Acessibilidade / Reportar erro

Os efeitos de Maio de 68 na trajetória de Jacques Rancière: a dicotomia althusseriana entre ciência e ideologia colocada em xeque 1 1 Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Camila Pires de Campos Freitas camilacampos.revisora@gmail.com

Los efectos del mayo del 68 en la trayectoria de jacques rancière: la dicotomía althusseriana entre la ciencia y la ideología puesta en jaque

Resumo

Após Maio de 68, a dicotomia entre um conhecimento científico e a ideologia, tal como sustentavam os althusserianos, é colocada em xeque em favor de uma valorização dos movimentos políticos irruptivos dos anos 1960, por Jacques Rancière. No presente artigo, analisaremos esse momento de sua trajetória, em que o autor reformula sua compreensão a respeito do significado das revoltas políticas e de sua concepção sobre o saber. Esse debate não é algo circunstancial na obra de Rancière, antes aparece como uma questão que atravessa seu pensamento e contempla ainda seus escritos atuais: a recusa à divisão do saber, suas hierarquias intelectuais e a desconfiança em relação à concepção de que a política necessitaria da teoria como pré-requisito.

Palavras-chave
Rancière; Althusser; ciência; ideologia; política

Resumen

Tras Mayo del 68, la dicotomía entre un tipo de conocimiento científico y la ideología, como sostenían los althusserianos, es puesta en jaque a favor del reconocimiento de movimientos políticos irruptores de los años 60, por Jacques Rancière. En el presente artículo, investigaremos ese momento de tu trayectoria en la cual el autor reformula su comprensión a respecto del significado de las revueltas políticas y su concepción del conocimiento. Esta discusión no es algo circunstancial en la obra de Rancière, sino que se manifiesta como un punto que recurre su pensamiento y se observa aún en sus escritos actuales: el rechazo a la división del saber y sus jerarquías intelectuales y la desconfianza ante la concepción de que la política necesitaría de la teoría como requisito previo.

Palabras clave
Rancière; Althusser; ciencia; ideología; política

Abstract

After the eruption of May 68, the dichotomy between scientific knowledge and ideology, as Althusserians supported, is jeopardized in favor of Jacques Rancière’s valuing of the 1960s boiling political movements. In this essay, we analyze this moment of his path, in which the author rephrases his understanding of the meaning of political revolt and the conception of knowledge. This debate is not circumstantial in Rancière’s work. It first appears as a question crossing his thought and is still present in his current writings: the refusal to divide knowledge and its intellectual hierarchies and the suspicion towards a conception that politics would require theory as a prerequisite.

Keywords
Rancière; Althusser; science; ideology; politics

Rancière: de discípulo a crítico de Althusser

Nos anos 1960, motivado por uma leitura da obra de Marx livre do direcionamento do Partido Comunista Francês (PCF) e dos debates acadêmicos diletantes, Jacques Rancière aproximou-se do Cercle d’Ulm, grupo de pesquisadores da obra de Marx orientado pelo filósofo Louis Althusser, professor da École Normale Supérieure (ENS) de Paris3 3 A École Normale Supérieureé uma tradicional instituição de pesquisa e de ensino na França, fundada em 1794. Na Rue d’Ulm, o prédio que abriga as Ciências Humanas foi construído em 1847 (Deaecto, 2017). Como era na Rue d’Ulm, em que lecionava e pesquisava Althusser, o grupo de filósofos marxistas althusserianos passou a ser identificado como Cercle d’Ulm. . À época, Rancière vislumbrava nos trabalhos do grupo uma possibilidade de interpretar os textos marxianos de forma a desvinculá-los das tentativas de transformá-los em base da razão de Estado soviética. Desde 1956, a invasão à Hungria e a denúncia dos crimes de Stalin nos relatórios de Kruschev abalavam os grupos comunistas, além de ter colocado em questão a legitimidade dos partidos comunistas.

Procurava-se também não tornar o estudo dos textos de Marx uma tarefa meramente acadêmica, ao gosto do “mandarinato universitário” francês, cuja atividade intelectual mais se assemelhava a preleções apolíticas animadas por “teólogos ou filósofos de salão” (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 18). Althusser organizava, no Cercle d’Ulm, um “coletivo de pensamento” que fazia das reflexões sobre Marx um “ato de leitura” (Santos, 2021Santos, Nadier (2021). Jacques Rancière, Louis Althusser et les leçons de la révolte. Synesis, 13(2). https://seer.ucp.br/seer/index.php/synesis/article/view/2084
https://seer.ucp.br/seer/index.php/synes...
, p. 178). Para os jovens pesquisadores da ENS, integrar o Cercle d’Ulm significava aderir a uma postura intelectual capaz de transformar a filosofia ensimesmada do ambiente acadêmico em uma teoria que instrumentalizasse as reflexões sobre o mundo. O estudo das obras clássicas de Marx era concebido, em si mesmo, como uma ação política, a ponto de o grupo considerar-se como um “partido da teoria de Marx” (Rancière, 2012Rancière, J. (2012) La méthode de l’égalite: entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabunyan.Bayard., p. 31).

Nesse período, o grupo althusseriano coordenou o Seminário sobre Marx, no qual pesquisadores da ENS como Roger Establet, Jacques-Alain Miller, Robert Linhart, Jean-Claude Milner, além de Rancière, buscaram definir rigorosamente os conceitos do pensador alemão. A abordagem althusseriana inovava por incentivar a leitura estrutural dos textos clássicos, sem a interferência de outras interpretações. Tendo como paradigma o pensamento de Baruch Spinoza, Althusser propunha distinguir, no pensamento de Marx, o objeto específico da ciência. Ao ater-se aos conceitos puros, procurava separar os aspectos histórico-conjunturais do que seria o pensamento estritamente lógico-científico. Essa separação foi esboçada nos textos althusserianos pela pretensão de impor um “corte epistemológico” na obra de Marx, dividindo o que seria o “ideológico” do “conceitual” (Costa, 2017Costa, L. (2017). Althusser, leitor de Marx. Cult, 228. https://revistacult.uol.com.br/home/althusser-leitor-de-marx/
https://revistacult.uol.com.br/home/alth...
).

Esse corte incidiria entre os textos de juventude, como os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, e a obra O Capital, perspectiva que dissociava o pensamento maduro de Marx dos traços do humanismo e do idealismo hegeliano supostamente presentes apenas nos escritos anteriores a sua obra-prima. Considerar a existência de um corte entre os escritos de Marx implicava, para Althusser, reconhecer uma mudança qualitativa na obra, visto que escritos ideológicos teriam dado lugar a um conhecimento científico (Natali, 1995Natali, J. B. (1995). Saiba quem foi Althusser. Folha de SP. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/4/23/mundo/17.html.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/4...
).

Ao integrar o grupo como pesquisador, Rancière apresentou nos seminários que aconteceram em 1964 e 1965 um estudo sobre o conceito de “crítica” em Marx. Dessa leva, originou-se a publicação Ler O Capital, composta por textos de autoria de Althusser, Étienne Balibar, Pierre Macherey e Jacques Rancière. A obra consolidou o grupo como formulador de uma interpretação desvinculada de dogmatismos, por sua recusa a utilizar o pensamento de Marx para justificar ideologicamente os caminhos tomados pela burocracia do Estado soviético. A teoria althusseriana do corte epistemológico concebia que o stalinismo seria um desvio ideológico do materialismo dialético, ou seja, um desvio de um conhecimento científico.

Essas consequências da interpretação althusseriana tornaram seus escritos populares no meio marxista dos anos 1960. Ao conceber o marxismo como ciência da sociedade, Althusser traçava um caminho original, diferente das tradições em voga até então que buscavam nos escritos de Marx ora uma “filosofia crítica” como os intelectuais da Escola de Frankfurt e Lukács, ora um “guia para a ação” como proposto por Antonio Gramsci (Boito, 2013Boito, A. (2013). Indicações para o estudo do marxismo de Althusser. Novos Temas, 9, 153-182.).

Ao passo que Althusser, nesse momento de sua obra, debruçava-se sobre a noção de “estrutura” a fim de desenvolver a teoria de Marx enquanto um conhecimento científico, ou seja, produtor de conceitos gerais e específicos encadeados numa teoria que busca sistematicidade. Por ser assim definida, a análise marxista se distinguiria de uma análise empírica concreta, sendo antes um instrumento para a realização da análise da realidade social. Desse modo, a interpretação de Althusser apartava a teoria marxista de determinismos históricos, ao evocar certo distanciamento entre a produção de conhecimento e a realidade enquanto tal. Nessa concepção, o conhecimento se aproximaria da realidade sem encontrar-se, de fato, com ela (Boito, 2013Boito, A. (2013). Indicações para o estudo do marxismo de Althusser. Novos Temas, 9, 153-182.).

A valorização do materialismo dialético enquanto uma ciência da realidade social atribuía aos marxistas a tarefa de desenvolver os conceitos de Marx sem dogmatismo ou ceticismo. Essa empreitada althusseriana assegurava a autonomia da prática teórica, sem que esse ato significasse um rompimento com o PCF (Santos, 2021Santos, Nadier (2021). Jacques Rancière, Louis Althusser et les leçons de la révolte. Synesis, 13(2). https://seer.ucp.br/seer/index.php/synesis/article/view/2084
https://seer.ucp.br/seer/index.php/synes...
, p. 178). Pelo contrário, a autonomia do materialismo dialético possibilitava uma relação de identificação com o partido, a fim de transformá-lo, de protegê-lo de seus desvios, de prescrever caminhos para sua reabilitação interna (Balibar, 2017Balibar, E. (2017). Althusser e o comunismo. Crise e crítica, 1(1), ., p. 105).

Com a eclosão de Maio de 68, essa primazia da ciência perante a prática e a relação com o PCF geraram impasses entre os althusserianos. Em Maio, inúmeros grupos engajados com o movimento colocaram em prática formas de atuação política que priorizavam a ação direta em espaços públicos, a criação de palavras de ordem irreverentes, a valorização da horizontalidade na organização das intervenções e, sobretudo, a atuação conjunta entre trabalhadores e estudantes de diversos níveis escolares de forma autônoma à direção dos partidos e entidades representativas tradicionais. Essas formas de ação política entravam em choque com as concepções do Cercle d’Ulm, que, tão logo, caracterizou o movimento como uma “revolta ideológica”.

Em 1968, Rancière estava afastado de suas atividades militantes e acompanhou à distância o desenrolar dos acontecimentos iniciais. Ao lembrar de suas impressões da revolta, afirmou ter ficado confuso com o que se passava, concebendo no movimento nada além de manifestações “ideológicas” e não “científicas”, utilizando, assim, as definições althusserianas ao observar as manifestações estudantis. Ao retornar a Paris, Rancière viu com surpresa bandeiras vermelhas penduradas em uma fábrica ao lado do rio Sena assim como o encontro entre estudantes e operários na Universidade de Sorbonne. Essas cenas impuseram ao filósofo um elemento de contradição entre o desenvolvimento da revolta em sua robustez e o marxismo que ele havia aprendido e ensinado. Naquele momento, no entanto, sua aproximação com Maio de 68 se restringiu ao movimento nas portas das fábricas insurrectas (Rancière, 2012Rancière, J. (2012) La méthode de l’égalite: entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabunyan.Bayard., p. 37), pois a relação de Rancière com os estudantes ainda era tomada pela desconfiança gerada por uma “revolta ideológica”.

Essa avaliação se transformou logo após o fim de Maio de 68, com sua integração à recém-criada Universidade de Vincennes4 4 A Universidade de Vincennes (hoje Paris VIII) foi criada em setembro de 1968, logo após a eclosão do movimento de revolta na França. A Universidade tinha a proposta de tornar-se um centro de ensino e pesquisa de Letras e Ciências Humanas, um lugar de experimentação prática e teórica, de livre pensamento, de relações horizontais entre professores e alunos. Rancière esteve presente em Vincennes desde os momentos iniciais de organização do Departamento de Filosofia, organizado por Michel Foucault. Em 1974, Rancière criou o Centre de Recherche sur les Idéologies de la Révolte(CRIR), instituição essencial para a realização das suas pesquisas em arquivos históricos do movimento operário francês, que desembocarão na escrita dos livros La parole ouvrière (Rancière & Faure, 1976), A noite dos proletários(Rancière, 1988) e O mestre ignorante (Rancière, 2013), entre outros escritos. . Nesse momento, Rancière sentiu-se provocado a refletir sobre suas concepções teóricas tendo em vista a construção do futuro Departamento de Filosofia organizado por Michel Foucault. A princípio, divergiu de posicionamentos do althusseriano Étienne Balibar, único representante do PCF na equipe de professores, a respeito do programa do curso (Rancière, 2012Rancière, J. (2012) La méthode de l’égalite: entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabunyan.Bayard.). No transcorrer do semestre, as discussões em sala de aula com seus estudantes o motivaram a “acreditar mais em 68” (Rancière, 2012Rancière, J. (2012) La méthode de l’égalite: entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabunyan.Bayard., p. 39) e a rever conceitos que mobilizava, até então, para realizar sua leitura da realidade política, tais como o de ciência e de ideologia propostos por Althusser.

Devemos pontuar ainda o papel das leituras de Rancière dos textos de Foucault, pois é possível vislumbrar apropriações realizadas, já nesse momento, de livros como As palavras e as coisas e A arqueologia do saber. Esse encontro de Rancière com Foucault nos mostra que, para ambos, questões a respeito da relação entre prática e discurso tornaram-se uma preocupação intelectual considerável. Em 1969, Foucault formula a noção de “prática discursiva” para compreender as relações de poder emergentes na materialidade do discurso, ao passo que Rancière esboça uma análise histórica do discurso, que se entrelaça à política (Bolmain, 2010Bolmain, T. (2010). De la critique du `procès sans sujet´ au concept de subjectivation politique. Note sur le foucaldisme de Jacques Rancière. Dissensus, 3. https://popups.uliege.be/2031-4981/index.php?id=696
https://popups.uliege.be/2031-4981/index...
, p. 191).

Como consequência desse contexto imediato pós-Maio de 68, Rancière escreve o artigo “Sur la théorie de l’idéologie: politique d’Althusser”, em 1969 e depois o livro La leçon d’Althusser, em 19745 5 “Sur la théorie de l’idéologie: politique d’Althusser” é um artigo escrito em 1969 e publicado em 1970 na obra coletiva argentina Lectura de Althusser. Na França, o texto foi publicado em 1973 na revista L’Homme et la Société. Em 1974, Rancière o incluiu como apêndice de La leçon d’Althusser. A versão do artigo de Rancière que utilizamos aqui é justamente a que se encontra no livro de 1974 (Rancière, 2011). . Textos que revelaram não só o rompimento do filósofo com seu mentor e com o grupo da rua Ulm, mas que, sobretudo, estruturaram sua reavaliação a respeito da pertinência de uma noção de ciência definida nos termos de Althusser, concebida como oposta ao que se entendia como ideologia. Como efeito dessas reflexões, Rancière ressignifica sua concepção de saber, não a partir de uma nova definição a ser contraposta à dos althusserianos, mas por meio de uma postura de crítica às relações de poder implicadas na posse desse saber que se pretendia científico. Essa postura, compreendemos, antes se materializava na forma da escrita de seus textos do que numa extensiva conceitualização filosófica.

Ciência versus ideologia: alguns pontos do pensamento althusseriano dos anos 1960

Num primeiro momento da obra de Althusser, nos anos 1960, há uma ênfase na definição de ciência, a partir da noção de estrutura de Marx. São justamente seus escritos dessa época, como os livros A favor de Marx e Ler O Capital, que mais repercutem no meio intelectual (Boito, 2013Boito, A. (2013). Indicações para o estudo do marxismo de Althusser. Novos Temas, 9, 153-182.). A importância em mencionar que se trata de um momento específico da trajetória intelectual de Althusser se deve à vastidão de sua obra assim como a sua complexidade. Inclusive no segundo momento assinalado por Boito, durante os anos 1970, há mudanças consideráveis em suas concepções, fruto das críticas que recebeu nos anos anteriores.

Desde 1963, quando uma greve estudantil se deflagrou nas principais universidades de Paris de forma autônoma ao PCF, Althusser passaria a caracterizar as lutas dos estudantes como “ideológicas”. Tendo em vista o alegado espontaneísmo dessas manifestações, os estudantes demonstrariam, de acordo com esse viés, a ausência de domínio da “ciência marxista”, algo que somente seria contornado com a submissão intelectual dos estudantes aos “filósofos marxistas”6 6 Usamos a expressão “filósofos marxistas” para nos referir aos intelectuais alinhados com a perspectiva althusseriana, conforme o uso do próprio Althusser e de Rancière nos textos mobilizados neste artigo. da Universidade.

Essa posição aparece no artigo Problèmes étudiants de 1964, no qual o filósofo afirma que o papel dos comunistas na Universidade seria deter a teoria científica, ou seja, o marxismo-leninismo. Apenas a ciência possibilitaria o conhecimento da realidade e poderia engendrar instrumentos para resolver as dificuldades práticas. Desse modo, os comunistas teriam o dever de ensinar a teoria marxista aos estudantes para, a partir daí, ser possível a ação política (Althusser, 1964Althusser, L. (1964). Problèmes étudiants. La nouvelle critique, 152, 80-111., p. 81).

Nesse artigo, Althusser (1964)Althusser, L. (1964). Problèmes étudiants. La nouvelle critique, 152, 80-111. desenvolveu a ideia de que o saber teria uma função pedagógica evidente, a transmissão de um conhecimento a sujeitos que não o possuem: “Em todo caso, não é (. . .) sobre a diferença de gerações enquanto tal que repousa a relação professor-estudante, mas sobre a relação pedagógica fundamental entre um saber e o não saber [ênfase acrescentada] desse mesmo saber” (p. 91). Ou seja, entendia-se por “pedagógica” uma relação fundada na diferença entre conhecimento e ignorância (Ross, 1991Ross, K. (1991). Introduction. In J. Rancière. The ignorant schoolmaster: five lessons in intellectual emancipation(pp. vii-xiii). Stanford University Press., p. xvi).

Essas posturas desiguais entre um saber e o não saber implicariam uma hierarquia entre aquele que detém o conhecimento e os demais que não o possuem. Essa hierarquia não deveria ser vista como um problema ou um motivo justo para as críticas estudantis às posições de poder na Universidade, pois, na visão de Althusser (1964)Althusser, L. (1964). Problèmes étudiants. La nouvelle critique, 152, 80-111., essa relação assimétrica entre professores e alunos seria expressão “técnica” (p. 90) da função pedagógica.

As diferenças de posições na Universidade não se limitariam à sala de aula, antes, estariam presentes também nos espaços administrativos da instituição e nos centros de pesquisa. De acordo com Althusser, ao exigirem igualdade em relação ao saber em todas as instâncias universitárias, tal como na greve de 1963, os estudantes propunham a formação de “meio-pesquisadores” (demi-chercheurs), presos à ilusão democrática de um “meio-saber” (demi-savoir). Esse equívoco, de tomar como saber o que seria um “meio-saber”, impediria os estudantes de alcançarem a “arma do conhecimento científico”, retardando assim sua formação como pesquisadores de fato (Althusser, 1964Althusser, L. (1964). Problèmes étudiants. La nouvelle critique, 152, 80-111., p. 94).

A concepção althusseriana sobre o saber enquanto uma divisão assimétrica entre os que sabem e aqueles que não sabem reaparece em um texto de 1969 associada à caracterização de Maio de 68 como uma “revolta ideológica de massas”. Para Althusser (2017, p. 132)Althusser, L. (2017). A propósito do artigo de Michel Verret sobre o “Maio estudantil”. Crítica Marxista, 44, 123-135., denominar de tal modo o evento significava distingui-lo de um processo revolucionário, tendo em vista que em Maio teriam sido cometidos erros estratégicos pelos estudantes, pois suas greves, manifestações e ocupações não abriram a brecha necessária para uma Revolução. Althusser ressalta que esses erros não foram cometidos pelas ações operárias, mas sim pelas estudantis, cabendo aos comunistas, no pós-Maio, o apontamento de tais falhas, a fim de corrigi-las, para que eventos futuros eclodissem de maneira assertiva.

De acordo com essa perspectiva, o principal equívoco dos estudantes foi seu desconhecimento em relação às origens do movimento ocorrido em Maio, carecendo, assim, de “profundidade histórica”. Esse vínculo entre o acontecimento presente e suas raízes históricas, requisitado por Althusser, permitiria aos agentes do evento saberem a priori os rumos que o movimento deveria tomar no futuro, pois a ação política revolucionária deveria ser totalizante (Althusser, 2017Althusser, L. (2017). A propósito do artigo de Michel Verret sobre o “Maio estudantil”. Crítica Marxista, 44, 123-135., p. 128).

A demanda por “profundidade histórica” significava a percepção de que esses erros cometidos pela juventude em Maio justificavam-se pela ausência da direção da classe operária organizada pelo PCF. Aos estudantes, caberia somente o papel de ajudar os operários na luta política, os reais protagonistas da Revolução. Em outras palavras, os estudantes precisavam saber que, em um processo revolucionário, a classe operária é que conduz os levantes políticos, com o apoio da juventude em ações pontuais de “abalo” nas instituições como a escola e a Universidade, ambas definidas por Althusser (2017)Althusser, L. (2017). A propósito do artigo de Michel Verret sobre o “Maio estudantil”. Crítica Marxista, 44, 123-135., nesse momento, como “aparelhos ideológicos dos Estados imperialistas” (p. 135).

Esses textos de Althusser, voltados à análise de movimentos coordenados pela juventude, complementavam seus estudos eminentemente teóricos a respeito do “corte epistemológico”. Em consonância à teoria de que entre os textos da juventude e os da maturidade de Marx haveria um corte entre ideologia e ciência, Althusser vislumbrava um corte semelhante entre os movimentos reais da juventude e aqueles que o filósofo marxista projetava como modelares. Ou seja, o sentido de “corte” no pensamento althusseriano indicava tanto a separação entre os acertos e os erros da ação política como a distância entre o saber e a ausência de conhecimento. Nos dois casos, as dicotomias seriam expressão da oposição entre ciência e ideologia, que balizaria tanto a teoria quanto a prática.

Desse modo, é possível entrever uma intersecção entre o trabalho teórico de Althusser e seus textos de balanço a respeito de movimentos práticos. Pois, assim como o filósofo do Cercle d’Ulm concebia-se como representante de um “partido da teoria” em relação à leitura da obra marxiana atribuindo-se o domínio do saber considerado por ele próprio científico, imputava-se a tarefa de ajudar os estudantes a entenderem seu próprio papel tanto na Universidade quanto nos movimentos políticos.

Desse ponto de vista, caberia aos intelectuais comunistas

fornecer todas as explicações científicas que permitirão a todos, inclusive aos jovens, ver com clareza os acontecimentos que viveram [a fim de] orientar-se se o quiserem verdadeiramente, sobre uma base justa, na luta de classes, abrindo-lhes perspectivas justas, e dando-lhes os meios ideológicos e políticos para uma ação justa

(Althusser, 2017Althusser, L. (2017). A propósito do artigo de Michel Verret sobre o “Maio estudantil”. Crítica Marxista, 44, 123-135., p. 135).

Em sua forma de raciocinar, as “explicações científicas” seriam o instrumento necessário de diferenciação entre o engajamento justo e o injusto. O critério para tal distinção seria a base da ação política engendrada pela luta de classes, que deveria ser devidamente explicada a partir da teoria produzida pelos intelectuais marxistas althusserianos. Essas explicações precisariam ser ministradas aos jovens previamente à eclosão dos movimentos, como se fosse necessária uma preparação intelectual ou a apropriação de um saber específico antes da ação prática.

A publicação de Aparelhos ideológicos de Estado (Althusser, 1983Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal.), em 1969, torna mais evidente a concepção althusseriana, desdobrada de sua divisão do saber, de que a teoria deveria ser condição prévia para a ação política fundada na luta de classes. Afinal, se houve falhas dos estudantes em Maio de 68 que impediram a transfiguração de uma revolta em um processo revolucionário, para o filósofo, a causa seria o “meio saber” dos próprios estudantes diante da ciência detida pelos intelectuais comunistas.

Essa característica da categoria estudantil seria incontornável não fosse a predisposição dos comunistas em explicar-lhes seus erros, falhas e faltas. Isso porque os estudantes estariam invariavelmente presos à ideologia, tendo em vista que a escola ou a Universidade seriam “aparelhos ideológicos”. Para Althusser (1983)Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal., os indivíduos não conseguem se livrar facilmente das “concepções de mundo imaginárias” (p. 86) com as quais se encontram entrelaçados, ou seja, as ideologias nas quais estão imersos. Residiria justamente aí o problema da “ideologia”, já que tais concepções se refeririam à realidade sem serem, porém, reais (Althusser, 1983Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal., p. 86).

A ideologia seria, na concepção althusseriana, a forma como os indivíduos representam suas relações com as condições de existência, sob o modo de produção capitalista. Essas representações não são “reais” por serem determinadas pelo trabalho alienado, sendo, portanto, deformadas. Desse modo, as práticas e os rituais sociais expressos pelos indivíduos não seriam nada mais do que a materialização da ideologia reproduzida pelos aparelhos ideológicos de Estado, ou seja, pelas instituições religiosas, pelos partidos políticos, pelos sindicatos, pela instituição familiar, pelas empresas produtoras de informação, pelas instituições escolares e universitárias (Althusser, 1983Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal., p. 79).

Considerar que os indivíduos se encontrariam imersos nas formas de ideologia capitalistas propagadas pelas instituições sociais significaria afirmar que a ação dos sujeitos seria determinada por tais instâncias, sobretudo pelas instituições escolares, onde se inculcariam aspectos-chave da ideologia dominante pelo aprendizado, sem que os indivíduos percebessem, como uma “música silenciosa” (Althusser, 1983Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal., p. 79). Em suma, a constituição dos sujeitos no Capitalismo seria formatada pelos aparelhos ideológicos de Estado, tendo em vista que “a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos” (Althusser, 1983Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal., p. 93). Ou seja, todas as práticas e as crenças individuais ou coletivas seriam fruto da reprodução de uma ideologia, sem possibilidade de intervenção ou reação por parte desses indivíduos, pois tais processos de formação conduzidos pelas instituições sociais lhes seriam velados.

Seguindo essa lógica, seria possível aos sujeitos apenas a atitude de “reconhecimento dessas práticas e rituais impregnados no vivido. Isso porque, em razão da imersão nesse processo, não existiria a possibilidade de realizar, por conta própria, o “conhecimento científico” sobre tais instâncias cotidianas, sem os instrumentos apropriados. Essa diferenciação entre as duas atitudes do sujeito perante o vivido, o “reconhecimento” e o “conhecimento”, seria a base da oposição entre “ideologia” e “ciência”. Para Althusser (1983)Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal., seria “preciso chegar a este conhecimento se queremos (. . .) esboçar um discurso que tente romper com a ideologia, pretendendo ser o início de um discurso científico [ênfase acrescentada] (sem sujeito) acerca da ideologia” (p. 95).

Na perspectiva althusseriana, a realidade verdadeira despontaria somente no conhecimento científico, porque o real estaria permanentemente oculto aos sujeitos, em razão da ideologia. Por isso, ocorre a associação entre a ciência e uma instância “sem sujeito”, tendo em vista que os sujeitos assim o são porque a ideologia os faz “sujeitos”. Desse modo, acessar o real seria possível somente numa instância “técnica” e “objetiva”, o que significava dizer à parte do cotidiano, do vivido, da realidade sensível dos sujeitos.

Cabe mencionar que essa afirmação acerca da ciência se constituir como um discurso sem sujeito será retomada sob outros aspectos em discussões posteriores. Quando, por exemplo, Althusser (1978)Althusser, L. (1978). Posições I. Edições Graal. afirma, em Resposta a John Lewis, que a história é “um processo sem sujeito” (p. 28), pois não é o homem que faz a história, mas as massas que o fazem segundo o marxismo-leninismo. Inclusive, para Althusser, a ideia de que o homem faz a história seria uma expressão da ideologia burguesa e de seu idealismo, já que pensar a “história real” não é encontrar o homem livre para agir, mas antes conhecer “na concretude das relações de produção” a luta de classes (Bolmain, 2010Bolmain, T. (2010). De la critique du `procès sans sujet´ au concept de subjectivation politique. Note sur le foucaldisme de Jacques Rancière. Dissensus, 3. https://popups.uliege.be/2031-4981/index.php?id=696
https://popups.uliege.be/2031-4981/index...
, p. 184).

Portanto, sem a apropriação da ciência, ou seja, do materialismo histórico, os indivíduos somente produziriam impressões acerca do que reconhecem, sem conseguir vislumbrar nem entender o real, mascarado nos rituais e práticas cotidianas e ideológicas. Em suma, a oposição entre ciência e ideologia estabeleceria uma divisão hierárquica entre as percepções sensíveis dos sujeitos e o conhecimento científico. Essa polarização é similar à hierarquia entre a posição da classe operária, definida como classe explorada na grande produção, única capaz de reunir o conjunto das classes e camadas exploradas no Capitalismo perante as demais categorias (Althusser, 1978Althusser, L. (1978). Posições I. Edições Graal., p. 25).

Dessa forma, o único meio seguro de conscientização acerca da alienação provocada pela ideologia seria a ciência. A partir da apropriação desse conhecimento, o indivíduo não se limitaria somente a vivenciar a realidade cotidiana, mas seria capaz, sobretudo, de entendê-la, ou seja, de conhecer a organização social em classes, seu engendramento pela divisão social do trabalho e a consequente produção das relações de opressão sobre a classe trabalhadora.

Diante desse quadro, as demandas estudantis que passaram a exigir um reposicionamento da categoria nos espaços de poder da Universidade não seriam mais do que expressões de lutas e práticas ideológicas, tanto nas greves de 1963 quanto em Maio de 68. São ideológicas por não compreenderem as próprias limitações, por insistirem em tornar protagonistas aqueles que seriam somente atores secundários na Revolução, os estudantes. Esses movimentos permaneceriam ideológicos ainda por não entenderem os mecanismos da luta de classes na Universidade e por, de forma equivocada, incentivarem a oposição entre estudantes e professores.

Se os estudantes quisessem ultrapassar o ponto de vista ideológico, teriam que agir tal qual estudantes, ou seja, mantendo-se na posição de quem não possui o saber. Desse modo, assimilariam a teoria marxista formulada por suas organizações representativas, em convergência com o PCF, que, por sua vez, estaria alinhado ao grupo de “filósofos marxistas” na Universidade (Althusser, 1964Althusser, L. (1964). Problèmes étudiants. La nouvelle critique, 152, 80-111., p. 103). Aliás, o PCF seria o único partido apto a ultrapassar o âmbito da ideologia por possuir a doutrina científica do marxismo, estando acima dos “aparelhos ideológicos de Estado”. Só restaria, então, aos estudantes deixarem-se orientar pelos intelectuais marxistas na Universidade e, por consequência, pela direção do PCF se almejassem uma ação política “justa”, conforme afirmava Althusser.

O poder dos intelectuais: a crítica de Rancière à interpretação althusseriana de ciência

Antonia Birnbaum (2005)Birnbaum, A. (2005). Jacques Rancière : un pas de côté. Pylone, 4. https://horlieu-editions.com/textes-en-ligne/philosophie/birnbaum-ranciere-un-pas-de-cote.pdf
https://horlieu-editions.com/textes-en-l...
demarca a ruptura de Rancière em relação a Althusser e ao Cercle d’Ulm em dois tempos: a crítica à oposição entre ciência e ideologia e à interpretação althusseriana de materialismo histórico enquanto ciência do real, desdobrada no artigo “Sur la théorie de l’ideologie: politique d’Althusser”, de 1969; e a análise apurada da noção althusseriana de “luta de classes na teoria” (p. 3) no livro de 1974, La leçon d’Althusser. Nesse primeiro tempo de secessão, em 1969, a crítica de Rancière se concentra na ideologia transformada num conceito geral em Althusser, cuja finalidade seria explicar os mecanismos pelos quais a coesão da totalidade social estaria assegurada. Para tanto, a ideologia seria concebida como “instância do todo” (Birnbaum, 2005Birnbaum, A. (2005). Jacques Rancière : un pas de côté. Pylone, 4. https://horlieu-editions.com/textes-en-ligne/philosophie/birnbaum-ranciere-un-pas-de-cote.pdf
https://horlieu-editions.com/textes-en-l...
, p. 2). De acordo com Rancière (2011, p. 219)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., o problema dessa definição seria justamente sua contradição com o conceito de ideologia no próprio Marx, para quem a ideologia seria uma sobredeterminação específica da sociedade dividida em classes e não das sociedades no geral.

A interpretação de Althusser sublinharia o aspecto de opacidade da estrutura social a seus agentes e acentuaria a faceta impositiva dessa estrutura aos sujeitos. Dessa forma, a ideologia se configuraria numa participante da luta de classes enquanto “classe dominante” em oposição à ciência, “classe dominada” (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 224). Considerada como uma maneira “fetichizada” de conceber a luta de classes, a ideologia aparece, na crítica de Rancière a Althusser, como seu único Outro (Birnbaum, 2005Birnbaum, A. (2005). Jacques Rancière : un pas de côté. Pylone, 4. https://horlieu-editions.com/textes-en-ligne/philosophie/birnbaum-ranciere-un-pas-de-cote.pdf
https://horlieu-editions.com/textes-en-l...
, p. 3).

Ainda no artigo de 1969, Rancière considera que Althusser, paradoxalmente, deslocou esse debate sobre a ideologia do campo marxista, movendo-o para uma discussão clássica da filosofia e da metafísica. Isso porque o que outrora havia sido categorizado pelos filósofos como o “erro” induzido pelo mundo sensível ressurgia, em Althusser, como a “ignorância” provocada pela ideologia (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 226).

Essa elaboração conceitual impediu Althusser e seus seguidores de perceberem em Maio que a função política do saber havia sido colocada em questão, por meio de uma luta que tomou o saber como alvo. Nas palavras de Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions.,

em Maio de 68 as coisas se aclararam brutalmente. Enquanto a luta de classes eclodia, de maneira declarada, sobre a cena universitária, o estatuto do Teórico se encontrava colocado em questão não mais pela verborragia de sempre sobre a práxis e o concreto, mas pela realidade de uma revolta ideológica de massa

(p. 215).

Utilizando ainda o termo “revolta ideológica”, Rancière inverte a relação entre o “real” e o “ideológico” tal como estava dada para os filósofos marxistas da rua d’Ulm. Em Rancière, a realidade é acessada por meio de uma “revolta ideológica”. Ou seja, não se trata de instrumentalizar a ciência para compreender o real, mas do movimento contrário, pois o real passou a ser compreendido colocando em xeque o “estatuto do Teórico” por meio de uma revolta social.

Com tal crítica, Rancière destacava a função conservadora das instituições de ensino e suas estruturas legitimadoras de hierarquias baseadas no saber. Contrapunha-se, assim, às teses sustentadas por Althusser de que a Universidade estaria inserida na “divisão técnica do trabalho”, a salvo das contradições sociais. O que significaria que, por seu caráter técnico, as posições hierárquicas dentro das instâncias universitárias deveriam ser conservadas, mesmo em outras sociedades que não a capitalista.

Nesse primeiro momento de ruptura com o althusserianismo, Rancière procurava explicitar as relações subjacentes entre saber e poder na Universidade para combater a ideia de que as divisões operadas pelo saber fossem técnicas. Desse modo, as formas de apropriação do saber acadêmico seriam definidas por Rancière, na ocasião, como “expressão da luta de classes”, conflito que abarcava, inclusive, professores e alunos. Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions. finaliza o artigo de 1969 com uma frase indicativa de sua preocupação com o papel proeminente que a ciência no althusserianismo pretendia manter perante a realidade social ao afirmar que “separada da prática revolucionária, não tem teoria revolucionária que não se transforme em seu contrário” (p. 254).

A contundência da frase, praticamente uma palavra de ordem, explicava-se pelo fato de que tais questões relacionadas à organização dos movimentos sociais escapavam aos muros da Universidade. O período pós-Maio acionava os integrantes dos movimentos sociais e políticos do período como o próprio grupo ao qual Rancière pertencia, a Gauche Proletariénne, de tendência maoísta.

Essa delimitação proposta por Birnbaum permite compreender uma mudança nos termos do debate entre Althusser e Rancière, que acompanhou o movimento de autocrítica althusseriana durante meados da década de 1970 a respeito da dicotomia entre ciência e ideologia tecida nos anos anteriores. O desenvolvimento do conceito de “luta de classes na teoria” é um indício dessa reformulação, em que o conceito de luta de classes tomava maior centralidade para Althusser, que, por sua vez, apropriava-se de formulações teóricas maoístas a fim de rever pontos críticos de seu trabalho.

Essa noção de “luta de classes na teoria”, no entanto, seria antes uma nova forma de conceber a partilha entre o discurso verdadeiro e o falso, e não de fato uma ruptura. Desse modo, permanecia nos escritos de Althusser o lugar do conhecimento objetivo como um domínio específico que comanda e arbitra a instância das lutas de um ponto de vista exterior (Birnbaum, 2005Birnbaum, A. (2005). Jacques Rancière : un pas de côté. Pylone, 4. https://horlieu-editions.com/textes-en-ligne/philosophie/birnbaum-ranciere-un-pas-de-cote.pdf
https://horlieu-editions.com/textes-en-l...
, p. 3).

Em La leçon d’Althusser, essa continuidade é visível inclusive na reiteração da crítica de Rancière à noção de ciência de Althusser, sobretudo ao papel de seus portadores. Ao dedicar-se a debater criticamente com as posições que Althusser defende em Reposta a John Lewis, Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions. ressalta que, na defesa da noção de que “as massas fazem a história” (p. 41)7 7 Em Resposta a John Lewis, Althusser (1978) debate a concepção de história do marxista britânico de que a história é feita pelos homens, sujeitos históricos. Na visão de Althusser, o marxismo-leninismo afirma que são as massas que fazem a história, pois a luta de classes é seu motor, assim, a ação das massas é desencadeada pelas contradições da produção capitalista. , estaria implícita a ideia de que tais massas são aquelas previamente instruídas e organizadas pelos intelectuais marxistas. Ou seja, nesse momento de revisão de seus escritos, Althusser se apropria da tese maoísta a fim de revertê-la numa forma de salvar a filosofia marxista como o reduto dos especialistas da Universidade (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 41).

No capítulo 2, intitulado “Leçon de politique: comment les philosophes ne devinrent pas rois”, Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions. apresenta detidamente as implicações da dicotomia estabelecida por Althusser entre ciência e ideologia ao afirmar que a defesa da ciência, nos termos colocados por este último, acabava por refletir a posição de classe dos intelectuais marxistas do Cercle d’Ulm, por justificar seu lugar de autoridade de quem se propunha a falar em nome dos portadores do saber: “É bem verdade que um dos efeitos notáveis do althusserianismo foi o lugar nobre que ele deu aos intelectuais comunistas no concerto da elite universitária” (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 65).

Tendo em vista esse lugar de poder concedido aos intelectuais, a teoria almejada para esclarecer os movimentos reais poderia configurar-se como instrumento de opressão, uma “filosofia da ordem”, no entendimento de Rancière. É por esse motivo que Rancière ironiza o discurso althusseriano denominando-o como uma “lição de marxismo”. Esse discurso, ao continuar identificando erros e lacunas a serem corrigidos pelos movimentos e organizações, pretendia esclarecer a prática por meio de uma análise pretensamente científica.

O problema dessa postura, de acordo com Rancière, é a submissão da política a um “teoricismo”, que a desvaloriza enquanto tal. Tanto Althusser quanto os intelectuais que repercutiam suas ideias optavam por ignorar a dinâmica própria dos movimentos de massa em prol da elaboração de suas análises em que se prendiam às expectativas de resolver as questões políticas a partir do estudo prévio da “prática científica” do Capital (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 62). Esses filósofos marxistas contornavam, assim, a incômoda realidade dos movimentos políticos que se apresentavam com suas peculiaridades e dilemas próprios e não se enquadravam em seu arcabouço teórico previamente elaborado, a fim de manterem seu lugar de autoridade intelectual intacto.

Essa autoridade era compreendida como um “poder novo”, calcado na posse de um saber: “Esse poder, nós o encontramos na ‘ciência’ e nós só podíamos a partir daí nos opor a qualquer contestação da autoridade do saber [ênfase acrescentada] (. . .) era a nossa vontade mesma de agir que nos impelia à defesa das hierarquias do saber” (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 90). Essa postura entrou em crise com a eclosão de Maio de 68, que contestou justamente essas assimetrias fundadas na posse da teoria, mas voltou a ser relevante entre a intelectualidade marxista ao longo dos anos 1970.

A identificação da posse do saber à ação era uma forma, de acordo com Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., de resguardar essa autoridade dos intelectuais identificados com essa posição na Universidade, sobretudo em relação às críticas colocadas pelos estudantes. Ao conceberem o teórico como uma instância proeminente no que se refere à prática política, os filósofos marxistas pressupunham a divisão entre aqueles que detinham essa teoria e os demais. Essa divisão instituía também uma hierarquia em torno da posse do saber, encerrando aqueles que não o detinham na posição inferior de quem não conseguiria jamais entender a própria realidade em sua profundidade.

Assim teria ocorrido no evento de Maio de 68, já que, na perspectiva dos filósofos marxistas, os participantes da revolta estariam imersos em ideologia, sem conseguirem entender o real. A caracterização do movimento, pelos althusserianos, continuava moldada pelo conceito de ideologia, que cindia as explicações sobre o movimento a partir de termos como a “ciência ausente” ou a irrupção do “delírio da incultura”. Por essas razões, a “lição de marxismo” ministrada pelos intelectuais a respeito dos erros de Maio consolidava-se como um discurso que perdurava no tempo e se queria ileso às críticas dos movimentos políticos, tornando-se objeto da reflexão de Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions. ainda em meados dos anos 1970. O autor mostra que, mesmo no pós-Maio de 68, era necessário desconstruir a “figura despótica do poder dos sábios (savants)” (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 103).

Essa autoridade do saber, sustentada pelos filósofos althusserianos, demonstrou que qualquer movimento político seria julgado por eles como “ideológico”, sendo que esses intelectuais criticados por Rancière se valeriam de uma série de adjetivos para caracterizar negativamente as revoltas sociais como empíricas, imprevisíveis, absurdas, revisionistas ou desviantes. Para os althusserianos, as ações que não fossem um desdobramento de um movimento histórico pré-estabelecido — a saber, a tomada do Estado e a cessação da reprodução das relações de produção opressoras — não seriam sequer racionais. Maio de 68 teria sido, para Althusser, um “tempo de loucura”, que só poderia ser explicado pela noção de que faltava “teoria” ao movimento, tomado pelo “vazio” da ideologia (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 66).

Na visão de Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., essa condenação dos movimentos vivenciados no cotidiano em prol da tomada de partido pela filosofia colocaria sempre os filósofos marxistas numa posição vantajosa, ilesa ao erro, já que suas convicções políticas nunca seriam de fato testadas, pois se via o mesmo tipo de análise detratora tanto antes como após Maio de 68. A defesa da “luta de classes na teoria” legitima as posições de classe dos acadêmicos estipuladas pela “correção” das palavras empregadas: o revolucionário seria aquele que recita “as massas fazem a história”; e o reacionário, quem coloca a palavra “homens” no lugar de “massas” (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 126).

Enfatizar que determinada interpretação do mundo, ou que determinado arranjo de palavras, seja condição prévia para a eclosão da política resultaria na reserva de lugares específicos para cada um em suas relações com o saber. Em outras palavras, esperar que a política seja racionalmente a consequência de um estudo ou de uma teoria significa concebê-la de um ponto de vista “pedagógico”, no qual se substituiria a real luta de classes pela diferença entre o saber e o não saber (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 86).

Essa concepção de teoria e política, que postula a diferença entre saber e não-saber, implica a necessidade de um condutor ou um especialista, aquele que teria o conhecimento exigido para desencadear um movimento político considerado correto. A partir somente de sua intervenção, os demais seriam capazes de agir além das amarras ideológicas. Com efeito, em vez de política, buscar-se-ia, desse modo, uma “teoria de educação”, cujo objetivo seria retirar os sujeitos de seu lugar de ilusões, da posição de não-saber (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 105).

Para Rancière, esse olhar para a história empírica calcado na noção de “falta” faz desaparecer, na crítica dos filósofos marxistas, as questões irrompidas a respeito da visão dos próprios operários e intelectuais sobre sua produção, ou seja, sobre as relações constitutivas de seu cotidiano. Isso também se deu com as concepções políticas dos estudantes, nos anos 1960, ao questionarem o “saber dos educadores” e sua relação com a ordem existente. A despeito desses intelectuais, esse tipo de bandeira política, uma reivindicação de novo tipo, conseguiu impor-se como força política ao denunciar a divisão entre os produtores e consumidores do saber (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 82).

Dessa forma, os estudantes colocavam na ordem do dia problemas próprios a sua categoria, sentidos em seu cotidiano:

se encontravam colocados em questão: a finalidade do saber universitário destinado a formar os futuros auxiliares da burguesia e as formas de transmissão do saber relacionados a essa finalidade: curso magistral habituando os estudantes à docilidade; individualismo do trabalho (ao qual a UNEF8 8 A UNEF era uma entidade nacional de representação dos estudantes franceses: Union Nationale des Étudiants de France. teria oposto o trabalho coletivo dos grupos de trabalho universitário); a arbitrariedade dos exames

(Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 83).

As lutas estudantis e suas formas de organização autônomas ao PCF mostravam aos intelectuais a política sob uma nova forma, já que os estudantes colocavam o próprio saber em jogo, atrelavam-no ao poder e explicitavam suas relações com o político, colocando em xeque também a posição de seus professores, dos intelectuais marxistas. O saber enquanto um objeto de crítica resvalava na crítica à “figura despótica do poder dos sábios”, estes que exerciam tal poder afirmando ser um engano a revolta (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 104).

A escrita como produção de um saber igualitário

Entre o artigo de 1969 e o livro La leçon d’Althusser de 1974, é possível vislumbrar não só um desenvolvimento mais aprofundado dos temas relacionados à posse do saber científico ou a abordagem de um novo tema. Percebemos uma ressignificação da escrita em Rancière, fruto da concepção do saber desenvolvida pelo filósofo, que procura explicitar as relações de poder que lhes são subjacentes.

Bolmain (2010)Bolmain, T. (2010). De la critique du `procès sans sujet´ au concept de subjectivation politique. Note sur le foucaldisme de Jacques Rancière. Dissensus, 3. https://popups.uliege.be/2031-4981/index.php?id=696
https://popups.uliege.be/2031-4981/index...
identifica em La leçon d’Althusser um “trato igualitário” (p. 185) quando Rancière desloca a questão sobre se é o sujeito que faz a história ou as massas para afirmar que a questão marxista seria a valorização da competência das massas. Isso porque seria pressuposto no marxismo que é da inteligência dos oprimidos que se origina os instrumentos de sua libertação, pois a ideia de que a classe operária necessita de assistência para pensar é um axioma da ideologia burguesa.

Esse “trato igualitário” além de ser tematizado por Rancière é estruturante de sua escrita em La leçon d’Althusser. No livro não se dispõe a definir um conceito exaustivamente ou a realizar uma refutação da interpretação de Althusser. Rancière se vale, em certa medida, do estilo da polêmica acadêmica, mas para, ironicamente, desfazer-se desse tipo de escrita. Por um lado, Rancière utiliza esse gênero textual, de modo semelhante ao visto em escritos do próprio Althusser, em que se responde a uma tendência a qual se pretende criticar, apresentando uma interpretação alternativa de um mesmo assunto e procurando certa aderência do campo a sua versão. Por outro lado, o texto faz inflexões a esse tipo de escrita, pois, confirme afirma Ross (1991)Ross, K. (1991). Introduction. In J. Rancière. The ignorant schoolmaster: five lessons in intellectual emancipation(pp. vii-xiii). Stanford University Press., para Rancière, tratava-se, em 1974, de um primeiro momento de “limpeza do terreno” (p. xvi) para que se evidenciasse o tipo de reflexão que tomava corpo em sua trajetória: a crítica ao discurso que se pretende “falar por”, que se quer representativo.

Essa preocupação de Rancière atravessa a escrita de La leçon d’Althusser, que rompe com algumas regras do texto acadêmico ao organizar-se em momentos, como se fossem cenas, nas quais algumas discussões apresentadas parecem mais diálogos entre textos de diferentes naturezas do que com uma argumentação visando à defesa de uma definição ou ideia. Encontramos, assim, uma série de temas e de autores mobilizados de acordo com a necessidade de cada debate travado junto com fontes históricas, por exemplo, o uso do texto de Bentham sobre o panóptico para dizer, junto com os textos de Marx, que a ideologia burguesa não é a da liberdade humana, mas antes a da vigilância e assistência (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 29).

Essa mistura de autores com textos históricos é ainda mais visível no penúltimo capítulo do livro, Leçon d’histoire: les méfaits de l’humanisme, em que Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions. se vale extensamente de documentos de arquivo para contrapor-se a Althusser afirmando que no século XIX os operários se instruíam a si mesmos nas lutas que empreendiam contra os patrões. Rancière volta a Bentham numa citação de Resposta a John Lewis em que Althusser (citado por Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions.) se coloca na posição de que descobre aquilo que a ideologia procura escamotear: “Atrás do homem é Bentham que triunfa” (p. 169). Enquanto os textos operários demonstram que eles próprios o sabiam que a igualdade do Direito era meramente formal e por isso mesmo pressionavam, em seus discursos, as autoridades das fábricas e dos governos a reconhecerem seu direito à igualdade e liberdade: “Os operários não são escravos; eles ainda têm na França o título de cidadãos e tanto sem orgulho quanto sem pretensão, eles se creem tão livres quanto aqueles que os empregam” (Barraud citado por Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 158).

Ao alternar momentos em que se discutem conceitos com aqueles nos quais textos de natureza diferentes dialogam, Rancière pratica um tipo de escrita que se tornará posteriormente seu estilo de pensamento. O “trato igualitário” aparece, desde La leçon d’Althusser, não só como tema de preocupação, mas também como uma forma de reflexão, em que não lemos o especialista que procura argumentar exaustivamente a respeito de um tema. Quer dizer, a palavra do outro não é meramente exemplo da argumentação, instrumento que identifique uma realidade a que somente o autor tem acesso. Antes, deparamo-nos com um esforço de compreensão aberto a vozes diversas, além de sua própria, num plano de igualdade na escrita.

Por tais motivos, os textos de Rancière de crítica ao pensamento de Althusser e a seus seguidores, analisados neste artigo, não são um momento circunscrito em sua obra, mas antes exprimem uma posição que atravessa seus escritos posteriores: o “trato de igualdade”. A partir da recusa da oposição entre ciência e ideologia e da crítica mordaz à “luta de classe na teoria”, Rancière valoriza práticas políticas e discursivas que rompem o vivido, compreendido como o lugar potencial da política e não somente o da determinação ideológica: os estudantes e suas demandas cotidianas, os operários do século XIX e seu apelo pela igualdade, os trabalhadores da LIP9 9 Rancière refere-se à greve ocorrida na fábrica LIP em Beçanson, na França em 1973, quando os trabalhadores ocuparam o espaço da fábrica e implementaram um sistema de autogestão. no combate por autonomia.

Essas diferentes experiências dialogam entre si, conversam com os autores mobilizados para cada discussão e com o próprio autor na tessitura de sua escrita, o que encontraremos, ainda que de formas diferentes, em livros posteriores, como A noite dos proletários, O desentendimento e O mestre ignorante. Neste último, de maneira radicalizada, a questão da igualdade é praticada por meio de uma narrativa que mostra a recusa de um professor/intelectual ao papel de “mestre sábio”, ou seja, a divergência com a posição de se colocar como detentor de uma palavra a que se atribui um estatuto superior.

Em La leçon d’Althusser, Rancière (2011)Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions. pondera sobre o lugar do não saber no discurso althusseriano, que é sempre imputado ao outro, um lugar da palavra vazia em oposição à plenitude da ciência pertencente ao intelectual. Enquanto em O mestre ignorante, a palavra é concebida a partir de sua potencialidade em “encher-se” ou “esvaziar-se”, de acordo com a vontade que coloca em ação uma inteligência qualquer e não em razão da intervenção de uma inteligência superior. Em suma, o uso dessa vontade depende do próprio sujeito, que a mobiliza em prol de sua própria inteligência, afinal tudo se separa não entre as palavras — massas ou sujeito, por exemplo —, mas nas próprias palavras, em suas torções, num exercício de “dialética selvagem” (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions., p. 167).

  • Previamente publicado como Preprint em:

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Camila Pires de Campos Freitas camilacampos.revisora@gmail.com
  • 3
    A École Normale Supérieureé uma tradicional instituição de pesquisa e de ensino na França, fundada em 1794. Na Rue d’Ulm, o prédio que abriga as Ciências Humanas foi construído em 1847 (Deaecto, 2017Deaecto, M. M. (2017). Lembranças da Rue d’Ulm, Paris. Jornal da USP. https://jornal.usp.br/artigos/lembrancas-da-rue-dulm-paris
    https://jornal.usp.br/artigos/lembrancas...
    ). Como era na Rue d’Ulm, em que lecionava e pesquisava Althusser, o grupo de filósofos marxistas althusserianos passou a ser identificado como Cercle d’Ulm.
  • 4
    A Universidade de Vincennes (hoje Paris VIII) foi criada em setembro de 1968, logo após a eclosão do movimento de revolta na França. A Universidade tinha a proposta de tornar-se um centro de ensino e pesquisa de Letras e Ciências Humanas, um lugar de experimentação prática e teórica, de livre pensamento, de relações horizontais entre professores e alunos. Rancière esteve presente em Vincennes desde os momentos iniciais de organização do Departamento de Filosofia, organizado por Michel Foucault. Em 1974, Rancière criou o Centre de Recherche sur les Idéologies de la Révolte(CRIR), instituição essencial para a realização das suas pesquisas em arquivos históricos do movimento operário francês, que desembocarão na escrita dos livros La parole ouvrière (Rancière & Faure, 1976Rancière, J., & Faure, A. (1976). La parole ouvrière: 1830/1840. Union Générale d’Éditions.), A noite dos proletários(Rancière, 1988Rancière, J. (1988). A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Cia das Letras.) e O mestre ignorante (Rancière, 2013Rancière, J. (2013). O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual.Autêntica.), entre outros escritos.
  • 5
    “Sur la théorie de l’idéologie: politique d’Althusser” é um artigo escrito em 1969 e publicado em 1970 na obra coletiva argentina Lectura de Althusser. Na França, o texto foi publicado em 1973 na revista L’Homme et la Société. Em 1974, Rancière o incluiu como apêndice de La leçon d’Althusser. A versão do artigo de Rancière que utilizamos aqui é justamente a que se encontra no livro de 1974 (Rancière, 2011Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser. La Fabrique éditions.).
  • 6
    Usamos a expressão “filósofos marxistas” para nos referir aos intelectuais alinhados com a perspectiva althusseriana, conforme o uso do próprio Althusser e de Rancière nos textos mobilizados neste artigo.
  • 7
    Em Resposta a John Lewis, Althusser (1978)Althusser, L. (1978). Posições I. Edições Graal. debate a concepção de história do marxista britânico de que a história é feita pelos homens, sujeitos históricos. Na visão de Althusser, o marxismo-leninismo afirma que são as massas que fazem a história, pois a luta de classes é seu motor, assim, a ação das massas é desencadeada pelas contradições da produção capitalista.
  • 8
    A UNEF era uma entidade nacional de representação dos estudantes franceses: Union Nationale des Étudiants de France.
  • 9
    Rancière refere-se à greve ocorrida na fábrica LIP em Beçanson, na França em 1973, quando os trabalhadores ocuparam o espaço da fábrica e implementaram um sistema de autogestão.

Referências

  • Althusser, L. (1964). Problèmes étudiants. La nouvelle critique, 152, 80-111.
  • Althusser, L. (1978). Posições I Edições Graal.
  • Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Edições Graal.
  • Althusser, L. (2017). A propósito do artigo de Michel Verret sobre o “Maio estudantil”. Crítica Marxista, 44, 123-135.
  • Balibar, E. (2017). Althusser e o comunismo. Crise e crítica, 1(1), .
  • Birnbaum, A. (2005). Jacques Rancière : un pas de côté. Pylone, 4 https://horlieu-editions.com/textes-en-ligne/philosophie/birnbaum-ranciere-un-pas-de-cote.pdf
    » https://horlieu-editions.com/textes-en-ligne/philosophie/birnbaum-ranciere-un-pas-de-cote.pdf
  • Bolmain, T. (2010). De la critique du `procès sans sujet´ au concept de subjectivation politique. Note sur le foucaldisme de Jacques Rancière. Dissensus, 3 https://popups.uliege.be/2031-4981/index.php?id=696
    » https://popups.uliege.be/2031-4981/index.php?id=696
  • Boito, A. (2013). Indicações para o estudo do marxismo de Althusser. Novos Temas, 9, 153-182.
  • Costa, L. (2017). Althusser, leitor de Marx. Cult, 228 https://revistacult.uol.com.br/home/althusser-leitor-de-marx/
    » https://revistacult.uol.com.br/home/althusser-leitor-de-marx/
  • Deaecto, M. M. (2017). Lembranças da Rue d’Ulm, Paris. Jornal da USP https://jornal.usp.br/artigos/lembrancas-da-rue-dulm-paris
    » https://jornal.usp.br/artigos/lembrancas-da-rue-dulm-paris
  • Natali, J. B. (1995). Saiba quem foi Althusser. Folha de SP https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/4/23/mundo/17.html
    » https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/4/23/mundo/17.html
  • Rancière, J. (1988). A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Cia das Letras.
  • Rancière, J. (2011). La leçon d’Althusser La Fabrique éditions.
  • Rancière, J. (2012) La méthode de l’égalite: entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabunyan.Bayard.
  • Rancière, J. (2013). O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual.Autêntica.
  • Rancière, J (2018). O desentendimento: política e filosofia Editora 34.
  • Rancière, J., & Faure, A. (1976). La parole ouvrière: 1830/1840 Union Générale d’Éditions.
  • Ross, K. (1991). Introduction. In J. Rancière. The ignorant schoolmaster: five lessons in intellectual emancipation(pp. vii-xiii). Stanford University Press.
  • Santos, Nadier (2021). Jacques Rancière, Louis Althusser et les leçons de la révolte. Synesis, 13(2). https://seer.ucp.br/seer/index.php/synesis/article/view/2084
    » https://seer.ucp.br/seer/index.php/synesis/article/view/2084
1
Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br