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Reflexões sobre uma educação quixotesca em um mundo póspandemia (ou como o processo de invenção de mundo de dom quixote nos ajuda a pensar alternativas educacionais) 1 1 Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim. https://orcid.org/0000-0002-0323-9207 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Diego da Silva Vargas. dsvargas04@yahoo.com.br 3 3 Apoio: Jovem Cientista do Nosso Estado / FAPERJ

Reflections on a quixotesque education in a post-pandemic world (or how dom quixote's world invention process helps us think educational alternatives)

Resumo

Neste ensaio, pretendo construir algumas reflexões educacionais diante de um mundo em transformação, em um momento histórico que está sendo denominado de “pós-pandemia”. Partindo da figura mítica do personagem do livro de Miguel de Cervantes, busco entender, com base em estudos contemporâneos da cognição, como Dom Quixote cria um mundo possível e real para ele a partir da interação com os livros literários de cavalaria para, então, ampliando essa discussão, buscarmos alternativas educacionais possíveis para esse mundo “pós-pandemia”. Assim, pretendo, ao mesmo tempo, analisar o processo de construção de mundo de Dom Quixote e propor reflexões sobre o que poderia vir a ser uma educação quixotesca.

Palavras-chave
educação; aprendizagem; invenção

Abstract

In this essay, I intend to build some educational reflections inserted in a world in transformation, in this historical moment that is being called "post-pandemic". Inspired by the mythical figure of the character of the Miguel de Cervantes’ book, I seek to understand, based in contemporary studies of the cognition, how Don Quixote creates a possible and real world for him from his interaction with the literary books of chivalry to, so, expanding this discussion, seek possible educational alternatives for this "post-pandemic" world. Thus, I intend, at the same time, to analyze the process of construction of the world of Don Quixote and to propose reflections on what could become a quixotic education.

Keywords
education; learning; invention

Introdução

A epígrafe que abre este texto é formada por versos da canção “Dom Quixote”, interpretada pela banda Engenheiros do Hawaii. Nessa canção, podemos encontrar os dizeres de um eu-lírico que não aceita se inserir na lógica vigente em nossa sociedade, ainda que, para isso, tenha que parecer menos inteligente, menos esperto, menos capaz. Buscando referência na figura de Dom Quixote, os versos da epígrafe apresentam uma espécie de concessão desse eu-lírico, mas não deixam de marcar seu posicionamento no mundo em que vive - “Ainda que os dragões sejam moinhos de vento, mesmo que vocês estejam certos, continuarei agindo em nome das causas que são consideradas perdidas”.

Neste ensaio, pretendo construir algumas reflexões educacionais diante de um mundo em transformação, em um momento histórico que está sendo denominado de “pós-pandemia”, ainda que não saibamos bem o que é esse “pós”. Parto da mesma concessão apresentada na canção, já que não busco aqui sucumbir ao mundo e aceitar a existência de uma vida pós-pandêmica derivada de processos cada vez mais intensos de construção da desigualdade social e da destruição da vida no planeta. Como Dom Quixote, que também viveu em um mundo em transformação, procuro pensar a educação a partir da possibilidade de invenção de outras vidas, de outros modos de viver - especialmente (n)a escola - ainda que os “dragões sejam moinhos de vento”, ainda que, para muitos, a normalidade seja não disputar as noções de realidade com as quais aprendemos a enxergar o mundo.

Não é minha intenção construir um tratado sobre o que seria uma educação quixotesca ou apresentar mesmo essa educação como uma novidade, apartada do que outros autores já defenderam em relação a como a educação, especialmente a escolar, deve acontecer. Busco trazer algumas reflexões sobre como Dom Quixote, no livro de Cervantes, se torna quem é, para, a partir daí, pensarmos sobre as possibilidades de construirmos juntos uma educação que nos permita romper com as certezas que se apresentam diante de nós.

Por isso, coloco um segundo título para o texto: a ideia é pensarmos sobre como Dom Quixote cria um mundo possível e real para ele a partir da interação com os livros literários de cavalaria para, a partir daí, criarmos alternativas educacionais possíveis para esse tal mundo “pós-pandemia”. Neste trabalho, então, tomo a arte – mais especificamente, a literatura – como um fundamento e busco analisar o processo de construção de mundo de Dom Quixote para propor reflexões sobre o que poderia vir a ser uma educação quixotesca.

Cabe dizer, de início, que este ensaio se produz em janeiro de 2022, quando o mundo vive há mais de dois anos uma pandemia de covid-19. Oficialmente, no mundo, até o momento, somam-se mais de 5,5 milhões de mortes4 4 Os dados numéricos sobre as mortes no planeta e no Brasil foram encontrados na contagem e nos gráficos que o Google apresenta a partir de fontes diversas. . Obviamente, a esse número é preciso acrescentar ainda as milhares de mortes não notificadas também causadas pela doença e as mortes derivadas das consequências socioeconômicas de uma vida pandêmica em um mundo desigual.

O Brasil viveu, neste contexto, situação especial de desgraça. Enquanto alguns países enfrentaram a pandemia de modo exemplar, conseguindo implementar medidas capazes de reduzir o impacto do coronavírus na vida das pessoas, por aqui, nos tornamos o exemplo negativo de uma nação que potencializou a crise pandêmica, por meio de ações e discursos governamentais que não apenas negavam o risco da doença como também evitavam construir medidas de proteção à população e boicotavam práticas efetivas de combate ao vírus.

Diferentemente do triste número de vidas perdidas, em termos educacionais, não há como medir as consequências. Além de todas as sequelas psicológicas que nossa sociedade precisa enfrentar pelo fato de viver um período coletivamente trágico, atingem escolas e universidades também as consequências sociais de um país em crise. Temos mais de 13 milhões de desempregados em nosso país e, dentre eles, mais de 5 milhões de desalentados (pessoas que já desistiram de buscar novos trabalhos)5 5 Dados apresentados na notícia que se encontra no link: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/11/30/pnad-ibge-desemprego.htm .

Notícias e pesquisas diversas falam em prejuízos no aprendizado dos estudantes e enfocam perdas em relação ao que a escola era e ao que ensinava antes da pandemia, ressaltando a necessidade de se fazerem esforços para que esse tempo seja compensado no período “pós-pandemia”. Entretanto, cabe lembrar, como o faz Santos (2020, p. 5)Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina., que a crise gerada pela pandemia não é um período de exceção:

A actual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a década de 1980– à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro–, o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é, por natureza, excepcional e passageira, e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos factores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise transforma-se na causa que explica tudo o resto.

Segundo o autor, temos vivido nos últimos 40 anos um processo de intensificação dessa situação. Tal processo acaba por ampliar a concentração de riqueza e por impedir o desenvolvimento de medidas efetivas para o controle da iminente catástrofe ecológica, o que se evidenciou nestes anos em que vivemos a pandemia de covid-19. Se, por um lado, a pandemia pode estar associada diretamente a como o ser humano vem se relacionando com os demais seres do planeta, por outro, períodos de quarentena por todo o mundo demonstraram como o planeta se recupera rapidamente de nossas ações destruidoras. Diversos foram os relatos de ares mais limpos, rios mais claros, animais que apareceram etc., durante os tempos de isolamento físico.

Ainda assim, bilionários aumentaram suas fortunas em meio a uma crise humanitária que gera e aumenta a fome e a uma crise ambiental que gera e aumenta a extinção da diversidade de vidas (humanas e não humanas) em todo o planeta6 6 Sobre esse tema, pode-se encontrar mais informações em https://www.ihu.unisinos.br/601332-bilionarios-aumentaram-suas-fortunas-em-meio-a-crise-economica-na-pandemia . Esse tempo por nós vivido, diante de dados tão fatais, poderia nos apontar para um caminho de desesperança, para a percepção de que não temos como mudar essa realidade que nos é imposta. “Tudo bem… até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento”, mas seguimos pelo “amor às causas perdidas”.

Como nos ensina Krenak (2020, p. 11)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., todo esse cenário se constrói historicamente a partir da noção de que só há uma forma de ser humano:

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história.

A desesperança é também fruto dessa concepção de humanidade que se autoriza destruidora em nome do “progresso”, que elimina “a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões” (Krenak, 2020Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., p. 25). Por isso, Krenak (2020)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras. nos alerta para o fato de que precisamos “adiar o fim do mundo” e, mais do que isso, na verdade, precisamos disputar a própria ideia de fim do mundo, já que ela é pregada “como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos” (Krenak, 2020Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., p. 27). Para ele, “adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (Krenak, 2020Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., p. 27). Nesse sentido, uma educação pós-pandemia precisa ser uma educação que conte histórias e, talvez mais do que isso, que deixe histórias serem contadas.

Portanto, pensar a educação pós-pandemia precisa ser pensar também criticamente a educação que se faz pré-pandemia e de que maneira ela alimenta a crise constante em que vivemos, como humanidade e como planeta. Não precisamos compensar o que perdemos durante os anos de pandemia. Precisamos repensar o que fizemos ao longo das décadas que a antecederam. Santos (2020, p. 6)Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina., por exemplo, afirma que a pandemia acabou por nos mostrar que é possível se pensar em novos modos de viver no mundo:

A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas.

Outros mundos são possíveis, porém, a abertura para a invenção desses outros mundos não pode sucumbir ao mundo que se encontra definido pela ideia de humanidade denunciada por Krenak (2020, p. 67):

Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio.

Um mundo pós-pandemia pode até ser possível, mas isso não resolve os problemas criados em um mundo pré-pandemia. Um mundo pós-pandemia - e, consequentemente, uma educação pós-pandemia -, como disse anteriormente, não pode ser continuidade, não pode ser uma “melhora” do que já existia, não pode ser compensação, precisa ser ruptura:

enquanto a crise da pandemia pode ser de algum modo revertida ou controlada, a crise ecológica já é irreversível e agora há apenas que procurar mitigá-la. Mas mais grave ainda é o facto de as duas crises estarem ligadas. A pandemia do coronavírus é uma manifestação entre muitas do modelo de sociedade que se começou a impor globalmente a partir do século XVII e que está hoje a chegar à sua etapa final. É este o modelo que está hoje a conduzir a humanidade a uma situação de catástrofe ecológica

(Santos, 2020Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina., p. 23).

Alternativas educacionais têm sido pensadas para este “novo” tempo muito a partir da tecnologização da vida escolar, com base nas experiências didático-metodológicas vivenciadas durante os tempos de ensino remoto. Problemas em relação à como a escola (não) lida com as tecnologias têm sido apontados. Esse é um debate fundamental, mas ele não pode estar apartado do debate sobre o próprio modelo de escola em que essas tecnologias vão se inserir e em como tal modelo compactua com a existência do mundo em que vivemos tal e como existe.

Santos (2020, p. 07)Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina. ainda nos pergunta: “no início do século XXI a única maneira de evitar a cada vez mais iminente catástrofe ecológica é por via da destruição maciça de vida humana?”. Acredito profundamente que não. Mas nossa ideia de vida humana precisa mudar, precisa se abrir para outros modos de viver, precisa respeitá-los, valorizá-los, celebrá-los e deixar a diversidade existir. Precisamos, então, criar outros mundos possíveis, inventar mundos. E é aqui que este texto se encontra com Dom Quixote, já que ele é uma representação de alguém que, em um mundo em transformação, se recusa a submeter-se. Mais do que isso, cria outro mundo, que passa a existir, para si, no lugar do mundo que se lhe impunha.

É interessante observar que a história de Dom Quixote é criada por Miguel de Cervantes no século XVII, justamente o marco colocado por Santos (2020, p. 12)Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina. (e por diversos teóricos) para o início do processo que vai culminar no período de crise em que vivemos. O autor detalha esse processo:

Desde o século XVII, os três unicórnios são o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São os modos de dominação principais. Para dominarem eficazmente têm de ser destemperados, ferozes e incapazes de se dominar, como adverte Da Vinci. Apesar de serem omnipresentes na vida dos humanos e das sociedades, são invisíveis na sua essência e na essencial articulação entre eles. A invisibilidade decorre de um sentido comum inculcado nos seres humanos pela educação e pela doutrinação permanentes. Esse sentido comum é evidente e é contraditório ao mesmo tempo. Todos os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a igualdade entre os inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado). Este sentido comum é antigo e foi debatido por Aristóteles, mas só a partir do século XVII entrou na vida das pessoas comuns, primeiro na Europa e depois no resto do mundo.

De alguma forma, portanto, eram essas as ideias que Dom Quixote, o personagem, rejeitava, ao buscar na fantasia uma realidade melhor do que a que se lhe apresentava. Sabemos que são, desde sempre, muitas as formas de vida que rejeitaram esse projeto modernizador europeu. Krenak (2020)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., por exemplo, nos traz uma discussão sobre como as sociedades originárias resistiram ao processo de colonização desde a chegada dos europeus a este território que viria a ser denominado de América. Meu objetivo não é me aprofundar nesse tópico, mas partir da figura de Dom Quixote para pensar caminhos educacionais que nos abram para novos modos de viver, posto que, como alerta Santos (2020, p. 29)Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina.: “na ausência de tais alternativas, não será possível evitar a irrupção de novas pandemias, as quais, aliás, como tudo leva a crer, podem ser ainda mais letais do que a actual”.

Dom Quixote de la Mancha em um mundo pós-pandêmico

Mais de quatro séculos passados desde a publicação do primeiro El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha e da segunda parte El Ingenioso Caballero Don Quijote de la Mancha, estas duas obras, depois unidas como Don Quijote de La Mancha seguem reconhecidas como de fundamental importância para o desenvolvimento da literatura ocidental. Segundo Vieira (2000, p. 105)Vieira, M. A. C. (2000). Don Quijote. In: S. I. Cárcamo (org.). Mitos Españoles: imaginación y cultura. APEERJ., tal importância se deve “seja por seu valor literário insuperável, seja por seu amplo conhecimento das vicissitudes humanas, por suas sutilezas de caráter psicológico, histórico, filosófico...”.

Como comprova a epígrafe deste texto, Dom Quixote se apresenta como personagem de uma “cultura pop universal”, representando os ideais de um mundo baseado no sonho, na imaginação, na utopia, no desejo de transformação e na não aceitação das injustiças e das desigualdades. Assim, representações verbais e imagéticas dessa figura se multiplicam cotidianamente em filmes, quadros, roupas, ilustrações, desenhos animados, canções, programas de TV, desfiles de escola de samba etc.

Pensar uma Educação Quixotesca significa a possibilidade de pensar uma educação que parta dessa figura tão contemporânea. É pensar em uma educação que busque a construção de novas realidades, que se baseie no sonho, na criação, na contraposição a uma realidade que nos brutaliza, nos acomoda e nos faz aceitar como naturais processos de desigualdade e de injustiça que, muitas vezes, partem da própria escola. Uma Educação Quixotesca, portanto, não cabe na lógica já denunciada por Freire (1994)Freire, P. (1994). Pedagogia do Oprimido. Editora Paz e Terra. de uma educação bancária, reprodutora.

Podemos pensar que Dom Quixote, como obra literária, consegue captar os mais fundamentais valores humanos e, por isso, consegue atrair a atenção de tantas pessoas em tantas partes do mundo, com diversos interesses e diversas visões sobre a obra. “Além disso, por sua pronunciada força imaginativa, a obra de Cervantes conta com múltiplas reinterpretações em outras linguagens artísticas” (Vieira, 2000Vieira, M. A. C. (2000). Don Quijote. In: S. I. Cárcamo (org.). Mitos Españoles: imaginación y cultura. APEERJ., p. 106). Dom Quixote também atrai a atenção das mais diversas ciências sociais e humanas, para além dos Estudos em Literatura, que buscam, sob diversas perspectivas, analisar não apenas o contexto sócio-histórico em que a narrativa se encontra, mas também a própria narrativa em seus eventos e no que eles podem significar enquanto representações de histórias vividas por seres humanos cotidianamente.

Como dito anteriormente, parto do uso desse texto literário para entender o processo de construção de mundo de Dom Quixote, o personagem, baseando-me na ideia de que tal processo se desencadeia e se desenvolve pela inte(g)ração do fidalgo com os livros de cavalaria, por meio da leitura. Desse modo, penso aqui também o papel da Literatura e das Artes nessa construção de uma educação quixotesca, que, portanto, está “baseada, fundamentalmente, naquilo que sentimos” (Duarte Jr., 2012Duarte Jr., J. F. (2012). Por que Arte-Educação?. Papirus Editora., p. 12), entendendo que “permitir (através da arte) uma maior vivência dos sentimentos é, dessa forma, abranger o processo da aprendizagem como um todo e não apenas em sua dimensão simbólica, verbosa, palavresca, como insiste em fazer a educação tradicional” (Duarte Jr., 2012Duarte Jr., J. F. (2012). Por que Arte-Educação?. Papirus Editora., p. 70).

Para isso, busco referências também nos Estudos em Cognição, por meio dos quais podemos refletir sobre os recursos e processos que nós, seres humanos, utilizamos para compreender o mundo e dizer coisas, uma vez que “a mente humana elabora e padroniza universos de experiência enquanto interage com o ambiente externo, e esta capacidade é o pré-requisito essencial para o desenvolvimento da inteligência e a aquisição de novos conhecimentos com base em outros já existentes” (Gerhardt, 2006Gerhardt, A. F. L. M. (2006). Uma visão sócio-cognitiva da avaliação em textos escolares. Educação e Sociedade, 27 (97), 1181-1203., p. 1186).

Segundo Salomão (2003, p. 80)Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84., o avanço dos Estudos em Cognição nos permitiu pensar em um conceito de mente como “rede de conexões neurológicas que operam em continuidade ecológica com o ambiente imediato”. Além disso, contribuições da Arte-Educação (Duarte Jr., 2012Duarte Jr., J. F. (2012). Por que Arte-Educação?. Papirus Editora.) tem nos ajudado a entender melhor como, nesse processo, não se separam as ações de pensar e de sentir, o que se casa perfeitamente com tal proposta ecológica. Dessa forma, podemos incluir novas questões ao debate sobre a figura mítica de Dom Quixote. Obviamente, não pretendo chegar a um veredicto acerca de suas condições mentais, mas construir um olhar sobre o tema que nos ajude a refletir sobre uma possível Educação Quixotesca.

A princípio, a proposta deste trabalho pode parecer paradoxal. Como se pode fazer uma análise científica sobre um personagem fictício apresentado por uma obra literária? Como pensar cientificamente sobre processos que se apresentam em uma obra literária e, portanto, baseada não em processos “racionais” de criação, mas na expressão artística de um escritor? A ideia aqui é justamente romper com essas dicotomias, entendendo que esse é também um movimento político - de uma política cognitiva, como propõe Kastrup (2005)Kastrup, V. (2005). Políticas Cognitivas na Formação do Professor e o Problema do Devir-Mestre. Educação & Sociedade, 26 (93), 1273-1288.. Como defende Krenak (2020, p. 63)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., podemos pensar a ciência também a partir da lógica do prazer. Esse seria também um movimento para “adiar o fim do mundo”:

Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra. Então, que a gente pare de despistar essa nossa vocação e, em vez de ficar inventando outras parábolas, que a gente se renda a essa principal e não se deixe iludir com o aparato da técnica. Na verdade, a ciência inteira vive subjugada por essa coisa que é a técnica.

Ao pensarmos em Dom Quixote, as questões, inclusive, vão além de uma falsa dicotomia ciência/arte:

É como se o personagem ocupasse em nosso imaginário o lugar próprio do mito que se traduz por uma ambiguidade, pois, ao mesmo tempo em que não apresenta uma identidade propriamente histórica, tampouco tem uma natureza de carácter essencialmente ficcional. Ao mesmo tempo em que parece ser a mais louca história que já foi inventada, parece a encarnação mais verdadeira e mais humana dos desejos e inquietudes que pulsam nas veias de seus leitores ao longo de tantos séculos

(Vieira, 2000Vieira, M. A. C. (2000). Don Quijote. In: S. I. Cárcamo (org.). Mitos Españoles: imaginación y cultura. APEERJ., p. 107).

A história de Dom Quixote se encontra no imaginário coletivo ocidental e se mantém certa ilusão de que existiu há muito tempo o homem Dom Quixote em carne e osso. Dom Quixote consegue mover-se por espaços reais do mesmo modo que se move por realidades imaginárias e passa a viver em nossos dias como uma figura mítica moderna que nasce justamente dessa ambiguidade, que mescla pessoa e personagem e conecta história e ficção, de tal modo unidos que já é impossível fazer a separação.

Como explica Vieira (2000, p. 108)Vieira, M. A. C. (2000). Don Quijote. In: S. I. Cárcamo (org.). Mitos Españoles: imaginación y cultura. APEERJ., “desde seus primeiros passos, Dom Quixote nos deixa a ilusão de ser uma pessoa – um leitor como nós – que traz consigo a dimensão de ser personagem de uma notável história de cavaleiros andantes”. É justamente desse personagem leitor que falo neste texto, pensando que temos, na escola, diversos leitores se construindo cotidianamente e que a vida escolar “é parte de seus sofrimentos, de seus projetos políticos e de seus desejos, atuando seja de forma limitadora seja de forma potencializadora” (Vargas, 2020Vargas, D. S. (2020). A inserção dos estudos em cognição na Linguística Aplicada de hoje: questões para uma educação linguística brasileira do/no século XXI. Raído, 14, 190–215., p. 194). Pensar uma educação pós-pandêmica passa também por refletir sobre quem são esses alunos-leitores e sobre quais são desejos e suas necessidades.

O que é real? – A “verdade” cognitiva

A discussão sobre o que é verdade está neste mundo desde que começamos a nos comunicar – ou talvez antes – e se cientificou pelo desenvolvimento da Filosofia. Ao final do século XIX, a discussão se ampliou quando a questão a ser investigada deixou de ser a relação entre pensamento e mundo e passou a ser a relação entre linguagem e mundo (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84.).

Segundo Salomão (2003)Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84., de um lado estão os estudos em Filosofia Analítica, que partem da relação entre linguagem e mundo e, de outro, as Teorias Causais da Referência, que tratam a vinculação entre a representação simbólica e o objeto de representação como um ato histórico originário. Entretanto, para a autora, não há aí verdadeiramente uma oposição: trata-se de faces de uma mesma moeda, já que reificam as polaridades linguagem e mundo e excluem o sujeito como parte do processo de significação. Ela defende, assim, uma visão sobre o sujeito cognitivo como alguém que age em um trabalho ecológico. O sujeito cognitivo é, assim, também sujeito discursivo, que orienta sua ação dentro de uma moldura específica (física, mental, social) e que move diversas semioses para a construção de um sentido focalmente validado:

Com relação à situação teoricamente constitutiva da continuidade das semioses, é curioso constatar que as semânticas dessubjetificadas (nas versões externalistas ou internalistas) operam a interpretação por uma espécie de descamamento simbólico multiplicando as representações metalingüísticas, num reconhecimento oblíquo e dissimulado de que só a atividade semantogênica pode prestar-se a encobrir o buraco negro da falta de sentido

(Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84., p. 73-74).

Em outras palavras, não podemos ignorar a dimensão cognitiva do sentido e dos sujeitos que o produz: a produção de sentidos se dá pela interação entre os sujeitos em um espaço cooperativo na cena comunicativa (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84.). Pode-se definir a verdade, assim, como “uma construção semântica, comunicamente validada” (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84., p. 77). Portanto, a verdade não estaria no mundo, mas sim nos seres que o compõem em interação, produzindo, negociando, flexibilizando e reproduzindo sentidos. Tal ideia nos leva a abandonar o dualismo corpo/mente e a distinção sujeito/objeto que fundam a razão ocidental (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84.), e outras dicotomias como pensar/sentir, sensação/percepção, reflexão/ experiência, útil/agradável etc. (Duarte Jr., 2012Duarte Jr., J. F. (2012). Por que Arte-Educação?. Papirus Editora.).

A semiose linguística, assim, capacitaria a cognição humana a realizar duas operações: a) a possibilidade de referir-se ao que se encontra ausente, desdobrando os planos de referenciação, o que permite aos seres humanos narrar a História, contar histórias e inventar o futuro [no caso de Dom Quixote, o presente também], e b) a possibilidade de enquadrar a cena evocada de acordo com as necessidades comunicativas: um enquadramento, que é inevitável, de representação-do-mundo por representação-de-si (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84.).

Dentro desta perspectiva, portanto, não há separação entre linguagem, cultura e cognição, uma vez que “ao utilizar a linguagem, os seres humanos carregam, em suas palavras, uma carga cumulada de crenças, ideais, influências, as quais estão tão arraigadas em sua cognição que são inseparáveis daquilo que ele quer significar” (Vanin, 2009Vanin, A. A. (2009). Língua, cognição e cultura: uma relação indissociável. Letrônica, 2 (1), 42-59., p. 42). Por isso, “o conhecimento de si próprio, o saber sobre o mundo e a noção daquilo que está na mente do outro, num tripé irredutível, tornam-se tão essenciais para a formulação de significados” (Vanin, 2009Vanin, A. A. (2009). Língua, cognição e cultura: uma relação indissociável. Letrônica, 2 (1), 42-59., p. 57).

Consequentemente, somos sempre intersujeitos direcionados pela necessidade de interação (Gerhardt, 2013Gerhardt A. F. L. M. (2013). As identidades situadas, os documentos curriculares e os caminhos abertos para o ensino de língua portuguesa no Brasil. In: A. F. L. M. Gerhardt, M. A. Amorim & A. M. Carvalho (orgs.). Linguística aplicada e ensino: língua e literatura (pp. 77-113). Pontes Editores.). Nossa cognição é social, porque parte de um princípio de partilhamento, resultado de atividades conjuntas que exigem cooperação (Tomasello, 1999Tomasello, M. (1999). The Cultural Origins of Human Cognition. Harvard University Press.), o que significa dizer que nos projetamos no outro, construindo assim, em função do outro, nossa identidade. E não só o outro faz parte desse processo de construção, posto que estamos em um mundo intersubjetivamente compartilhado e ecologicamente real: “um mundo povoado e animado por artefatos, símbolos, convenções e significados intersubjetivamente compartilhados” (Sinha, 2005Sinha, C. (2005). Biology, Culture and the Emergence and Elaboration of Symbolization. In: A. P. Saleemi, O. S. Bohn, & A. Gjedde. (eds.). In Search of a Language for the Mind-Brain: Can the Multiple Perspectives Be Unified? (pp. 311-335). Aarhus University Press., p. 333).

Nessa perspectiva, então, a mente não representa o mundo, mas atua sobre ele, transformando-o ao transformar-se (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84.). Isso nos leva a entender que a cognição é situada (Sinha, 2005Sinha, C. (2005). Biology, Culture and the Emergence and Elaboration of Symbolization. In: A. P. Saleemi, O. S. Bohn, & A. Gjedde. (eds.). In Search of a Language for the Mind-Brain: Can the Multiple Perspectives Be Unified? (pp. 311-335). Aarhus University Press.) e que pode ser inventiva (Kastrup, 2005Kastrup, V. (2005). Políticas Cognitivas na Formação do Professor e o Problema do Devir-Mestre. Educação & Sociedade, 26 (93), 1273-1288.), ou seja, que não há verdades absolutas e válidas para quaisquer contextos nem que não possam se transformar a partir de novas perspectivas de mundo e de nós mesmos. A razão-no-mundo, que transforma o mundo ao transformar-se, então, é, como aponta Salomão (2003)Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84., contrapontística, mesclada e heterogênea, o que significa dizer que “a verdade, tanto quanto o mundo, existe e se produz como entendimento, construído em condições comunicativas densamente radicadas e vividamente experimentadas” (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84., p. 83).

Dom Quixote e a aprendizagem situada mediada por livros como artefatos de aprendizagem

Introduzidos na concepção de verdade a partir dos pressupostos anteriormente apresentados, focalizo agora o processo de construção de mundo de Dom Quixote a partir de suas leituras dos livros de cavalaria. Entretanto, não caímos aqui nas armadilhas das teorias da aprendizagem que, de modo geral, tratam o aprendiz como alguém que já nasce aprendiz, o que é perigoso, já que se aparta, assim, o aprendiz da situação de aprendizagem (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.).

Sinha (1999)Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon. defende que a aprendizagem, a cognição - e, portanto, a verdade/realidade - é situada, o que é fundamental para entender os processos envolvidos nela e sua estruturação pelo contexto, pela comunicação e pela prática social. Por isso, repensar o aprendiz a partir de uma perspectiva situada requer o abandono da crença de que os aprendizes são os mesmos em todos os lugares e em todos os tempos e de que a relação com o meio ambiente (humano e natural) é universal. Podemos dizer, portanto, que o ser aprendiz não está dado, o que se torna um conceito fundamental para a nossa Educação Quixotesca.

O autor critica a ideia de que possa haver processos de aprendizagem universais e a desconsideração de dinâmicas específicas socioculturais de comunicação. A aprendizagem ocorre, segundo ele, sempre a partir de confrontações entre o aprendiz e o ambiente, formado por pessoas e objetos, em um contexto culturalmente construído. A importância do contexto se dá, assim, em um nível macro, sociocultural, e, em um nível micro, de ambientação do aprendizado e de experimentações individuais.

Nesse sentido, lembra Gerhardt (2010, p. 256)Gerhardt, A. F. L. M. (2010) Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, 15 (44), 247-263.: devemos reconhecer “a relação de mão dupla entre a pessoa que cogniza e o universo à sua volta, num fluxo contínuo de informação em ambos os sentidos, e não supor que o ser humano apenas recebe passivamente as informações”. Essa relação de mão dupla só acontece porque nossa cognição é distribuída, e, assim, nos integramos conceptualmente ao ambiente, às outras pessoas e integramos conceptualmente saberes novos a saberes velhos (cf. Vargas, 2020Vargas, D. S. (2020). A inserção dos estudos em cognição na Linguística Aplicada de hoje: questões para uma educação linguística brasileira do/no século XXI. Raído, 14, 190–215.).

Só aprendemos quando nos deparamos com o novo, e, então, o analisamos e o integramos aos saberes que já temos (Gerhardt, 2010Gerhardt, A. F. L. M. (2010) Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, 15 (44), 247-263.; Duarte Jr., 2012Duarte Jr., J. F. (2012). Por que Arte-Educação?. Papirus Editora.). Aprendemos porque podemos “juntar duas coisas para formar uma terceira” (Gerhardt, 2010Gerhardt, A. F. L. M. (2010) Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, 15 (44), 247-263., p. 257). Torna-se, então, papel da escola contribuir para esse processo e não levar os estudantes à reprodução de conceitos dados, o que se trata de uma escolha entre políticas de cognição (Kastrup, 2005Kastrup, V. (2005). Políticas Cognitivas na Formação do Professor e o Problema do Devir-Mestre. Educação & Sociedade, 26 (93), 1273-1288.) e entre modelos de educação (Freire, 1994Freire, P. (1994). Pedagogia do Oprimido. Editora Paz e Terra.) Nesse sentido, cabe lembrar que a ideia de uma cognição representacional (Kastrup, 2005Kastrup, V. (2005). Políticas Cognitivas na Formação do Professor e o Problema do Devir-Mestre. Educação & Sociedade, 26 (93), 1273-1288.), dedicada a simplesmente entender o mundo como ele existiria, é uma das bases do pensamento moderno, que fomenta toda a crise apresentada na introdução deste ensaio e que permite a existência do modelo de educação bancária (Freire, 1994Freire, P. (1994). Pedagogia do Oprimido. Editora Paz e Terra.). É também tal modelo de cognição que exclui da condição de saber - e, consequentemente da noção de humanidade - outras formas de conhecimento e de vida (Krenak, 2020Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras.).

Por tudo isso, não podemos analisar o processo por que passa Dom Quixote quando inicia a leitura dos livros de cavalaria - a princípio como um modo de passar o tempo e depois com um grande afinco e interesse (Cervantes, 2005Cervantes S., M. (2004). Don Quijote de la Mancha (Edición del IV Centenario). Real Academia Española: Asociación de Academias de la Lengua Española.)- sem entendermos o contexto histórico, social e particular em que está inserido o herói. Também não podemos ignorar a importância dos objetos materiais como ferramentas para o pensamento (Vigotski, 2008Vigotski, L. S. (2008). Pensamento e Linguagem. Martins Fontes.), como mediadores semióticos do desenvolvimento cognitivo do aprendiz (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.) e como parte mesmo de sua cognição (Zhang e Patel, 2006Zhang, J., & Patel, V. Distributed Cognition, Representation, and Affordance. In: I. E. Dror & S. Harnad (eds.). Cognition Distributed (pp. 137-144). Johns Benjamins Publishing Company.), contribuindo também para o seu posicionamento em determinada prática discursiva de aprendizagem (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.).

Como explica Sinha (1999)Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon., signos podem atuar como ferramentas e objetos podem atuar como signos. Logo, artefatos não são fixados somente por normas sociais de valor de uso. Como as palavras, são polissêmicos e seus diferentes significados correspondem a diferentes padrões e práticas discursivas, a posicionamentos diferentes do sujeito no discurso e a diferentes contextos. A situação (e tudo que se insere nela) nunca está dada, mas é continuamente questionada, negociada e restabelecida ao longo da interação (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.).

Como explicam Facounnier & Turner (2002)Fauconnier, G. & Turner, M. (2002). The way we think. Basic Books., estamos continuamente inventando novas coisas e nos vinculando afetivamente a elas: precisamos delas para que não nos sintamos isolados do mundo, uma vez que a natureza social da cognição torna essenciais âncoras materiais para as integrações conceptuais que nos possibilitam romper as barreiras de nossa experiência mental subjetiva (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.). Segundo Salomão (2003), como naturalizamos esses processos de criação, tornamos as coisas aparentemente vazias de sentido. Os objetos garantem, então, “a comensurabilidade de nossos estares-no-mundo” (Salomão, 2003Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84., p. 79).

Essas formas simbólicas, as chamadas “coisas”, constróem nossa condição de pertencimento a um grupo, mas isso não significa que todos produziremos os mesmos sentidos ao interagirmos com elas e construirmos sentidos para o(s) mundo(s) de que fazemos parte. Se observarmos a história de Dom Quixote, podemos notar que ele se posiciona diante dos livros de cavalaria com um olhar de quem pretende ser um aprendiz (da realidade), e não apenas por fruição, integrando-se a um mundo supostamente ficcional.

A partir de tal posicionamento, começa a envolver-se com esses artefatos – os livros de cavalaria – buscando entender o mundo em que vive - ou em que pretende viver. Os livros passam a atuar como mediadores entre o leitor-aprendiz e o conhecimento oferecido sobre o mundo dos cavalheiros. Ao integrar-se a esses livros, esse mundo se concretiza em sua mente e se materializa no mundo em que se encontra. Já não há separação entre ficção e realidade, o que permite a Dom Quixote criar um novo mundo, que não é nem o que está nos livros nem o que está comumente visto por seus contemporâneos:

En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro de manera que vino a perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas soñadas invenciones que leía, que para él no había otra historia más cierta en el mundo

(Cervantes, 2005Cervantes S., M. (2004). Don Quijote de la Mancha (Edición del IV Centenario). Real Academia Española: Asociación de Academias de la Lengua Española., p. 29-30).

Razão ou loucura? - Entendendo o processo de aprendizagem para pensar uma Educação Quixotesca

Não é possível falarmos em educação sem falarmos em aprendizagem, uma vez que, como salienta Kastrup (2005, p. 1274)Kastrup, V. (2005). Políticas Cognitivas na Formação do Professor e o Problema do Devir-Mestre. Educação & Sociedade, 26 (93), 1273-1288., “o modo como ela é entendida implica diretamente a maneira como concebemos o processo de ensino/aprendizagem”. Tratar da aprendizagem, entretanto, não é tratar de unanimidades. Nos diferentes campos científicos, no senso comum, nas mídias e nos discursos de profissionais e de estudantes, diversas concepções se apresentam.

Além disso, mesmo que não sejam explicitadas, em qualquer relação de ensino, visões de aprendizagem são construídas, são apresentadas e são igualmente ensinadas. Além disso, bem como as visões sobre a linguagem, ajudam a definir e são definidas por visões de cognição e, consequentemente, visões de ser humano. São, portanto, escolhas éticas e políticas, mesmo quando negadas ou invisibilizadas.

Como aponta Sinha (1999)Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon., predomina-se uma visão naturalística de que não há para o aprendiz nada além dos processos de aprendizagem anteriormente construídos, o que ignoraria a complexidade dos encontros e desencontros existentes entre o aprendiz e a situação de aprendizagem. Para o autor, trata-se de uma ficção científica inocente sobre o que é a aprendizagem, posto que falha ao não reconhecer os diversos processos que ocorrem nas diversas práticas discursivas e não discursivas em que se coloca um sujeito aprendiz.

Dentro da visão naturalística, nos casos em que o aprendiz falha ou atua de uma maneira diferente da esperada, costuma-se apontar deficiências ou déficits nos mecanismos neurobiológicos do aprendiz, ou seja, problemas nos mecanismos naturais que supostamente fundamentariam a aprendizagem. Outra explicação comum é recorrer a uma possível inadequação do modo como as situações de aprendizagem foram organizadas em relação às capacidades naturais do aprendiz (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.).

Se voltarmos à figura mítica de Dom Quixote, por exemplo, em relação a essa discussão, podemos notar que é bastante comum a explicação de que seu processo de invenção de mundo se dá por possíveis doenças mentais, o que aparece na própria narrativa de Cervantes. Assim, ele passa a ser visto como um louco que não consegue se ajustar ao mundo. Entretanto, outras podem ser as formas de vermos sua trajetória. Dentro da perspectiva colocada anteriormente, precisamos compreender como se dá a construção do aprendiz como um sujeito aprendiz situado. Desse modo, podemos explicar os (des)encontros (micro e macro)culturais que ocorrem entre o aprendiz e a situação de aprendizagem, e que não necessariamente têm relação com problemas neurobiológicos.

Voltando a Sinha (1999)Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon., podemos entender que as aprendizagens ocorrem para além de estilos particulares de conhecimento. O autor defende que o processo de ensinar/aprender é também uma prática institucional de reprodução social, que pode se construir formal ou informalmente, e cujo objetivo é construir um produtor hábil dentro de uma determinada situação culturalmente definida. Como seres humanos são seres criativos, as práticas em que se inserem nossa cognição e nossas atividades comunicativas estão sempre embutidas de significado.

Nessa concepção, fomos, ao longo do tempo, desenvolvendo habilidades específicas que são demandadas em cada situação de aprendizagem, de forma que possamos conhecer as estruturas de aprendizagem que se nos apresentam e agir sobre elas a partir de um posicionamento próprio, que, por sua vez, para ser definido, requer experiências anteriores em situações de aprendizagem semelhantes.

Dentro das diferentes correntes teóricas educacionais, tem se destacado uma oposição entre os estudos de Piaget e os de Vygotsky. Nessa oposição, de forma geral, Vygotsky aparece como oferecendo melhores contribuições, uma vez que consideraria as condições sociais ignoradas por Piaget. Entretanto, um olhar mais atento a ambas as teorias pode revelar que elas se distanciam em alguns pressupostos, mas se aproximam em outros, podendo se complementar e serem complementadas por perspectivas mais atuais sobre o que é a aprendizagem.

Considerando Piaget como um pesquisador que busca entender o funcionamento interno do desenvolvimento cognitivo humano e Vygotsky como um pesquisador dedicado à relação entre socialização e desenvolvimento, Tomasello (1996, p. 275)Tomasello, M. (1996). Piagetian and Vygotskian approaches to language acquisition. Human development, 39, 269-276., ao abordar especificamente o tema da aquisição da linguagem, defende que:

Seguindo suas pistas, conseguimos apreciar em alguns detalhes como é que as habilidades cognitivas das crianças e o contexto cultural dentro do qual elas se desenvolvem interagem para permitir a aquisição da linguagem. Pode-se argumentar que, na verdade, a maioria dos nossos avanços no estudo da aquisição de linguagem se deu por estarmos sobre os ombros desses dois gigantes. Porém, dessa perspectiva elevada, podemos também ver coisas que eles não viram - observações mais detalhadas, em consonância com suas teorias, e uma nova apreciação do papel da cognição social precoce na aquisição da linguagem.

A conclusão a que chega Tomasello (1996)Tomasello, M. (1996). Piagetian and Vygotskian approaches to language acquisition. Human development, 39, 269-276. vale também para os estudos sobre a aprendizagem - não esqueçamos que estamos pensando aqui linguagem, cognição e cultura como interrelacionadas, o que afeta diretamente nossa compreensão do que é o aprendizado e de como ele deve ser situado na escola. Sob essa ótica, então, tanto Vygotsky como Piaget tratam a linguagem (e, portanto, o aprendizado) como representação: “a linguagem é definida como um sistema de sinalizadores que apontam para a realidade da qual não participam e sobre a qual não possuem intervenção” (Tedesco, 2015Tedesco, S. (2015) Mapeando o domínio de estudos da psicologia da linguagem: por uma abordagem pragmática das palavras. In: V. Kastrup, S. Tedesco & E. Passos. Políticas da Cognição (pp. 21-45). Porto Alegre: Ed. Sulina., p. 24). Tedesco (2015)Tedesco, S. (2015) Mapeando o domínio de estudos da psicologia da linguagem: por uma abordagem pragmática das palavras. In: V. Kastrup, S. Tedesco & E. Passos. Políticas da Cognição (pp. 21-45). Porto Alegre: Ed. Sulina. constrói uma interessante articulação entre suas teorias para ultrapassá-las a partir de uma abordagem pragmática. Neste texto, essa abordagem pragmática vem sendo apresentada através da defesa de uma visão de cognição como distribuída, uma vez que:

À medida que nossas interações configuram a maneira como construímos significados e desenvolvemos habilidades de enriquecer pensamentos e de refinar ações, a linguagem não deve ser concebida como um objeto autônomo. Por fazermos parte de uma rede social dinâmica, a experiência linguística pode alterar quem somos quando orientamos o outro (e o outro nos orienta). Buscamos a sincronia com o outro, criando expectativas, rastreando olhares e evocando memórias. Enfim, a linguagem conecta o aqui e o agora com o que já foi e, crucialmente, com o que está por vir

(Duque, 2015Duque, P. H. (2015). Por uma abordagem ecológica da linguagem. Pontos de Interrogação, 5 (1), 55-78., p. 56).

Dessa forma, um grupo social passa a ser visto como um sistema cognitivo distribuído (Hutchins, 2001Hutchins, E. Distributed cognition (2001). In: N. J. Smelser & P. B. Baltes. (orgs.). International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences. Elsevier Sciences Ltd.; Zhang & Patel, 2006Zhang, J., & Patel, V. Distributed Cognition, Representation, and Affordance. In: I. E. Dror & S. Harnad (eds.). Cognition Distributed (pp. 137-144). Johns Benjamins Publishing Company.), que possui propriedades diferentes das que apresentam sozinhos os indivíduos que o compõem. Como explica Salomão (2003, p. 80)Salomão, M. M. M. (2003). Razão, Realismo e Verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da Referência. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 44, 71-84.:

Na verdade, na medida em que cada um dos sujeitos, que participa deste grupo, adquire, pela aprendizagem, o conjunto de representações das experiências das gerações precedentes, na forma de um acervo de modelos culturais, este indivíduo passa a ter acesso a uma base de dados que seria incapaz de constituir no decurso de sua vida pessoal. Neste sentido, o conhecimento, como o próprio Hutchins proclama, além de ser uma condição psicológica, é a maior de todas as realizações sociais. Na mesma linha, é possível afirmar que cultura é cognição distribuída.

Dessa forma, o caráter situado da cognição distribuída se faz ainda mais relevante, uma vez que aprender é “também reconhecer as realidades que enquadram e validam esses conteúdos para que eles sejam compreendidos como conceitos” (Gerhardt, 2010Gerhardt, A. F. L. M. (2010) Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, 15 (44), 247-263., p.260). O aprendiz, então, sempre vai se posicionar na macroestrutura (cultural, social, histórica) que enquadra a microestrutura de aprendizagem na qual se insere para construir seus aprendizados. O aprendizado é, então, uma construção semiótica (Gerhardt, 2013Gerhardt A. F. L. M. (2013). As identidades situadas, os documentos curriculares e os caminhos abertos para o ensino de língua portuguesa no Brasil. In: A. F. L. M. Gerhardt, M. A. Amorim & A. M. Carvalho (orgs.). Linguística aplicada e ensino: língua e literatura (pp. 77-113). Pontes Editores.) que se dá por meio de integrações conceptuais (Fauconnier & Turner, 2002Fauconnier, G. & Turner, M. (2002). The way we think. Basic Books.) de forma situada. E os aprendizes, aqueles (ou aquilo) com quem interagem e os objetos de aprendizagem se enquadram de maneiras diferentes de acordo com o macrocontexto cultural e com o microcontexto situacional de aprendizagem (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.). Portanto, como já dito, um aprendiz não nasce aprendiz, mas aprende a sê-lo, em um contexto cultural e institucional específico, e por meio de experiências reais de aprendizagem (Sinha, 1999Sinha, C. (1999). Situated Selves: learning to be a learner. In: J. Bliss, R. Saljo & P. Light. (org.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning (pp. 32-48). Pergamon.).

Pensando no exemplo de Dom Quixote, podemos notar que a microestrutura de leitura dos livros de cavalaria (ou das novelas ficcionais) na cultura moderna ocidental, que começava a consolidar-se naqueles tempos, está enquadrada por uma macroestrutura de criação, ou seja, está canonicamente situada em uma macroestrutura de expressão de um “self” criativo. Entretanto, Dom Quixote se posiciona nessa microestrutura de um modo diferente do enquadrado pela macroestrutura cultural. Para o personagem, a microestrutura de leitura de livros de cavalaria está situada em uma macroestrutura de aprendizagem.

Portanto, os meios e os produtos dessas atividades adquirem para ele significados diferentes dos construídos pelas pessoas com quem convive, que se posicionam de outro modo diante da mesma leitura. O livro, como artefato físico, passa a ser veículo semiótico intermediário entre a construção da subjetividade do leitor de diferentes maneiras: para os companheiros de Dom Quixote, essa subjetividade se constrói a partir da ideia de um leitor literário, que lê por fruição, mas, para Dom Quixote, tal subjetividade se constrói a partir da noção de aprendiz, que busca entender o mundo “real” a partir da literatura. Essas duas subjetividades diferentemente situadas correspondem a diferentes posicionamentos e, consequentemente, a diferentes perspectivas discursivas, que levam a diferentes processos de construção de sentidos.

Assim, temos um desencontro macrocultural no processo de aprendizagem, que mais do que ser rejeitado, precisa ser entendido microcontextualmente. Se acreditamos que aprender é reproduzir saberes previamente construídos, não há outra opção senão rejeitar o que fez Dom Quixote, buscando encontrar soluções para seus problemas individuais, tomados provavelmente como problemas neurobiológicos. Entretanto, se pensamos que aprender é também inventar mundos possíveis, torna-se necessário entender o que levou o personagem a construir sentidos não coletivamente referendados para o mundo em que se insere.

Como aponta Tedesco (2015, p. 24)Tedesco, S. (2015) Mapeando o domínio de estudos da psicologia da linguagem: por uma abordagem pragmática das palavras. In: V. Kastrup, S. Tedesco & E. Passos. Políticas da Cognição (pp. 21-45). Porto Alegre: Ed. Sulina., precisamos considerar “o aspecto pragmático, heterogêneo e sempre provisório da linguagem” e da aprendizagem, entendendo que essa é também uma postura política (Kastrup, 2005Kastrup, V. (2005). Políticas Cognitivas na Formação do Professor e o Problema do Devir-Mestre. Educação & Sociedade, 26 (93), 1273-1288.) baseada em modelos de educação (Freire, 1994Freire, P. (1994). Pedagogia do Oprimido. Editora Paz e Terra.). Entretanto, cabe ressaltar que não estou aqui dizendo que o processo de aprendizagem se constrói de maneira única e individual e que, portanto, haveria aprendizagens mais complexas que outras e pessoas mais capazes de alcançar certos saberes que outros. Como defende Gerhardt (2010)Gerhardt, A. F. L. M. (2010) Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, 15 (44), 247-263., entendo que há uma universalidade nos processos de construção de conceitos no sentido de que todo ser humano é capaz de aprender e de que tudo o que o ser humano aprende, independentemente do lugar em que o faz, tem o mesmo valor: “a diferença qualitativa entre os conceitos (...) não é inerente aos conceitos, mas sim às suas condições de produção” (Gerhardt, 2010Gerhardt, A. F. L. M. (2010) Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, 15 (44), 247-263., p. 250).

Dom Quixote integra os mundos presentes nos livros de cavalaria, que buscam também representar um mundo anterior ao que vive, e o mundo em transformação em que se apresenta a “realidade” com a qual se depara. Assim, ao longo da narrativa, vemos um homem que olha o que todos veem e enxerga outro mundo, o que pode ser entendido como o fruto de um processo de construção de sentido baseado em uma aprendizagem derivada da leitura literária (e não apenas um ato de loucura).

Obviamente, no “mundo real”, o caráter situado da cognição distribuída nos leva a pensar que aprender é “também reconhecer as realidades que enquadram e validam esses conteúdos [com os quais lidamos em nossos processos de aprendizagem] para que eles sejam compreendidos como conceitos” (Gerhardt, 2010Gerhardt, A. F. L. M. (2010) Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, 15 (44), 247-263., p. 260). Assim, os sentidos produzidos por Dom Quixote são validados no plano criativo, no mundo literário, mas não no plano racional, no mundo real.

Entretanto, para além de pensar em problemas naturais do aprendiz, é importante problematizar como ele entende as condições de validação dos aprendizados que constrói. Como evidencia Krenak (2020)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., não devemos esquecer que tais condições de validação são também construções culturais que, apesar de serem muitas vezes tratadas como as únicas possíveis, não as são. A partir do que nos aponta Santos (2000)Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina., inclusive, é possível perceber que, em geral, tais planos de validação são construídos, em nossa sociedade, no tripé formado pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado.

Lembrando que tal tripé começa a se construir justamente no tempo e no espaço em que vive Dom Quixote, podemos nos perguntar: estaria ele não compreendendo as condições de validação dos sentidos que produz ou estaria rejeitando tais condições de validação, buscando construir uma subjetividade que corporifica e vive efetivamente a negação da realidade socialmente compartilhada, substituindo-a por outra que considere melhor? A partir desta pergunta, precisamos saber, então, o que Dom Quixote nos ensina a nós educadores?

Uma educação quixotesca não pode jamais trabalhar a partir de dicotomias entre pensar e sentir, entre criação e realidade, entre experiência e reflexão. Uma educação quixotesca está, como coloquei anteriormente, “baseada, fundamentalmente, naquilo que sentimos” (Duarte Jr., 2012Duarte Jr., J. F. (2012). Por que Arte-Educação?. Papirus Editora., p. 12) e no que aquilo que sentimos produz como realidades possíveis. Ela busca a um só tempo, romper com tais dicotomias e com as bases que a sustentam. Outros mundos sempre foram e ainda são possíveis nas bordas do colonialismo e do capitalismo que a ele se articula. Nesses mundos, subjetividades menos úteis e produtivas, como as de Dom Quixote, sempre puderam e ainda podem existir. Invertendo a canção da epígrafe, “tudo bem… também pode ser que os moinhos de ventos sejam dragões”.

Santos (2020, p.27)Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina. nos ensina que “os três princípios de regulação das sociedades modernas são o Estado, o mercado e a comunidade”, mas “nos últimos quarenta anos foi dada prioridade absoluta ao princípio do mercado em detrimento do Estado e da comunidade”. A pandemia, enfatiza o autor, revela como “o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para responder às emergências”, o que nos traz algumas lições dentro de uma “cruel pedagogia” (Santos, 2020Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Edições Almedina.). É preciso resistir a isso, como o fez Quixote. Krenak (2020)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras. nos ensina que resistir é um processo que se constrói também pela expansão de nossa subjetividade, a partir da não aceitação da ideia de que somos todos iguais: “vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar” (Krenak, 2020Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., p. 32).

Considerações Finais

Neste ensaio, parti da já consagrada discussão sobre a loucura ou racionalidade de Dom Quixote para pensarmos caminhos educacionais para um mundo que vem sendo nomeado de “pós-pandemia”. Nesse sentido, fui pensando no que seria uma “educação quixotesca”, baseada na ideia de que há na narrativa de Cervantes elementos interessantes sobre o processo de invenção de mundo do personagem que nos ajudam a construir alternativas educacionais para um mundo que está, há algum tempo, permanentemente em crise.

Tomando referências teóricas distintas, em um caminho indisciplinar (Moita Lopes, 2006Moita Lopes, L. P. (2006). Introdução: Uma linguística aplicada mestiça e ideológica – interrogando o campo como linguista aplicado. In: L. P. Moita Lopes (org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar (pp. 13-44). Parábola Editorial.), busquei analisar o processo de invenção de mundo do personagem principal dessa tão famosa obra, que ainda se encontra no imaginário coletivo ocidental de maneira impressionante. Para isso, considerei que nossa subjetividade se produz como uma construção baseada em processos de significação e em práticas discursivas, o que nos permite oferecer novos pontos de vista para a compreensão dos processos de criação dos sujeitos.

Dessa maneira, é possível pensarmos em um olhar para as relações de ensino e de aprendizagem que levem em conta não apenas os aspectos neurobiológicos do sujeito aprendiz, mas que também considere como parte de sua cognição o contexto em que se insere (o que envolve o ambiente físico e social, os objetos e as demais pessoas, micro e macrocontextualmente entendidos).

Busquei fazer, aqui, então, um pequeno estudo sobre o processo de aprendizagem desenvolvido por Don Quijote a partir da leitura dos livros de cavalaria e, assim, entender os recursos que nós, os seres humanos - neste caso, com base em uma representação mítica -, utilizamos para compreender o mundo e dizer coisas sobre ele. Não me aprofundei aqui na questão literária da narrativa (ainda que não a desconsidere), porque busquei enfocar justamente essa figura mítica apresentada na obra como um sujeito leitor que desenvolve um processo de aprendizagem no momento em que mergulha na leitura dos livros de cavalaria.

Dom Quixote se posiciona ante os livros como um aprendiz do “mundo real”, diferentemente do que se espera na cultura do Mundo Occidental Moderno, que rejeita a fantasia, o imaginário e o sobrenatural como fontes de conhecimento. No tempo-espaço em que vive Dom Quixote já se apresenta uma separação clara entre ficção e realidade que nosso herói não é capaz de (ou não deseja) perceber. Desse modo, ocorre um processo de aprendizagem situado em um contexto específico, estruturado por práticas sociais específicas, mas que geram resultados não esperados e que, portanto, subsidiam julgamentos culturais.

A partir da análise de tal processo, não é possível afirmar que a discordância entre Dom Quixote e a gente de seu tempo se encontra na existência de problemas neurobiológicos, mas sim que vários outros fatores podem estar interferindo nesta discordância. A visão de mundo de Dom Quixote está situada no microcontexto de aprendizagem pela leitura dos livros de cavalaria, que, por sua vez, está situado em um macrocontexto mais amplo que não corresponde ao macrocontexto em que se situam as outras pessoas daquele tempo. Sobre isso, é importante destacar que a noção de criatividade como atributo natural do aprendiz, na verdade, não passa de uma construção histórica e social, que aparentemente não foi incorporada no processo de aprendizagem do personagem.

Como explicitado anteriormente, não era objetivo deste texto declarar se Dom Quixote era ou não um louco ou mesmo buscar entender o que é a loucura. Para isso, seria necessário entrar em processos analíticos que talvez nem sejam possíveis pela própria obra literária, que trabalha com questões mais complexas do que simples veredictos como esse. Busquei tratar do tema sob uma perspectiva que nos permitiu discutir o conflito apresentado entre o individual e o coletivo, que muitas vezes, subjaz a impressão ou suposição da loucura e que parte de concepções de mundo que não podem ser naturalizadas. Como nos lembra Krenak (2020, p. 13-14)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras.:

Essas agências e instituições foram configuradas e mantidas como estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos sua perpetuação, aceitamos suas decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser. (...) Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade? Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão voluntária? Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já se desmancharam, que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem? Em vez disso, seguimos arrumando um jeito de projetar outras iguais a elas, que também poderiam manter a nossa coesão como humanidade.

São essas instituições e agências que validam nossas formas de pensar, de entender o mundo e de dizê-lo. De alguma forma, Dom Quixote nos ensina que é possível rejeitá-las, que é possível existir no mundo em que existimos nos abrindo para outras formas de existir que não as socialmente validadas. Uma educação quixotesca poderia nos abrir para que, dentro da escola, validemos essas diversas formas de existir. Em um mundo “pós-pandemia”, que é continuidade do mundo que criou a pandemia e, ao mesmo tempo, presságio de seu fim, torna-se urgente pensarmos caminhos educacionais para que outras formas de existir baseadas em outros modos de enxergar a realidade sejam possíveis e, mais do que isso, sejam valorizadas. Como nos ensina Krenak (2020)Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras., uma educação quixotesca abre espaço para que essas histórias se contem, para que apareçam e, assim, nos ajudem a “adiar o fim do mundo”.

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Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim. https://orcid.org/0000-0002-0323-9207

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Revisado
    16 Fev 2023
  • Aceito
    29 Mar 2023
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