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A crítica ao currículo: entre Deleuze, Guattari e Foucault 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior – revisao@tikinet.com.br 3 Revisão (inglês): Andreza Aguiar – andreza@tikinet.com.br 4 4 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Curriculum critics: between Deleuze, Guattari and Foucault

Resumo

Neste artigo, investiga-se o modo como a filosofia da diferença impacta na discussão da governamentalidade e das práticas de si no campo do currículo. A primeira parte do artigo debate as técnicas disciplinares e o governo dos corpos e a segunda parte discute as técnicas de si e o governo da alma. Ao longo da exposição, apresentam-se as diversas versões de um discurso que concebe a educação e o currículo enquanto um conjunto de mecanismos de controle que se prestam a gerenciar, normalizar e vigiar os processos de subjetivação. No fim, destaca-se que a influência deleuze-guattariana tende a ressaltar a crescente flexibilidade, imaterialidade e descentralização dos dispositivos de governamentalidade.

Palavras-chave
Deleuze; Guattari; Foucault; governamentalidade; desterritorialização

Abstract

In this study, we investigate the influence of Deleuze and Guattari’s philosophy on the debate about governmentality, the analytics of the subject and the practices of the self. The first part of the paper discusses the disciplinary techniques and the government of the body; the second one discusses the techniques of the self and the immaterial government. The argumentation exposes the composition of a discourse that conceives education and curriculum as a set of control mechanisms, multidisciplinary knowledge and discursive technologies that work to manage, to normalize and to supervise subjective processes. Finally, we emphasize the increasing flexibility, immateriality, and decentralization of the dispositifs of the government.

Keywords
Deleuze; Guattari; Foucault; governmentality; deterritorialization

Neste artigo, fazemos uma revisão teórica da influência de Deleuze e Guattari nas pesquisas dedicadas ao estudo do governo das subjetividades no campo do currículo, em seu sentido mais amplo. Focamos os artigos que combinam os conceitos foucaultianos de governamentalidade e de cuidado de si com algum elemento da filosofia da diferença, seja ele um conceito, uma referência ou mesmo uma nota de leitura. Esta pesquisa é fruto dos resultados de nossa tese de doutorado5 5 Caffagni, L. (2017). Entre Deleuze, Guattari e o currículo: uma cartografia conceitual (2000 – 2015). São Paulo: USP. , cujo objetivo foi cartografar a influência de Deleuze e Guattari na pesquisa curricular entre 2000 e 2015. Em nossa tese, selecionamos todos os artigos publicados em 20 das mais reconhecidas revistas acadêmicas brasileiras de educação que citam Deleuze e(ou) Guattari. Neste texto, investigaremos a forma como a filosofia da diferença articula-se à discussão sobre o sujeito e os dispositivos de controle no campo do currículo. Fazemos uma análise topográfica inspirada em alguns elementos do método cartográfico. Mapeamos a influência da filosofia da diferença sobre o debate dos dispositivos de governo das subjetividades no campo do currículo e em alguns campos diretamente associados. Buscamos acompanhar o processo de desterritorialização/reterritorialização pelos quais os conceitos são ressignificados, combinados e reapropriados em um contexto distinto do original. A Cartografia é um conceito e um operador metodológico criado por Deleuze e Guattari. Ele surge em Kafka, pour une littèrature mineur (Deleuze; Guattari, 1975Deleuze, G.; Guattari, F. (1975). Kafka pour une littérature mineur. Paris: Minuit.), mas é somente no primeiro capítulo de Mil Platôs que ganha uma definição mais acabada:

O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas

(Deleuze; Guattari, 1995Deleuze, G.; Guattari, F. (1995). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 1). Rio de janeiro: Ed. 34., p. 22).

O cartógrafo acompanha o processo, o vivencia e o arrasta ao limite (Barros; Kastrup, 2012Barros, L., Kastrup. V. (2015). Cartografar é acompanhar processos. In Passos, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividades. Porto Alegre: Sulina, p. 52-75.). A cartografia não é uma metodologia convencional que obedece a um conjunto de regras e procedimentos estabelecidos previamente pela comunidade científica, orientando e dirigindo o trabalho do pesquisador em busca de um conhecimento verdadeiro ou de uma representação adequada do objeto investigado. A cartografia está menos interessada em saber o sentido profundo das coisas, do que saber como as coisas funcionam, como elas se conectam e produzem novos fluxos. Seguimos o método cartográfico adotado por Marlucy Paraíso (2004Paraíso, M. A. (2004). Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de um mapa Cadernos de Pesquisa São Paulo, v.34, n.122, 283-303., 2005)Paraíso, M. A. (2005). Currículo-mapa: linhas e traçados da pesquisa pós-crítica sobre currículo no Brasil. Educação & Realidade, Porto Alegre, 30 (1), 67-82. em suas pesquisas sobre a influência das filosofias pós-críticas no GT currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Nesses textos, a pesquisadora acompanha o desenvolvimento das diversas linhas de pesquisa que pensam o currículo a partir de uma perspectiva pós-crítica, mostrando as continuidades, fraturas e conectando as diferentes linhas e velocidades em um campo de pensamento construído no próprio movimento cartográfico:

O currículo pós-crítico pode ser lido como um mapa. Afinal, nele encontramos um conjunto de linhas dispersas, funcionando todas ao mesmo tempo, em velocidades variadas (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Post scriptum, Sobre as sociedades de controle. In Conversações. São Paulo: Ed. 34., p. 47). O mapa, segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 22)Deleuze, G.; Guattari, F. (1995). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 1). Rio de janeiro: Ed. 34., é aberto, conectável, desmontável, composto de diferentes linhas, “suscetível de receber modificações constantemente”. As linhas “são elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos” (ibidem) e, por isso mesmo, são constitutivas do currículo-mapa. Se o currículo-mapa é um sistema aberto, composto por linhas variadas, ele também compõe linhas, toma emprestado algumas, cria outras. O currículo-mapa é experimental, quer ligar multiplicidades, fazer conexões e composições, desterritorializar e reterritorializar

(Paraíso, 2005Paraíso, M. A. (2005). Currículo-mapa: linhas e traçados da pesquisa pós-crítica sobre currículo no Brasil. Educação & Realidade, Porto Alegre, 30 (1), 67-82., p. 69).

Nossa revisão teórica é inspirada pelo método cartográfico em pelo menos quatro aspectos. Em primeiro lugar, não respeitaremos nenhuma cronologia ou organização extrínseca na exposição dos artigos. O que nos interessa é menos a formação de um discurso (que seria o objetivo de uma análise genealógica) e mais as potenciais relações estabelecidas no campo. Em segundo lugar, os artigos debatidos fazem parte do mesmo campo de estudo e utilizam referências em comum, eles compartilham uma mesma problemática geral, contudo não fazem referências uns aos outros. Cada um dos artigos desenvolve uma série de conceitos com objetivos bem específicos, não há nem sequência nem uma unidade teórica entre os textos. Nosso objetivo é acompanhar os diferentes textos, traçando relações entre os conceitos utilizados nas análises dos dispositivos de controle no campo curricular, esboçando um mapa da influência da filosofia da diferença nesse debate. Em terceiro lugar, dividimos esse mapa em duas macrorregiões conceituais: o governo dos corpos e o governo da alma. Cada região é composta de linhas que as atravessam e as ligam entre si. Dentre os dispositivos de governo dos corpos descritos nos artigos, distinguimos aqueles de natureza disciplinar daqueles de natureza biopolítica, os que se aplicam ao corpo individual e aqueles que operam na população; estudamos os dispositivos discursivos midiáticos e os dispositivos de saúde pública do Estado. Identificamos uma multiplicidade de linhas dentre as formas do governo da alma: as linhas dos dispositivos discursivos de normalização, dos dispositivos tecnológicos e do dispositivo de rostificação, as linhas do governo multicultural das identidades e do governo da escrita escolar. Ao longo de nossa exposição, atravessamos currículos de diferentes disciplinas: discutimos a matemática, a saúde, as ciências, a escrita e a técnica; também analisamos diversos conceitos: disciplina, biopolítica, governo liberal, sociedade de controle, governo de si, parrésia, rizoma, multiplicidade, desterritorialização/reterritorialização. Em alguns textos analisam-se dispositivos curriculares oficiais, em outros, dispositivos “ocultos” e marginais; em alguns textos discutimos o currículo em si mesmo, em outros discutimos campos associados. Dessa forma, apresentamos, tanto as diversas entradas da filosofia da diferença e da teoria da governamentalidade no território do currículo, como essa faceta singular do campo do currículo, traçada pelas múltiplas linhas dos estudos deleuze-foucaultianos que, em seus diferentes trajetos, criam uma imagem singular desse campo. Em quarto lugar, traçamos linhas que atravessam diferentes artigos, que conectam diferentes problemas e conceitos. Mostramos como as filosofias de Foucault, Deleuze e Guattari são desterritorializadas e, por vezes, reterritorializadas no campo do currículo. Expomos, por exemplo, como o conceito de disciplina é desterritorializado, passando de uma concepção higienista a uma informacional. Esta revisão teórica pode ser dita cartográfica ainda em outro sentido: ela é um esboço incompleto e em progresso de um campo dinâmico e em desenvolvimento, ela consiste no registro provisório de movimentos inacabados.

Durante muitos anos, Deleuze, Guattari e Foucault mantiveram-se sobre um mesmo território filosófico. Os três criaram conceitos bastante próximos como os de micropolítica e microfísica do poder, discurso e agenciamentos enunciativos, dispositivos e máquinas, diagrama e plano de imanência, governo e controle, fora e outro. Também compartilharam as mesmas referências filosóficas, dentre as quais destacamos Nietzsche, Kant, Heidegger, Blanchot, Freud, Bourdieu e Marx. Além disso, Foucault escreveu sobre Deleuze e vice-versa. As duas filosofias desenvolvem-se sobre o mesmo terreno filosófico, influenciando-se mutuamente, contudo elas sempre se mantêm em suas singularidades e diferenças, irredutíveis. Aqui no Brasil, no campo da educação, a influência de Foucault precede a de Deleuze. Em artigo sobre a difusão do pensamento de Michel Foucault na área de educação, Julio Groppa Aquino (2013, p. 302)Aquino, J. G. (2013). A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Revista Brasileira de Educação, 18(53), 301-324. encontrou teses e dissertações que utilizam o filósofo desde 1987. A pesquisa sobre as relações entre sujeito, saber e poder escapam, portanto, ao recorte cronológico desta pesquisa. Entretanto, a partir do fim da década de 1990 e começo deste século, a pesquisa foucaultiana passou a ser cada vez mais influenciada pelas leituras deleuzianas. É esse efeito Deleuze-Guattari sobre o campo de pesquisa da subjetividade que se acompanhará.

O governo dos corpos

Encontramos três textos que estudam a questão da “medicalização” e “biologização” do currículo de saúde na escola brasileira. Spazziani (2001)Spazziani, M. L. (2001) A saúde na escola: da medicalização à perspectiva da psicologia histórico-cultural. Educação Temática Digital, 3(1), 41-62. estuda os enunciados da mídia sobre o corpo e a saúde e seus efeitos de normalização na educação; Marcos Villela Pereira e José Luis Schifino Ferraro (2011) investigam as práticas de controle e de normalização direcionadas ao combate do vírus H1N1 a partir da análise do currículo do Rio Grande do Sul; já Maria Rita de Assis César e André Duarte (2009)César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134. discutem uma pedagogia do fitness. Nos primeiros dois estudos, investiga-se o governo disciplinar dos corpos, enquanto no terceiro investiga-se o governo biopolítico.

Maria de Lourdes Spazziani (2001)Spazziani, M. L. (2001) A saúde na escola: da medicalização à perspectiva da psicologia histórico-cultural. Educação Temática Digital, 3(1), 41-62. discute a maneira como o ensino de saúde tem sido articulado na escola e no currículo brasileiro. Segundo Spazziani, os primeiros esforços de constituição de uma educação pública em nosso país datam do início do século XX. Nesse período, o ensino de saúde estava voltado ao governo da população mais pobre e caracterizava-se por uma abordagem cientificista e positivista. Ainda hoje, o ensino de saúde está vinculado a um dispositivo de medicalização, de classificação e correção dos males fisiológicos que afetam o aprendizado. Tal concepção responsabiliza o aluno e sua disfunção pelo mau rendimento escolar, desprezando os aspectos culturais e sociais envolvidos na questão. Segundo a autora, o saber médico atravessa todo o espaço social, constituindo um agenciamento coletivo de normalização e vigilância.

Desse modo, o saber médico, conforme Foucault, consiste em entrelaçar o visível e o enunciável e tem como pressuposto o poder. “O poder implica o saber enquanto bifurcação, diferenciação sem a qual ele não passaria a ato” (Deleuze, s. dDeleuze, G. (1992). Post scriptum, Sobre as sociedades de controle. In Conversações. São Paulo: Ed. 34., p. 64). Então, o poder da medicina para normatizar a vida social advém da construção desse saber médico moderno, que apresenta soluções da clínica médica para problemas que tem como principal causa as condições sociais e econômicas de vida

(Spazziani, 2001Spazziani, M. L. (2001) A saúde na escola: da medicalização à perspectiva da psicologia histórico-cultural. Educação Temática Digital, 3(1), 41-62., p. 43).

No texto, não se analisam as políticas públicas de saúde, e sim os enunciados produzidos pela mídia. Segundo a análise, a abordagem da mídia é ao mesmo tempo muito especializada e muito fragmentada, os conteúdos veiculados nesses meios privilegiam “os aspectos fundamentalmente biológicos” da relação entre saúde e educação, desprezando as contribuições das ciências humanas (Spazziani, 2001Spazziani, M. L. (2001) A saúde na escola: da medicalização à perspectiva da psicologia histórico-cultural. Educação Temática Digital, 3(1), 41-62., p. 45). Na conclusão, a autora propõe um currículo multidisciplinar na área de saúde, defendendo que se considere não somente os aspectos biológicos, técnicos e científicos da questão, mas também os aspectos históricos e sociais envolvidos na construção desses conhecimentos.

Em “Currículos e práticas de controle na gripe H1N1”(Pereira; Ferraro, 2011Pereira, M. V.; Ferraro, J. L. (2011). Currículo e práticas de controle: o caso da gripe H1N1. Currículo Sem Fronteiras, 11(2), 134-146.), o assunto é discutido de modo muito semelhante. Apesar do título, os autores fundamentam sua análise no conceito foucaultiano de sociedade de segurança que, ao que nos parece, é muito mais indicado para esse tipo de análise do que o conceito de sociedade de controle criado por Deleuze. Segundo Marcos Villela Pereira e José Luis Schifino Ferraro (2011, p. 144)Pereira, M. V.; Ferraro, J. L. (2011). Currículo e práticas de controle: o caso da gripe H1N1. Currículo Sem Fronteiras, 11(2), 134-146., a modernidade produziu um discurso racional voltado ao entendimento da natureza e dos homens: “Esses acontecimentos marcam a produção e a organização de toda uma epistemologia que, mais tarde, viria a compor o corpo dos saberes disciplinares, aqueles que com a instituição e institucionalização da escola seriam por ela tomados como fundamentais”. A questão final colocada no artigo é “como resistir a esse modo de ser governado?”. Os autores sugerem o conceito de governo de si como uma forma de escapar ao governo disciplinar. A defesa do conceito de cuidado de si enquanto alternativa ao governo moderno deve ser vista com cautela. Não se trata de recusar a modernidade em busca de um passado distante, um passado clássico. Há de se compreender que o interesse de Foucault pelos antigos se deve menos à simpatia pessoal do que à necessidade do método genealógico que volta aos helenos e romanos para compreender o surgimento do sujeito contemporâneo. Em A hermenêutica do sujeito (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes.), investigam-se as práticas de si que subsidiaram tanto a formação do sujeito ocidental quanto o desenvolvimento das técnicas de governo. Origina-se aí a ambiguidade desse conceito que diz respeito tanto a uma prática cuja finalidade é o assenhoramento de si quanto a um imperativo que mais tarde será generalizado, impondo-se à maior parte dos homens. É o que afirma Foucault (2010a, p. 79) ao traçar o plano para a sua aula em 20 de janeiro de 1982:

Assim, há uma série de expressões mostrando como o cuidado de si, tal como se desenvolveu, manifestou-se e exprimiu-se no período que vou examinar, transborda largamente a simples atividade de conhecimento e concerne, de fato, a toda uma prática de si. Isto posto, a fim de situar um pouco o que poderíamos chamar de explosão do cuidado de si, ou pelo menos sua transformação (a transmutação do cuidado de si em uma prática autônoma, autofinalizada e plural nas suas formas), e estudá-lo um pouco mais de perto, gostaria hoje de analisar o processo de generalização do cuidado de si, generalização que é feita segundo dois eixos, em duas dimensões. Por um lado, generalização na própria vida do indivíduo. Como o cuidado de si se torna e deve tornar-se coextensivo à vida individual? É o que tentarei explicar na primeira hora. Na segunda, buscarei analisar a generalização pela qual o cuidado de si deve estender-se a todos os indivíduos, quaisquer que sejam, mas, como veremos, com restrições importantes.

Prosseguindo a análise dos estudos sobre o governo dos corpos, encontramos o texto de Maria Rita de Assis César e André Duarte (2009) sobre a pedagogia do fitness. Como os outros artigos doravante analisados, esse texto toma a escola enquanto uma instituição de controle da população jovem. César e Duarte (2009, p. 124)César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134. definem a escola “como uma grande máquina de governamento das crianças, produzindo práticas e saberes sobre a infância”. Porém, ao contrário dos outros dois textos analisados anteriormente, neste o conceito de disciplina ocupa um lugar secundário. A pesquisa foca o conceito de biopolítica e de governo liberal, discutido por Foucault (2000Foucault, M. (2000). Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes., 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes., 2008b)Foucault, M. (2008b). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. nos cursos ministrados no Collège de France entre os anos de 1975 e 1979. Apesar disso, César e Duarte (2009, p. 129)César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134. não chegam a descartar o dispositivo disciplinar, segundo dizem eles, essa tecnologia ainda é visível no currículo, na avaliação e na organização do espaço escolar, entretanto ela opera lado a lado com o governo liberal. Nessa acepção, a maior diferença entre a disciplina e a biopolítica está no foco das intervenções. Enquanto a disciplina foca o corpo individual, moldando-o em uma forma útil, a biopolítica volta-se ao corpo-espécie, ao controle estatístico da população. A disciplina tem um caráter mais ostensivo e envolve uma vigilância contínua; o governo das populações é flexível, isto é, ele promove um controle no qual o domínio do indivíduo sobre si mesmo substitui os constantes e exaustivos dispositivos de exame do governo disciplinar, reduzindo a intensidade e invasividade das intervenções governamentais. Não nos enganemos, apesar de aparentar ser menos agressivo, o liberalismo também opera por uniformização e normalização (Foucault, 2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., p. 154). Ao contrário da disciplina, na qual a ênfase recai sobre a institucionalização, a vigilância e a modulação do indivíduo, o governo liberal se caracteriza pela administração da liberdade, pela descentralização das ações e pelo uso de estatísticas populacionais, considerada em sua dimensão biológica e econômica. Nesse sentido, dizem os autores:

A higiene e a saúde destinavam-se à construção de uma população saudável; o civismo, à formação de uma população amante dos valores nacionais; ao passo que o letramento destinava-se à produção de uma população de trabalhadores esclarecidos. Assim se configuraram os valores absolutos de todos os projetos nacionais de educação, os quais tomaram a infância como objeto de suas práticas de conformação de uma população adulta viável, previamente preparada para as formas de governamento centradas na gestão do trabalho, da família, e da saúde

(César; Duarte, 2009César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134., p. 125).

Essa diferença entre a disciplina e o governo liberal propicia o uso do conceito deleuziano de sociedade de controle (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Post scriptum, Sobre as sociedades de controle. In Conversações. São Paulo: Ed. 34.) que, no artigo, vem complementar as discussões de Foucault sobre a política de gerenciamento populacional. Dessa forma, os autores se apropriam do caráter flexível e descentralizado do conceito de sociedade de controle para reforçar alguns dos aspectos do conceito de governo liberal de Foucault (César; Duarte, 2009César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134., p. 126). O dispositivo curricular de normalização e governo do corpo atravessa o currículo escolar literalmente, pois os temas relacionados a saúde, relações de gênero, ética e meio ambiente são considerados transversais segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997Brasil. (1997). Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, DF: MEC/SEF.). Assim, os investimentos sobre o corpo se organizam a partir de uma rede de disciplinas interconectadas que atravessam todo o território pedagógico. Essa multiplicação e disseminação dos saberes e práticas voltadas ao corpo, em seu sentido mais amplo, e à promoção de um sujeito mais aberto, flexível e tolerante constituem o que os autores denominam “pedagogia de controle”. Nessa pedagogia, os saberes são acompanhados por uma série de “tecnologias informacionais, nutricionais, educativas e físicas, as quais visam a ampliar suas capacidades corporais e cognitivas de maneira a tornar tal sujeito um ‘empreendedor de si mesmo’” (Foucault, 2004Foucault, M. (1977). Preface. In G. Deleuze, F. Guattari. Anti-Edipus. Capitalism and schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press., p. 232 apudCésar; Duarte, 2009César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134., p. 1276 6 Foucault, Michel (2004). Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard. ). Assim, os conhecimentos da saúde são articulados com uma tecnologia ou governo do eu (Larossa, 1994Larossa, J. (1994) Tecnologias do eu e educação. In T.T. Silva (Org.), O sujeito da educação: estudos foucaultianos (pp. 35-86). Petrópolis: Vozes.; Rose, 2001Rose. N. (2001), Como se deve fazer a história do eu? Educação & Realidade, 26(1), 33-57.) em um dispositivo que visa a promover a capitalização do fator humanoe o crescimento das forças produtivas da população. O fitness seria, nesse sentido, uma das múltiplas linhas de ação desse dispositivo sem fronteiras fixas, que se expressa enquanto um autoempreendedorismo generalizado (César; Duarte, 2009César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134., p. 128).

O dispositivo descrito por César e Duarte promove o autocontrole da alimentação e a adoção de um regime de exercícios, a pedagogia do fitnessmodula sujeitos moderados, ativos e autônomos que se valem das informações científicas para produzir um corpo saudável. A escola associa-se a uma multiplicidade de outros agentes – como a mídia, analisada no texto de Spazziani (2001)Spazziani, M. L. (2001) A saúde na escola: da medicalização à perspectiva da psicologia histórico-cultural. Educação Temática Digital, 3(1), 41-62., as agências de saúde pública e as universidades, cuja participação será analisada a seguir – para produzir uma série de enunciados com o fim de promover o cuidado do corpo em função dos objetivos do mercado. Dessa maneira, surge uma nova forma de medicalização desterritorializada, “um novo higienismo” (César; Duarte, 2009César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134., p. 129).

O ponto alto do artigo é a análise do projeto “A escola promovendo hábitos alimentares saudáveis” do Observatório de Políticas e Alimentação Saudável da Universidade de Brasília, que contou com diversas entidades governamentais e associações médicas. Começando em Brasília, a iniciativa se alastrou pelo Brasil, chegando a influenciar o currículo nacional. O dispositivo estabelece uma rede capilar de difusão de normas de conduta alimentar e de práticas de exercícios físicos. O saber opera um papel central nesse jogo. Em um primeiro momento, o dispositivo é planejado e concebido com base em diferentes especialidades científicas; depois, opera-se a seleção de um currículo a ser transmitido para os alunos, que deve envolver a escolha de conhecimentos – sobre nutrição e saúde – e técnicas de controle do corpo, como a medição da circunferência abdominal, da pressão sanguínea e da frequência cardíaca; no terceiro momento, os alunos escolhidos como “multiplicadores” passam os conhecimentos e técnicas aprendidos no projeto para todos os seus pares, colegas e familiares; por fim, os especialistas recolhem os dados obtidos com as intervenções para compreender e reformular as políticas públicas e as táticas de governo. O texto mostra com bastante rigor o circuito pelo qual o saber se insere e é produzido nos dispositivos de controle.

Interessante ressaltar a diferença entre, de um lado, esse dispositivo de controle e, do outro, o cuidado de si e a parrésia dos helenos e romanos analisado por Foucault em A hermenêutica do sujeito (2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes.) e O governo de si e dos outros (2010bFoucault, M. (2010b). O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes.). Os antigos estoicos e epicuristas também estabeleciam uma dietética e um discurso de si, entretanto a forma como o faziam era bastante singular. No projeto analisado por César e Duarte, os enunciados são transmitidos de cima a baixo, em um movimento transcendente que parte de um grupo de especialistas e se aplica à população. A dinâmica descrita por Foucault ancora-se no conceito de parrésia que, para estoicos e epicuristas, consistia na relação entre um mestre e um discípulo pela qual se propõe ao discípulo uma série de exercícios e provações físicas, filosóficas e espirituais a fim de que ele possa assenhorar-se de si (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes., p. 440). Já a pedagogia do fitness transmite uma verdade científica e uma série de práticas dietéticas preestabelecidas a uma multiplicidade de sujeitos. Na parrésia, o indivíduo é orientado por um mestre na constituição de si mesmo em um território ético indeterminado, no qual o discípulo é confrontado com diversas problemáticas. A diferença entre os dispositivos está na participação e no direito aos problemas. Na pedagogia do fitness, os problemas e as soluções já estão prontas, o modelo subjetivo já está constituído, os participantes só executam as técnicas e procedimentos cientificamente comprovados; já no cuidado de si dos estoicos e epicuristas, o mestre propõe ao discípulo uma série de técnicas de si e de exercícios de pensamento – nos referimos aos procedimentos de escrita , leitura, escuta propostos aos discípulos – que visam “transmitir” o discurso verdadeiro essencial “ … para a constituição de si mesmo como sujeito de soberania sobre si mesmo e sujeito de veridicção de si para si” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes., p. 450). Não é o caso de fazer uma retomada exaustiva do conceito, mas vale a pena ressaltar que a parrésia não foi sempre a relação privada entre um mestre e um discípulo. Antes dos estoicos, na Grécia antiga, ela era considerada um elemento importante na democracia – e em outras formas de governo. Na democracia, parrésia e isegoria seriam dois elementos complementares. A isegoria é o direito igual à voz, ao voto e à opinião. A parrésia, por sua vez, consistiria na virtude de falar francamente, de dizer-a-verdade, virtude essa absolutamente necessária para o bom governo democrático, pois seria a partir desse discurso franco que implica diretamente o orador que os grandes homens, como Péricles, poderiam aconselhar e convencer os outros. É por isso que a parrésia democrática envolvia um risco, risco que o parresiasta corria ao aconselhar a cidade em uma tomada de decisão, que podia não se mostrar exitosa; ou de dizer a verdade e de falar francamente, mesmo quando as massas não eram favoráveis.

Mas como o cuidado de si, a parrésia também envolve uma ambiguidade, na verdade uma dupla ambiguidade. Se por um lado existe a boa parrésia, a de Péricles e Sócrates, que envolve um dizer verdadeiro e um sujeito cuja vida atesta a veracidade de seu discurso, por outro, existe a má, aquela dos aduladores das massas e dos tiranos que utilizam-se da retórica para instigar o soberano, reforçando e elogiando suas opiniões preexistentes. Além disso, há uma ambiguidade genealógica da parrésia. Se, por um lado, ela diz respeito à relação pessoal entre um mestre e um discípulo, primeiro entre os patrícios romanos, os cidadãos de alta estirpe e, depois, na era cristã, disseminada em diversos dispositivos religiosos que visavam o exame e a condução da consciência, por outro lado, em Atenas, nos séculos V e IV a. C., ela também diz respeito à relação entre os cidadãos de uma democracia na condução de um governo fundado em um dizer verdadeiro. Nesse sentido, a parrésia está na raiz da relação entre governo e veridicção. É a partir dessa relação que se desenvolverá todo o aparato moderno de governamentalidade. Entretanto, vale ressaltar a diferença entre esse modelo de parrésia democrático e o modelo de condução das condutas na pedagogia do fitness. Em O governo de si e dos outros, Foucault (2010b, p. 212) retoma uma análise de Platão na qual ele afirma existirem duas medicinas: uma para o escravo que se baseia na prescrição de comportamentos e tratamentos; e a medicina dos homens livres, que envolvia a persuasão. O médico do homem livre precisava expor sua opinião e convencer o doente, precisava expor as razões que o levavam a aconselhar o tratamento recomendado, precisava dizer, por exemplo, que a doença foi causada pela forma como o paciente viveu sua vida até então e que, para se curar, seria necessário mudar alguns hábitos e seguir determinada dieta. A boa parrésia e a medicina do homem livre não são prescritivas, elas orientam os homens na constituição de si e no governo dos outros, elas envolvem a fala franca e o envolvimento do ouvinte. Nesse sentido, os dispositivos de controle contemporâneos misturam o caráter prescritivo da medicina do escravo com a disseminação e difusão das práticas de si na era cristã. As análises de Foucault não indicam o cuidado de si ou a parrésia como alternativa para a resistência aos processos de governamentalização. Elas apontam um momento oportuno no desenvolvimento das técnicas de si, no qual o processo de subjetivação se afirma em sua positividade. Evidentemente, essas técnicas todas só fazem sentido naquele terreno filosófico e cultural da antiguidade clássica.

O governo da alma

Se na parte anterior nos ocupamos dos dispositivos de controle voltados ao corpo individual e biológico, nesta discutiremos os dispositivos imateriais de controle da subjetividade. Evidentemente, como vimos, esses dois dispositivos não se opõem, mas antes se complementam e se reforçam. Iniciamos com a análise de dois artigos nos quais se discute os processos de normalização, o primeiro (Carvalho, Delboni, 2011Carvalho, J. M.; Delboni, T. M. (2011). Ética e estética da existência: por um currículo estranho. Currículo Sem Fronteiras, 11(1), 170-184.) destaca o valor do discurso, o segundo (Carvalho, Ferraço, 2014Carvalho, J. M.; Ferraço, C. E. (2014). A rostidade da figura do professor e do aluno por entre os muros da escola: docência e práticas curriculares. Currículo Sem Fronteiras, 14(3), 143-159.), a expressividade do rosto. Seguimos com o estudo de dois outros trabalhos que discutem os dispositivos de controle curricular a partir das novas tecnologias da informação (Basso, 2009Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p.; Franco; Leal, 2011Franco, M., Leal, R. (2011). Currículo imaterial e currículo cognitivo: hipóteses da relação entre o campo do currículo e da tecnologia informacional. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 218-231.) e terminamos com a observação de outros dois estudos, sobre a matemática (Bampi, 2007Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42.) e a escrita (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656.).

Carvalho e Delboni (2011)Carvalho, J. M.; Delboni, T. M. (2011). Ética e estética da existência: por um currículo estranho. Currículo Sem Fronteiras, 11(1), 170-184. investigam o funcionamento das estratégias enunciativas que organizam os processos subjetivos no interior das escolas, identificando uma série de imperativos de organização, de higiene, de trabalho, e apontando para um conjunto de valores morais que estruturam os enunciados dos professores, constituindo um dispositivo discursivo de poder. Em um diálogo entre duas das professoras, as autoras “capturam” um enunciado que distingue os alunos “esforçados”, que “têm facilidade”, e os “lentos”, com “dificuldade” (Carvalho; Delboni, 2011Carvalho, J. M.; Delboni, T. M. (2011). Ética e estética da existência: por um currículo estranho. Currículo Sem Fronteiras, 11(1), 170-184., p. 173). Segundo as autoras, tal classificação atua na formação da subjetividade, pois produz um efeito de normalização e exclusão7 7 Marlucy Paraíso também analisa os efeitos de exclusão sobre crianças com dificuldade de aprendizado, ver: Paraíso, Marlucy Alves. (2009) Currículo, desejo, experiências. Educação & Realidade, 34(2), 277-293. . Na conclusão, destaca-se novamente o valor do conceito de cuidado de si na resistência ao governo normalizante. Carvalho e Delboni (2011, p. 183)Carvalho, J. M.; Delboni, T. M. (2011). Ética e estética da existência: por um currículo estranho. Currículo Sem Fronteiras, 11(1), 170-184. afirmam que o cuidado de si e a estética da existência podem modificar a ideia de currículo, permitindo a inclusão da diferença e do estranho enquanto potência que supera a normalização e a exclusão.

No segundo texto, investiga-se o dispositivo de rostificação, que é o processo pelo qual o rosto de cada indivíduo é categorizado segundo dois eixos: a significância e a subjetivação. Cada rosto é classificado segundo uma série de oposições binárias: “homem x mulher, adulto x criança, pai x filho” (Carvalho; Ferraço, 2014Carvalho, J. M.; Ferraço, C. E. (2014). A rostidade da figura do professor e do aluno por entre os muros da escola: docência e práticas curriculares. Currículo Sem Fronteiras, 14(3), 143-159., p. 146). Os rostos expressam uma carga significante pela qual são atribuídas funções e posições sociais: o rosto do professor, do aluno, do diretor, do policial, da secretária, da merendeira. Cada um desses rostos é julgado por uma máquina abstrata que seleciona somente aqueles que se adequam a um tipo identificável. Essa classificação, em um segundo momento, compõe um sistema de seleção/exclusão, essencial para compreender o processo pelo qual o currículo regula a distribuição e seleção dos bens culturais e códigos que visa transmitir.

Maria Aparecida Basso (2009)Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p. estuda o currículo a partir das inovações das tecnologias da informação e de sua inerente dualidade. Segundo Basso, a tecnologia da informação constitui um instrumento que pode ser utilizado tanto no sentido de controlar e gerenciar os alunos, quanto no sentido de criar novas redes pedagógicas autônomas e inovadoras. Apesar da ambiguidade das tecnologias da informação, elas não constituem um domínio neutro. Essas tecnologias transformaram a estrutura da sociedade, abrindo um novo campo de possibilidades para o controle e para a resistência: “E a condição de possibilidade à re-significação dos enunciados da educação e do currículo em sua relação convergente com as tecnologias diz respeito, agora, à sociedade cuja episteme imbrica-se na configuração digital dos artefatos de produção” (Basso, 2009Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p., p. 3). Nesta nova configuração social, o dispositivo disciplinar (analisado no começo da parte anterior) é ampliado e escapa aos muros das instituições, propagando-se por toda rede virtual. A vigilância centralizada da arquitetura panóptica dá lugar a sistemas de segurança que conectam redes de câmeras espalhadas por todos os centros urbanos; os mecanismos de busca permitem uma administração e uma visibilidade dos circuitos de uso e transmissão de informação nunca dantes imaginados.

Dessa forma, a condição de desenvolvimento curricular inerente aos espaços educativos na sociedade digital já não é unicamente da ordem da tecnologia, mas da viabilidade advinda dela como condição a novos espaços, não mais fixos, e sim espaços quaisquer, desterritorializados

(Basso, 2009Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p., p. 4).

Essas tecnologias inauguram todo um novo campo de relações entre saber, poder e subjetividade. Nessa paisagem, o sujeito se constitui em meio aos imperativos de velocidade, efemeridade e transitoriedade das informações, mimetizando as disposições flutuantes do mercado. Neste sentido, as formas curriculares digitais observadas ainda seguem o velho modelo disciplinar e burocrático voltado ao controle.

As câmeras estão nas salas de aula, nos corredores, na entrada; cartões inteligentes substituem o registro escrito da presença, as notas e o desempenho de cada aluno dão, agora, mais visibilidade aos pais, num simples acesso ao “boletim on line” disponibilizado via Web. A avaliação é contínua e exercida simultaneamente por vários olhares; a educação é permanente e não se encerra quando se encerra a permanência no espaço escolar. Assim sendo, a escola amplia-se, expande-se na virtualização dos espaços e pela virtualização das suas práticas pedagógicas. O espaço virtual de escolarização é a visibilidade do poder contemporâneo, e a pedagogia online burocrática e disciplinadora é o dizer no enunciado contemporâneo

(Basso, 2009Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p., p. 5).

Apesar das inúmeras ferramentas disponíveis, a utilização desses instrumentos na educação e no currículo ainda tende a neutralizar a possibilidade de comunicação real entre os interlocutores e a fixar condições de aprendizado muito próximas das formas tradicionais disciplinares. As novas tecnologias da informação, por mais flexíveis, conectáveis e revolucionárias que sejam, não têm o poder de transformar as práticas curriculares. Basso sustenta que a transformação da educação digital deve ser realizada no próprio âmbito curricular, na promoção de ações “autônomas, criativas e produtivas”. Ela afirma que o universo das tecnologias da informação oferece uma infinidade de ferramentas e dispositivos que poderiam ser utilizados de múltiplas maneiras para a criação de uma de educação digital inventiva; todavia, a educação “ … extrai um mínimo dessas tecnologias quando limita e determina seu uso na obsolescência do currículo disciplinar” (Basso, 2009Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p., p. 8). O texto opera uma clara oposição entre duas vias do currículo na era digital. Uma maneira tradicional e disciplinar volta-se ao governo das subjetividades e ao gerenciamento da informação; e, em oposição, um novo modo que seria capaz de abrigar uma rede de conhecimento autônoma. A análise das práticas de controle realizada pela autora estende a linha dos dispositivos disciplinares de medicalização em um sentido completamente novo. Se nos dispositivos disciplinares clássicos, como aqueles analisados por Spazianni (2001), Pereira e Ferraro (2011)Pereira, M. V.; Ferraro, J. L. (2011). Currículo e práticas de controle: o caso da gripe H1N1. Currículo Sem Fronteiras, 11(2), 134-146., os agentes de vigilância e controle exerciam sua função de forma direta e centralizada, nesses novos dispositivos disciplinares a vigilância e controle encontram-se disseminados e mediatizados, eles sofreram uma significativa desterritorialização.

Monique Franco e Rita Leal (2011)Franco, M., Leal, R. (2011). Currículo imaterial e currículo cognitivo: hipóteses da relação entre o campo do currículo e da tecnologia informacional. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 218-231. também discutem o conceito e os usos contemporâneos das técnicas de informação e comunicação. A conclusão a que chegam é muito próxima à de Basso, os dois artigos apontam a dualidade do uso das tecnologias da informação; de um lado, há um mecanismo de controle e de governo instaurado através dessas tecnologias, e de outro, um uso rizomático e interativo:

Este ensaio defendeu a hipótese do modelo rizomático (Deleuze; Guattari, 1995Deleuze, G.; Guattari, F. (1995). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 1). Rio de janeiro: Ed. 34.), para dar conta da multiplicidade de conhecimentos intercambiáveis, que se articulam nas mais variadas direções, por meio das novas tecnologias. No rizoma não se verifica a existência de pontos ou posições definidas, mas apenas linhas de segmentaridade e de desterritorialização, interconectadas, planas, que se remetem umas às outras, e nas quais se inter-relacionam diversas possibilidades: “acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações sociais” (Id., p. 18). “Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que se mude de natureza”

(Franco; Leal, 2011Franco, M., Leal, R. (2011). Currículo imaterial e currículo cognitivo: hipóteses da relação entre o campo do currículo e da tecnologia informacional. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 218-231., p. 17).

As autoras fazem uma análise bastante interessante da relação entre a rede neural e a rede cibernética a partir do conceito de rizoma, problematizando a relação entre a dimensão social, tecnológica e inventiva da política. Tal problematização coloca em xeque a oposição entre tecnologia e conhecimento, mostrando a permeabilidade entre as máquinas e o cérebro. Todavia, essa forma de conceituar a educação a partir da oposição entre um modo rizomático e outro controlador, tende a fixar modelos e taxonomias muito genéricas. Os artigos sobre tecnologia e controle estendem duas linhas, uma através da qual eles desterritorializam a oposição entre natureza e sociedade, técnica e pensamento, e outra pela qual eles se reterritorializam, fixando categorias binárias para o entendimento e para o currículo.

Lisete Bampi (2007)Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42. escreve uma crítica ao dispositivo multicultural associado ao ensino de etnomatemática a partir de uma análise dos discursos pedagógicos e acadêmicos sobre o tema. O texto foca a produção de um “mercado de identidades” que visaria justificar ou explicar as diferenças entre as diversas etnias, formando uma “racionalidade multicultural que compõe modos de existência”(Bampi, 2007Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42., p. 27, grifo da autora). A postura crítica da autora não busca desestabilizar o campo do saber matemático em si mesmo e sim um determinado dispositivo de gerenciamento de identidades plurais. A utilização de Deleuze e de Guattari é secundária. Há uma menção ao devir-outro (Bampi, 2007Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42., p. 40) e uma referência a uma leitura de Michael Hardt (2000)Hardt, M. (2000). A sociedade mundial de controle. In E. Alliez (Org.), Gilles Deleuze: uma vida filosófica (pp. 357-372). São Paulo: Ed. 34. do conceito de sociedade de controle. Assim como César e Duarte (2009)César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134., Bampi foca o governo das subjetividades fundado na multiplicidade e na diferença. Entretanto, enquanto os primeiros estudam o governo do corpo, Bampi analisa o currículo das identidades. Segundo a autora, o dispositivo etnomatemático opera uma desterritorialização controlada das identidades (Bampi, 2007Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42., p. 28). Ao deslocar o problema do governo, que nos artigos discutidos anteriormente voltavam-se à formação de uma subjetividade padrão, para um governo que promove uma diversidade de identidades, desestabiliza-se a polarização entre a multiplicidade e o controle observada nos artigos de Basso (2009)Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p., Franco e Leal (2011)Franco, M., Leal, R. (2011). Currículo imaterial e currículo cognitivo: hipóteses da relação entre o campo do currículo e da tecnologia informacional. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 218-231.. Resumamos brevemente o argumento central do texto: a etnomatemática consiste em um dispositivo que faz um resgate de identidades étnicas através de uma memória cultural. Se, por um lado, ela busca promover a diversidade no ensino de matemática, incluindo os grupos normalmente excluídos, por outro lado, ela está envolvida em um agenciamento maior que opera uma identificação e uma categorização rígida dos diferentes grupos e etnias, assim como as máquinas de rostificação analisadas há pouco. Assim, a valorização da cultura torna-se um elemento chave no governo das subjetividades e, consequentemente, na distribuição das significações adequadas a cada identidade. Esse agenciamento distribui duas categorias de identidade, uma normativa e outra “plural”, organizando as diferenças em um campo hierarquizado. Isso acaba por reforçar e naturalizar as diferenças e preconceitos sociais já existentes. Nesse sentido, o outro “é aquilo que devemos tolerar” e que se encontra fora do currículo escolar padrão. No dispositivo multicultural, a diferença é concebida a partir de uma semelhança, de uma identidade compartilhada por determinada comunidade. Dessa feita, o campo de subjetividade é reduzido a um conjunto delimitado de categorias étnicas identificáveis em um processo semelhante ao da rostificação. Além disso, a diferença entre as identidades esconde uma igualdade mais profunda que é a universalidade da matemática:

Se tal é a situação na qual todos os povos serão pensados como a mesma espécie humana e todas as culturas pensadas como integrando uma civilização planetária, as práticas etnomatemáticas não erram seu objetivo; ao contrário, elas o atingem, na medida em que suscitam uma forma particular de inclusão, separando e organizando os indivíduos em espaços relativamente fechados, mas, de um certo modo, penetráveis. Trata-se de solidificar identidades, fazendo funcionar as diferenças mediante um dispositivo que se afirma, desenhando uma forma de exclusão que parece sintetizar todas as outras, deixando à sombra apenas aquelas que se quer ou se deve tolerar

(Bampi, 2007Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42., p. 34).

Em sua conclusão, Lisete Bampi se pergunta se não haveria outra forma de organizar e de dispor esse saber que não trabalhasse em prol da função da formação de identidades sob um fundo equalizante, se não seria possível pensar um exercício da etnomatemática que não se baseie nem em referentes culturais ou identitários nem na crença da naturalidade e universidade do raciocínio matemático, mas na afirmação de puras singularidades irredutíveis umas às outras. Nesse sentido, a autora defende um ensino de etnomatemática que não se fundamente na demarcação de fronteiras e de identidades, mas na afirmação de diferenças em si mesmas, descoladas do caráter representativo e cultural. Isso implicaria fabricar as diferenças matemáticas em um território não organizado por categorias culturais e étnicas, um território habitado por singularidades:

Então, … os indivíduos, sejam eles afro-americanos, palestinos, sem-tetos, sem-terras, indígenas, homens, mulheres, crianças, jovens, dentre outros grupos que as práticas educacionais modernas vem capturando, poderiam tornar-se diferentes em e por si mesmos, experimentar relações criativas

(Bampi, 2007Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42., p. 39).

Julio Groppa Aquino (2011)Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656. problematiza os usos da escrita na escola a partir da agonística foucaultiana. Seu ensaio defende uma escrita voltada à estilização e multiplicação das formas de vida: “Escrita que se dá a ler sem amarras, sem cláusulas de barreira, sem extorsão nem aliciamento do leitor. Escrita andarilha, solitária, desgarrada da luz” (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 654). A agonística das práticas escriturais encara o ato de escrever e o próprio discurso simultaneamente enquanto armas e campo de batalha (Foucault, 2005 apudAquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 3438 8 Foucault, M. (2005). História da loucura na idade clássica (8a ed.). São Paulo: Perspectiva. ) no qual se confrontam diversas forças contrárias. Aquino ressalta o efeito afectivo da linguagem de Foucault que, por muitas vezes, transmite a seus leitores uma certa vitalidade desconcertante. Tal procedimento também é explorado por Cintya Ribeiro (2014, p. 230)Ribeiro, C. R. (2014) “Práticas de pensamento” e o debate curricular: contribuições a partir de Foucault-Cortázar. Pro-Posições, 25(1), 219-237. na análise de um conto de Julio Cortázar, “A saúde dos doentes”, no qual o confronto com os modos de pensamento que incidem num esgotamento das formas de vida produz uma “dobra” ou “efeito rebote” que “irrompe uma estranha vitalidade”. Ribeiro (2014)Ribeiro, C. R. (2014) “Práticas de pensamento” e o debate curricular: contribuições a partir de Foucault-Cortázar. Pro-Posições, 25(1), 219-237. e Aquino (2011)Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656. argumentam que a própria análise da genealogia das formas de pensamento, na medida em que problematiza os dispositivos de governo, lança o sujeito em uma experimentação ética e estética que potencializa a vida. Aquino retoma os últimos cursos de Foucault para discutir o cuidado de si e os processos de subjetivação de algumas escolas filosóficas da antiguidade clássica. A análise do cuidado de si na educação, como já foi dito, não implica um retorno ao antigo modo de vida epicurista ou estoico, mas uma estratégia de investigação dos modos atuais de subjetivação. A referência aos antigos importa, na medida em que coloca em jogo um trabalho educacional não voltado à transmissão ou estabelecimento de uma verdade, mas centrado na transformação do modo de ser do sujeito a partir de exercícios. Nesse sentido, o cuidado de si e a parrésia nos proporcionam uma outra forma de conceber o currículo, não mais fundada em uma imagem representacional do conhecimento, mas em práticas e exercícios pelos quais o sujeito constrói e modifica a si mesmo. Tais exercícios são orientados por um mestre que conduz o discípulo em uma agonística do pensamento. Para Veyne, “ … ‘lançando-se ele próprio sobre si mesmo, enquanto obra a trabalhar, o sujeito dar-se-ia uma moral que já nem Deus, nem a tradição, nem a razão sustentam’. Uma moral sem moral, por assim dizer” (Veyne, 2009, p. 112 apudAquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 6459 9 Veyne, P. (2009). Foucault, o pensamento, a pessoa. Lisboa: Texto & Grafia. ). Para Foucault, a moral se diferencia da ética na medida em que a primeira diz respeito a um conjunto de regras e valores transcendentais que assumem um caráter prescritivo, enquanto a segunda define uma série de prerrogativas facultativas e necessariamente problemáticas “ … empregadas para avaliar o que se diz e o que se faz em razão do modo de vida aí implicado. Sem imperativos categóricos, pois”. Dentre tais práticas, encontram-se alguns exercícios de escrita. Esta prática não visa produzir um dobramento interior do sujeito, mas um processo autocentrado de fortalecimento e de autodomínio. A “incitação de si por si” é o único alvo da ação (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 646).

A partir dessas reflexões, o ensaio foca três eixos de problematização da escrita na escola: sua divisão em gêneros literário; sua função avaliativa e inquisitiva; e a subordinação da escrita à leitura. Segundo nos diz Aquino, a escola enquadra todo o escrito que não se ajuste à forma representativa e científica na categoria de literatura ou de metáfora. Tal procedimento divide as formas de escrita em dois gêneros. No primeiro, as palavras têm sentido próprio, no segundo, um sentido figurado. Essa divisão pressupõe que a escrita copia ou traduz a realidade, que esta “cadeira” na qual sentamos enquanto escrevemos/lemos corresponde ao significante que utilizamos para designá-la. Entretanto, a escrita não se limita a copiar a realidade, ela exprime uma vontade de potência daquele que fala, ela cria a realidade à qual se refere (Mossi, 2015Mossi, C. P. (2015) Teoria em ato: o que pode e o que aprende um corpo? Educação e Pesquisa, 41(Esp.), 1541-1552.). Nesse sentido, ao designarmos uma “cadeira”, estamos nos apropriando de uma convenção social arbitrária, nos apoderamos de um objeto físico, dando-lhe um uso e um sentido bem definido. Joseph Kosuth (1965)Kosuth, J. (1965). One and Three Chairs. New York: MoMA. Recuperado de https://www.moma.org/collection/works/81435
https://www.moma.org/collection/works/81...
, em sua famosa obra “One and Three Chairs”, expõe uma cadeira dobrável de madeira, uma fotografia da mesma cadeira e uma definição:

Chair (châr), n. [OF. chaiere (F. Chaire), < cathedra: see cathedra. ] A seat with a back , and often arms, usually for one person; a seat of office or authority, or the office itself; the person occupying the seat or office, esp. the chairman of a meeting; a sedan -chair; a chaiset; a metal block or clutch to support and secure a rail in a railroad10 10 Imagem digital da obra disponível em: https://www.moma.org/collection/works/81435. .

A obra expõe de forma elegante o jogo de forças envolvido na designação deste simples objeto no qual nos sentamos todos os dias. A identidade da cadeira fratura-se em três: o concreto, a imagem e a definição. Nesse fraturamento, a imagem fixa uma única perspectiva do objeto e a designação acusa a demarcação de uma autoridade e de um espaço hierarquizado. Ora, se a língua exprime vontades e não fenômenos, qual é a função de um pesquisador de currículo? Desconstruir os regimes de verdade e mostrar a arbitrariedade e gratuidade de todo o discurso, agrimensar os limites do já dito e do não dito, desdobrar e estilhaçar o horizonte dado da língua. Tal postura escaparia “… às amarras do já consagrado, à padronização intelectiva perpetrada pela camisa-de-forças da obrigação de descrever a verdade das coisas” (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 648). Ora, se a escrita não é mais referencial, como ainda se submeter à disciplinarização dos gêneros de escrita determinada pela lógica da representação? Contra a escrita “cientificista” o texto propõe uma escrita heteróclita que reúne diversos suportes expressivos e combina diversos gêneros linguísticos. Uma linguagem experimentação, uma linguagem performance:

Escrita-acontecimento: gesto limítrofe de uma criatura desgarrada que uiva diante a longa noite sem consolo dos homens, mediante a qual nada lhe restaria além de emitir sinais ao léu, na tentativa de encontrar uma réplica ao longe no infinito variável do tempo presente

(Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 654).

A segunda estratégia rebatida por Julio Aquino remete ao caráter examinatório da escrita. Segundo tal tradição, a escrita é um lócusprivilegiado para aferição dos diversos regimes de verdade que perpassam o currículo escolar. Essa disposição manifesta um servilismo inerente à função da escrita na escola, na medida em que a tomaria enquanto mero suporte para transmissão de conhecimentos já previamente estabelecidos (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 649). A terceira estratégia de governo destacada pelo autor é a subordinação da escrita à leitura que reduz a escrita a mera recognição. Aquino argumenta que todo exercício escritural é contingente e mantém uma relação de infidelidade e transgressão em relação à leitura. Ora, como fugir à escrita representativa, à escrita cientificista que molda os sujeitos segundo o crivo da verdade, que toma o currículo enquanto cópia e representação secundária do real? O autor propõe uma escrita errática, andarilha, que, “ … desse modo, converte-se no ponto exato de irrupção de forças que teimam em não se vergar ao estabelecido”. Aquino também defende uma potência inerente às ideias curtas (Deleuze; Guattari, 1992 apudAquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 649) e ao esquecimento ativo. “O minimalismo aqui preconizado reivindica não uma parcimônia geral da sintaxe na direção de uma contrarretórica, mas um desalojamento estratégico do contexto discursivo que conforma e contém a multiplicidade possível de significação da própria linguagem em uso” (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 650). Ainda segundo o autor, o esquecimento ativo consiste na luta contra a recognição do já sabido, do já escrito e do já dito, extrapola a potência da memória e da verdade em favor do erro, da autofecundação, da multiplicação de si (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., p. 651) e quiçá da criação de novos problemas. Tal procedimento escriturário se fundamentaria menos na demonstração do que na exposição de ideias.

Considerações finais

Em primeiro lugar, destacamos a influência do conceito de sociedade de controle utilizado por Basso (2009)Basso, M. A. (2009). Currículo e web 2.0 argumentos possíveis a uma diferenciação em educação digital. Revista E-Curriculum, 4(2), s/p., Franco e Leal (2011)Franco, M., Leal, R. (2011). Currículo imaterial e currículo cognitivo: hipóteses da relação entre o campo do currículo e da tecnologia informacional. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 218-231. e Bampi (2007)Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42.. Em segundo lugar, observamos que a influência de Deleuze e Guattari favoreceu a análise dos elementos imateriais e descentralizados do controle e do governo das subjetividades. Nesse aspecto, pudemos observar a discussão de diversas temáticas mais ou menos autônomas: a análise dos discursos e dos enunciados que circulam na escola, na mídia, no currículo oficial e nos diversos dispositivos de governo; das novas tecnologias digitais de controle; dos dispositivos de gerenciamento das identidades e dos dispositivos de rostidade; e a problematização das formas de escrita e do ensino de matemática.

Em terceiro lugar, a influência deleuze-guattariana tende a ressaltar a desterritorialização das práticas de governo, permitindo uma análise mais fina de alguns aspectos da contemporaneidade: a intensificação das práticas disciplinares de vigilância, avaliação e de normalização; a disseminação e atenuação das intervenções de governo; a descentralização administrativa do gerenciamento; o desenvolvimento de diversas técnicas de si, utilizadas em sistemas de modulação subjetivo cada vez mais sofisticados. Importante notar que todos estes elementos já estavam presentes nas últimas análises de Foucault e que são somente destacados a partir de algumas análises deleuze-guattarianas.

Por fim, identificamos em algumas pesquisas a tendência a opor dois modos pedagógicos ou dois modos de vida. Essa tendência aparece sobretudo nos artigos que discutem a questão da tecnologia, do dispositivo disciplinar e naqueles que tomam o cuidado de si ou o rizoma como modelo pedagógico alternativo. Apesar de interessantes análises terem sido feitas nesse sentido, pensamos que há abordagens mais adequadas para se pensar a questão do governo e do currículo. Nesse sentido, ressaltamos os artigos de Julio Groppa Aquino (2011)Aquino, J. G. (2011). A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educação e Pesquisa, 37(3), 641-656., Maria Rita de Assis César e André Duarte (2009)César, M. R.; Duarte, A. (2009). Governos dos corpos e Escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, 34(2), 119-134. e de Lisete Bampi (2007)Bampi, L. (2007). Ordenando Poder-Saber: produção de identidades e hierarquização de diferenças. Educação & Realidade, 31(1), 25-42.. Nesses artigos, os conceitos não são fixados enquanto categorias, eles operam movimentos singulares, são desterritorializados de seus contextos originais e ressignificados em função de outros problemas, inscrevendo-se em um campo de imanência germinal. É nesse movimento de desterritorialização que identificamos a maior potência desse encontro entre a genealogia das formas de governo, a filosofia da diferença e o campo curricular. Aquino se vale do conceito de cuidado de si para formular um problema sobre o governo da escrita escolar em vez de tomar o conceito como alternativa ou solução para o problema da normalização. Ele defende uma escrita não referencial, escrita-afecção. O cuidado de si não intervém enquanto modelo ou alternativa de modo de vida, mas enquanto tensor do pensamento, que o leva a problematizar e rever as práticas escriturais. César e Duarte mostram como o capitalismo se apropria das técnicas de si em um dispositivo que promove o autoempreendedorismo. Já Bampi faz uma análise de um dispositivo classificatório que distingue entre duas formas de identidades: a padrão e as identidades “plurais”. Ao mostrar um dispositivo que incorpora a multiplicidade e a diferença em seu funcionamento, esses autores mostram o limite da abordagem que opõe duas categorias fixas. Talvez, o grande ensinamento de Deleuze e Guattari à teoria do currículo seja o caráter inerentemente híbrido e composto dos agenciamentos, sejam eles governamentais, enunciativos, literários ou rizomáticos.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior – revisao@tikinet.com.br
  • Revisão (inglês): Andreza Aguiar – andreza@tikinet.com.br
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    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
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    Caffagni, L. (2017). Entre Deleuze, Guattari e o currículo: uma cartografia conceitual (2000 – 2015). São Paulo: USP.
  • 6
    Foucault, Michel (2004). Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard.
  • 7
    Marlucy Paraíso também analisa os efeitos de exclusão sobre crianças com dificuldade de aprendizado, ver: Paraíso, Marlucy Alves. (2009)Paraíso, M. A. (2009) Currículo, desejo, experiências. Educação & Realidade, 34(2), 277-293. Currículo, desejo, experiências. Educação & Realidade, 34(2), 277-293.
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    Foucault, M. (2005). História da loucura na idade clássica (8a ed.). São Paulo: Perspectiva.
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    Veyne, P. (2009). Foucault, o pensamento, a pessoa. Lisboa: Texto & Grafia.
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    Imagem digital da obra disponível em: https://www.moma.org/collection/works/81435.

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Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2018
  • Revisado
    25 Jul 2019
  • Aceito
    18 Fev 2020
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