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O Sonho da Docência: Fantástico Tear 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização bibliográfica: William Terence Dunne – williamdunne777@gmail.com 3 3 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PQ 303430/2018-4); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; Pró-Reitoria de Pesquisa, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Programa de Pós-Gradução em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

The Teaching Dream: Fantastic Loom

Resumo

O texto inicia com um procedimento onírico. Compartilha várias questões sobre a categoria conceitual e analítica acerca do sonho da Docência. Antes, de modo aforismático, numa sequência de quadros que se sucedem, situa o fundo comum de estudos já desenvolvidos, em seu terreno trópico ou curiológico: lá onde conceitos, sentidos, proposições e teses — sobre Docência, Arquivo, Currículo, Didática, Aula, EIS AICE, Tradução, Professor, Poesia — mergulham no discurso onírico e nele se enrodilham como gavinhas. Apresenta então pontos de sonho, em sua historicidade, áreas de saber, problematizações e acionamentos, por parte da pesquisa educacional, além de suas relações com a escrileitura e com a morte. Configura, assim, o estágio atual da pesquisa oneirocrítica; a qual, em rede, colhe meteoros e come poeira do deserto. Ao mesmo tempo em que aponta a prudência de, na atualidade, gravar o seguinte epitáfio coletivo: É sinistro como executamos crueldades contra a nossa própria docência.

Palavras clave
Sonho; Docência; Arquivo; Aula; A-traduzir

Abstract

The text begins with an oneiric procedure. It shares questions on the conceptual and analytical category about the Teaching dream. Previously, in the aphoristic way, in a sequence of successive frames, places the common background of studies already developed, in its tropological or curiological field: there where concepts, senses, propositions and theses — about Teaching, Archive, Curriculum, Didactics, Aula, EIS AICE, Translation, Teacher, Poetry — plunge into the oneiric discourse and curl up in it like tendrils. It presents dream points, in its historicity, knowledge areas, problematizations and triggers, on the part of educational research, in addition to its relations with writreading and death. Thus, it configures the current stage of oneirocritic research; which, in a network, harvests meteors and eats desert dust. At the same time that it points out the prudence of, at present, recording the following collective epitaph: It is sinister how we execute cruelties against our own teaching.

Keywords
Dream; Teaching; Archive; Aula; To-be-translated

Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo.4 4 Já que no céu nada alcanço, recorro às potências do Inferno. (Epígrafe usada por Sigmund Freud, em A interpretação dos sonhos, retirada de VIRGÍLIO, Eneida, VII, 312, trad. Carlos Alberto Nunes. Brasília: UnB, 1983.)

(Virgílio)

Antes, no início precedente a toda história, nada existia, nem sequer uma palavra humana para dizer, refletir e meditar. Havia somente a grande realidade numinosa do Demos Oneiron (ou Aldeia dos Sonhos), cuja realidade era constituída de mágica cósmica, fantasmas mudos, mistério puro e ilusão vazia. Então, a Senhora dos Sonhos, amada do poeta Orfeu, vinda do Grande Caos, amarrou, com tripas vermelhas, escamas queratinosas e vísceras excrementosas, os sonhos a uma pipa, toda ela feita das línguas dos anjos, para dos sonhos lembrar, sem perder a alma. E cada vez mais distante das harmônicas línguas dos 7 Deuses Antigos, prendeu os sonhos no fundo do Espelho da Criação. Derramou sobre esse espelho um líquido espesso e pisoteou-o, junto às línguas despedaçadas e enlouquecidas. Nessa desordem e confusão, enrodilhada a Hermes, dormiu então sobre os cacos. Estava criado o Mundo dos Sonhos, nem sensível nem invisível, e também os seus viventes, a sua não-compreensão e o seu intraduzir. Ficaram dispostas, para sempre, a necessidade e a tarefa de interpretar os sonhos; logo, de a-criticar o mundo e de a-traduzir as palavras.

I. O sonho medeia

O sonho medeia entre o mundo da matéria e o mundo do espírito, o tempo e a eternidade? O sonho é o terceiro olho que existe entre os níveis de realidade material e espiritual? É necessário aprender algo para começar a sonhar? O sonho é ficção, fábula, ficções da fábula e do mito? Quem sonha? O indivíduo que nasce, afirma-se e descobre-se na Antiguidade? O indivíduo, cujo conceito parece recomeçar no século XII e, mais uma vez, no Renascimento? O indivíduo do Iluminismo e o do século XIX (Schmitt, 2014Schmitt, J.-C. (2014). O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo. Ensaios de antropologia medieval. (M. Ferreira. trad.). Petropólis: Vozes.)? O problema do sonho depende da nossa definição de realidade? Que coisa é real? O que vemos, o que escutamos, que tocamos? O que é um sonho? Uma visão do além, um signo premonitório? Profecia, oráculo, adivinhação (Roudinesco, 2019Roudinesco, E. (2019). Sonho. Sonhei com a interpretação dos sonhos. In E. Roudinesco, Dicionário amoroso da psicanálise. (A. Telles, trad.) (pp. 310-315). Rio de Janeiro: Zahar.)?

O mundo dos sonhos é complexo e feito de múltiplos níveis: o “sonho só existe socialmente por que se tornou um relato, que pertence não apenas a um indivíduo, mas a um grupo social que o recebe, o transmite, o adapta a seus valores e ao âmbito de suas crenças” (Schmitt, 2014Schmitt, J.-C. (2014). O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo. Ensaios de antropologia medieval. (M. Ferreira. trad.). Petropólis: Vozes., p. 276). O sonho é aquilo que o mito, a poesia, a filosofia, a ciência e a psicanálise dizem que o sonho é. Em nosso caso de professores, o sonho é aquilo que tangencia, que toca, que espaça e que inscreve a Docência; logo, o Currículo, a Didática e a Aula.

Como escritura, codada e visível no mundo, o sonho é irredutível a palavras, pois comporta, como os hieróglifos, elementos pictóricos, ideogramáticos e fonéticos, formados por vozes, cheiros, sensações e muitos enigmas. O sonho é aquela coisa estranha que é bem real, quando acontece, mesmo que seja “parcimonioso, indigesto, lacônico [...] estenográfico” (Freud, citado por Derrida, 1971Derrida, J. (1971). Freud e a cena da escritura. In J. Derrida, A escritura e a diferença. (M. B. M. N. da Silva, trad.) (pp. 177-249). São Paulo: Perspectiva., p. 208]; e é por isso que, dele, só podemos falar après-coup. O sonho é, desde sempre, a sua interpretação que depende, intimamente, da expressão verbal, construída como uma escrita mais do que como uma língua (Major, 2002Major, R. (2002). Lacan com Derrida: análise desistencial. (F. Abreu, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Já o corpo da expressão verbal do sonho não se apaga diante do significado, afirma Derrida (1971)Derrida, J. (1971). Freud e a cena da escritura. In J. Derrida, A escritura e a diferença. (M. B. M. N. da Silva, trad.) (pp. 177-249). São Paulo: Perspectiva.:

não se deixa traduzir ou transportar para uma outra língua. É aquilo mesmo que a tradução deixa de lado. Deixar de lado o corpo é mesmo a energia essencial da tradução. Quando ela reinstitui um corpo é poesia. Neste sentido, constituindo o corpo do significante o idioma para todo o palco do sonho, o sonho é intraduzível [...] (p. 198)

Sendo o sonho intraduzível, o propósito da pesquisa (Corazza, 2019aCorazza, Sandra Mara. (2019a). A-traduzir o arquivo da docência em aula: sonho didático e poesia curricular. Educação em Revista, 35. doi: https://dx.doi.org/10.1590/0102-4698217851.
https://doi.org/10.1590/0102-4698217851...
, 2019bCorazza, Sandra Mara. (2019b). A-traduzir o arquivo em aula: sonho didático e poesia curricular. (Projeto de Pesquisa de Produtividade.) Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Brasília, DF, Brasil, 1-80. ), que dá suporte a este artigo, não é estudar sonhadores – que o são, justamente, por praticarem o sonhar – nem os seus sonhos, como se esses fossem cartas enigmáticas artificiosas e engenhosamente construídas, dos quais restaria descobrir a significação. Ao contrário, a pesquisa estuda o sonho e suas maravilhas longevas (Corazza, 2019cCorazza, Sandra Mara. (Org.) (2019c). Breviário dos sonhos em educação. São Leopoldo: OIKOS.; Reis, 2019Reis, M. dos. (2019). A-traduzir em educação: sonhografias de aula. (Dissertação de Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil, ), no Tempo dos Sonhos; para o qual, nada que não exista no sonho existe. Não se trata do sonho que integra o dormir, nem daquele que idealiza, que evade ou que indica o destino; mas daquele que lê-e-escreve, prepara livros e pratica a Docência. Logo, a pesquisa estuda o sonho operante, que nos leva a dizer fantasisticamente: – Eu sonho, eu sonho, tão amiúde, que me vejo a-traduzir o Arquivo, por excelência, da Docência.

No entanto, para que este artigo seja compreensivelmente interpretado, em seu terreno trópico ou curiológico, será necessário, antes, situar o fundo comum, composto por pesquisas já realizadas; de modo a atingir aquele ponto, no qual elas mergulham no discurso onírico, como texto da sua encenação. Cenário feito numa sequência de quadros justapostos que se sucedem e que, como gavinhas ou cracas, insistem em se agarrar ao sonho.

II. Arquivo da docência5 5 A apresentação esquemática, que segue, tem por base resultados de pesquisas desenvolvidas, nos últimos anos, como Pesquisas de Produtividade, sob o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); da Pró-Reitoria de Pesquisa (PROPESQ) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O conjunto que compõe esta parte do artigo, intitulado Arquivo da Docência, foi, primeiramente, apresentado, como palestra, sob outro título e em versão substancialmente modificada, no I Fórum Nacional Itinerante: Arquivo, Pesquisa e Docência, organizado e realizado pela UNIVATES, em Lajeado, RS, no dia 13 jun. 2019.

Aquilo que se estende, desde aqui, por seis seções6 6 Entre as páginas 4 e 13. , consiste em um trabalho de condensação, deslocamento, sobredeterminação e deturpação da lógica do Arquivo da Docência. Trabalho textual feito com farrapos de sentido, alinhavados em afirmações lacônicas e insuficientes, se comparados ao pensamento dogmático que circula sobre a Docência; que prepara o terreno para inscrever Pontos de sonho7 7 Página 13 e seguintes. . Logo, é um trabalho feito com a matéria daquilo que o Arquivo da Docência é para mim, no sonho de uma vida inteira de professora-pesquisadora, como poeta tardia e autora estrangeira que sou desse mesmo sonho.

Considero a Docência como potência vital, isto é, como forma de existência, capacidade de persistência, enlaçamento com uma certa tristeza e fascinação pelas pequenas alegrias. Docência como tarefa esperançosa de não ser engolida pelo caos e como agitação do lado menos feio da humanidade. Docência como poética, que insiste e perdura feito um castelo no ar. Docência de Sheherazade que, por não encontrar propriamente função no mundo real, oferece-se como uma fantasia, prestando-se melhor para o desfrute. De viva voz, a espada sempre pendendo sobre o pescoço, a cada encontro arriscando a pele, Docência que infiltra a presença maciça do corpo e o deleite das palavras, secretas e sedutoras, derramadas para além dos nefastos adjetivos e da tagarelice.

Docência agitada e agoniada, mas de fruição estética, cheia de véus que arranham a tênue fronteira entre sonho e poesia (Corazza, 2019dCorazza, Sandra Mara. (2019d). O direito à poética na aula: sonhos de tinta. Revista Brasileira de Educação, 24 (7), 1-9.), afrouxam seus contornos e regurgitam miragens. Docência que cria um mundo próprio, como uma máquina de fazer sonhar acordado. Docência que emite gritos de pavor e cantos de guerra contra o idealismo religioso, a retórica política e as besteiras morais. Docência como proliferação de devaneios, retificação da realidade, criação de um rendilhado feito com pedrinhas de brilhante. Docência como oceano de impossíveis, tão surpreendente, que não necessitaríamos mais de nenhum além. Docência feita tanto de paragens distantes e assombradas, quanto de passagens próximas e inapreensíveis. Docência urdida nas longas noites dos tempos, por um arquivo tecido pela poesia do dito-e-feito.

Em função dessa alucinação, dou-me o direito de falar sobre o Arquivo da Docência de um modo ilhado. E se, dele, eu não pudesse falar fragmentariamente, justo por isso, falaria. Porque se eu pude pensar, mais adiposamente, o que já pensei até agora, obrigo-me aqui a lidar com um limite que não é só da linguagem, mas daquilo que a tolerância d’alíngua (Miller, 1987Miller, J.-C. (1987). O amor da língua. (A. C. Jesuino, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.) não conseguiu transformar em contrassenso. Restabeleço um rigor de brevidade no ato de escrever sobre o Arquivo da Docência, exercendo uma espécie de introvisão egoísta de um coração desnudado, roído por formigas ardedeiras – mesmo que irrite os arabescos e arrepie a dicção da letra.

Embora pareça que, atualmente, somente aos Pastores Fardados interesse discutir a problemática da Docência, este artigo prova o contrário, sendo levado a termo, escrito e lido. Como se ele fosse um enigma figurado, que dispõe de um número ilimitado e não pré-formado de figuras e que compõe tantas dificuldades quantas os antigos escritores de hieróglifos apresentavam a seus leitores. Como se todos nós, escritores e leitores, ao redor do seu fogo, estivéssemos cumprindo um pacto de cumplicidade amorosa, na safra do entressonho, acompanhando os fluidos do amor se transformarem num caudal itinerante, no suspiro, na entonação, no gesto teatral; para que suas palavras fiquem aquém da representação, somente sentidas no corpo, como uma dor aguda, que acaba arrebentando as têmporas; pois não fornecem certeza de que seus componentes devam ser interpretados num sentido positivo, negativo, inverso; nem com a anuência de símbolos ocultos tampouco com a ausência de ícones escusos.

Artigo alegórico, por conseguinte, cuja matéria-prima é a arcaica memória e a forma caótica dos contos de fadas. Texto como um resto que nos trespassa, entrecruza e se altera na zona indefinida entre querer sonhar e saber sonhar. Artigo cindido, que escapa do cimento da suposição para devanear eroticamente, como as brincadeiras infantis de médico. Texto remanescente de uma devastação, mas não sem lacunas. Artigo feito num escoamento de escrileituras (escritas-e-leituras) que sustentam a falsidade da sua atualização. Logo, texto questionável, em sua atemporalidade, que retroage para recuperar as operações intelectuais e os laços lógicos das ideias latentes, que o conteúdo manifesto fragmentou, comprimiu, deslocou, ao ser traduzido para a sua versão compacta. Artigo que, portanto, não se compara a nada, a não ser a seu próprio texto. E que deve, por isso, ser entendido ao pé da letra. Desde que é a transcrição, com perdas, de um viver pesquisador, que não supõe dominar o real conhecimento docente.

1. Conceitos e sentidos de pesquisa

Venho trabalhando, em várias pesquisas, cinco conceitos com os sentidos que lhes correspondem, quais sejam: a) Arquivo: como canto e escrileituras tradutórios da tradição; composto pela matéria aformal de arte, ciência e filosofia; matéria que se nos dá a traduzir, que somos instigados a traduzir, que é nossa tarefa traduzir; aquilo que temos o desejo, a vontade e a responsabilidade de traduzir. b) Traduzir + A-traduzir: equação da traduzibilidade/traductibilidade e da intraduzibilidade/intraductibilidade; traduzível como ilusão de tradução; traductível como a tradução que renegocia com a matéria de origem; a-traduzir como a ruína, o que escapa, o que cai, o que foge, o que acontece, o que prenuncia a morte. c) Currículo & Didática: unidades clássicas da docência, pensadas como dois planos de estratificação e de consistência, que possuem existência tradutória separada, embora não funcionem independentemente um do outro; planos que se agenciam, atualizando-se na Aula; para rearticularem substância, matéria, forma, conteúdo e expressão. d) Aula: reúne, expressa, conteudiza e atualiza EIS AICE; EIS (Espaços, Imagens, Signos) do Currículo; AICE (Corazza, Infantil, Currículo, Educador) da Didática (Corazza, 2018Corazza, Sandra Mara. (2018). Uma introdução aos sete conceitos fundamentais da docência-pesquisa tradutória: arquivo EIS AICE. Pro-Posições, 29(3), 92-116. doi: https://doi.org/10.1590/1980-6248-2017-0042
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). e) Sonho, Poesia: docência como ficção, fantasia, fantasmagoria, espectro de Arquivo; modos de a-traduzir o Arquivo, dispostos entre a criação literária e a teoria; ideias docentes funcionando como sonhos; língua poética da Docência, enquanto rebelde à formalização, desvio da norma, da linguagem objetiva, descritora e constatativa.

2. Proposições da Docência

Enuncio, agora, cinco Proposições sobre a docência, quais sejam.

Primeira Proposição: – É necessário traduzir.

Como figuras históricas, os professores derivam do deus egípcio Thoth: deus do conhecimento, da linguagem e da magia. Como personagens conceituais, descendem dos escribas, que foram os mestres da escrita, do ensino e da tradução. Ao trabalhar com Docência, praticamos a mágica tarefa de traduzir; porque não podemos não praticá-la. Por meio da escrileitura, processamos a afinidade operatória entre Docência e tradução, que não forma sistema, não é recepção, comunicação nem reprodução. A escrileitura docente traduz a matéria original para a língua singular do Currículo e da Didática, que se agita e irrompe na Aula. A maior ambição da Docência é a traduzibilidade ilimitada da matéria; mediante enunciados repetíveis, formalizáveis e transmissíveis, que exigiriam uma tradutologia geral, abusiva e violenta. A Docência, no entanto, supõe intraduzíveis, tais como: imagens impensadas, signos desconhecidos, lugares inexistentes, tempos indefinidos, ideias inominadas, assinaturas, nomes próprios, poemas e sonhos. Ao mesmo tempo, para ser realizada, a Docência exige que o intraduzível seja traduzido. Por meio da Docência, o professor está engatado triplamente: pela matéria, pelos alunos e pela própria profissão: a) a matéria diz ao professor: – Só terei sobrevida se me traduzires; b) os alunos dizem: – Estamos aqui para movimentar suas traduções (e as nossas). c) o professor está, desde a partida, envolvido pela tradução: – Sei que, para ser professor, tenho a tarefa impossível de traduzir (texto, obra, autor, linguagem, cultura, equação, fórmula, ideia). A lei da tradução docente é que esses três engates permaneçam insolventes: a) em relação à matéria original, que sempre resta incompleta; b) ao resultado do ato tradutório, diante do que é esperado pelos alunos, que sempre restam insatisfeitos; c) em relação ao compromisso profissional, diante do que resta por traduzir – face à matéria, aos participantes e ao processo. Sob a égide dessa Primeira Proposição, a Docência nunca irá até o fim do seu imperativo – É necessário traduzir porque: a) não pode apagar o estrangeiro na matéria; b) se o fizer, não deixa espaço para as diversas línguas envolvidas; c) não pode traduzir, na integralidade, visto que deve preservar a multiplicidade linguageira.

Segunda Proposição: – Não tocar na matéria original.

O professor sempre começaria pelo original e não pela retradução de uma tradução. Seguiria assim o axioma benjaminiano (Benjamin, 2008Benjamin, W. (2008). A tarefa-renúncia do tradutor (S. K. Lages, trad.) In L. C. Branco (Org.). A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: Quatro traduções para o português (pp. 66-81). Belo Horizonte: Fale/UFMG.): – Você não pode tocar no original; que garante a pureza da criação e leva o tradutor a interpretar, criticar, deslocar e inventar. Esse postulado de um original idêntico a si mesmo encontra objeções no processo tradutório transcriador, entendido como um movimento do espírito, beneficiário de direitos autorais. O intocável no original não é o seu texto ou a sua forma; mas um sempre a-traduzir, como invisível e indecidível traduzir, irredutível a um sentido. A principal tarefa docente é esta: quando a matéria viva está disponível, voltar nossa face para a sua porção não traduzida.

Terceira Proposição: – Preservar a singularidade do intraduzível.

É a parte criadora da matéria que resiste à tradução organizada, calculada e objetiva, permanecendo na condição de a-traduzir. Ao manter a matéria intacta, contribuindo para a sua sobrevida, a tradução a transforma; o que encaminha nossa responsabilidade ética pela singularidade do intraduzível. Traduzir a matéria intraduzível é participar de uma relação com outros; na qual, a cada tradução, é inventada a nova e única matéria. Porém, se insistirmos demais em traduzir o intraduzível, corremos o risco de criar a prioris, aporias e axiomas.

Quarta Proposição: – Deixar a tradução contaminar a Docência.

A tradução contamina os campos do saber, tornando as disciplinas passíveis de transferência, deslocamento, transposição, transformação, mutação e criação. Desse modo, a Docência é corporificada como um problema de diferença, diferenciação e disseminação da aliança dissimétrica e heterônoma entre matéria e espírito.

Quinta Proposição: – Como tarefa impossível e aporética, a Docência requer traduzir e ser traduzida.

Enquanto profissão pós-babélica, a Docência pertence e não pertence a uma língua, embaraçando os professores na confusão entre traduzir e não-traduzir. Devido a sua natureza tradutória, a Docência dispõe-se a um cumprimento cujo fim é não sair a contento. O chicote da língua da Docência é requerer o traduzir e o a-traduzir, inclusive, de si mesma.

3. Teses de tradução

Como resultados de pesquisas anteriores, defendi as cinco Teses seguintes: a) Aula: espaço-tempo tradutório por excelência do Currículo e da Didática. b) Didática + Currículo = como sonho de Arquivo. c) Arquivo: como tradução (canto, sonho, poética) da tradição. d) Tradução e A-tradução: equação da operância vital da Docência. e) Docência como direito de sonhar e de poetizar.

Na continuidade das Teses acima, atualmente, desenvolvo as seguintes formulações. a) A tradução é constitutiva de toda ação de ler, interpretar e escrever; assim como toda ação de ler, interpretar e escrever é um processo de tradução. b) A tradução não transporta o sentido, nem se destina a servir a alguém. c) No topo da tradução, não cabe a cadeia de polaridades original/cópia, senhor/escravo, fidelidade/liberdade. d) O processo tradutório não é duplicação da matéria original (significado), nem um abandono do seu corpo (significante). e) A tradução é uma forma e não um modo de representação. f) Quanto maior for o peso comunicativo da matéria, mais a tradução será insatisfatória; quanto mais elevada for a sua potência criadora, tanto mais difícil e digna será a tarefa tradutória. g) A tarefa do tradutor implica a insuperável diferença e complementaridade das línguas; logo, não esconde o original, mas é transparente a ele, tornando-o visível. h) A intraduzibilidade é vista a partir da traduzibilidade necessária. i) O a-traduzir diz respeito ao impossível, contingente, vazio, inesperado, acidente, rachadura, catástrofe, terror da escuridão, que não se move nem pisca. j) Quando um professor nasce, não é em um berço que ele é depositado, mas em um arquivo. k) O proto-elemento do professor é a palavra tradutória. l) A tradução é sempre já uma passagem ao Arquivo. m) Traduzir é transformar a matéria e formar o Arquivo da Docência. n) Quando o ato da tradução re-institui o Arquivo, na Aula, via EIS AICE, ele se torna canto poético e cena onírica. o) A energética essencial da tradução é deixar escapar a matéria do Arquivo. p) A Docência é o nosso direito inalienável de sonhar e de poetizar o Arquivo da Aula.

4. Escólios do arquivo

Escólios do Arquivo são comentários, anotações, ponderações, glosas, explicações, notas, paráfrases daquilo que os antecedeu: Conceitos, Sentidos, Proposições, Teses. a) O a-traduzir é primeiro em relação ao traduzir. b) O Arquivo é primeiro em relação à tradução. c) A língua é primeira em relação à linguagem. d) A lei da tradução é que todo Arquivo – feito de discurso, de crítica e de escrileitura – é sempre já uma tradução. e) A tradução é uma passagem ao discurso do Arquivo, onde nos encontramos. f) A tradução está ligada à gênese do Arquivo e é consubstanciada no a-traduzir. g) A dificuldade de traduzir inaugura a verdade do Arquivo como tradução. h) A tradução é passagem, transporte, transferência, transposição de acontecimento e de matéria para um arquivo. i) A tradução é matriz do pensamento porque deriva de uma experiência original e do desvio da matéria em relação a si mesma; logo, todo arquivo é uma alegoria (Benjamin, 2009Benjamin, W. (2009). Passagens. (I. Aron & C. P. B. Mourão, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.). j) A tradução não é apenas um processo como outros, nem uma regra sistematizadora, por meio dos quais exercemos a Docência; mas é o princípio articulatório originário do seu próprio Arquivo.

5. Espólios do professor

Espólios são patrimônios ou uma reunião de bens e propriedades, que alguém deixa de herança; também são considerados legados; como espoliação, é aquilo que é tomado ao inimigo; enquanto despojos, são ação ou consequência de roubo; ou é o conjunto que restou daquilo que se finou. Eis alguns espólios textuais. a) Por movimentar o Arquivo da matéria, o professor é um arquivista. b) Há uma positividade do Arquivo, pois ele é a condição da Docência. c) O Arquivo conquista a sua potência, graças aos vestígios deixados ou fragmentos que se encravam nos participantes; e que são reconstituídos por quem os pesquisa. d) Estabelecemos relações dramáticas com o Arquivo: i) relação com o espectro do Arquivo absoluto, isto é, com a ideia louca de que tudo pode ser arquivado; ii) relação tão apaixonada pelo Arquivo que dele fazemos um culto narcísico de nós mesmos, apagando fontes, borrando história, negando origem (Roudinesco, 2006Roudinesco, E. (2006). A análise e o arquivo. (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.). e) Sofremos, no mínimo, de dois males do Arquivo: da ausência e do excesso; o que equivale a dizer destruição e presença; memória e esquecimento; paixão e asco; amor e ódio do Arquivo. f) Precauções de prudência para esses males: i) se tudo puder ser arquivado, a Docência como criação fica obstaculizada, pois o Arquivo é substituído pelo saber absoluto; ii) se acharmos que nada está arquivado, que tudo está apagado ou destruído, a Docência tende para a soberania delirante de um Eu, absurdamente autárquico, que buscará reinventar um arquivo para funcionar como dogma. g) Se nada puder ser traduzido, pois tudo já está arquivado, sucederão interpretações delirantes, que excedem o Arquivo, como se este fosse um real incontornável, um lugar de significações ilimitadas, impossíveis de conter ou de simbolizar; ficamos, então, atolados num impasse de ignorância, que recusa o Arquivo. h) Já, se nos enfiamos num regime de traduzibilidade absoluta, ficaremos devendo obediência cega ao Arquivo. i) Estamos de frente para dois limites da mesma interdição: i) o impossível de traduzir, que é a interdição do saber absoluto; ii) e o outro impossível de tudo traduzir, que é a interdição da soberania interpretativa do Eu. j) O culto excessivo do Arquivo leva a tradução da matéria a um efeito eminentemente quantitativo, quase destituído de imaginação e cuja construção tem necessidade de suprir a ausência de vestígios. k) Já, como herança genealógica, a negação do Arquivo também o leva a ser dogmatizado, visto que a sua reconstrução exige fabricar um espelho de si; para esse professor, é possível reviver um acontecimento apenas pela força da palavra ou do testemunho, como se o Arquivo fosse tão-somente uma construção interpretativa. l) Há, ainda, professores de professores que recusam o acesso ao Arquivo, depositado num Reino Soberano, cujos vestígios são sacralizados, a ponto de ser dissimulados, borrados ou censurados, a fim de preservar a imagem intacta dos amos ou da sua própria produção; essa relação forma comunidades definidas ou grupelhos iniciáticos eleitos; trata-se dos Donos do Arquivo que são os mestres da pior espécie, geralmente formados no serralho oficial ou no sarrabulho estatal... quando não são gestados em nossas próprias barrigas. m) Parece básico: contra as duas imagens dogmáticas, trabalhamos pela significação plural do Arquivo, fundada na proliferação de nuances, variantes e relances. n) Isso por uma razão simples: porque o Arquivo é, por sua natureza, intertextual, polifônico e irredutível a um enunciado único.

6. Pólipos de questões

Pólipos são pequenas protuberâncias que crescem em cavidades revestidas por mucosas; costumam ser lesões benignas, embora alguns tipos possam se transformar em malignas. Vejamos. a) O Arquivo não é um conceito rigoroso; trata-se, antes, de uma noção vaga e com uma carga de indeterminação tal que pode chegar a uma imprecisão fatal para pensar. b) Habitue-se a perguntar qual é a sua relação com o Arquivo: se você transborda de Arquivo ou se é vazio de Arquivo; aprenda a modular o Arquivo em você. c) Pergunte, também, o que você pretende do Arquivo: ser dele um arquivista, uma testemunha ou um investigador, nele buscando provas de assassinatos, trapaças, falcatruas ou mal-entendidos. d) Indague se você consegue proceder, de vez em quando, a um afrouxamento, desapego ou desmanche de Arquivo. e) Verifique se o trabalho de orientação de pesquisas pode ser pensado como um encontro de arquivos. f) Há distinções entre Arquivo, realidade e fantasia? g) O Arquivo é uma realidade objetiva ou uma realidade histórica, psíquica ou intelectual? h) Mas o que querem aqueles que, tão interessadamente, lhe formulam essas questões? i) Será que ainda podemos, fantasiosamente, pensar o Arquivo como um animal, um arquétipo ou uma besta; visto que, na estrutura das fábulas, ao animal podemos atribuir atos proibidos e comportamentos proscritos; o que nos permitiria contornar tabus narrativos e evitar verdades assustadoras ou tentadoras demais? j) Talvez o Arquivo de uma vida inteira possa ser posto em uma caixinha e fechado com o tempo; então, seguiríamos com a Docência, se não dormíssemos muito, não respirássemos muito, não nos mexêssemos demais; até que a morte reaparecesse e nos arrastasse, outra vez, para o Ponto Zero. k) Por atribuir um pouco mais de vida à matéria, a Docência é um ato humano artistador de Arquivo; logo, de Poesia; logo, de Sonho; logo, de Luta; e é assim que os professores resistem às diversas pequenas mortes.

III. Pontos de sonho8 8 Desde esta seção, até o final do artigo, a matéria apresentada pode ser originariamente encontrada, com modificações significativas, tanto no Prefácio ao Breviário (p.13-25) como no Posfácio ao Breviário (p. 213-219), ambos integrantes do livro Breviário dos sonhos em educação (Corazza, 2019c).

Eis que nos encontramos preparados, neste momento, para tratar da presença do sonho na pesquisa da Docência. Desde o alvorecer da humanidade, o sonho nos visita, quando menos o esperamos. O danado nunca avisa quando vai aparecer ao sonhante. O que é sonhar? Há muitos séculos, esta pergunta acende discussões científicas, teológicas, populares e práticas de decifração. O sonho é matéria de experiência analítica nas ciências humanas, médicas, psicológicas, cognitivas, conjecturais. É móvel de inúmeras produções no cinema, artes visuais, publicidade, semiótica, literatura, religião. Na Antiguidade, a análise dos sonhos integrou as técnicas de existência. As imagens dos sonhos eram consideradas signos de realidade ou mensagens do futuro. Decifrar os sonhos sempre teve um grande valor para a vida prática da humanidade. Sonhos deixam impressões de angústia, medo, pavor, prazer, satisfação, alegria. Contam histórias fantásticas e irreais. Criam esperanças e promessas de felicidade. Mostram algo que se almeja e que apenas ao ser sonhado é realizado. Carreiam premonições, medo, azar e fatalidades. Instigam a curiosidade. Alimentam a vontade de saber sobre significações do próprio desejo.

Os sonhos andam, com pés alados, na calada da noite. Dizem como são o sono dos deuses e, por vezes, a sua fala. Os sonhos são a recompensa da fruição de dormir. Proliferam mascarados. À luz do dia, mostram a sua cara em devaneios e pensamentos que nos assustam. Expressam desejos que estendem dedos contrafeitos e carcomidos, desde os escombros de cada história pessoal. Reeditam o passado soterrado pelo esquecimento dos fatos ou da velhice. Os sonhos insistem e resistem à própria extinção.

Por isso, objetos e ações dos sonhos nos parecem tão reais como quando estamos em estado de vigília. Este paradoxo foi expresso por Chuang-tzu (ou Zhuāngzǐ), no século IV antes de nossa era: “Certa noite, sonhei que era uma mariposa que revoluteava daqui para ali, contente com minha sorte. De súbito, acordei e era outra vez Chuang-tzu. Quem sou afinal? Uma mariposa que sonha que sou Chuang-tzu, ou Chuang-tzu que sonha ser uma mariposa?” (Coxhead & Hiller, 1997Coxhead, D., & Hiller, S. (1997). Sonhos e visões. (F. Perales, trad.). Rio de Janeiro: Edições del Prado; Fernando Chinaglia Distribuidora., p. 4). Professores, somos como Chuang-tzu, pois podemos dizer: – Um dia, sonhamos que éramos borboletas, que andavam voando pelo ar dos sonhos de Aula e que sonharam que eram escritores de sonhos da Docência que nada sabiam dos sonhos das borboletas...

Sonhamos, simplesmente. Sonhamos desde que nascemos. Antes de sermos considerados recém-nascidos, inclusive? É a morte um sono sem sensações, um repouso, um descanso em paz? É a morte um sono? Ou o jacente da arte funerária, o requiescens sonha ainda? A vida é sonho? Ou sonhamos a vida? O sonho nos põe diante de questões que clamam por sentido e por respostas, que costumam não chegar. Isso se não for o próprio sonho a questão indecidível.

Costumamos borrar o sonho e viver realizando o seu apagamento. Nunca o possuímos, pois somos nós a sua possessão. Não sonhamos o sonho, somos cavalgados por ele. Nessa cavalgada panteísta e energética, tornamos o sonho excêntrico a nós mesmos, fazendo dele algo bem distante ou o último elemento a ser tematizado. Como aquilo que não cessa de não se inscrever, os fragmentos erráticos, deslocados, distorcidos e irruptivos do sonho, que escapam à censura, o denunciam como sendo, a um só tempo, estrangeiro e profundamente familiar.

Não existe nada mais Unheimlich do que o sonho. Assim como a poesia, o sonho não é apenas uma espécie estranha de coisa humana. Talvez nem chegue a ser uma coisa. Dele, não podemos dar testemunho. Ao sonhar, nunca estamos seguros daquilo que estamos fazendo, não conseguimos dizer que estamos sonhando. Quando podemos constatar que sonhamos, já é tarde demais, pois acordamos, e o sonho é findo. Logo, temos razões para desconfiar que, talvez, nunca tenhamos sonhado. Ou que, ao contrário, toda a nossa vida, com as suas paixões, não passou de nada mais do que um sonho.

Assim, quando relatamos, escrevemos, desenhamos, dançamos, performamos ou construímos a imagem de um sonho dizemos que foi sonho; mas, talvez, tenha sido somente uma experiência singular, à qual damos o nome de sonho. A cena do sonho se apresenta como uma imagem hiper-realista ou surrealista; de todo modo, é uma manifestação ordinária. O sonho não é uma prestidigitação, produzida pela inconsciência, que ilude, mente, deforma ou encobre significados preexistentes. Não é uma fachada ou uma cortina, que veda significados que se ocultam à consciência. O sonho não nos engana nem ilude. O sonho sempre diz tudo aquilo que pretende dizer. Diz bem demais aquilo que diz. Mesmo que pareça mal dito, o sonho possui a sua própria fala (palavras, gestos, escrita) onírica; a qual, aliás, integra o sistema linguageiro no qual estamos já imersos.

Franqueado pela consciência, todo sonho surge e é organizado como uma cena. Cena feita como no teatro. Freud diz: – Ein anderer Schauplatz. E Lacan traduz: o sonho enquanto uma outra cena, que corresponde ao inconsciente como o discurso do Outro; isto é, como a linguagem, com os seus possíveis e equívocos. Cena onírica, na qual, sonho e sonhador estão subsumidos. Tanto que há estudiosos (freudianos) que concebem o sonho como a repetição do mesmo, de modo que sonhar seria uma compulsão à repetição. Para essa concepção, existe apenas um único sonho que é repetido na historicidade do sujeito. E suas inúmeras variações n’, n”, n’” ... marcariam a diferença = n + 1. Enquanto para outros (junguianos), os sonhos produzem um sistema arcaico de expressões, figuras típicas, coletivas, arquetípicas (Corazza, 2019dCorazza, Sandra Mara. (2019d). O direito à poética na aula: sonhos de tinta. Revista Brasileira de Educação, 24 (7), 1-9.).

Sonhar não é apenas ter sonhos, desejos ou imaginação, ensina Dom Juan de Castañeda (1995)Castañeda, C. (1995). A arte do sonhar (A. Calado, trad.). Rio de Janeiro: Record.. Sonhar é um processo e uma sensação no corpo por meio dos quais percebemos outros universos e novas dimensões são abertas. Os feiticeiros, deliberadamente, usam a arte do sonhar: um conjunto de práticas para recondicionar nossas capacidades energéticas de perceber o mundo. Dormimos porque precisamos sonhar e, assim, realizar uma aprendizagem in-consciente, que enxerta sua seiva em nossa vida psíquica, sempre faminta de alegria e de felicidade.

Para acionar a Aula, nós, professores, sonhamos com os elementos componentes do Arquivo da Docência, quais sejam: Espaço, Imagem e Signo (que compõem o processo tradutório do Currículo); além de Autor, Infantil, Currículo e Educador (que formam o da Didática) (Corazza, 2019aCorazza, Sandra Mara. (2019a). A-traduzir o arquivo da docência em aula: sonho didático e poesia curricular. Educação em Revista, 35. doi: https://dx.doi.org/10.1590/0102-4698217851.
https://doi.org/10.1590/0102-4698217851...
). A Aula é a cena manifesta dos sonhos de professores e de alunos. Lá, nos sonhamos, enquanto sonhamos a matéria. Algumas vezes, sonhamos juntos. Em outras, trocamos equivalências de um sonho para o outro. Por muitas vezes, cavamos diferenças entre os sonhos. A Aula é a casa da artistagem do sonhar. Cada Aula sonhada tem de lidar com o inexprimível da linguagem. A cada vez que alguém diz: – Eu tive um sonho, é o seu exercício linguageiro que rearma uma outra cena.

Não há modelo, nem mágica, nem lógica, nem ciência, nem leis fundamentais da formação nem da decifração dos sonhos. Nos sonhos de Aula, alucinamos o sujeito, o fazer e o pensar; isto é, explodimos o (lacaniano) objeto a (Corazza, 2019cCorazza, Sandra Mara. (Org.) (2019c). Breviário dos sonhos em educação. São Leopoldo: OIKOS.). Os sonhos são multidimensionais e transindividuais. Em cada aurora, sofremos perdas, pois ficam mais vazias nossas botijas de pensares misteriosos e de sentires magoados. E com menos valia queda o nosso odre de segredos e dores que refluíram nos sonhos. O sonho é fonte e sumidouro, broto e poda, fio d’água e ralo. Se tem algo que não interessa ao sonho é a distinção entre realidade e irrealidade, consciente e inconsciente, fantasia ou fato, estado dormente ou desperto. O sonho é empirista transcendental: desrealiza e surrealiza.

O sonho é uma rede comunista que trança toda a humanidade numa união explícita: todos sonham e nunca deixam de sonhar. Deveríamos usar o dístico no peito: – Sonhantes de todos os países, Uní-Vos! O sonho não é figuração de objeto ou de coisa, não é um quebra-cabeça, nem uma simples letra: é um rébus. Como um rébus, a ingratidão do sonho é deixar a nosso cargo sua interpretação e crítica. Só que, contado em palavras, o sonho continua sendo enigmático: o sonhador até consegue falar ou escrever o sonho, mas não sabe lê-lo. A maior parte dos sonhos fica sem tradução; isto é, permanece em condição de a-traduzir, visto ser indizível e impronunciável.

O sonho é um paradoxo: fala-se dele, mas ele não tem como não ser dito; resultando que dele não se pode não falar. Para que o sonho de Aula se faça texto necessita de nós, professores, seus autores estrangeiros. Habita o sonho um clamor por ser falado, lido, escrito. Pois é da sua natureza exigir a própria tradução. Somos aqueles que, trabalhando com a Docência, jogam com os desejos evanescentes armados pelos sonhos. Por isso, os fascistas nos acusam de sonhar acordados. O sonho de Aula agarra-se como um parasita ao professor; o qual fica, com ele, comprometido no âmbito do labor do sonho (Traumarbeit).

Cada língua falada em Aula possui a sua própria linguagem de sonho. Assim como um sonho é intraduzível em outras línguas, também uma Aula só pode ser traduzida em sua própria linguagem de sonho. Já que traduzir o intraduzível do Arquivo da matéria do sonho de Aula é a nossa principal tarefa como professores, estamos sempre implicados em um novo trabalho de criação. O fala-ser do sonho é a linguagem por-vir da vigília. Do sonho nada sabemos de antemão, nem depois, não tendo sobre ele nenhum controle. Sonhos são cortes, tomadas, ajustes, mixagem, edição, experiências dementadas e esquartejadas, crias do relâmpago e mucos do trovão. Podemos transpassar Lacan e dizer: o sonho não é um bom anjo, estruturado como uma linguagem; mas é um demônio, tão abusado quanto a língua. Não há metalinguagem dos sonhos. A linguagem forma os sonhos ao recombinar elementos da Aula, de modo que os sonhos repitam a diferença, criando-a por meio da repetição. Sonhos e Educação são, então, rearranjados, recombinados, reencadeados, redispostos (Corazza, 2019bCorazza, Sandra Mara. (2019b). A-traduzir o arquivo em aula: sonho didático e poesia curricular. (Projeto de Pesquisa de Produtividade.) Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Brasília, DF, Brasil, 1-80. ).

IV. Viver a Aula

Em Aula, vivemos o sonho ou o estado de vigília? Mas, quem disse que a vigília seria o oposto do sono? E se ela nada mais fosse do que um sonho anterior ou a mera passagem de um sonho a outro? Talvez, a Aula aconteça num estado intervalar intermediário entre sonhar e relatar que sonhamos, entre viver a Aula e contar que a vivemos. Num sonho, admitimos estar traduzindo a matéria original do mundo em uma experiência onírica. Ou deveríamos colocar a Aula sob suspeição, já que que as palavras de nosso relato podem estar sendo diversas daquelas que empregaríamos em outra condição? Onde traduzimos a matéria de Aula? Num sonho, poderíamos responder; ou, então, numa ilusão que devesse ser corrigida. Parece que em nenhum dos casos (se é que são dois), visto ser impossível verificar a correção da nossa tradução. Como sonho, a tradução da Aula coloca-se numa espécie diferente de tempo e de espaço: sonho dentro do sonho.

O problema é que não temos acesso direto ao sonho de Aula. Só temos acesso ao relato de uma experiência de tipo estranho. Recordar um sonho e relatá-lo é recordar coisas reais? Um sonho é semelhante à experiência consciente de Aula? Situação curiosa fazer de uma Aula um palco para nossas aventuras oníricas. Talvez sejamos, mesmo, professores de sonho, que agem como se fossem professores reais, que ficam à procura de alunos de sonho, em ocasiões indefinidas, visto que os sonhos transcendem os conceitos cotidianos de tempo e espaço. Se a Aula tem o seu tempo e espaços diferentes dos normais, talvez, nada haja de surpreendente em o aluno chegar três horas atrasado; em o professor dormir a aula toda; em dezenas de pardais subirem nas classes; em uma matilha de lobos entrar pela porta da Aula, trazendo a Diretora, a Secretária, a Coordenadora Pedagógica e a Merendeira da escola na boca.

Logo, são numerosas as circunstâncias: a do sonho, a do relato, a da realidade, a dos professores, a dos alunos, a dos funcionários. O professor costuma ingressar na tradução, entrar no texto, se deixar possuir por um autor ou por um conceito. Nesses seus sonhos, a latitude e a longitude, bem como o centro da Terra e suas palavras, não se movimentam mais como comumente. O professor escorrega na neve da Aula-Sonho; anda como marionete de cabeça para baixo; entalha garranchos na madeira da mesa com uma faca; os gatos devoram morcegos e os restos da Última Ceia; os postes urinam nos cachorros na Muralha da China; o guarda do Zoológico espia na janela da frente; atrás da porta, existe um balaio de indagações irrespondíveis; no lustre, aloja-se um celeiro de causalidades oníricas; no lodo, rastejam estranhas noções; no espelho, aparece uma classe que, se arrastada, transforma-se em um poço; na lenha da cozinha, respingam gotas de sangue de corpos vivos do tamanho de moedas; nas peles frias e túrgidas de todos, há experiências perturbadoras demais para serem traduzidas.

Ora, com manchas de tinta preta, junto com furos de ferimentos no papel, agarramos a cauda oscilante da sonda onírica da Docência. Bem fundo no ouvido e no olho, enfiamos dois lápis, perfurando os cérebros, para que atribuam à Docência uma existência, na qual as regras do mundo e as leis da natureza sejam diversas e alteradas. Na superfície lisa de nossa dura-máter cerebral, encontramos um único, malformado e pulsante olho, uma narina, três unhas e cinco dentes. Não abafamos pronunciamentos sem sentido, mas desnorteamos os sentidos de um Professor-Pesquisador de Sonho. Pode, no entanto, essa entidade receber tal denominação e continuar sendo professor? Quando sonha, alguém é uma alguma coisa, tem uma identidade? Conquanto muitas coisas aconteçam em sonhos, algumas delas seriam lógica e epistemologicamente impossíveis, do tipo avaliar a alteração de sua altura colocando a mão na própria cabeça. Diz o Professor-Sonhador: – Acontece que digo o que traduzo e não o que sonho.

Dissipamos elevada energia ao sonhar uma Aula, talvez mais do que em uma construção teórica articulada. Graças a esse sonho de Aula, participamos de espetáculos grotescos e maravilhosos; vagamos entre esferas sem causalidade como deuses ébrios; mergulhamos no infinito; assistimos a uma explosão insuportável de cores; aguentamos uma fantasmagoria sinistra; atravessamos tempos tortuosos e espaços assustadores; convivemos com todos os mortos que julgávamos bem finados; encaramos dificuldades metafísicas e inextricabilidades físicas.

V. Morte e escrita

Tanto a morte como o sonho são acontecimentos dos quais só podemos falar ou escrever: da morte, antes; do sonho, depois. Não podemos falar deles enquanto ocorrem. Não podemos prever nem um nem outro. Só podemos falar das outras mortes, bem como dos outros sonhos. De outros e dos nossos. Ou seja, sem a linguagem, nem a morte nem o sonho existiriam. Eles existem só dentro de uma linguagem. Ambos estão, assim, suspensos num espaço temporal, distanciados do real em si e da sua representação.

Entretanto, não há ninguém que nunca tenha sonhado. Assim como não existe alguém que nunca vá morrer ou que nunca tenha morrido. Ninguém se formula as seguintes questões (shakespearianas): – Sonhar ou não sonhar, eis a questão. Ou: – Morrer ou não morrer, eis a questão. Existe, portanto, um real da morte e um real do sonho. (Se é que existe isso que porventura abusivamente chamamos Real.) Real que é inacessível em si próprio, pois que furado, porque nos escapa. Real que pode ser apenas um nome confuso que damos às sombras da matéria. De qualquer modo, como real, tanto o sonho como a morte não cessa de se escrever. É por isso que vivemos repetindo essa escrita. Repetível que faz rede, em rede, com rede. (No caso, nós em rede: Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação9 9 Recuperado de https://www.ufrgs.br/escrileiturasrede/ .)

Porque somos sujeitos de sonho e de morte, escrevemos. Isto é, traduzimos por escrito a realização dos sonhos da Docência. Porém, todo tradutor sabe que a tradução não propicia o entendimento do original e, muitas vezes, não consegue encontrar o seu tom. Então, nossa escrita pode aparecer lacônica, abstrusa e opaca em significados ou tonalidades, como se fosse uma crisopeia. Isso porque morte e sonho nos escapam, mesmo se pretendemos ser abundantes, translúcidos e transparentes. Aproveitamos a existência do código escrito, do sistema alfabético, das palavras para registrar a ocorrência de sonhos. (Poderíamos também desenhar, encenar, esculturar, performar os sonhos, como alguns efetivamente fazem.) Mesmo que essas elaborações dos sonhos não tenham testemunhas, nem recebam nenhuma validação de verdade. E consistam apenas em traços, restos, ecos, rastros dos sonhos.

Mas o que ficam dos sonhos e da nossa própria morte? Somente aquilo que são movimentos e efeitos, que seguem engendrando outros atos de sonhar e de escrever e novas maneiras de viver e de morrer. Em piruetas que se consomem, renovam-se sobre si mesmas e se multiplicam, dói-nos o tempo, a vida range, a morte roça e nós seguimos raspando a folha.

VI. Inabitual do pensamento

Não conhecemos uma técnica específica para chegar ao fundo dos processos oníricos. Lemos e escrevemos sonhos, mas não encontramos a solução dos nossos enigmas interiores. Os sonhos não cessam de não se entregar, de não se inscrever, pois requerem sempre uma explicação e uma sobrexplicação, uma interpretação da interpretação, uma crítica da crítica, uma tradução da tradução. Tanto que, finalmente, temos de deixá-los de lado, fazê-los publicar, espalhá-los aos quatro ventos. Não podemos, desde agora, fazer mais do que esperar, continuar a viver; e, talvez, prestar maior atenção aos sonhos, tanto aos sonhados como aos contados.

É a morte que termina com nossos discursos assim como com as demais coisas. Já não temos mais o que fazer. Acabou. A erosão eólica assoberba o nosso platô. A solidão transmuta-se em isolamento. Pode ser apagado o lampião que vigiava. A espera acabou. A infância nunca mais voltará. (Por que, diabos, voltaria?) A fantasia das lembranças e dos esquecimentos dos sonhos são apenas sequelas. Param de um golpe todas as seduções. Não acendemos mais nada. As chamas seguem em direção a um mundo de pura escuridão. Só a vasta noite prosseguirá dando sua luz para as estrelas. Nossos quartos e escritórios espantam-se com a simplicidade desse término. Privilégio de um tempo ígneo. Acabamos com um suspiro de poetas, sonhadores de chama, que velam dentro da noite. Recolhemos sem aflição os rostos em fogo e os corações em carvão. As cinzas que os produziram já esfriam. Se, com a visita da morte, não mais despertamos, não nos esperem. Não será necessário. Se acharem que houve sonhos demais, sonhantes demais, desculpem-nos o excesso. (Às vezes, só o excesso alumia a valia.) Guarde-nos o sono eterno. Cortem, arranquem, abram, serrem, despedacem, piquem, fatiem, descarnem e abrasem os sonhos. Mortos não sonham mais. (Ou será que sonham com os vivos? Nossas vidas serão tão-somente sonhos dos mortos?)

Assim como os mortos, em certos momentos e em certos lugares, saem dos seus sonos, como imagens incertas de um sonho, e podem perturbar os vivos, os nossos sonhos renascem na escrita e pela leitura. Será que existem, de um lado, os tradutores e, de outro, os sonhantes? Enquanto os primeiros lidariam com, no mínimo, duas línguas; os segundos disporiam de procedimentos linguageiros diferentes para, de modo circunstancial, esconder e revelar a intencionalidade do pensamento e a diversidade do imaginário? Como escrileitores, optamos por nos pensar enquanto tradutores e sonhantes, sem oposição aristotélica, em função de uma disposição interna do pensamento de desejo por um texto de discursividade.

Serão nossos sonhos que farão vigílias solitárias e escreverão nas páginas em branco que restam das nossas vidas. Serão eles que desenharão um pouco de sombra no claro-escuro de nossas esmaecidas existências. O sangue onírico que escorre dos nossos dedos é a nossa coragem e a nossa luta, mesmo que às vezes brigue em nossas vísceras, bicando-as como pássaros assustados. Diante do doloroso nada da morte, os sonhos são labaredas que não nos permitem cessar de ler nem de escrever. É que somos tomados pela paixão de fogo dos grafemas; e são estes que nos queimam e nos navegam, ao invés do mar. De suas letras, sinais diacríticos, caracteres, números, ideogramas, figuras ou plásticos, somos nenúfares que partejam textos imagéticos e especulares; somos heliotrópios que oram ao Sol, chama de todas as chamas da transcriação; somos rosas que já nascem rubras de brasa.

VII. Arquivos, flores e penas

A grande inimiga de todos nós é a Doxa, raivosa, ressentida e vingativa, que domina de modo legal e natural; que difunde e mela como uma geleia geral, abençoada pelo poder, como um discurso universal; a qual, por tanto reinar, fica de tocaia quando nos propomos à simples tarefa de tecer um discurso sobre qualquer coisa, quando mais não seja sobre o sonho. Em nosso labor literário-onírico, de encenação e de figuração dos sonhos em Educação, falamos da tarefa de escrever sobre as relações entre o conteúdo onírico manifesto e os pensamentos latentes; bem como acerca dos processos pelos quais esses pensamentos (conteúdos) latentes transformam-se em conteúdo manifesto (Freud, 2016Freud, S. (2016). A interpretação dos sonhos, volume 1. (R. Zwick, trad.). Porto Alegre: L&PM.).

Quando um dia não compreendermos mais nossos sonhos (nem nossas vidas), seremos obrigados a continuar, como se fizéssemos parte de um livro. Não existem outras instruções. Assim, em nome da escrileitura, garatujamos. Em nome da escrileitura, engruvinhamos. Em nome da escrileitura, escrevinhamos. Em nome da escrileitura, literaturamos. Acontece que, na Docência, há sempre tantas coisas para reacender os sonhos. Viva a sobrechama da escrileitura que vem brilhar acima de nossas portas, como fogo sonhado e contado, que murmura e geme e sofre todas as dores do mundo.

Nunca saberemos se somos aqueles que sonham ou se somos sonhados. Apenas sabemos que, assim como os sonhos de Artemidoro, de Descartes, de Freud, de Alice, os sonhos não dão sossego a ninguém. Por isso, somos penas falantes, meshes escreventes e fantasmas errantes dos nossos sonhos. Ao mesmo tempo em que a lua corteja a aurora, o fogo da Docência floresce e a flor da Aula se abre. Enquanto a fumaça da morte e a chama da vida ascendem para a imensidão do universo, que é luz e variação infinita de trevas.

Talvez este artigo pudesse ter se transformado em uma Metafísica Ilustrada dos Sonhos. Quanto ao tempo e ao mundo deste tempo: esperamos não estar mais por aqui, se for para ver chegar o dia em que todos lerão pelo mesmo breviário palaciano da aurea mediocritas. (Avada Kedrava.) Afinal, o mundo é, desgraçadamente, tão real que os pesadelos também são vividos como realidade. Por aqui, temos bebido fel; em Valhala, esperemos que hidromel. É que nós, professores, somos leões que já nasceram rugindo. Como rastejantes mônadas, entramos, na Docência, para produzir sonhos; isto é, para nos tornar leitores-pensadores-escritores não brutos, não domésticos, não imbecis, não parvos, não submissos, não estúpidos; mas sonhantes de guerra, bravos, ciganos, feiticeiros, sofisticados, exaltados, piratas, impulsionadores, inquietos, insatisfeitos, incessantes, intensos, assustadores, desacomodados, incomodadores, desajustados.

VIII. Sensação de distância

Eis que, uma vez mais, a história de um artigo que deriva de diversas pesquisas se faz. Tudo o que construímos, na Docência-Pesquisa, é feito não apenas de letras ou de frases ou de tinta, mas de tudo que nem sabíamos que havia dentro de nossos sonhos. Acumulamos, organizamos, arranjamos as folhas. Solidão forçada. Empenho doloroso. Ideias nunca antes havidas. Dúvidas incisivas. Gravação de letras. Inscrição de frases. Lapidação de sílabas. Pensar maneiro e matreiro. Combate desigual. Injusto. Algum sentido. Nossos rabiscos pretos se desdobrando em longos fios de tinta. Basta enterrar uma pá em algum lugar e algo de terrível acontece. São rotos os liames. Uma fresta ao menos. Veneno no espinheiro. Mistério da vida. Oceano tumular da morte. Rochas ignotas. Os sonhos que afligem. Como se faz? Como se organizam? Verdade que se desfaz, se esgota, se fina. Circunstâncias inapeláveis. Degradação. Folhas pelos dedos. Sensação de distância onírica. Estranheza dérmica. Textura fibrosa. Galhos nas mãos. Pregos nos pés. Pele rústica. Fel da mucosa da boca do próprio desterro. Pungente contrariedade. Muitos dias. Longas noites. O nosso lado sombrio. E o nosso lado solar. Dedilhados. Riscos. Anotações. Balbucios. Estrupícios. Sensações inertes que zoam. Fantástico grimório de abominações. Ignoto. Incapacidades. Sobressaltos de buscas e de encontros. Espicaçamentos. Desistências. Motins. Anônimos e anômalos. Presente recuperado. O presente já está ruim que chegue sem precisar do passado. A dança do tempo. O passado nunca vai embora. O futuro nunca chega por inteiro. O presente é sempre um território de atrito entre passado e futuro.assim persiste o caos. Os séculos são as montanhas do tempo. Titânica cordilheira sem fim e sem princípio. Ilusão. Nada contra o mito quando se confessa que se é seu criador. (Quem pariu Mateus que o embale.) Atos e pensamentos. Vidas passadas. Sem remorsos, sem hesitar, sem pesar. Dom esquivo. Recorrências. Possíveis aleatórios. Imãs da história. Heranças. Tatuagens. Chagas. Espasmos de fome. Império do tempo. Eles somos nós. Ouroboros. Obsessões. Atitudes. Postura. Vida escrevinhadora. Criada onirocrítica. Transfusão de propriedades. Sobreposição aleivosa. Escrevemos o ainda não transcorrido. Terá existido mesmo uma época em que achávamos que viveríamos para sempre e que mudaríamos o mundo? Passagens irreversíveis. Fugazes. Magníficas. Registros. Nave funerária que paira. Fantasmas que não se esfumam. Véus de lágrimas. Pontos de dilaceração. Maldição do demiurgo. Mudas de sonhos. Tronco inerte caído no recanto do fosso. Aos pés da Deusa. Pedras dos rejeitos. O Portal, o Vestíbulo, os Nove Círculos, os Vales, os Fossos, as Esferas e os Cantos do Inferno. Descarte também é arte. Trespasse também é morte. Bisonho é duas vezes sonho. A erudição soterra a criação. Nem o esfolamento a redime. Experiência livresca. Retrovar ou se perder. É um pular desatinado. É um brincar desesperado. É um riso aparvalhado. Este clown sou eu. Se fôssemos pensar bem, viver seria da ordem do impossível. É que a vida é mais do que isso: menos humana e mais escrevinhadora.

IX. Nódulo quase final

Em toda sua duração, este texto falou do sonho de aula e da poética do arquivo. Entretanto, logo conhecerá a sua própria consumação. A marcha dos acontecimentos comprova esse episódio. De maneira previsível, tateou aqui e acolá; recompôs-se e se debruçou, sobre a terra da Docência, para catar poesia. Talvez tenha pegado só pó de carvão, sonhos perdidos e ossos infantis. Afinal, conhece apenas a superfície da Terra, embora ela tenha muitas camadas. E às vezes, é mais prudente não cavar muito fundo. Então, poetizou o sonhar, deslizando, ele próprio, para o travestimento montado pelo sono. É que o texto, como nós, por vezes, morremos lentamente; muitos anos depois de alguns imaginarem que já estávamos mortos. A língua com que este artigo foi escrito e lido, como toda língua da Docência, é imperfeita. O fato é que ela permite falar para nada dizer. Isto é: dizer o que não se sabe. E dizer, mais ou menos, aquilo que se sabe. E não saber o que se diz. Dizer outra coisa do que se disse. Tudo isso que é muito pouco. E extremamente desagradável para o consciencialismo educacional. Mas, acreditem, nada disso é falha da língua que escreve. É só uma propriedade positiva do ato de ler, escrever e falar do Arquivo da Docência. Isso porque o método, com que o texto foi processado, funciona nas lixeiras da lógica. Pois é irmão siamês do método pelo qual a Poesia é capaz de nos conduzir à compreensão de algo. Método, portanto, que encaminha ao resultado impactante de que vocês e eu não queríamos saber de nada disso. Talvez a Docência seja aquele tipo de coisa que se pode saber e não comentar; ou que se pode comentar e não saber. Ou talvez deixe o sentimento de que quanto mais muda, mais é a mesma coisa. Ou o sentimento de que quanto mais é a mesma coisa, mais muda. Muda para uma ilusão rapsódica, salpicada de visões satíricas. De qual Arquivo fecundo, como um ventre, emana o discurso da Docência? Por que experimentamos sondas idílicas e especulações sublimes ao nos aproximar desse discurso? Não se tratará senão de círculos viciosos? Mais valeria cada um trazer no bolso sua navalha de Occam, na qual a explicação para a Docência pressupõe a menor quantidade possível de premissas românticas. Uma das poucas coisas que aprendi, até hoje, é que se a vida continua em movimento, após o fim de nossas histórias, as redes que nos enlaçam e nos levam a produzir podem ter ganho tração antes delas. Talvez, tudo o que construímos na vida de professores seja feito não apenas de letras ou de frases ou de tinta, mas da matéria torta que nem sabíamos que existia dentro de nós. Tudo que vai caber numa lápide lascada ou quebrada, como inscrição desgastada pelo tempo, abalada por raízes de árvores e devorada por ervas daninhas. E pode ser este o melhor lugar de inscrição que nos toca na existência: destinado a virar fuligem. Prudente seria se mandássemos mandar gravar o seguinte epitáfio coletivo: É sinistro como executamos crueldades contra a nossa própria docência.

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    Normalização bibliográfica: William Terence Dunne – williamdunne777@gmail.com
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    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PQ 303430/2018-4); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; Pró-Reitoria de Pesquisa, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Programa de Pós-Gradução em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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    Já que no céu nada alcanço, recorro às potências do Inferno. (Epígrafe usada por Sigmund Freud, em A interpretação dos sonhos, retirada de VIRGÍLIO, Eneida, VII, 312, trad. Carlos Alberto Nunes. Brasília: UnB, 1983.)
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    A apresentação esquemática, que segue, tem por base resultados de pesquisas desenvolvidas, nos últimos anos, como Pesquisas de Produtividade, sob o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); da Pró-Reitoria de Pesquisa (PROPESQ) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O conjunto que compõe esta parte do artigo, intitulado Arquivo da Docência, foi, primeiramente, apresentado, como palestra, sob outro título e em versão substancialmente modificada, no I Fórum Nacional Itinerante: Arquivo, Pesquisa e Docência, organizado e realizado pela UNIVATES, em Lajeado, RS, no dia 13 jun. 2019.
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    Entre as páginas 4 e 13.
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    Página 13 e seguintes.
  • 8
    Desde esta seção, até o final do artigo, a matéria apresentada pode ser originariamente encontrada, com modificações significativas, tanto no Prefácio ao Breviário (p.13-25) como no Posfácio ao Breviário (p. 213-219), ambos integrantes do livro Breviário dos sonhos em educação (Corazza, 2019cCorazza, Sandra Mara. (Org.) (2019c). Breviário dos sonhos em educação. São Leopoldo: OIKOS.).
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Poema

I vidrados na noite interminávellímpido retornoda velha levezaRanhura que arrasaAveiando o rostoRasgando a caraJogando no rasoSem caso, sem cosmos,Dessa rebeliãoQue raia em rugaNa hora que viráNada acaba.Tudo começa,e os filhos se mordem.No crepúsculo de cores imprecisasQuando pia a alvoradaSinos se dobramE as conversas silenciam. Contado, o tempo enganaSem deixarde corroer as coisaslembradasperdidasguardadasesquecidasamadaspoucasfodidasplenasQue ele sempre engole II Tanto que se foiQue nem chegouSem esperarAvistaAquilo que desejaPor insistirEm nadaQuerer IV O tempo pega nas coisascorrói o ferrofaz voar o fenotritura a carnelança sementescome esmigalhadinhoa potência de cada suspiroque a vida lhe dá de alimento III Na hora absurdaDesse tempo sem horasO eterno cospeum rabo de cobrade pura meia-noitePastado, plasmaUm pútrido cãoPlantado com pataspostas no chãoNa hora que nunca chegaO riso, o corte, o jorroLeite virado viapintura imensa na escuridão zenitalláctea, línea, lascivalambendo os olhos V Corre tempo que nunca chega nahoraVoa, vai, vagueiaQue o tempo nunca é o tempo deagoraTudo o que no tempo chegaCom o tempo vai embora VI IX Não dá para amar se não for paracantar sem regrasa música mínima que atravessa aluzO que se precisa é de água, devento, de gritos soltosTodo e qualquer utensílioanti-gravidadePara perder chão, os remos, o rumo,as raiasCorpo salta, sobe, sente sedeSabe o sumoDaquilo que não pode ser ditoAinda que besta, ainda que vão. Com asas, asnos voam.Nas casas, morrem insetosEm esquinas, coisas se vendemNo mato, feiticeiras dançamLoucos comem fumaça. X Esse que nos consomeCorreSem saber para onde nos leva.Acaso sabemos nósO lugar que se vai chegar?Há algo que saibaComo acabará?E o que isso importa,Abrir as retrancas do futuro?Se nunca o instante vividoConsegue abraçar o passado? VII O que invade traga o corpoEnfia-se sobre a peleImpregna o pensamentoDeitando imagens tolasLambidas em fios invisíveisQue percorrem os tecidos internosSinapses incodificáveisFluxos demasiado complexosDa carne em atividade metafísicaA criar abominações XI deixemos levarpor águas vindouraso que foi possívelsem lágrimasnenhum risosó gozode dor suaveno curso inversoque abate insanoextasiado de saúdeenquanto vidapercorrendocorpos em profusão. VIII Passo. Cansei. Rodada, mais uma.Até quando? Intermina.Acaba depoisSem antes começar.

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Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2020
  • Aceito
    12 Maio 2020
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