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Contos de fadas na sala de aula: perspectivas de professoras atuantes na Educação Infantil 1 1 Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andréa de Freitas Ianni andreaianni1@gmail.com

Cuentos de hadas en el aula: perspectivas de los profesores que trabajan en la educación infantil

Resumo

Este artigo analisa percepções de professoras da Educação Infantil sobre o trabalho com contos de fadas em sala de aula. Baseia-se em pesquisa qualitativa, desenvolvida por meio de estudo bibliográfico e etnográfico, com observações de aulas e entrevistas com duas professoras regentes de turmas de crianças entre 3 e 5 anos. Os resultados indicam que a visão que as professoras possuem sobre infância, contos de fadas e o papel da literatura na formação das crianças influencia a forma como o trabalho é desenvolvido, inclusive a mediação feita durante a leitura das histórias. Esta é vista como uma prática rica em aprendizados para as crianças, mas também permeada de desafios relacionados ao planejamento e à execução das atividades e à forma como a instituição escolar e seus atores significam essas experiências.

Palavras-chave
Contos de Fadas; Infância; Literatura; Educação Infantil; Mediação

Resumen

Este artículo analiza las percepciones de los profesores de jardín de infancia sobre el trabajo con cuentos de hadas en el aula. Se basa en una investigación cualitativa, desarrollada a través de un estudio bibliográfico y etnográfico, con observaciones de clases y entrevistas con dos docentes que dirigen clases de niños entre 3 y 5 años. Los resultados indican que la visión que tienen los docentes sobre la infancia, los cuentos de hadas y el papel de la literatura en la educación de los niños influye en la forma en que se desarrolla el trabajo, incluida la mediación que se realiza durante la lectura de los cuentos. Esta es vista como una práctica rica en aprendizajes para los niños, pero también impregnada de desafíos relacionados con la planificación / ejecución de actividades y la forma en que la institución escolar y sus actores dan sentido a estas experiencias.

Palabras clave
Cuentos de hadas; Infancia; Literatura; Educación Infantil; Mediación

Abstract

This article analyzes the perceptions of early childhood education teachers about working with fairy tales in the classroom. It is based on qualitative research, developed through a bibliographic and ethnographic study, with observations of classes and interviews with two teachers who conduct classes for children between 3 and 5 years old. The results indicate that the teachers’ views about childhood, fairy tales, and the role of literature in children’s education influence how the work is developed, including the mediation made during the reading of the stories. This is seen as a practice rich in learning for children, but also permeated with challenges related to the planning/execution of activities and how the school institution and its actors give meaning to these experiences.

Keywords
Fairy tale; Childhood; Literature; Child education; Mediation

Introdução

Em nossa sociedade, o acesso à literatura desempenha papel importante na formação dos seres humanos como indivíduos e sujeitos sociais. Esse acesso tende a abrir caminho para diferentes repercussões e reações ‒ as quais podem atingir a cognição e também a dimensão socioafetiva ‒ e proporciona, assim, a experimentação de emoções e o desenvolvimento da linguagem imaginativa. A literatura tem o poder, inclusive, de desenvolver no indivíduo estruturas emocionais específicas para suas necessidades interiores. Isso porque, quando nos identificamos com uma história, com o tema ali abordado e/ou com os personagens que a protagonizam, ela torna-se um referencial para o nosso processo de formulação de julgamentos, experiências e características particulares. Assim, para além do ato de ler e decodificar, o contato com a literatura nos proporciona recursos importantes na busca de sentido e identificação (Hillesheim & Guareschi, 2006Hillesheim, B., & Guareschi, N. M. de F. (2006, janeiro-junho). Contos de Fadas e Infância(s). Educação e Realidade, 31(1), 107-126. http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/22976
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).

Os contos de fadas, em específico, tornam-se aliados na educação das crianças e dos jovens para sua constituição como pessoas, sujeitos de conhecimento e copartícipes da construção da sociedade na qual se inserem. Esse tipo de literatura faz uma importante ligação entre o real e o imaginário e fomenta a construção do pensamento crítico. A mediação entre as crianças e os contos, feita por professores(as), pode encerrar múltiplas possibilidades educativas e auxiliar na construção de experiências e aprendizados significativos, enquanto proporciona momentos de descoberta, fruição e reflexão.

Diversas pesquisas realizadas nas últimas décadas atestam essas possibilidades de trabalho com o público infantil, foco do presente artigo. O estudo realizado por Capellini et al. (2012)Capellini, V. L. M. F., Machado, G. M., & Sade, R. M. S. (2012). Contos de fadas: recurso educativo para crianças com deficiência intelectual. Psicologia da Educação, (34), 158-185. ISSN 2175-3520. reconhece a contribuição dos contos de fadas para o desenvolvimento infantil, apresenta os contos como recurso educativo no processo de escolarização de estudantes com deficiência intelectual e destaca o trabalho de mediação que pode ser feito pelo(a) professor(a). Os autores afirmam que os contos de fadas, como atividade literária, estimulam “o desenvolvimento da identidade da criança, pois ela vivencia outra forma de ser e de pensar, amplia suas concepções sobre as coisas e as pessoas quando desempenha vários papéis sociais no ato de representar diversos personagens” (p. 170).

A pesquisa de Maia et al. (2011)Maia, A. C. B., Leite, L. P., & Maia, A. F. (2011). O emprego da literatura na educação infantil: a investigação e intervenção com professores de pré-escola. Psicopedagogia, 28(86), 144-155. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862011000200005&lng=pt&nrm=iso
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também revela a importância da literatura para a formação das crianças. As autoras realizaram estudo com professoras que atuam na pré-escola com crianças de 2 a 6 anos de idade e apontam o papel desempenhado pelo livro infantil como um recurso didático-metodológico ‒ elas problematizam seu uso bem como a mediação feita a partir dele.

Outros estudos (Augustini, 2015Augustini, É. R. do N. (2015). Contos de Fadas no Ensino Fundamental I: analisando os recursos empregados e as estratégias que podem ser adotadas pelas/os docentes na desconstrução de estereótipos sexistas [Dissertação de Mestrado em Educação Sexual, Universidade Estadual Paulista].; Camargo, 2011Camargo, B. M. (2011). Era uma vez: contando histórias na Educação Infantil [Dissertação de Pós-Graduação em Educação, Universidade Metodista de Piracicaba].; Marcelo, 2012Marcelo, M. L. (2012). A influência dos contos de fada na formação do caráter infantil [Monografia Pós-graduação, Universidade Cândido Mendes Pós-graduação “Lato – Sensu”].) destacam, com base em achados obtidos a partir da investigação de diferentes realidades, que os professores podem extrair ricas possibilidades para seu trabalho com a valorização dos contos de fadas ‒ alguns desses estudos ilustram a importância do conhecimento, por parte dos profissionais da educação, das influências que os contos podem exercer na construção da identidade das crianças e em seu desenvolvimento.

Encampando as contribuições desses e de outros trabalhos já realizados sobre o tema, o presente artigo busca contribuir para o avanço da produção científica existente. Para tanto, partimos da análise da realidade experimentada por professoras que atuam na Educação Infantil em escolas públicas do município de Erechim, Rio Grande do Sul. O estudo realizado3 3 Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa realizada pela primeira autora sob orientação da segunda. buscou investigar, mais especificamente, como profissionais que atuam nesse contexto significam o trabalho com contos, com que objetivos esse trabalho é feito, as abordagens metodológicas e as atividades privilegiadas e como as crianças as recebem. O cotejamento dos achados obtidos na pesquisa com a literatura científica revisada tornou possível o desenvolvimento de uma discussão sobre as possibilidades educativas do trabalho com contos de fadas no contexto da Educação Infantil, as repercussões desse trabalho no processo de desenvolvimento e aprendizagem dos(as) estudantes e os desafios implicados em sua realização.

A organização do artigo contempla esta introdução, seguida de uma seção dedicada à discussão teórico-conceitual sobre os contos de fadas e outra à análise dos resultados obtidos com a pesquisa empírica realizada. O artigo é encerrado com algumas considerações finais.

Contos de fadas: importância e possibilidades educativas

Contar histórias é uma arte de muitos séculos e, nesse sentido, a literatura infantil ‒ por entrelaçar diferentes aspectos, o real com o imaginário, os sonhos e a realidade ‒ é uma forma de colocar a criança em contato com realidades e referências identitárias muitas vezes distantes daquelas que ela conhece e domina. O convívio com a literatura desde a infância enriquece o desenvolvimento humano em suas múltiplas esferas (Coelho, 2000Coelho, N. N. (2000). Literatura infantil. Moderna.).

Cada momento da história ‒ com seus valores, ideais e fundamentos ‒ foi singular para a constituição da literatura infantil como a conhecemos hoje. Houve um percurso histórico que marcou e continua marcando a trajetória dos contos de fadas como um processo simultâneo de mudança da cultura e do pensamento social de cada época. O delineamento do conceito de infância ‒ assim como a representação da mulher ou da própria família, entre outros exemplos ‒ foi sendo retratado na literatura com produções que mostraram concepções históricas distintas sobre esses fenômenos. A visão da infância como construção social e da criança como sujeito de direitos e desejos nasce com a Modernidade, mas outrora essas categorias eram referidas sem qualquer distinção especial, quando comparadas a outras idades da vida. As concepções que tomam a criança como ser sensível, a ser protegido de todo e qualquer mal, ou como ser ativo, pensante e crítico de sua história, foram sendo tecidas, portanto, ao longo dos últimos séculos, influenciadas por processos sociais (Ariès, 1981Ariès, P. (1981). História social da infância e da família. LTC.).

Assim, o entendimento que pode ser construído sobre o lugar dos contos de fadas tradicionais ou clássicos e dos contos contemporâneos na relação que as crianças venham a construir com a literatura infantil ou no trabalho desenvolvido sobre o assunto por seus professores(as) depende da forma como essa contextualização é colocada em perspectiva. Como alerta o historiador francês Darnton (2015)Darnton, R. (2015). O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa. Paz e terra., o contexto histórico e cultural no qual cada conto foi escrito deixa marcas no texto que precisam ser consideradas e influenciam a interpretação e a apropriação que dele são feitas.

Os “novos contos de fadas” são histórias com características próprias, específicas do contexto atual. A mulher, por exemplo, não é mais representada única e exclusivamente como figura do lar, que sabe cozinhar, costurar etc. Da mesma forma, os finais felizes não são taxativos de matrimônio, e os príncipes não são necessariamente fortes e valentes (Vidal, 2008Vidal, F. F. (2008). Príncipes, princesas, sapos, bruxas e fadas: os "novos contos de fada" ensinando sobre relações de gênero e sexualidade na contemporaneidade [Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul].). As mudanças que se fazem presentes nesses textos retratam o crescimento científico e as especificidades histórico-culturais da sociedade atual e agregam novas características às narrativas. Sabemos que, futuramente, novas versões e adaptações surgirão para suprir e representar novos tempos, desejos, valores e ideais esperados pelo ser humano e facultarão o processo de identificação das novas gerações com esse gênero textual. Como destacado por Corso e Corso (2006)Corso, D. L., & Corso, M. (2006). Fadas no divã: a psicanálise nas histórias infantis. Artmed., escrever para crianças na contemporaneidade é “uma necessidade cultural imperiosa”, que retrata suas vivências de forma sensível, constrói e desconstrói conceitos e preconceitos e ajuda a pensar sobre eles. Os personagens são como versões das crianças e possibilitam sua identificação em diferentes casos, seus medos e assombros, suas confusões e a difícil tarefa de ser alguém (Corso & Corso, 2006Corso, D. L., & Corso, M. (2006). Fadas no divã: a psicanálise nas histórias infantis. Artmed.).

Mas é importante frisar que também os contos de fadas tradicionais ou clássicos trazem elementos significativos que podem suscitar movimentos de identificação nas crianças, ao apresentarem cenas, personagens e referências sociais e identitárias que, mesmo datadas historicamente, continuam capazes de interpelá-las, por contemplarem o universo humano e suas paixões, intrigas, medos etc. Esse processo de identificação depende, entre outras coisas, do momento que cada criança está vivendo, de suas necessidades de crescimento e dos sentidos que possa atribuir às narrativas, a partir de sua própria ótica e/ou da mediação feita por educadores(as) (Corso & Corso, 2006Corso, D. L., & Corso, M. (2006). Fadas no divã: a psicanálise nas histórias infantis. Artmed.).

Não obstante, quando se busca mapear os laços atualmente existentes entre os contos de fadas e a educação escolar, não raramente são encontrados indícios de que o potencial que eles encerram como experiência formativa tem sido subestimado ou subaproveitado. Muitos profissionais da educação receiam que ‒ ao conferirem à experiência literária um lugar de destaque nas práticas educativas ‒ os resultados que se pretende alcançar com as relações formais de ensino e aprendizagem sejam comprometidos (Fischer & Silva, 2018Fischer, R. M. B., & Silva, T. R. S. da. (2018). Literatura e formação – redescobrir o prazer do texto entre as margens do sistema escolar. Revista Brasileira de Educação, 23, Artigo e230097, 1-17. https://www.scielo.br/pdf/rbedu/v23/1809-449X-rbedu-23-e230097.pdf
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). No caso dos contos de fada, esse receio seria reforçado, em algumas situações, pela suposição de que tais produções contribuem para “iludir” as crianças, alienam-nas em um mundo de pura fantasia ou remetem-nas a realidades que não condizem com as experiências abarcadas pela infância por elas vivida. Essa ideia parece ganhar força entre aqueles que se esquecem das diferenças entre a psique adulta e a infantil ou negligenciam a possibilidade de haver intervenções educativas que atendam de maneira mais satisfatória às necessidades emocionais e de aprendizagem de crianças e adultos (Gomes & Silva, 2019Gomes, L. S., & Silva, C. Y. G. da. (2019). Da fantasia à realidade: os contos de fadas no contexto escolar. Psicologia da Educação, (49), 99-115. https://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20190023. ISSN 2175-3520.
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).

Esse cenário pode ser revisto e sofrer modificações que favoreçam o alcance de melhorias para a forma como a educação escolar tem sido promovida se esse “desconhecimento do universo infantil” e suas incidências nos processos educativos forem problematizados (Radino, 2003Radino, G. (2003). Contos de Fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. Casa do psicólogo.).

No bojo desse processo, há que se avaliar criticamente a crença ‒ amplamente difundida no senso comum ‒ de que o fantástico faz o real e o imaginário se confundirem de forma prejudicial, e não deve, por esse motivo, ser levado a sério, mas apenas servir como distração. Essa concepção parte de uma visão do desenvolvimento baseado em estruturas tradicionais, sem esperar a influência positiva da fantasia ou considerar a existência de um fantástico que é próprio e significativo para a infância, ao tornar possíveis os sonhos e os desejos das crianças: ser um gigante, tornar-se rei, rainha, ser invisível etc. Além disso, faz-se imprescindível notar que as crianças, em geral, têm consciência do que é imaginário e do que é real quando estão em um jogo de faz de conta, e essas brincadeiras são naturalmente aceitas. Então, por que apostar que a situação seria marcadamente diferente no caso das histórias fantásticas apresentadas nos contos de fadas? Ao iniciar a leitura ou narração de um conto, inaugura-se uma gama de possibilidades para a imaginação fluir, mas também várias oportunidades para que os sujeitos infantis coloquem em ação suas habilidades de lembrar ou perceber diferenças e semelhanças entre esse universo imaginário e as realidades que conhecem, incluindo sua própria realidade existencial (Held, 1980Held, J. (1980). O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica (3.a ed.; 240 p.). Summus Editorial.).

Assim, é importante frisar que a linguagem simbólica e imaginativa, presente nos contos de fadas, pode auxiliar a criança a entender situações vivenciadas no cotidiano, a criar conceitos, a incrementar suas capacidades mentais, a potencializar o repertório de que dispõe para enfrentar os obstáculos presentes em sua trajetória de desenvolvimento. Isso oferece a ela mais segurança e recursos do que explicações conceituais científicas delongadas e impositivas (Bettelheim, 2014Bettelheim, B. (2014). A psicanálise dos Contos de Fadas (A. Caetano, Trad.). Paz e Terra.; Radino, 2003Radino, G. (2003). Contos de Fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. Casa do psicólogo.).

Avançando nessa discussão, não podemos perder de vista, porém, o caráter sociocultural de todas essas habilidades e processos psicológicos cujo desenvolvimento pode ser favorecido pela presença dos contos, e mais amplamente da literatura, na vida dos sujeitos infantis. Afinal, o desenvolvimento de tais processos é sempre mediado pelo outro social. Nas palavras de Vigotski (1991)Vigotski, L. S. (1991). A formação social da mente. Martins Fontes. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/vygotsky-a-formac3a7c3a3o-social-da-mente.pdf.
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, “as relações reais entre os indivíduos estão na base de todas as funções superiores” (p. 84).

Como observa Sforni (2008)Sforni, M. S. F. (2008). Aprendizagem e desenvolvimento: o papel da mediação. In V. L. F. Capellini & R. M. Manzoni (Orgs.), Políticas públicas, práticas pedagógicas e ensino-aprendizagem: diferentes olhares sobre o processo educacional. Cultura Acadêmica., para uma melhor compreensão dessa premissa, cabe lembrarmos que a importância das interações sociais no contexto escolar, segundo a abordagem vigotskiana, “não está restrita à relação sujeito-sujeito, mas no objeto que se presentifica nessa relação – o conhecimento” (p. 2). A autora conclui que,

ao se compreender os conteúdos escolares como mediadores culturais a atenção volta-se não apenas para a relação professor-aluno, mas, sobretudo, para a relação entre professor-conhecimento-aluno. Como o desenvolvimento humano ocorre pela apropriação da atividade mental presente nos mediadores culturais, a mediação do professor pode ser promotora de desenvolvimento dos estudantes quando os conceitos científicos – mediadores culturais - estão presentes nessa interação.

(Sforni, 2008Sforni, M. S. F. (2008). Aprendizagem e desenvolvimento: o papel da mediação. In V. L. F. Capellini & R. M. Manzoni (Orgs.), Políticas públicas, práticas pedagógicas e ensino-aprendizagem: diferentes olhares sobre o processo educacional. Cultura Acadêmica., p. 1)

Nesse sentido, para problematizarmos como pode se dar o trabalho com contos de fadas em sala de aula, o conceito de mediação assume um lugar central, quando partimos do princípio de que esse trabalho envolve a criação de situações de aprendizagem diversas. Nesse contexto caberá aos(às) professores(as) oportunizar às crianças o acesso a conhecimentos historicamente produzidos presentes nas obras literárias ou discutidos a partir de sua leitura ou estudo, favorecer a troca de experiências entre pares, empreender a escuta sensível das elaborações e indagações produzidas pelos(as) estudantes, socializar suas próprias interpretações e saberes, entre outras ações. É por meio da apropriação crítica e criativa dos conhecimentos partilhados nessas situações de aprendizagem e das experiências ali vividas que os(as) estudantes podem acionar os processos mentais superiores ‒ percepção, imaginação, memória, pensamento etc. ‒ e, assim, desenvolvê-los (Sforni, 2008Sforni, M. S. F. (2008). Aprendizagem e desenvolvimento: o papel da mediação. In V. L. F. Capellini & R. M. Manzoni (Orgs.), Políticas públicas, práticas pedagógicas e ensino-aprendizagem: diferentes olhares sobre o processo educacional. Cultura Acadêmica., p. 7).

Ao ter em perspectiva a relevância dessa “dupla mediação” ‒ a que concerne à relação docente-estudantes e a referente à relação estudantes-conteúdos escolares ‒, a escola, representada especialmente pela figura docente, pode, por meio de ações educativas planejadas e executadas com essa intencionalidade, criar condições para que as crianças participem ativamente da cultura, apropriem-se dela e a ressignifiquem nesse processo (Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico-livro para professores (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolke, Apres. & Coment.). Ática.).

Instrumentos e procedimentos de pesquisa

A presente pesquisa tem uma abordagem qualitativa, escolhida por ser “de particular relevância ao estudo das relações sociais devido à pluralização das esferas de vida” na sociedade contemporânea (Flick, 2009Flick, U. (2009). Introdução à Pesquisa Qualitativa (J. E. Costa, Trad.; 3.a ed.; 405 p.). Artmed., p. 20). Além disso, essa metodologia “dirige-se à análise de casos concretos em suas peculiaridades locais e temporais, partindo das expressões e atividades das pessoas em seus contextos locais” (p. 37), como é o caso do presente estudo.

Caracteriza-se, também, pela sua relevância subjetiva, ou seja, busca não perder de vista a existência de diversas interpretações referentes ao tema estudado e a pertinência de cotejá-las, e, por isso, leva em consideração a subjetividade tanto das pesquisadoras quanto das participantes da pesquisa (Flick, 2009Flick, U. (2009). Introdução à Pesquisa Qualitativa (J. E. Costa, Trad.; 3.a ed.; 405 p.). Artmed.).

Além de ser qualitativa, a pesquisa assume um cunho etnográfico, ao se inspirar em pressupostos da pesquisa etnográfica caracterizada por Laplantine (2003)Laplantine, F. (2003). Aprender antropologia. Brasiliense. como “a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos fenômenos que observamos” (p. 16).

O desenho de pesquisa adotado contemplou a realização, em um primeiro momento, de um estudo bibliográfico. Assim, buscamos revisar e aprofundar os conhecimentos referentes ao tema mediante levantamento de investigações atuais já realizadas por outros pesquisadores (Marconi & Lakatos, 2011Marconi, M. de A., & Lakatos, E. M. (2011). Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisa, elaboração, análise e interpretação de dados (7.a ed.). Atlas.). O trabalho em questão considera a aproximação teórica de conceitos como contos de fadas, infância e mediação e contempla estudos realizados sobre essas temáticas ao longo das últimas décadas. Para tanto, foram feitas buscas de trabalhos publicados em língua portuguesa, em portais como Google Acadêmico, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), Scientific Electronic Library Online (Scielo), entre outros.

Em um segundo momento, procedemos com a realização de uma pesquisa de campo, que incluiu a produção e a análise de dados referentes ao trabalho com contos, realizado no período de junho de 2016 a setembro de 2016 em duas turmas específicas de Educação Infantil da cidade de Erechim, RS, que atendem alunos na faixa etária dos 3 aos 5 anos. Os instrumentos metodológicos utilizados foram a entrevista e a observação, que permitiram investigar as experiências construídas pelas professoras como parte de suas atividades no trabalho com os contos de fada em sala de aula, assim como as produções discursivas por elas elaboradas ao discorrerem sobre esses processos (Freitas, 2007Freitas, M. T. (2007). A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In M. T. Freitas, S. J. Souza & S. Kramer, Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin (2.a ed.). Cortez.).

Sobre o perfil das duas professoras participantes da pesquisa, vale informar que Maria tem 31 anos, cursou Pedagogia em uma universidade pública e, no período da pesquisa, estava cursando mestrado na mesma universidade. Ela atuava como professora da Educação Infantil em uma escola pública havia um ano. Mariana tem 32 anos, cursou Pedagogia em uma universidade particular e também é Mestre em Educação. Naquele momento, ela atuava como professora na Educação Infantil havia nove anos e estava há dois com a turma atual. Elas foram convidadas a participar da pesquisa em função da área de formação e atuação de ambas (Pedagogia e Educação Infantil) e por terem aceitado fazer um trabalho com contos de fadas em suas salas de aula, ter as atividades desenvolvidas observadas e conceder entrevistas sobre o tema da pesquisa.

Para nortear o processo de realização das entrevistas, foi utilizado um roteiro com algumas perguntas pensadas previamente, de maneira a facilitar a expressão dos diferentes pontos de vista das entrevistadas sobre o tema da pesquisa, assim, obtivemos informações em forma de documentação para a futura interpretação e análise dos dados coletados (Flick, 2009Flick, U. (2009). Introdução à Pesquisa Qualitativa (J. E. Costa, Trad.; 3.a ed.; 405 p.). Artmed.). Esse roteiro foi composto por 14 questões que buscavam identificar: 1) O que pensam sobre a infância e a importância da literatura, em especial os contos de fadas, na vida das crianças; 2) O que pensam sobre o trabalho com contos de fadas no contexto de sala de aula; 3) Se elas trabalham com contos de fadas na sua prática cotidiana; 4) Que benefícios acreditam que os contos de fadas podem trazer para as crianças, seu desenvolvimento e sua aprendizagem; 5) Que influências percebem que os contos exercem sobre a criança, na construção de sua identidade; 6) Que influências percebem para além da sala de aula, que tipo de proximidade as crianças têm com esse universo temático; 7) No que se baseiam para escolher os contos e com quais objetivos; 6) Como é a abordagem dada após contar a história; 8) Qual a preferência ao escolher os contos entre os clássicos e os contemporâneos; 9) Se sentem alguma dificuldade ao escolher um conto de fadas. Se sim, quais; e 10) Se encontram dificuldades ao trabalhá-los em sala de aula. Se sim, quais.

No processo de entrevista também foi feita uma proposta que consistiu em solicitar à docente o planejamento de uma ação com a turma sob sua responsabilidade que incluísse o trabalho com um conto de fadas. A organização desse trabalho pôde se dar de acordo com sua preferência, ou seja, ele foi conduzido a partir das próprias escolhas e livre ação da docente. Nesse momento, também foi solicitada autorização de cada participante para que as pesquisadoras realizassem a observação do trabalho por elas realizado em sala de aula com as crianças.

Quanto ao uso da observação como instrumento de pesquisa, cabe esclarecer seu sentido social, já que o observador também tem suas vivências e experiências, e precisa ter um olhar atento aos objetivos traçados para capturar detalhes significativos à pesquisa (Ludke & André, 1986Ludke, M., & André, M. (1986). Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. EPU.). Neste estudo, a observação foi feita no dia em que as docentes participantes da pesquisa realizaram o trabalho com conto de fadas.

Ao final da pesquisa, foi realizada novamente uma entrevista com as professoras para identificar suas opiniões e percepções sobre o trabalho que realizaram em sala de aula com os contos de fadas. Por meio dessa experiência, foi possível fazer uma análise e chegar a conclusões detalhadas da pesquisa sobre o contexto de trabalho das docentes. As narrativas produzidas durante as entrevistas foram utilizadas para documentar as reflexões acerca do trabalho com contos de fadas e serviram de material de análise para as conclusões sobre o tema da pesquisa.

Todos os dados coletados foram classificados e divididos em categorias para melhor organização da análise. Em consonância com Bardin (2010)Bardin, L. (2010). Análise de conteúdo. Edições 70., entendemos que “classificar elementos em categorias impõe a investigação do que cada um deles tem em comum com outros. O que vai permitir o seu agrupamento, é a parte comum existente entre eles” (p. 146). Assim, após a investigação, foi realizado o agrupamento, tendo em vista as congruências ou semelhanças entre os conteúdos que emergiram na pesquisa. Os dados que se destacaram como discrepantes também foram objeto de consideração mais atenta por parte das pesquisadoras, que levaram em conta sua relação com os conteúdos agrupados por semelhança.

Buscamos ter um cuidado com os detalhes éticos da pesquisa, assim como com a relação estabelecida com as participantes. Dialogamos com elas sobre seus direitos e criamos oportunidades para que expressassem suas possíveis dúvidas e inquietações acerca da natureza e dos objetivos do estudo, dos instrumentos e dos procedimentos de pesquisa etc. Além disso, cabe informar que as participantes foram acolhidas em caráter voluntário e que lhes foi esclarecida a possibilidade de desistência da participação na pesquisa a qualquer momento. Foi também utilizado um termo de consentimento livre e esclarecido ‒ lido em conjunto com as participantes para posterior recolhimento de suas assinaturas ‒ que autorizava a realização das entrevistas, observações e posterior análise dos dados produzidos nessas situações de pesquisa.

Análise e discussão dos resultados

Para a discussão, partindo da análise dos dados obtidos na pesquisa de campo, o material foi organizado em duas seções temáticas: 1) O que as professoras pensam sobre infância e a importância da literatura na vida das crianças e 2) O trabalho com os contos de fadas na Educação Infantil.

O que as professoras pensam sobre infância e a importância da literatura na vida das crianças

A visão de infância que cada profissional possui repercute no modo como concebe a importância do trabalho com contos de fadas com as crianças, como este deve ser conduzido e sua possível influência no desenvolvimento infantil. Assim, para falar do trabalho com os contos de fadas, é necessário expandir reflexões a respeito da infância e da educação nessa etapa do desenvolvimento humano, pois “para que exista uma literatura infantil é necessário que haja uma infância” (Hillesheim & Guareschi, 2006Hillesheim, B., & Guareschi, N. M. de F. (2006, janeiro-junho). Contos de Fadas e Infância(s). Educação e Realidade, 31(1), 107-126. http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/22976
http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/...
, p. 110).

Na entrevista com Maria, esta compartilhou sua visão acerca das múltiplas infâncias e a historicidade que as marcam, nos diferentes âmbitos e meios sociais em que a criança está inserida ‒ o que aponta para diferentes culturas, modos de viver e relacionar-se:

Conforme ela foi adquirindo espaço na verdade né, porque ela não era considerada da forma como é hoje. Mas a infância na verdade, ela não é só uma infância, são várias infâncias, que cada um vive de uma forma diferente. A minha infância foi diferente da tua, a infância das crianças de hoje em dia é diferente das de antigamente, cada realidade, cada pessoa tem uma infância diferente.

A literatura não permanece indiferente às transformações referentes às percepções construídas sobre a infância. Na verdade, chega a representar ou traduzir algumas delas, na medida em que todo texto se relaciona com o contexto sociocultural e histórico no qual é produzido (Darnton, 2015Darnton, R. (2015). O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa. Paz e terra.). Podemos ver, nas inúmeras versões dos contos de fadas, a representação de infância que prevalece em cada época e cultura. Tornar visível essa construção histórica é uma maneira de a criança entrar em contato com diferentes realidades, pensar as mudanças, imaginar-se naquele tempo, naquele momento, diferenciar e contrapor sua realidade com outras possibilidades.

Ao relatar seus pensamentos sobre o tema infância, Mariana, por sua vez, destaca uma preocupação com o contexto atual em que as crianças vivem e ressalta que elas não conseguem concentrar-se em algo por muito tempo e não contam com tanto estímulo à imaginação, pois atualmente, nas suas palavras, “tudo é industrializado”, e o acesso às tecnologias ocorre desde cedo na vida das crianças. Fica evidenciada, nesse sentido, a preocupação da entrevistada com a capacidade das crianças em lidar com a linguagem imaginativa e o quanto esta está sendo, de fato, fomentada na contemporaneidade.

Mariana também cita a contradição que vê entre o que tenta ensinar como correto para as crianças e aquilo a que elas têm acesso em seu cotidiano ‒ como, por exemplo, desenhos e propagandas que mostram desobediência e violência ‒ e coloca essas situações como influenciadoras da infância e contrárias aos objetivos do trabalho docente.

As duas participantes da pesquisa compartilham da mesma perspectiva de que os contos de fadas são muito importantes na formação do sujeito e suas particularidades, e são grandes influenciadores do desenvolvimento da linguagem imaginativa e do pensamento crítico. Destacam ainda o envolvimento que as crianças têm com eles quando trabalhados em sala de aula. É o que observamos nesta fala de Maria: “Quando a gente conta pra eles, é como se eles vivessem a história, como se entrassem na história, eles se envolvem muito nesses contos de fadas”.

O envolvimento que as histórias provocam nas crianças bem como a mediação que pode ser feita a partir do que elas apontam viabilizam não apenas o fomento à imaginação mas também a discussão das visões de mundo e das opiniões sustentadas pelas crianças sobre temas relevantes. Nesse sentido, Mariana comenta que o contato da criança com o conto

vai despertar a imaginação dela, vai despertar a visão de mundo, vai despertar aquela coisa de que uma casa não precisa ser feita só de tijolos ou um prédio não precisa ser só um apartamento em cima do outro, acho que favorece de uma forma geral.

O trabalho com contos de fadas na Educação Infantil

Foi possível notar, por meio da análise das entrevistas e das observações realizadas, que as professoras participantes da pesquisa trabalham com contos de fadas no seu dia a dia em sala de aula. Enquanto Maria não faz nenhuma diferenciação ou discriminação entre contos de fadas tradicionais e contemporâneos, Mariana privilegia, no trabalho realizado em sala de aula, os contos contemporâneos ‒ ela até considera que os contos de fadas tradicionais contribuem para alienar as crianças, mas não exclui a possibilidade de trabalhar com eles, especialmente quando são as próprias crianças que os requisitam:

Os contos de fadas tradicionais, eu não abordo muito, porque eu acho que eles trazem uma visão que deixa as crianças alienadas. ... Eu procuro abordar contos mais reais não tão fantasiosos no sentido de que eles tragam uma lição mais real, mais do dia a dia deles assim, que não seja uma fábula que fique distante do cotidiano deles.

Essa questão que emerge no depoimento de Mariana remete ao importante debate a respeito do uso dos contos de fadas clássicos na educação. Existe uma tentativa de retirar das histórias com as quais as crianças terão contato a alusão a sentimentos como o medo e a angústia ou situações como o infortúnio e o castigo, a fim de amenizar conteúdos com os quais todas as crianças inevitavelmente acabam se deparando em suas vidas cotidianas. Ao mesmo tempo, observamos a predileção pelos contos contemporâneos, com base na justificativa de que eles não padecem do excesso de fantasia presente nos clássicos.

Contudo, as próprias crianças procuram referências para seu crescimento pessoal e encontram nos contos de fadas representações de ideias que habitam seu imaginário. É na infância que a criança aprende a relacionar seus mundos interno e externo e a lidar com eles (Bettelheim, 2014Bettelheim, B. (2014). A psicanálise dos Contos de Fadas (A. Caetano, Trad.). Paz e Terra.). É por meio do contato com esses temas desafiadores (medo, angústia etc.), retratados nas histórias que lê ou escuta, que ela consegue olhar de forma mais distanciada para si, analisar melhor suas próprias necessidades, vontades e avaliar o que é necessário solucionar ou modificar.

Como afirma Bettelheim (2014)Bettelheim, B. (2014). A psicanálise dos Contos de Fadas (A. Caetano, Trad.). Paz e Terra., os finais felizes dos contos de fadas não querem remeter à realidade exterior de que o sujeito só será feliz daquela forma, mas, ao finalizarem dessa maneira, trazem segurança às crianças de que elas conseguirão superar seus medos e conflitos internos e oportunidade para lidarem com suas próprias questões. Afinal, “nenhuma criança acredita que será um príncipe ou uma princesa, mas que poderá governar sua própria vida” (Radino, 2003Radino, G. (2003). Contos de Fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. Casa do psicólogo., p. 193).

Nesse sentido, a linguagem imaginativa trazida nos contos de fadas permite a experiência e o contato significativo com diferentes realidades, sentimentos e situações e exterioriza necessidades do universo interno da criança. A narração de histórias na infância funciona como estímulo para a subjetividade, e é fonte fecunda para a linguagem imaginativa. Pensamos, assim, que esse contato com o mundo da fantasia presente nos contos de fadas clássicos vem contribuir para o desenvolvimento infantil e é, ele também, um mediador entre a criança e a realidade social e psíquica.

Ainda, a literatura está sujeita a transformações em diferentes momentos históricos e é transformada com o passar do tempo, conforme o contexto e as necessidades e os interesses a respeito do pensar a infância. Ademais, o acesso a contos produzidos em diferentes momentos históricos mostra-se produtivo, visto que oportunizar à criança o contato com visões de diferentes realidades e estimular que ela conecte “seus conhecimentos e ideias a contextos mais amplos” (Brasil, 1998Brasil. (1998). Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil – Volume 3. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 172) é o que lhe faculta “construir conhecimentos cada vez mais elaborados” (p. 172).

A mediação feita pelos professores revela-se fundamental nesse processo, começando pela iniciativa de ficarem atentos às manifestações das crianças face às formas de ser, agir e sentir dos personagens; às relações de poder estabelecidas a partir das interações; aos padrões éticos e estéticos apresentados; e aos conceitos de bom e mau etc. Para isso, é preciso que o profissional tenha em perspectiva que seu papel é formar as crianças como leitoras e como sujeitos de conhecimento, para que ele possa se dar conta dessas questões e saiba interpretá-las criticamente, de modo a ampliar os horizontes de compreensão e ação da criança (Abramovich, 1997Abramovich, F. (1997). Literatura infantil: gostosuras e bobices. Scipione.). Cabe também aos professores, ao planejarem o trabalho com os contos, analisar de antemão o conteúdo das histórias, a exploração que dele pode ser feita e o espaço a ser dado para as elaborações das crianças. Uma questão, em especial, não pode ser perdida de perspectiva: como facilitar que a criança produza uma reflexão a respeito dessa história? De acordo com as abordagens e estratégias pensadas para trabalhar determinado conto, é possível ajudar as crianças a ver que as pessoas e as relações sociais se transformam através dos tempos, conforme a cultura, o momento histórico, a classe social, a etnia ou a geração considerada. Trata-se de levar os(as) estudantes, desde a Educação Infantil, a conhecer outros mundos para problematizar e compreender melhor o seu.

Por mais que algumas pessoas vejam limitações no trabalho com os contos de fadas clássicos, é possível fazer boas explorações a partir deles. Deixar que a criança entre em contato com outras épocas, diferentes da sua, possibilitará que ela pense sobre as especificidades destas, relacione-as ao momento presente e faça diferenciações e reflexões a respeito dessa contraposição, especialmente se puder contar com o auxílio do(a) professor(a) e dos colegas nesse processo. Dessa forma, não há problema em distanciá-la do seu cotidiano, pois é esse o foco da fantasia, mostrar outros universos de possibilidades, “outra ética, outra ótica” (Abramovich, 1997Abramovich, F. (1997). Literatura infantil: gostosuras e bobices. Scipione., p. 17).

Zilberman (1998)Zilberman, R. (1998). A literatura infantil na escola (10.a ed.). Global. também defende que as crianças têm essa capacidade de refletir sobre diferentes valores e visões de mundo e que a literatura, nesse sentido, cumpre seu papel de “formadora”, pois, se o conto de fadas pode esclarecer as inconstâncias do mundo interior da criança, “ele também transmite a seu destinatário um lastro a partir do qual se funda uma concepção autônoma e, portanto, crítica da vida exterior” (p. 25). Queremos explicitar aqui que o contato com a literatura é importante na construção de um sujeito crítico, autônomo e capaz de desempenhar um papel ativo na construção de suas próprias preferências, escolhas e ações. Para tanto, a mediação exercida por seus(suas) professores(as) na aproximação a esse universo deve levar em consideração que o trabalho com o texto literário não se reduz a uma mera tarefa escolar que serve apenas como pretexto para ensinar conteúdos de outras áreas (ciências, matemática, língua portuguesa, história etc.). Do planejamento à concretização propriamente dita dessa mediação, há que se abrir espaço para que as crianças tenham voz e vez no processo, ou seja, possam participar escolhendo obras, discutindo ideias, compartilhando suas experiências nas interações com docentes e pares, sanando dúvidas, entre outras possibilidades.

Fica patente, assim, o papel formador dos contos de fadas, que são referência em fazer pensar por meio da fantasia, com um fundo de saber que produz ações sobre a infância e sobre a formação integral dos sujeitos. Mas também é imerso em “invenção, criação de outros mundos possíveis, estranhamento, experimentação, advento do novo” (Hillesheim & Guareschi, 2006Hillesheim, B., & Guareschi, N. M. de F. (2006, janeiro-junho). Contos de Fadas e Infância(s). Educação e Realidade, 31(1), 107-126. http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/22976
http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/...
, p. 123).

Mariana descreveu um momento vivido em sala de aula que evidencia isso, quando um dos seus alunos foi até a prateleira de livros, pegou o livro João e Maria e perguntou se poderia contar essa história para seus colegas. A professora deixou que a criança contasse a história do seu jeito e, depois, problematizou com a classe as questões que mais se destacaram na história. O relato apresentado gera inúmeras possibilidades de análise, entre elas, a mediação significativa feita pela professora Mariana, que, após a leitura, organizou um debate entre as crianças e direcionou-as a falarem sobre suas percepções a respeito da história. Nessa mediação, a professora em questão fazia perguntas às crianças, como “E vocês já viram alguma situação assim?” ou “O que isso lembra vocês?” Também perguntava às crianças sobre se tinham gostado ou não da história e o porquê, ou se alguém acreditava que a história deveria diferir e como elas escreveriam seu final.

Nessa abordagem, as crianças, em conjunto com a professora, discutiram as atitudes que os personagens tiveram na situação. Mariana contou na entrevista que uma menina disse: “Mas o certo era a Maria ter chamado a polícia, ela não devia ter jogado a bruxa no fogão”. Nesse momento, as crianças colocaram-se à disposição para pensar sobre seus valores, ideais e opiniões a respeito da situação, recurso importante para a construção de suas identidades (Kielb & Silva, 2020Kielb, E. G., & Silva, I. M. M. (2020). Acesso à leitura e a narração de contos de fadas na primeira infância: implicações para a formação identitária e a constituição das crianças como sujeitos sociais e de conhecimento. Pensares em Revista, (18), 9-30.).

Na sala de aula de Mariana ‒ devido ao planejamento do trabalho com contos bem como às situações espontâneas nas quais esse trabalho emerge como possibilidade ‒ as crianças têm espaço para expor suas opiniões e liberdade para expressar emoções que, como ela mesma reconhece, por vezes, traduzem experiências de sofrimento e desamparo. Observamos que a mediação feita por essa professora possibilitou que as crianças atribuíssem sentidos diversos ao conto, a partir de reflexões construídas no momento, o que atesta que a atividade realizada não se caracterizou como um espaço de ensino e de aprendizagem com regras rígidas ditadas pela professora.

Vale destacar que a professora não escolheu trabalhar com aquele conto em seu planejamento, mas foi convidada pelas crianças (que tiveram espaço para tanto) a abordar um conto clássico e, embargada pelos inúmeros sentidos que elas deram a esse conto, gerou uma mediação reflexiva e questionadora naquele momento, ou seja, acabou fazendo uma boa exploração do conto. Com esse relato ela demonstrou que os contos clássicos podem gerar boas discussões e propiciar construções significativas para as crianças, dependendo da forma como são trabalhados.

Ao relatar uma dificuldade que encontra ao trabalhar com os contos de fadas em sala de aula, a mesma professora citou que acredita que o trabalho feito na escola é contraditório ao contexto vivenciado pelas crianças em casa ou ao conteúdo ao qual elas têm acesso através da televisão, por se tratar, por exemplo, de programas infantis em que os personagens são desobedientes ou têm atitudes consideradas por ela como incorretas.

Nesse sentido, entramos em uma discussão gerada pelo mesmo prejulgamento que sofrem os contos de fadas clássicos. Tendo ou não acesso a conteúdos como os presentes nos contos e nos programas televisivos, é importante para o desenvolvimento emocional e social das crianças que elas possam ter a oportunidade de dialogar sobre o tipo de sentimento que determinadas situações mobilizam nelas, o que representam para elas esses sentimentos e as ações e reações que eles podem desencadear. Exemplo disso são os sentimentos hostis despertados nas crianças quando elas são cobradas a agir de determinada forma e não entendem ou não concordam com isso. Elas podem aprender, com a ajuda da literatura e do diálogo mediado pelo outro sobre essa arte e a partir dela, que tais sentimentos hostis também são vividos por outras crianças e adultos. Este é um dos caminhos possíveis para compreenderem que esses sentimentos existem para mais alguém além delas: tendo contato, mesmo que imaginário, com vivências que as ajudem a processar questões que, do contrário, permaneceriam em aberto ou mal elaboradas.

Mesmo que não tenham a possibilidade de dialogar sobre as histórias, as crianças podem superar medos e traumas por meio da catarse, como descreveu Freud (1913/1996): projetando seus sentimentos em algum personagem ou alguma situação da história ‒ por esse meio revivem o que é doloroso ou incompreensível para elas, o que permite, em muitos casos, o vislumbre de novas perspectivas de significação desses sentimentos. Ocorre também de algumas crianças, sobretudo aquelas de pouca idade, tentarem trabalhar suas emoções e tensões reprimidas e incorporarem ‒ em encenações vividas nas brincadeiras ou interações cotidianas com outras pessoas ‒ gestos e ditos que simulam aqueles apresentados por personagens das histórias com as quais tiveram contato. Todos esses exemplos ilustram processos que têm a ver com a “profundidade psicológica” que o conto “é capaz de atingir e sobre como ele oferece esquemas que coloquem as crianças a pensar” (Corso & Corso, 2006Corso, D. L., & Corso, M. (2006). Fadas no divã: a psicanálise nas histórias infantis. Artmed., p. 264).

Radino e Oliveira (2009)Radino, G., & Oliveira, M. L. de. (2009). Entre príncipes e sapos. In M. L. Oliveira (Org.), (Im)pertinências da educação: o trabalho educativo em pesquisa (pp. 17-43; online). Editora Unesp. também se dedicam a explicar por que o simbolismo presente nos contos de fadas é importante para as crianças:

Como um brinquedo, a criança utiliza o simbolismo dos contos de fadas para expressar suas angústias. Fazendo uso dos personagens, tanto bons como maus, ela pode identificar-se com cada um deles, em diferentes momentos, assim que sua necessidade e sua angústia são despertadas. (p. 34)

Não obstante, trabalhar com contos de fadas no espaço escolar e otimizar essas possibilidades foi apontado pelas participantes da pesquisa como um processo desafiador por vários motivos: exige dedicação prévia a leituras; tempo para a seleção das histórias e para o planejamento da mediação que será realizada; coordenação das atividades pensadas com outras programações perspectivadas pela instituição onde trabalham; e esforço despendido na própria implementação das atividades em sala de aula, uma vez que o processo de contação, de narração das histórias para as crianças “não é algo tão simples”, segundo as entrevistadas. Ele requer que as professoras estejam atentas às possibilidades de dramatização da história e ao uso de recursos adicionais (fantoches, ilustrações etc.), à interação com os estudantes (suas reações, perguntas etc.), ao processo de mediação, entre outras questões por elas pontuadas que dizem respeito à própria cultura escolar e suas liturgias, que fazem o trabalho com contos ser significado como “uma atividade atípica”, que “quebra a rotina” ‒ e até as crianças já aprenderam a identificar o dia em que trabalham com os contos como “dia de festa”, uma exceção à regra na vida escolar tradicional.

Problematizando essa realidade escolar, Radino e Oliveira (2009)Radino, G., & Oliveira, M. L. de. (2009). Entre príncipes e sapos. In M. L. Oliveira (Org.), (Im)pertinências da educação: o trabalho educativo em pesquisa (pp. 17-43; online). Editora Unesp. pontuam que, nela, “a emoção, a fantasia e a criatividade, tanto dos alunos como dos professores, devem ser normatizadas e encaixadas em um modelo do que se determinou como cultura e sociedade” (p. 20). Assim, por vezes, a necessidade de imaginação e fantasia é vista como algo a ser controlado para garantir a construção do conhecimento e a adequação das ações infantis a um mundo regrado (Radino & Oliveira, 2009Radino, G., & Oliveira, M. L. de. (2009). Entre príncipes e sapos. In M. L. Oliveira (Org.), (Im)pertinências da educação: o trabalho educativo em pesquisa (pp. 17-43; online). Editora Unesp.).

Outrossim, podemos perceber que o processo de mediação se inicia muito antes do momento posterior à contação do conto. Esse processo envolve inicialmente o planejamento apontado pelas professoras, no qual analisaram as possibilidades de intervenção, os recursos a serem utilizados e a melhor abordagem para suas turmas, e cuidaram de forma dedicada de aspectos como a escolha de histórias que seriam do interesse e preferência das crianças. Abordagem essa que, segundo elas, tem o objetivo de reforçar a ludicidade, gerar interações envolventes e despertar a motivação nos estudantes para sua aproximação com o universo literário.

As duas docentes relataram que comumente procuram oportunizar para as crianças a vivência de diferentes situações de aprendizagem e experiências. Para isso, alternam entre contar a história com o livro em mãos, mostrando as imagens contidas nele; trazer os personagens da história em forma de fantoches; contar oralmente a história em uma versão adaptada, com uso das próprias palavras; e deixar que as crianças contem a história por meio da leitura prévia que têm ou por meio das imagens. Todas essas opções são, em geral, seguidas ou intercaladas por momentos de discussão, fomento de reflexão via perguntas e socialização de impressões. As professoras demonstraram que esse é um momento de destaque em suas aulas, que se preocupam em torná-lo atrativo para as crianças. Essas são as diferentes facetas que o processo de mediação pode assumir no trabalho por elas desenvolvido.

Conforme observação realizada na sala do Pré A, a professora Maria contou a história “Chapeuzinho Vermelho” sem o apoio do livro, de forma oral, e enfatizou os aspectos da história que, para ela, eram marcantes ‒ trata-se de uma narração específica para aquele momento, para aquelas crianças e situação. A história contada oralmente é uma vivência única e exclusiva daquele momento, já que é uma narração criada e pensada para aquela realidade e contexto.

Nos relatos da entrevista realizada, a professora Maria citou que grande parte dos estudantes dessa turma se identificava e gostava muito das histórias em que aparecia o personagem do lobo mau. Na observação isso ficou bem evidente, pois foi possível visualizar o entusiasmo das crianças quando a professora narra a cena em que ele aparece; os murmúrios e a ansiedade aparente nos olhos delas revelam o quanto estavam empolgadas com as alusões ao personagem.

A maneira de narrar a história torna-se, como sempre foi, importante para criar um contexto que envolva as crianças e privilegie a exploração da imaginação ‒ ao contar uma história oralmente, abre-se um campo para expressão, pela voz, pelo corpo e pela ação de quem conta. Torna-se também um espaço flexível e lúdico, que possibilita a interação do contador e dos ouvintes. E, além disso, as crianças pequenas apropriam-se mais facilmente de narrativas expressas de forma oral para usá-las como referência (Girardello, 2007Girardello, G. (2007). Voz presença e imaginação: a narração de histórias e as crianças pequenas. In C. Fritzen & G. S. Cabral (Orgs.), Infância: imaginação e educação em debate (139 p.). Papirus.).

Os efeitos dessa e de outras mediações realizadas pela professora Maria que abordam contos de fadas foram destacados por ela em sua entrevista:

Outro dia eles estavam brincando no parquinho, e um deles era o lobo, então ele assumia, ele botava medo nos outros, daí ele brincava apontava com o dedo “se vocês não abrirem a porta” era os três porquinhos, “se vocês não abrirem a porta eu vou assoprar” (risos) reproduziam a história né.

Podemos perceber, com esse relato de Maria, o quanto a atividade se mostrou significativa para seus(suas) alunos(as), que, de alguma forma, fazem reverberar o que lhes chamou atenção e/ou afetou, por vezes difundem o que aprenderam em outros contextos ‒ como nas brincadeiras, nos jogos simbólicos, na interação com seus pares e com outros sujeitos para além do ambiente escolar ‒ e tecem pontes entre diferentes linguagens, ou seja, fazem associações com outros conteúdos, cenas e situações da vida.

Nesse sentido, cabe realizarmos uma análise mais detida da estratégia de mediação empregada pela professora Maria em sua turma: enquanto ela contava a história, ia passando pelas crianças, mexendo em seus cabelos, fazendo sons perto de suas carteiras, trazendo-as para a história, destacando a natureza da brincadeira que a história pode trazer, arrancando risadas, suspiros, pulos, entusiasmos, deixando visível sua entrega, disposição para interagir e estado emocional ao contar a história da Chapeuzinho Vermelho.

Todas essas ações que fazem parte da mediação mostram-se envolventes, utilizam-se de recursos da teatralidade e da ludicidade, trabalham capacidades sensoriais, perceptivas e emocionais, sem deixar de explorar as habilidades cognitivas e linguísticas das crianças, que pareceram valorizar a atividade e considerá-la significativa e atrativa. Além disso, nesse tipo de mediação, a imaginação é posta em ação quando a criança, no lugar de esperar pela narração do que está por vir, cria imagens e cenas, antecipa acontecimentos e constrói cenários, faz conexões com sua própria realidade de vida, como vimos no exemplo da menina que sugere que a polícia seja chamada para prender o lobo mau.

Maria pondera que, ao serem expostas a esse tipo de intervenção mediadora, as reações das crianças podem ser diversas, mas que ela busca acolher todas elas com o mesmo interesse e receptividade. Diante de um “Ai que medo!” proferido por um aluno quando confrontado com a cara feroz do lobo, por exemplo, ela pode perguntar: “Medo de que, Pedro?”, para, na sequência, emendar: “E os demais? O que sentem ao escutar essa história?”. Assim é que se pode dar início a uma conversa que tem seu rumo definido pelas necessidades e interesses dos sujeitos infantis, e apostar na possibilidade de a experiência educativa ser formadora e transformadora.

A análise desse excerto de depoimento permite-nos vislumbrar como a qualidade da mediação pode impactar, positiva ou negativamente, a relação dos(as) alunos(as) com o texto literário. A relevância desse fato é incontestável, se considerarmos que a formação de leitores e o fomento pelo “gosto de ler” constituem um desafio com o qual a área da educação se depara atualmente. As intervenções de Maria ‒ gesticular imitando os personagens e sensibilizar os alunos com os fatos narrados a fim de que se sintam à vontade para expressar emoções, ao mesmo tempo em que os convida a encenar junto com ela alguns trechos da história etc. ‒ tiveram efeito positivo, estimularam a participação ativa da turma na aula. O jeito como Maria se envolveu na tarefa de mediar tem a ver com sua visão acerca da infância, da docência, da escola e do próprio universo simbólico da literatura. Sua crença de que é preciso conhecer os(as) alunos(as) e as realidades das quais participam para lhes oportunizar melhores condições de construção do conhecimento ‒ assim como a perspectiva por ela sustentada sobre a importância do sujeito aprendiz em sua integralidade ‒ oferece as coordenadas para um trabalho com os contos calcado nesses pressupostos. Essa constatação corrobora a perspectiva de que um(a) professor(a) atento(a) ao desenvolvimento em sua dimensão afetiva e social tem maior probabilidade de coordenar ações que, sem perder de vista o cognitivo, auxiliem as crianças a compreender as próprias emoções e as daqueles que as cercam e lidar com elas; enfrentar os medos e angústias que, por vezes se travestem de monstros; e ampliar seus repertórios de ação quando desafiadas a resolver seus conflitos interpessoais. Notamos ainda que a escolha dessa forma de mediação por parte de Maria guarda relação com sua própria trajetória de vida e formação. Ela diz ter tido contato com os contos de fadas desde pequena e destacou que sempre gostou deles: “é uma coisa que desde quando a gente ia na aula já gostava”. Prossegue sua narrativa relatando que esse gosto continua presente no seu dia a dia quando escolhe um conto para seus(suas) alunos(as).

Na turma de Pré B, da professora Mariana, também foi possível observar momentos muito instigantes. A professora iniciou chamando todas as crianças para a roda e sentou-se com elas ‒ mostrou-se presente ali naquele momento exclusivamente para o contato com a história. Fez uma mediação de exploração inicial do livro, contou seu título e explorou os dados presentes na obra, como os nomes da autora e da ilustradora.

A história trazida para a atividade foi “A Ervilina e o Princês”, escrita por Ortoff (2009)Orthof, S. (2009). Ervilina e o Princês ou deu a louca na Ervilina (L. Castilhos, Ilust.). Projeto., um conto contemporâneo da versão original de “A Princesa e a Ervilha”, de Hans Christian Andersen. Na entrevista inicial, ao comentar o planejamento do trabalho com contos, Mariana havia mencionado a história como uma possibilidade de conto contemporâneo que ela abordaria: “eu contaria, por exemplo, a história da Ervilina, mas eu não contaria A Princesa e a Ervilha”. A professora em questão tem uma inegável preferência por contos contemporâneos e uma certa objeção aos contos clássicos. Ela mesma admitiu, na entrevista, que não teve contato com os contos de fadas clássicos, o que produziu efeitos na forma como vê a literatura atualmente. Narrou um fato que a distanciou desse universo: quando criança, era uma estudante agitada, e seu castigo era ir à biblioteca e ficar sem retirar livros, enquanto seus colegas liam, vivenciavam e retiravam livros de histórias para ler em casa ou em outros ambientes. Por esse motivo, não teve muito contato com os contos de fadas, que hoje diz não serem suas escolhas preferenciais para a hora de contar histórias aos alunos.

Mariana desenvolveu uma mediação voltada para a contação oral com o apoio do livro ‒ muda o tom de voz quando quer destacar algo presente nas imagens apresentadas e prende, assim, a atenção das crianças na história. Estas pareciam considerar curiosas e até mesmo engraçadas as ilustrações, faziam comentários e questionamentos à professora. A linguagem poética trazida pelo livro também chamou a atenção das crianças, que soltaram risos, achando graça. Nesse caso, a escolha por contar a história com o livro foi muito bem recebida por elas. Algumas manifestaram o desejo de pegar a obra e olhar mais detidamente suas figuras. A docente aposta, portanto, como propõem Corso e Corso (2011)Corso, D. L., & Corso, M. (2011). A psicanálise na terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Penso., que “é na substância corpórea do objeto-livro ... que já entrevemos sua especificidade” (p. 307). Sendo assim, ao segurarmos um livro composto por determinadas cores, ilustrações e formatos de letra, somos transportados ao universo da história contada de uma maneira vívida e marcante.

Em consonância com essa ideia, e dando continuidade à mediação estabelecida, a professora foi passando o livro pelas crianças, reforçando a atenção nas ilustrações, na representação de personagens e artefatos como o príncipe, a rainha, os castelos, os colchões e os lençóis bordados, características significativas presentes no livro. Algumas das crianças já conseguiam, em resposta a essa intervenção, estabelecer uma leitura autônoma por meio das imagens.

Acreditamos que, como visto na sala de aula da professora em questão, para tais atividades com a leitura é importante que os(as) estudantes sejam envolvidos(as) no processo de mediação para se sentirem partícipes do grupo e perceberem a leitura como algo prazeroso.

O(a) professor(a), como mediador(a), tem o papel de incentivar a relação entre a criança e os contos de fadas e proporcionar esses momentos de atividade reflexiva. Mendes e Velosa (2016)Mendes, T., & Velosa, M. (2016). Literatura para a infância no jardim de infância: contributos para o desenvolvimento da criança em idade pré-escolar. Pro-Posições, 27(2), 115-132. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0041
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exploram os benefícios que a literatura pode trazer para a infância e destacam o importante papel do “adulto-mediador” que, no contato com a literatura, “afigura-se imprescindível para auxiliar a criança a compreender, pela via da projeção identificativa, as suas próprias emoções, os seus sentimentos, as suas inquietações e os seus problemas de ordem existencial e afetiva” (p. 130).

Como vimos, é fundamental a mediação que cada professor(a) se dedica a fazer dessas experiências, pois “a criança não aprende apenas pela exposição direta ao estímulo, mas por intermédio de alguém que serve de mediador entre ela e o meio” (Siqueira, 2013Siqueira, E. D. L. (2013). Literatura sem fronteira: por uma educação literária [Tese de Doutorado em Estudos Literários, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás]., p. 123). Os contos proporcionam às crianças entrarem em contato com diversas realidades, ora mais brandas que as delas, ora mais complexas, fazem expandir suas visões e percepções sobre o mundo que as cerca. Para tanto, “é preciso que nas práticas oferecidas pelo mediador possa ser sentido que ele, mediador, entende a literatura não como um texto neutro, mas um substrato dotado de uma complexidade sociocultural” (pp. 123-124).

Considerações finais

Os contos de fadas são histórias que atravessam os tempos, tiveram origem na oralidade e se modificam à medida que são recontados ou compilados para coletâneas escritas. Este artigo apresentou reflexões sobre a relevância do trabalho com contos de fadas em sala de aula e buscou analisar o que professoras atuantes na Educação Infantil dizem e demonstram sobre as atividades que desenvolvem como parte desse trabalho, além dos desafios com os quais se deparam ao desenvolvê-lo.

Para tanto, foram realizadas entrevistas com as docentes e observações de seu trabalho junto às turmas, e registradas anotações sobre como se efetivaram, na prática, as mediações construídas por elas no contexto desse trabalho.

Como resultado da pesquisa, foi possível identificar a importância conferida à linguagem imaginativa como instrumento insubstituível na formação humana, com destaque para as qualidades literárias do conto e o envolvimento que as crianças demonstram com esse tipo de linguagem. As intervenções mediadoras construídas pelas docentes trouxeram contribuições para o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças e promoveram uma aproximação lúdica e prazerosa delas para com o universo da literatura. O incentivo à leitura mostrou-se uma consequência natural desse processo, atestado pelas reações dos(as) alunos(as) ao fazerem entusiasmadas referências posteriores às histórias ‒ em outras aulas e nas brincadeiras com os pares ocorridas no pátio, por exemplo ‒ e solicitarem mais leituras.

Constatamos importantes aspectos para os quais as professoras chamam a atenção no momento de contar a história: a narração construída para o momento, a escolha do texto literário, o uso do livro como instrumento, as abordagens pedagógicas privilegiadas e seus objetivos. Ademais, as professoras participantes da pesquisa apontaram diferenciações entre os contos de fadas clássicos e os contos de fadas contemporâneos, e fizeram-nos notar que a escolha por um ou outro tipo fundamenta-se na visão particular que cada profissional sustenta sobre infância, Educação Infantil e literatura, assim como no conhecimento que detém sobre o tema em questão.

Ficou evidenciada também a importância de os(as) docentes considerarem os efeitos que o trabalho com esses diferentes tipos de contos pode produzir na formação de seus(suas) alunos(as). Experiências muito ricas em questionamentos, reflexões e aprendizados podem emergir de atividades conduzidas nesse âmbito. O olhar atento e a escuta cuidadosa do(a) profissional são necessários para a efetivação de mediações atentas às necessidades e aos interesses das crianças. O(a) professor(a) pode trabalhar esses encontros entre crianças e literatura explorando as situações em que as crianças têm sua curiosidade despertada, apresentam questionamentos, falam de seus sentimentos, impressões e pensamentos. Com base nisso, torna-se possível fazer pontes entre fantasia e vivências reais e convidar as crianças a também fazê-las, construir conhecimentos junto com elas e contribuir para a sua formação como sujeitos autônomos, críticos e criativos.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Andréa de Freitas Ianni andreaianni1@gmail.com
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    Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa realizada pela primeira autora sob orientação da segunda.

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Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2020
  • Revisado
    27 Set 2021
  • Aceito
    16 Jun 2022
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