conversão de um processo em outro.

No nosso último episódio, apresentamos relatos dos acadêmicos que refletem algumas de suas experiências vivenciadas nas escolas onde realizaram o estágio supervisionado do ensino fundamental. Assim, o terceiro episódio é constituído de falas oriundas do último encontro do experimento formativo com os acadêmicos, quando realizamos uma avaliação do semestre baseada em uma dinâmica.

Episódio 3: A trajetória de inserção escolar: Aspectos positivos do estágio

Nesse episódio, os nove acadêmicos presentes no encontro apresentam suas perspectivas em relação à primeira questão da dinâmica denominada Que bom que…, que abordava os aspectos considerados positivos durante o estágio.

  1. Alaídes: “Que bom que deu tudo certo, apesar do medo inicial, do nervosismo. Que bom que a escola recebeu a gente de braço abertos, nos deixou muito à vontade, que bom que a escola e os alunos viraram meus amigos, vão ser meus amigos futuramente, gostei muito deles. Que bom que eu aprendi muito com meus alunos, acho que aprendi mais do que ensinei pra eles, aprendi mais a conhecer eles, conhecer as suas dificuldades fora da escola, a não querer impor a minha aula, basicamente isso”.

  2. Julia: “Que bom que a escola foi bem receptiva, que os alunos me aceitaram bem, e acho que eles gostaram das aulas… Acho que melhorei minhas explicações no quadro, porque, antes, acho que eu explicava muito rápido e, à medida que as aulas foram passando, fui tentando controlar isso de explicar mais devagar, e também não tive nenhum problema grave durante as aulas”.

  3. Luiza: “Eu coloquei que a minha turma me recebeu bem, não tive problemas com alunos, pais etc., que o professor regente da turma sempre me deixou à vontade, me aconselhou e me motivou, que as aulas aqui sempre foram interessantes, ajudaram no meu crescimento como futura professora, que eu consegui fazer com que os meus alunos evoluíssem um pouco, e também que eu consegui perder um pouco a timidez e a vergonha de dar aula pra eles”.

  4. Maria: “Que bom que eu consegui entrar na sala de aula e passar o conteúdo que foi programado. E eu senti que muitos alunos conseguiram aprender com as minhas explicações e isso foi bom. Que bom que eu consegui conhecer um pouquinho de cada aluno e conforme o possível eu tentei ajudá-los”.

  5. Agatha: “Que bom que eu consegui explorar, mesmo que pouco, mas algumas propostas diferentes, ou introduzir, às vezes, algum conteúdo um pouquinho diferente, alguns materiais, como Tangram e transferidores que fugiram um pouco da rotina, que bom que eu consegui fazer isso, que deu certo, até certo ponto, e que bom que eu construí uma amizade com os alunos e com a professora titular também, com a escola em geral, assim”.

  6. Catarina: “Eu botei que foi boa a recepção da escola, apesar dos pesares, que a confiança do professor Carlos me deixou mais tranquila na hora de dar aula, também coloquei que foi bom conhecer diferentes realidades dos alunos, pra acabar com algumas opiniões de senso comum que a gente tem sobre diferentes ‘tipos’ de alunos, e também que eu tive um retorno positivo dos alunos em relação à metodologia de ensino e à clareza nas explicações, quando eu falei que só ia ficar até as férias de inverno eles ficaram tristes, aí então isso pra mim é um lado positivo porque eles gostaram de mim e da minha aula, então, pra mim, isso foi bom”.

  7. Dionfantina: “Eu coloquei que bom que eu escolhi bem a escola, que tudo que eu fiz foi válido, foi bem-vindo, gostaria de ficar até o final do ano com a turma, com seu barulho, conversas soltas e risadas alegres”.

  8. Sales: “Que bom que tive a oportunidade de estagiar em uma ótima escola, conheci colegas professores que gostam do que fazem, consegui ensinar e aprender muitas coisas boas, fiz muitos amigos, descobri que existem muitos pais realmente preocupados com a educação dos seus filhos e [com] a formação deles, e ainda tive oportunidade de conhecer um pouco mais de cada aluno, podendo, assim, melhor ensiná-lo”.

  9. Breezy: “Que bom que a escola me recebeu de braços abertos também, me deu muito suporte, que pude entender a realidade dos alunos, motivos que os levavam a estar ali. Foi uma experiência que em ajudou a enxergar a docência de maneira diferente, mais humana, preocupado a todo instante e entender a realidade do aluno. Que bom que conheci pessoas maravilhosas, que acrescentaram muito em minha vida, os alunos com quem fiz amizade pra sempre, os professores, a coordenação”.

Olhar para o último momento com os acadêmicos na universidade naquele semestre se torna importante na medida em que nos permite retomar aspectos que foram evidenciados nos primeiros encontros e podem trazer os indicativos de que os licenciandos se percebem como futuros professores em formação. Ao focalizarem os momentos que consideraram mais positivos durante o semestre, dois pontos têm destaque nas falas dos acadêmicos: a relação que estabeleceram com a escola e com os alunos e os avanços pessoais que perceberam ao longo desse tempo.

Todos relataram que foram bem recepcionados nas escolas e pelas turmas, sendo que muitos conseguiram estabelecer relações de amizade mais próximas com o professor regente da turma e com os seus alunos. Destacamos a fala 8, do acadêmico Sales, que ressaltou o cuidado e a preocupação de muitos pais com a educação de seus filhos; e as falas nas quais Alaídes (1), Maria (4), Sales (8) e Breezy (9) relataram que a aproximação com a realidade dos alunos, seus contextos familiares e sociais, viabilizou maiores condições de planejar e ensinar matemática. Como Pimenta e Lima (2012)Pimenta, S. G., & Lima, M. S. L. (2012). Estágio e docência. Cortez. enfatizam,

ao transitar da universidade para a escola e desta para a universidade, os estagiários podem tecer uma rede de relações, conhecimentos e aprendizagens, não com o objetivo de copiar, de criticar apenas os modelos, mas no sentido de compreender a realidade para ultrapassá-la. (p. 111)

As vivências e as relações estabelecidas com os alunos e com a comunidade escolar também auxiliaram na superação de momentos de nervosismo ou timidez, como vimos nas falas de Alaídes (1) e Luiza (3). Os acadêmicos frisaram que melhoraram sua postura ao longo do semestre, conseguiram seguir os planejamentos (Maria, fala 4) e explorar algumas “propostas diferenciadas” (Agatha, fala 5).

Assim como destacam Dias e Souza (2017)Dias, M. S., & Souza, N. M. M. (2017). A atividade de formação do professor na licenciatura e na docência. In M. O. Moura (Org.), Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural (pp. 183-210). Loyola., a relação entre a escola e a universidade deveria possibilitar que as instituições educativas cumprissem sua função social. Para mais, aprender sobre o trabalho docente no transcorrer do estágio demanda estar atento às particularidades e às interconexões da realidade escolar (Pimenta & Lima, 2012Pimenta, S. G., & Lima, M. S. L. (2012). Estágio e docência. Cortez.).

A atividade do professor envolve inúmeros aspectos, condições subjetivas e objetivas, relacionadas diretamente a ações do trabalho como prática, planejamento escolar, preparação da aula, remuneração do professor. A compreensão do trabalho docente em sua totalidade exige discutir e analisar essas propriedades em conjunto, conforme as contribuições de Vigotski (2000)Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. Martins Fontes., de forma articulada, e não fragmentada, compreendendo elementos isolados.

O período de estágio, como apontam Pimenta e Lima (2012)Pimenta, S. G., & Lima, M. S. L. (2012). Estágio e docência. Cortez., mesmo que temporário, pode ser considerado exercício de participação, de conquista e negociação do lugar que o estagiário passa a ocupar na escola, envolvendo as relações com os alunos, com a equipe diretiva, com colegas professores ou com a comunidade escolar.

As falas dos acadêmicos denotaram a preocupação com o bem-estar e com a aprendizagem dos seus alunos. Em relação a isso, enfatizamos a fala de Moura (1996)Moura, M. O. (1996). A atividade de ensino como unidade formadora. Bolema, 2(12), 29-43., quando afirma que

a ação primeira do educador é transformar o ensino em atividade significativa. E fazer isto é dar oportunidade para que o aluno tome a ação de aprender como uma necessidade para integrar e ter acesso a novos conhecimentos. E mais: que a criança ou o aprendiz perceba o conhecimento como uma referência no processo de humanização, cujo passo inicial é a compreensão do conjunto de saberes produzidos como patrimônio da humanidade. (p. 34)

Avaliamos que os acadêmicos seguiram nessa direção, mesmo aqueles que ainda não tinham se decidido definitivamente pelo trabalho docente, tendo em vista que apontaram como metas para o próximo semestre, entre as já destacadas anteriormente, dedicar-se ao planejamento e ao desenvolvimento de ações que promovam o aprendizado de matemática de seus alunos e contribuam socialmente para seu crescimento e transformação nas condições de vida. Percebemos, nesse caso, que os sentidos atribuídos às ações docentes coincidem com o seu objeto social, por meio de condições que permitem colocar o sujeito em atividade, na perspectiva de Leontiev (1983)Leontiev, A. N. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Pueblo y Educación., trazendo indicativos da significação da atividade docente.

Algumas considerações

Ao analisarmos como futuros professores se percebem como sujeitos que se encontram em formação, no movimento de significação da atividade docente, partimos do pressuposto da relevância de que os espaços em que se inserem os professores em formação – em especial o estágio – precisam viabilizar a apropriação de conhecimentos que permitam novas aprendizagens voltadas a (re)construções da prática docente, tendo em vista novas qualidades na atividade pedagógica.

Nessa direção, os três episódios apresentados referem-se às relações importantes que compreendemos terem sido estabelecidas a partir do olhar para as falas dos acadêmicos inseridos em um experimento formativo no contexto do estágio. Os dados evidenciados indicam que as trajetórias formativas dos acadêmicos participantes da pesquisa envolveram caminhos semelhantes, partindo de motivos particulares para buscar a docência, com expectativas iniciais em relação ao curso, enfrentando desafios no decorrer do percurso vivenciando ações e experiências que mobilizaram sua permanência na escolha profissional, especialmente com o contato inicial com o ambiente escolar.

Os motivos iniciais de suas escolhas pelo curso de licenciatura eram diversos, ainda que relacionados à afinidade com a docência e com a matemática, porém, distantes dos objetivos do curso na universidade. As dificuldades e os desafios emergentes do contraste com a nova realidade foram superados, não de forma imediata, mas por meio de ações, que entendemos ter mobilizado a transformação dos seus motivos para tornarem-se professores, especialmente aquelas relacionadas ao contato com alunos, com o processo de organização do ensino e com situações que exigiram que assumissem sua posição de sujeitos em formação.

Diferentes motivos podem regular a atividade de formação dos acadêmicos, todavia, nos referimos agora ao motivo principal, que deve coincidir com o objeto da atividade. É a transformação desse motivo, que antes poderia ser apenas estímulo para a maioria dos licenciandos, em motivo gerador de sentido que atribui uma nova qualidade ao processo formativo.

O motivo gerador de sentido pode ser compreendido como uma necessidade objetivada, que dirige o sujeito nas situações-problema que permeiam a atividade (Leontiev, 1983Leontiev, A. N. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Pueblo y Educación.). O conceito de motivo envolve todos os aspectos que mobilizam o sujeito a realizar ações para atingir seus objetivos, o que concretiza a atividade do professor quando esse motivo é efetivamente gerador de sentido.

Com novos motivos dirigindo a atividade de formação dos acadêmicos, outros elementos também se mostraram importantes para o processo de aprendizagem da docência. O movimento de apropriar-se de novos conhecimentos – a partir de experiências práticas ou teóricas, como mencionadas pelos acadêmicos – permeia o trabalho do professor durante toda sua vida, sendo apenas iniciado durante o curso de graduação. A compreensão de que a formação é um processo em movimento é, portanto, essencial para que o professor permaneça buscando melhores condições de garantir mudanças na qualidade de sua atividade de ensino.

Além disso, o comprometimento com a aprendizagem dos alunos e a responsabilidade com a educação pública nas condições atuais são elementos que reforçamos, evidenciados pelos licenciandos, e que denotam a compreensão deles como professores em formação. Libâneo (2004)Libâneo, J. C. (2004). A aprendizagem escolar e a formação de professores na perspectiva da psicologia histórico-cultural e da teoria da atividade. Educar, (24), 113-147. destaca que mudanças nas formas de aprender afetam os modos de ensinar também, sendo assim, “o que se espera da aprendizagem dos alunos também deverá ser esperado de um programa de formação dos próprios professores” (p. 3), em que os acadêmicos se percebam como sujeitos no processo, participando, discutindo e propondo caminhos para este roteiro, e não vivenciando o curso como algo imposto.

Cremos os elementos destacados nesse trabalho permitem aos futuros professores se perceberem como sujeitos em um movimento de formação e integrantes desse processo. Ao se reconhecerem nessa posição, eles assumem responsabilidades que envolvem o trabalho do professor, assim como têm direito de se apropriar de todos os conhecimentos necessários à atividade docente.

Observamos mudanças dos motivos para os licenciandos se tornarem professores de matemática; compreensão da formação docente como um processo contínuo; e mudanças de qualidade da atividade de ensino. A partir dessa observação, os dados da análise indicaram que, ao se perceberem como sujeitos em formação, os futuros professores vão se apropriando de conhecimentos sobre a docência que lhe permitem atribuir sentidos à atividade docente que coincidem com o seu significado social, comprometido com as aprendizagens dos alunos.

Compreender os elementos que permeiam o processo de significação da atividade de ensino possibilita a professores formadores organizar intencionalmente espaços que evidenciem princípios orientadores no movimento de aprendizagem da docência na formação inicial. Ao mesmo tempo, esse processo, para o professor, ou futuro professor, viabiliza tomar consciência do significado social do seu trabalho, a partir de suas inúmeras especificidades.

Enfatizamos que os resultados obtidos se referem especificamente às ações realizadas no contexto do nosso experimento formativo, representando apenas um passo inicial, de modo que ficam ainda outras questões a serem discutidas e que podem suscitar novas investigações. Em especial, ainda é necessário investigar questões relacionadas à apropriação, pelo professor, de conteúdos a serem ensinados e à aprendizagem matemática dos alunos na educação básica.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Yasmin Fonseca (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
  • 4
    Existem distintas grafias para Vigotski em português. Neste artigo, optamos por utilizar “Vigotski”, com exceção de citações literais e referências de outros autores que apresentem de forma diferente, nas quais a forma com que seu nome aparece da obra citada será mantida.
  • 5
    Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática (GEPEMat/UFSM).
  • 6
    No original: “unos motivos, al estimular la actividad le confieren a la vez un sentido personal; los denominaremos motivos dotantes de sentido. Otros, coexistentes con ellos, asumiendo el papel de factores impelentes – positivos o negativos – en ocasiones extraordinariamente emocionales, afectivos, están privados de la función de conferir sentido; los denominaremos convencionalmente motivos-estímulos”.
  • 7
    Sabemos das diversas perspectivas que existem a respeito desse conceito e das diferentes formas de apresentação ou tradução (zona de desenvolvimento próximo, zona de desenvolvimento iminente etc.), no entanto, neste artigo, adotamos a nomenclatura mais usual.

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1
Editor responsável: Carlos Miguel da Silva Ribeiro. https://orcid.org/0000-0003-3505-4431

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2019
  • Revisado
    23 Jan 2020
  • Aceito
    22 Out 2020
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