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Recepção e não recepção de Paulo Freire na França: das ciências da educação à educação popular 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Tradução do francês por Sílvio Gallo e Alexandre Filordi de Carvalho. 3 3 Normalização, preparação e revisão textual: Thiago Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

The reception and non-reception of Paulo Freire in France: from educational sciences to popular education

Resumo

Este artigo passa em revista a publicação de obras de Paulo Freire traduzidas na França, bem como a publicação de obras francesas sobre o autor, de modo a colocar em discussão a recepção (ou não recepção) das ideias desse pensador da educação no país europeu. Outra linha investigativa deste artigo é a apresentação de alguns resultados de uma pesquisa realizada com militantes da educação popular na França, também para compreender como a obra e o pensamento de Freire impactam esse campo naquele país. O texto reafirma a ideia corrente de que Paulo Freire é bastante conhecido, mas mostra que é pouco lido naquele país. A recepção de seu pensamento se faz muito mais por meio de comentadores e circulação geral das ideias do que de estudos sistematizados de sua obra. O artigo está dividido em duas partes. A primeira delas tem foco no mundo acadêmico, recenseando as traduções de obras de Freire publicadas na França desde a década de 1960, além de analisar as obras acadêmicas produzidas em torno de seu pensamento. A segunda parte dirige-se ao campo militante da educação popular, que vive um momento de recuperação, inclusive com a publicação, em 2021, de uma nova tradução de Pedagogia do Oprimido.

Palavras-chave
Paulo Freire; educação popular; conscientização; alfabetização; universidade francesa

Abstract

This paper reviews the publication of translated works of Paulo Freire in France, as well as of French works about the author, to discuss the reception (or non-reception) of the ideas of this thinker of the field of education in the European country. To understand how Freire’s work and thought impact popular education in the country, this article also presents some results of a research with French activists of popular education. The text reinforces the idea that, although a well-known figure, Paulo Freire is scarcely read in the country. The reception of his thought occurs mostly through commentators and the general circulation of ideas than through systematic studies of his work. This article is divided into two parts. First, it focuses on the academic world, listing the translations of Freire’s works published in France from the 1960s onwards and analyzing the academic works produced around his thought. The second part addresses the militant field of popular education, which now experiences a moment of recovery, including with the publication of a new translation of the Pedagogy of the Oppressed, in 2021.

Keywords
Paulo Freire; popular education; consciousness; literacy; French university

Introdução

Se o renome mundial de Paulo Freire não precisa ser demonstrado, ainda há muito que fazer para que seja possível discutir a recepção ou a não-recepção de seu pensamento e de suas ações na França. Citado com frequência, embora pouco conhecido, mesmo que apareça como um ícone da rebelião pedagógica, Paulo Freire permanece como um enigma para o leitor francês, ainda que tal situação possa estar prestes a mudar atualmente, com a retomada do interesse pelas ditas pedagogias “críticas”. Por certo, o pedagogo coloca pistas para responder aos desafios hoje postos para as pedagogias, para a filosofia da educação e para o debate político sobre as questões do feminismo, da colonização e das formas de dominação em geral. Mas poderemos falar de uma recepção de Freire na França, seja nos meios acadêmicos das ciências da educação, da filosofia ou, então, nos meios militantes da educação popular e da pedagogia crítica?

Um simples olhar para a situação editorial de suas obras nos conduziria a uma reposta negativa. As traduções de seus livros em francês são poucas e difíceis de encontrar, mesmo cem anos após o nascimento de Freire. Há quatro traduções integrais de suas obras (Freire, 1971Freire, P. (1971) Education: Pratique de la liberté. Éditions du Cerf., 1974Freire, P. (1974). Pédagogie des opprimés suivi de Conscientisation et révolution. Maspero., 1991Freire, P. (1991). L’éducation dans la ville. Païdeia., 2006), mas apenas seu último livro, Pedagogia da Autonomia, encontra-se ainda disponível. Os outros só são encontrados em bibliotecas especializadas ou disponíveis, a preço de ouro, para compra na internet, particularmente o Pedagogia do Oprimido. Uma nova tradução foi anunciada (Freire, 2021Freire, P. (2021). Pédagogie des opprimés. Agone.), porém, para se ler atualmente na França os livros de Paulo Freire, fora das bibliotecas universitárias, é necessário conhecer o português ou o inglês e importar os livros nesses idiomas, ou trilhar caminhos menos ortodoxos. Por que isso ocorre? Por que educadores, estudantes, pesquisadores, cidadãos e oprimidos não têm e não tiveram acesso durante décadas, na França, à obra Pedagogia do Oprimido?

A pesquisa francesa, em especial aquela em ciências da educação, tampouco aderiu aos trabalhos de Freire, salvo três monografias, das quais trataremos neste artigo (Garibay & Séguier, 2009Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse.; Naouar, 2014Naouar, O. (2014). Paulo Freire: Figures du pédagogue, imaginaire du pédagogique. L’Harmattan.; Pereira, 2017Pereira, I. (2017). Paulo Freire: Pédagogue des opprimé.e.s, une introduction aux pédagogies critiques. Libertalia.), e alguns artigos. Algumas teses em francês concentram-se no pensador, mas são geralmente feitas no Brasil ou por pesquisadores lusófonos. E se é assim na pesquisa, pode-se pensar que seja da mesma forma no ensino das teorias de Freire nas universidades. Citado aqui ou acolá em trabalhos de psicanálise ou de empowerment (empoderamento), ele é evocado, principalmente, numa perspectiva didática (Gout, 2015Gout, M. (2015). Quatre approches didactiques pour la formation linguistique des migrants nouveaux arrivants. Migrations Société, 6(6), 139-154. https://doi.org/10.3917/migra.162.0139
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). Paulo Freire é citado de modo esporádico, mais ou menos explicitamente, em múltiplas disciplinas. Recensear e analisar essas referências esparsas mostra-se arriscado.

No entanto, não se pode destacar a priori uma hostilidade aparente das ciências da educação frente ao pensamento e à prática de Paulo Freire. Mialaret (1991)Mialaret, G. (1991). Pédagogie générale. PUF. e Neumayer et al. (2002)Neumayer, O., Neumayer, G., Vellas, E., & Richard, J. M. (2009). Entretien avec Gaston Mialaret: Université d’Été du GFEN de Bordeaux. http://lelien2.org/wp-content/uploads/2016/04/Entretien_Mialaret_-_Livre_du_LIEN_2009-2.pdf
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veem nele uma referência no domínio da pedagogia, ainda que ele seja classificado entre os “teóricos radicais” e que sua teoria não seja analisada em detalhe, como é feito com Montessori, Decroly, Korczak, Cousinet ou Freinet. Houssaye (1996)Houssaye, J. (2006). Quinze pédagogues: Leur influence aujourd’hui. Armand Colin-Bordas. e Meirieu (2005)Meirieu, P. (2005). Petite histoire des pédagogues. www.meirieu.com/PATRIMOINE/lespedagogues.htm
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, ao contrário, integram Freire em seus respectivos panteões dos grandes pedagogos contemporâneos. Mas trata-se, sempre, do pedagogo. Ora, é preciso ao menos tomar em conta que Freire não foi apenas um pedagogo militante, como Célestin Freinet ou Louise Michel, ele foi igualmente o autor de obras teóricas e acadêmicas sobre educação, foi um filósofo da educação e representa uma corrente maior do pensamento educativo e da filosofia da educação no Brasil, o que está longe de ser o caso na França.

Talvez a presença limitada de Paulo Freire na pesquisa em ciências da educação e no domínio da filosofia da educação em particular, apesar de seu reconhecimento como pedagogo, possa ser explicada pelo fato de que ele constitua, antes de qualquer coisa, uma figura da prática militante, da pedagogia crítica, e assim não poderíamos estudar a recepção de seu pensamento e de sua prática ficando apenas no terreno da academia. É necessário tentar compreender como o campo da educação popular pôde se apropriar do pensamento de Freire e tornar possível sua presença também em outros meios, inclusive no universitário, mesmo que seja difícil captar a importância e a realidade de sua impregnação nesse campo em que, por definição, há uma preeminência da prática sobre a produção de artigos teóricos a que se poderia referenciar.

Antonio Nóvoa (1996)Nóvoa, A. (1996). Paulo Freire (1921-1997). In J. Houssaye (Dir.), Pédagogues contemporains: Idées principales et textes choisis (pp. 59-102). Fabert. distingue três tipos de leituras de Freire presentes no mundo. O primeiro caso se poderia qualificar como leitura “fixa”: ela corresponde globalmente aos primeiros trabalhos do pedagogo, datados da década de 1970, sendo a mais presente na Europa. Ele destaca nessa leitura uma visão mais marxista e revolucionária de Freire. O segundo tipo de leitura é uma perspectiva “estilizada”: trata-se de uma leitura didática, metodológica, que tem a tendência de diminuir a perspectiva política e ideológica de Freire. Tal leitura é mais presente no meio anglófono. A terceira leitura é uma “visão ingênua”: mais presente nos países em desenvolvimento, é uma “visão utópica e idealista” de Paulo Freire.

Seria possível observar, na França, essa tendência tripartite? Para responder a tal questão, neste artigo procuraremos: i) determinar a presença de Freire no discurso das ciências da educação e da filosofia da educação, partindo de um estado da arte da literatura e daquilo que ele revela, acompanhando os escritos e percursos daqueles que traduziram ou comentaram obras de Freire na esfera acadêmica; ii) discutiremos a proximidade da influência freiriana no discurso militante da educação popular política. Para fazê-lo, nos basearemos nos resultados de uma pesquisa de campo, realizada com dois coletivos de educação popular que têm por objetivo a transformação social e reivindicam a radicalidade de sua politização.

Trabalharemos em torno da recepção de Freire na França, o que significa que não trataremos de sua recepção no mundo francófono em geral, que incluiria a Suíça, onde Freire atuou, além da Bélgica, do Canadá, da África. Por outro lado, a maior parte das publicações que mencionamos são oriundas da França metropolitana. Poderíamos nos interrogar sobre a presença de Freire na Guiana Francesa, um departamento francês de ultramar, no qual os pesquisadores e estudantes pertencem a uma sociedade multicultural, próxima da cultura brasileira, onde o uso da língua portuguesa está presente, mesmo que a língua seja ainda um obstáculo para a recepção. Porém, parece que a Guiana não é exceção à regra da não-recepção do pensamento de Freire na universidade. De acordo com Monique Blerald, professora da Universidade de Guiana, os colegas que fazem pesquisas com ligação ao Brasil conhecem o pedagogo, mas são poucos. Cita-se com mais frequência Hegel e sua dialética do senhor e do escravo do que Freire e sua pedagogia do oprimido, visto que são a França e a Europa que constituem suas principais referências. As políticas culturais e os imaginários mereceriam, pois, serem “descolonizados”.

As edições e a pesquisa francesa em ciências da educação

Uma primeira pista para se começar a analisar a recepção de suas obras é a possibilidade de ler Freire. É preciso ter em mente os contextos e as redes de publicação para entender o que pode constituir a especificidade da recepção do pedagogo na França. Comecemos por evocar os tradutores de Freire e por situar as traduções em seu contexto de produção intelectual.

a) as traduções

Paulo Freire começou a ser conhecido a partir do final dos anos 1960, com diversas publicações em francês, ligadas a sua presença na Suíça. Algumas traduções foram publicadas pelo Instituto Ecumênico Para o Desenvolvimento do Povos (Inodep), fundado pelo próprio Freire em Genebra. Uma primeira tradução integral de A educação como prática da liberdade (Éducation: pratique de la liberté, Freire, 1971Freire, P. (1971) Education: Pratique de la liberté. Éditions du Cerf.) deu seguimento a diversos extratos da obra de Freire publicados separadamente. Essa edição foi prefaciada por Francisco Weffort, então doutor em ciência política da Universidade de São Paulo, que mais tarde se tornaria ministro da cultura do Brasil, durante mandato de Fernando Henrique Cardoso. Nesse prefácio, que apareceu antes na revista Communautés, Weffort (1968)Weffort, F. C. (1968). L’éducation, praxis de la liberté: Une étude du mouvement d’alphabétisation et d’éducation de base au Brésil. Communautés, 23, 4-29. https://www.bibliofreire.org/leducation-praxis-de-la-liberte-une-etude-du-mouvement-dalphabetisation-et-deducation-de-base-au-bresil
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parte da questão da alfabetização como preâmbulo do processo de conscientização e, depois, da transformação social. Ele trata da “obsessão do comunismo” presente na época e da incompreensão dos “reacionários”, que são incapazes de compreender “que um educador católico fez o meio da opressão dos oprimidos” e a pedagogia da liberdade como uma “fonte de rebelião”. De fato, a propaganda dos governos autoritários na América do Sul induzia as famílias a duvidar de um ensino escolar no qual estaria posta a questão do engajamento, uma distinção entre pobres e ricos, uma interpretação da história em termos de luta de classes. A obra é publicada, no entanto, na editora Maison du Cerf, de orientação cristã. Em 1996, a editora W reproduziu um fac-símile de Education: pratique de la liberté.

Mais tarde, o editor François Maspero publicou a primeira edição de Pedagogia do Oprimido (Freire, 1974Freire, P. (1974). Pédagogie des opprimés suivi de Conscientisation et révolution. Maspero.). Foi principalmente por meio dessa obra que estudantes (como Jean-Claude Régnier), militantes e pedagogos leram Freire e propagaram seu pensamento na França. Ficou para a posteridade a “pequena coleção Maspero”, publicada entre 1967 e 1982, que se pretendia política, com uma orientação de esquerda, revolucionária e terceiro-mundista (Ross, 2002Ross, K. (2010). Mai 68 et ses vies ultérieures (A.-L. Vignaux, Trad.). Agone; Le Monde Diplomatique.), na qual encontramos diversas referências marxistas citadas por Freire: Louis Althusser, Ernesto Che Guevara, Frantz Fanon (prefaciado por Jean-Paul Sartre), György Lukàcs, Rosa Luxemburgo, Karl Marx e Mao Tsé-Tung. O mesmo editor publicou também A escola do povo (Freinet, 1969Freinet, C. (1969). Pour l’école du peuple. Maspero.), uma obra não citada por Freire. Maspero vendeu a editora, que em 1993 foi renomeada como “La Découverte” e fez uma reedição de Pedagogia do Oprimido em 2001, graças à ação do Círculo das Pedagogias Emancipadoras (Garibay & Séguier, 2009Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse.). O livro não foi reeditado novamente desde então.

Essa primeira tradução integral de Pedagogia do Oprimido foi realizada pelo Coletivo de Alfabetização de Paris, um coletivo formado por militantes políticos marroquinos que imigraram para a França. Além da tradução de Freire, várias obras de conotação teórica ou prática produzidas pelo Coletivo foram publicadas por Maspero (Collectif d’alphabétisation, 1972Collectif d’alphabétisation. (1972a). Fiches d’informations et de formation sur la migration. Maspero., 1973Collectif d’alphabétisation. (1973b). Initiation à l’approche logique et au calcul. Maspero, 1974Collectif d’alphabétisation. (1974). Petit livre juridique des travailleurs immigrés. Maspero, 1975Collectif d’alphabétisation. (1975). Pour faire le cahier livre. Maspero., 1976Collectif d’alphabétisation. (1976). Lire comprendre et s’informer. Maspero., 1978Collectif d’alphabétisation. (1978). Livre de français pour les travailleurs immigrés. Maspero., 1979Collectif d’alphabétisation. (1979). Alphabétisation : Pédagogie, pratiques, réflexions. Maspero.). Segundo o Coletivo de Alfabetização (1979), nessa época a formação dos trabalhadores emigrados saiu de seu gueto, o que era muito necessário, pois, em 1978, havia um milhão de trabalhadores imigrantes analfabetos na França, e a política governamental era apresentada como um fator asfixiante de sua formação, ainda que não fosse o único. Contudo, a recolocação em questão do militantismo e de suas categorias atinge o movimento e pode explicar a ausência de novas publicações e até mesmo de uma reedição do Pedagogia do Oprimido. No entanto, a referência a Freire nos coletivos de alfabetização não desapareceu. Hoje, o Coletivo de Alfabetização de Bruxelas ainda faz referências às obras de 1972 e 1973. Esse Coletivo publicou também 1001 Ideias para enriquecer sua prática em alfabetização de Paulo Freire (2005). O pensamento de Paulo Freire junta-se ao de Jacques Rancière (1985)Rancière, J. (1985). Le maître ignorant. Fayard. para recolocar em questão a própria ideia de uma pedagogia emancipadora.

Quais foram as reações científicas à tradução de Pedagogia do Oprimido? A Revista Francesa de Pedagogia (De Loye, 1975De Loye, P. (1975). Paulo Freire: Pédagogie des opprimés suivi de Conscientisation et révolution. Revue Française de Pédagogie, 30, 62-64.) publicou uma resenha da obra de Freire, na qual destacou a dimensão política e revolucionária de sua proposta, a ideia segundo a qual a revolução e a política passam necessariamente pela educação e pela conscientização. Essa resenha não critica a obra, mas propõe pensá-la mais em termos de “reforma” do que de “revolução” e mais em termos de “amor” do que de lutas.

Outras traduções menos conhecidas, como Lettres à la Guinée-Bissau (Freire, 1978Freire, P. (1978). Lettres à la Guinée-Bissau sur l’alphabétisation: Une expérience en cours de réalisation. Maspero.), tiveram apenas uma publicação. A editora Païdeia, que publicou L’éducation dans la ville (Freire, 1991Freire, P. (1991). L’éducation dans la ville. Païdeia.), fechou as portas e não localizamos mais do que quatro publicações suas, todas dos anos 19904 4 https://pmb.cereq.fr/index.php?lvl=publisher_see&id=351 .

De fato, apenas Pedagogia da Autonomia (Freire, 2006Freire, P. (2013). Pédagogie de l’autonomie. Erès., 2013Araujo Freire, A. M. (2013). La pédagogie de l’autonomie de Paulo Freire en France. In P. Freire, Pédagogie de l’autonomie (pp. 13-21). Erès.) está acessível atualmente. O trabalho de tradução esteve sempre ligado à pessoa e ao entorno de Freire, de um lado, e aos militantes do movimento Freire na França, de outro, como sublinha André Lefreuve prefaciando a obra, que está ligada também à universidade e às ciências da educação, graças ao apoio de Pierre Clanché, professor de ciências da educação em Bordeaux. Ana Maria Araújo Freire (2013)Freire, P. (2013). Pédagogie de l’autonomie. Erès. escreveu um prefácio no qual assinala a ligação entre o pedagogo e a França, insistindo na influência que Freire teve desses pensadores francófonos como Emmanuel Mounier, Maurice Merleau-Ponty, Gaston Bachelard, Simone Weil, Albert Memmi, Frantz Fanon, Jean-Paul Sartre, Edouard Claparède, Célestin Freinet, Jacques Maritain, dentre outros. Antigamente, a França era conhecida como uma espécie de polo “iluminador” para o Brasil, antes que se iniciasse uma rebelião contra essa “compreensão colonial” segundo a qual não haveria lugar para uma concepção autônoma. Por exemplo, imaginamos políticas de educação escolar que poderiam ser “livres da obrigação de reproduzir as normas francesas”.

O tradutor Jean-Claude Régnier, professor emérito da Universidade de Lyon 2, é, ao mesmo tempo, universitário e militante do movimento do Instituto Cooperativo da Escola Moderna (Icem – Pedagogia Freinet). Além dessa tradução, publicou diversos artigos sobre Freire e escreveu um prefácio para a mesma edição no qual comenta sua experiência de tradução, permitindo ao leitor impregnar-se do pensamento de Freire (Régnier, 2006Régnier, J. C. (2006). Prolongement réflexif sur la pédagogie de l’autonomie de Paulo Freire. Traduire un discours pédagogique sans trahir une pensée. In P. Freire, Pédagogie de l’autonomie (pp. 155-184). Erès.; Régnier & Scocuglia, 2017Régnier, J. C., & Celso, Scocuglia (2007). Origines et évolutions de la pensée politico-pédagogique de Paulo Freire. Reliances, 4(26), 103-108. https://doi.org/10.3917/reli.026.0103
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). Régnier descobriu o pensamento de Freire por intermédio dos círculos militantes de pedagogos, de militantes pela escola moderna e a pedagogia Freinet, ainda nos anos 1970. Destacamos, contudo, que essa aproximação com a pedagogia de Freire não se fez durante sua formação como estudante de Matemática nem de sua formação como professor, retornando-se à concepção de que a educação seria uma prática política e a criticar o modo pelo qual se faz educação por meio de uma escola pensada como forma de controle social e instrumento a serviço das classes dominantes (Régnier, 2013Régnier, J. C. (2006). Prolongement réflexif sur la pédagogie de l’autonomie de Paulo Freire. Traduire un discours pédagogique sans trahir une pensée. In P. Freire, Pédagogie de l’autonomie (pp. 155-184). Erès.). A alternativa oferecida pela pedagogia de Freire lhe parece atual para nossos dias, um mundo dominado pelas leis neoliberais do mercado, da mesma forma que eram antes dos movimentos de contestação de maio de 1968.

Para Régnier, é possível estabelecermos ligações entre o pensamento de Freire e a pedagogia francesa de Freinet, ainda que os percursos sejam diferentes. Freinet escreveu pouco, foi um professor de interior, do meio rural, marcado pela guerra, cuja pedagogia foi muito influenciada por sua época, como as técnicas de impressão para as escolas isoladas do campo. Mas os dois pensadores se encontram na perspectiva política da educação. Ambos criticam a educação aviltante e vertical e já não centram a aprendizagem no saber disseminado pelo professor, mas no estudante, como potência ativa. É necessário tomar em conta as condições de vida dos estudantes, para que eles possam construir o sentido daquilo que lhes é ensinado e que possam agir sobre suas existências. Os dois pensadores insistem sobre a dimensão coletiva do ensino, por exemplo, com os jornais escolares trocados entre instituições de ensino. Por outro lado, enquanto Célestin construiu uma pedagogia centrada na escola, Paulo procurou elaborar um sistema geral, que ultrapassa largamente os limites da escola e da infância. Célestin atribui uma grande importância às ferramentas e técnicas em suas obras, baseando-se em um “materialismo pedagógico”, sabendo que “o que transforma o clima da classe são primeiramente as ferramentas e as técnicas que nela introduzimos”. O aspecto abertamente político de Paulo talvez vá ao encontro das evoluções do movimento (Peyronne, 1999).

Essa aproximação entre a recepção do pensamento e da pedagogia de Freire com os movimentos Freinet pode ser atestada entre muitos professores e formadores franceses. Por exemplo, Jean Le Gal, ex-professor primário engajado no movimento Freinet nos anos 1960 e ex-professor-pesquisador no Instituto Universitário de Formação de Professores (IUFM) de Nantes, explica que as reflexões de Freire sobre a conscientização, “seu engajamento por uma educação emancipadora para os oprimidos, por uma aprendizagem prática da democracia”, por um laço forte entre educação e transformação social, estavam de acordo com o engajamento pedagógico e político dos militantes da pedagogia Freinet. Nos anos 1970, se os professores engajados na experiência autogestionária na França não faziam necessariamente alusão a Freire, os professores Freinet da América do Sul, os brasileiros em particular, apoiavam-se em seu trabalho. Para eles, Freire segue sendo um ponto de apoio fundamental para sua ação emancipadora e sua defesa dos direitos humanos. A ação realizada na escola se integra na concepção social e política da democracia participativa, ligada com as experiências levadas a cabo em sociedade.

A tradução de Pedagogia do Oprimido que está no prelo (Freire, 2021Freire, P. (2021). Pédagogie des opprimés. Agone.) inscreve-se em um outro contexto pedagógico. Irène Pereira, que deve assinar seu prefácio, professora de filosofia no Instituto Nacional Superior do Professorado e da Educação (Inspe) de Créteil, desempenha hoje um papel de primeiro plano na difusão do pensamento de Freire na França5 5 Ver o artigo da autora presente neste dossiê, sobre educação estética. . É majoritariamente pelo esforço de Pereira que Freire é difundido hoje na França, tanto material quanto intelectualmente. Ela é autora de uma tese de sociologia sobre o sindicalismo e a ação libertária e se dedica às pedagogias “críticas” derivadas da pedagogia freiriana (De Cock & Pereira, 2019De Cock, L., & Pereira, I. (2019). Les pédagogies critiques. Agone.; Pereira, 2019Pereira, I. (2019). Anthologie internationale de pédagogie critique. Éditions du Croquant.). Ela construiu uma rede em torno de Paulo Freire e das pedagogias que dele emergem. Pereira é ainda cofundadora do Instituto bell hooks-Paulo Freire6 6 https://emancipaeda.hypotheses.org/ , com Nassera Hedjerassi, além do site cadernos de pedagogias radicais7 7 https://pedaradicale.hypotheses.org/ , que desejam “desenvolver as pedagogias inspiradas na obra de Paulo Freire”.

Fundado em 2018, após um colóquio, o instituto pretende tornar conhecidas principalmente as pedagogias feministas e críticas. A organização é membro do conselho mundial dos institutos Paulo Freire e parceiro do bell hooks Institute, do Instituto Paulo Freire e da Unifreire; a entidade está na realização do XII Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire (Paris, setembro de 2021). Nesse instituto, encontra-se Gauthier Tolini, que publicou alguns capítulos e artigos sobre Freire e que anima a página bibliofreire.org, site francófono que procura referenciar, digitalizar e tornar acessíveis as principais publicações de Freire (incluindo artigos e conferências). Assim, tanto pesquisadores quanto militantes podem ter acesso às traduções antigas, agora disponíveis online (notadamente por meio da página bibliofreire.org), quer se trate de artigos, de comentários, de entrevistas inicialmente publicadas pela Unesco ou de textos publicados em revistas francesas, belgas, suíças ou canadenses desde os anos 1960 e 1970. A página também fornece traduções bem recentes de extratos de obras. O objetivo da página é, além de tornar os textos acessíveis, repertoriar os estudos que esclarecem seus sentidos, assim como participar do desenvolvimento de pedagogias “inspiradas pela obra de Freire” (críticas, antirracistas, feministas, decoloniais, dentre outras).

b) as monografias

Além dessas traduções, há hoje três obras dedicadas a Freire disponíveis na esfera universitária francófona. São bastante recentes e parecem pertencer a universos distintos e não referenciam umas às outras. Na verdade, a separação entre essas três obras é sintomática do lugar que Freire ocupa na França e das diferentes interpretações que podem ser feitas do pensador.

A obra coletiva Atualidade de Freire (Garibay & Séguier, 2009Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse.) é resultado da articulação e da reunião de reflexões e práticas de autores influenciados pelo pensamento de Paulo Freire. Quando da morte do pedagogo brasileiro, em 1997, vários pesquisadores e militantes se encontraram para debater a sua influência sobre os respectivos trabalhos. Eles fundaram então o “Círculo das Pedagogias Emancipadoras”. Entre seus objetivos, eles colocaram a reedição de Pedagogia do Oprimido (o que foi realizado em 2001). Com a participação da Unesco, organizaram uma série de seminários (no Brasil e na França) em 2002-2003 em torno das pedagogias emancipadoras. O livro presta contas dos retornos das experiências apresentadas durante o seminário e das reflexões dele derivadas. Organizado por Françoise Garibay e Michel Séguier, redigido principalmente por Henryane de Chaponay, Nicole Desgroppes, Clair Héber-Suffrin e Paul Taylor, trata-se de uma obra coletiva com horizontes múltiplos. Os autores são franceses, brasileiros, argentinos, ingleses etc., pesquisadores, professores, profissionais do campo social, alguns tendo conhecido pessoalmente Paulo Freire. São, em seu conjunto, militantes da educação (alguns deles militantes Freinet), às vezes da educação popular; cruzam-se aí também atores com ligação com a religião católica (notadamente o Inodep). Todos foram marcados pelo pedagogo brasileiro: “Um dentre nós fala, evocando sua descoberta de Paulo Freire, em ‘revelação’!” (Garibay & Séguier, 2009Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse., p. 49), mas nenhum se reivindica como “discípulo” de Freire e os autores preferem demarcar uma apropriação das ideias de Freire em suas próprias práticas.

A obra se divide em várias partes. Na primeira encontra-se uma rápida apresentação de Freire, trazendo sua biografia, seus conceitos fortes (conscientização, educação bancária, educação dialógica…), bem como uma apresentação dos membros do “Círculo de Pedagogias Emancipadoras”. Eles justificam a importância de falar dos próprios percursos, insistindo no dever de coerência defendido por Freire, assim como do retorno reflexivo da autoanálise. Após essa dupla apresentação, os autores definem os conceitos que mobilizarão na obra, como o de emancipação e o de participação. Tais conceitos emergem das práticas dos autores, mas são postos em relação com a pedagogia de Freire. As principais referências, então, são de Freire, mas eles perpassam também por Cornelius Castoriadis ou Primo Lévi.

A continuidade da obra traz quinze experiências qualificadas como “emancipadoras” realizadas pelo mundo. Encontramos nessa parte, por exemplo, narrativas de vida, ateliês sobre a memória das favelas, coletivos contra a pobreza. A influência de Freire às vezes é evocada, como nessa passagem: “ao nível do conhecimento é o que Paulo Freire chama de saber bancário e de saber emancipador. O primeiro é adquirido principalmente de modo teórico e pelos livros. O segundo é fruto de relações interativas e apoia-se nas situações vividas” (Garibay & Séguier, 2009Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse., p. 136). Ou nessa: “De acordo com os princípios da educação popular, inspirados em Paulo Freire, os ateliês permanentes procuram promover e consolidar um tipo de práxis educativa” (Garibay & Séguier, 2009Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse., p. 106). Encontra-se ainda sua célebre frase: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Garibay & Séguier, 2009Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse., p. 182).

Paulo Freire está presente como pano de fundo, em filigrana, para lembrar que está na origem dessas experimentações ditas “emancipadoras”. Esses relatos de experiência têm uma perspectiva internacional, mas a coerência desse arranjo pode parecer frágil, devido à dificuldade de tradução encontrada pelos autores, com certas palavras possuindo diferentes sentidos segundo o país (é o caso, por exemplo, de “capacitação”). A última parte da obra é dedicada a uma reflexão sobre certos conceitos, como capacitação (que eles distinguem do inglês empowerment), a pesquisa-ação e a transformação social.

Trata-se, pois, mais de um relato coletivo de experiências do que propriamente de uma obra científica que estudasse Paulo Freire. Já sublinhamos a limitação de se colocar juntas quinze experiências resultantes de diversos países e contextos diferentes, tendo como ligação direta ou indireta a emancipação e Paulo Freire, contudo, a obra atesta uma leitura do pedagogo, uma interpretação. O limite entre o discurso de Freire e os discursos dos autores é borrado, reforçado pela escrita coletiva. Aqui Freire é abordado de modo mais metodológico e didático. Lemos, por exemplo, uma apresentação muito detalhada de seu método de alfabetização. As reflexões que mobilizam os conceitos caros a Freire são também oriundas do campo, do vivido desses autores militantes, não são, pois, inválidas, mas não se pretendem acadêmicas e não podem ser lidas como tal.

Tal livro é sintomático do lugar do pedagogo na França na época de sua publicação: presente nos meios educativos militantes, ele é pouco lido, mas representa uma influência, um símbolo maior sobre o qual apoiar-se para reforçar ou legitimar uma teoria educativa. Seu método de alfabetização é bem conhecido, mas o restante de seu trabalho (consequentemente) permanece na sombra. No entanto, haja vista a gênese do livro, a diversidade dos autores e dos relatos de experiência, a obra permite uma compreensão apenas parcial do lugar do pedagogo na paisagem francesa, sobretudo no meio acadêmico. Além disso, é de se destacar que o seminário só foi possível graças à colaboração de pesquisadores e educadores brasileiros. O interesse residiria mais na demonstração da capacidade do pensamento freiriano de federar coletivos transnacionais.

A obra Paulo Freire: figuras do pedagogo, imaginário do pedagógico (Naouar, 2014Naouar, O. (2014). Paulo Freire: Figures du pédagogue, imaginaire du pédagogique. L’Harmattan.) é o resultado de uma tese em ciências da educação, defendida na Universidade de Lyon 2 em 2012, orientada por Alain Kerlan. Apresenta-se como a primeira e única obra francesa a tratar a obra de Freire em sua globalidade e na diversidade de suas dimensões, ou mais precisamente como uma contribuição à história das ideias educativas no Brasil. O autor, atualmente professor na Universidade Federal de Pernambuco, participou de um seminário sobre Paulo Freire organizado em 2009 por André Robert e no qual estiveram presentes alguns pesquisadores participantes na difusão do pensamento de Freire na França: Philipe Meirieu, Jean-Claude Régnier e Afonso Celso Scocuglia (esse foi um dos raros seminários organizados na França sobre Freire, à exceção daqueles organizados por Pereira e daqueles organizados na Suíça). Para os leitores não lusófono ou anglófono (ou na impossibilidade de localizar os livros de Freire), a obra de Naouar oferece um retrato do pensamento de Freire, em sua complexidade e suas tensões, que dá ostensivamente as costas à imagem do pedagogo veiculado por Meirieu, por exemplo, ou às leituras didáticas, como aquela de Régnier, leituras que relativizam o escopo das noções centrais, como “pedagogia bancária” ou “conscientização”.

Ainda que se constitua uma revisão de literatura relativa à pesquisa francesa, na qual não aparece a obra de Garibay e Séguier (2009)Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse., o autor se propõe a avaliar as leituras do pedagogo na França. Segundo ele, Freire seria abordado sobretudo de maneira didática, o que reduziria consideravelmente seu pensamento; ou seria lido sob o ângulo marxista, o que arriscaria a torcer algumas de suas ideias, para caberem dentro do quadro pretendido. Trabalha-se principalmente sobre a Pedagogia do Oprimido, portanto sobre seus primeiros escritos. A parte teológica de sua obra é deixada em silêncio. É verdade que a obra de Freire tem ligações estreitas com a teologia da libertação, mas se se considera que esta tem ligações com o marxismo e que há amplas referências marxistas em Pedagogia do Oprimido, vemos reduzido também o escopo da crítica feita por Naouar.

De resto, precisamos mencionar que Roger Garaudy (1977)Garaudy, R. (1977). Pour un dialogue des civilisations. L’Occident est un accident. Denoël., tendo encontrado Freire em diversos colóquios pela educação de adultos em Xiraz ou na Tanzânia, insistiu na ligação entre pedagogia da liberdade e teologia da libertação. Ele considerava Freire “o maior pedagogo de nosso tempo”, aquele que deu à alfabetização e ao ensino em geral a “missão de despertar nas massas uma consciência crítica e militante”, mas insistia sobretudo no laço com o pensamento teológico. Por certo, Garaudy citava Freire (1971Freire, P. (1971) Education: Pratique de la liberté. Éditions du Cerf., 1974)Freire, P. (1974). Pédagogie des opprimés suivi de Conscientisation et révolution. Maspero., porém, apoiava-se sobretudo em Gutiérrez (1974)Guttiérez, G. (1974). Théologie de la libération. Perspectives. Lumen Vitae. para distinguir entre a “libertação política” (a conscientização), a “libertação histórica” e a “libertação do pecado”. Nos países da América do Sul, que seriam fundamentalmente cristãos e fundamentalmente revolucionários, a nova teologia ocuparia, segundo ele, o lugar que um “marxismo dogmático e importado” não preencheria. Se essa posição assegura a ligação com a teologia, não atesta, no entanto, uma verdadeira recepção dos textos pedagógicos de Freire, isso sem falar nas derivas ulteriores de Garaudy em direção à extrema-direita.

Naouar, ao contrário, aborda a obra de Freire por dois ângulos: a história das ideias pedagógicas e a filosofia da educação. As duas se cruzam ao longo de sua obra. Desse modo, ele traça a inscrição da reflexão de Freire – e da biografia – nos contextos filosóficos, políticos e educativos de sua época e dos diferentes lugares em que viveu. Em um segundo momento, Naouar apresenta as diferentes leituras de Freire, contextualizando principalmente a França. Na terceira parte, aborda os ideais maiores do pensamento de Freire que costumamos encontrar nas leituras francesas (conscientização, alfabetização, educação bancária) procurando completá-las e abri-las a outros aspectos do pensamento do pedagogo, como o pendor religioso de sua reflexão. Essa terceira parte é filosófica, tenta clarear o valor antropológico de Freire e sua perspectiva potencialmente estética.

Naouar desejou mostrar que a teoria de Freire não é nem simples nem lisa, é de difícil apreensão porque mobiliza, em seu conjunto, numerosos conceitos. Por outro lado, a teoria estaria inscrita num contexto desconhecido para o Velho Continente: Naouar insiste no aspecto multicultural do Brasil, que influenciou o pensamento de Freire. Entretanto, ele assinala também a influência do positivismo de Auguste Comte. O autor dá algumas pistas para explicar o que faz com que Freire seja tão difícil de definir: trata-se de um pedagogo de renome mundial, muito recente, citado em trabalhos numerosos e diversos (educação de adultos, alfabetização…). Já no mundo francófono, as referências seriam dispersas. Ele insiste na dificuldade para um não falante do português comentar a obra de Freire e o risco de se cair em um “comentário do comentário” (Naouar, 2014Naouar, O. (2014). Paulo Freire: Figures du pédagogue, imaginaire du pédagogique. L’Harmattan., p. 65). Seu livro mostra-se também crítico em relação aos tradutores de Freire, como Régnier, considerando que “[contribui] involuntariamente para esvaziar a obra de sua dimensão conceitual, história e filosófica” (Naouar, 2014Naouar, O. (2014). Paulo Freire: Figures du pédagogue, imaginaire du pédagogique. L’Harmattan., p. 65). Sua constatação pode parecer excessiva, uma vez que Régnier destacou a armadilha na qual caem muitos leitores, quando tentam retomar o pensamento de Freire (uma visão reduzida de seu trabalho, no começo de sua reflexão, que tem a marca do catolicismo social). Essa observação destaca e reforça a imagem de um pedagogo incompreendido. Mesmo que a figura de Freire seja bastante conhecida, isso não significa que seu pensamento teórico seja compreendido, nem que seja de fácil acesso para o neófito. Naouar insiste no fato de que Freire seja particularmente difícil de compreender e que, frequentemente, sejam feitas análises parciais de seu pensamento. Mas parece conveniente questionar essa afirmação e a perspectiva de seu propósito: Paulo Freire é complexo para se compreender? Nóvoa (1996)Nóvoa, A. (1996). Paulo Freire (1921-1997). In J. Houssaye (Dir.), Pédagogues contemporains: Idées principales et textes choisis (pp. 59-102). Fabert. sublinha a oralidade dos textos de Freire, “[que] escreve como fala”, e explica seu sucesso pela facilidade de tocar diretamente o leitor, tornando-se familiar: “uma vez escritas, suas ideias nos parecem tão familiares que delas nos apropriamos rapidamente” (Naouar, 2014Naouar, O. (2014). Paulo Freire: Figures du pédagogue, imaginaire du pédagogique. L’Harmattan., p. 46). Colocamos a seguinte hipótese: em que medida uma abordagem principalmente didática (ou percebida como didática pelo pesquisador) é problemática para compreender Freire? De outro lado, a obra de Naouar é pouco acessível para pessoas fora do mundo acadêmico pela complexidade de sua leitura e pela forte pegada filosófica (ele emprega termos que não são definidos e, portanto, inacessíveis ao leitor não iniciado na filosofia). Aí reside sem dúvida uma dificuldade da recepção: sublinhar a complexidade de Paulo Freire, sua baixa acessibilidade, sem, no entanto, desencorajar os leitores.

Considerar Freire como um pensador sistemático, um universitário ou um filósofo, ou mesmo um teórico, pode parecer paradoxal, visto que, para o senso comum, em particular para a esquerda brasileira, pode aparecer mais como um ator histórico e como a figura de um pensador político engajado na prática. A obra de Naouar tem o mérito de trazer o debate sobre a filosofia, em cujo campo os escritos poderiam efetivamente constituir, tanto na França como no Brasil, uma aposta importante na universidade, em particular nos domínios da filosofia da educação e das ciências da educação. Freire permite assegurar justamente essa forma de continuidade, que o faz tão presente politicamente nos discursos universitários, nas políticas educacionais, na formação de professores, na prática dos militantes, na educação de adultos. Teríamos aí um risco de cindir sua teoria ou sua filosofia da educação das práticas de alfabetização ou mesmo de considerar que o núcleo de seu pensamento reside mais no pensamento sistemático que em sua ação pedagógica ou política. O limite da obra de Naouar está precisamente em projetar a figura de um pedagogo altamente paradoxal, isenta de toda pedagogia, de toda política, de toda prática, de toda experiência, de toda resistência, de toda perspectiva emancipadora, de toda orientação revolucionária, na qual a visão marxista é recoberta pela perspectiva religiosa, e a questão da libertação pela questão da autoridade.

Laurence de Cock e Irène Pereira (2019)Pereira, I. (2019). Anthologie internationale de pédagogie critique. Éditions du Croquant. apresentam uma abordagem totalmente oposta à de Naouar, se constituindo em uma introdução às pedagogias críticas, herdeiras de Freire, desenvolvidas em perspectiva internacional. As autoras insistem na ideia de que, na França, as pedagogias que podem se aproximar das pedagogias críticas estão centradas, sobretudo, nos trabalhos de Freinet e da forma que ele situa a questão da emancipação. Grégory Chambat, por exemplo, destaca as similitudes entre os dois pedagogos: denúncia de uma educação aviltante, defesa de uma educação emancipadora que permita a transformação da sociedade e a justiça social, ainda que ao serem sublinhadas suas divergências tenham ganhado a indiscutível discussão da proximidade entre os dois pedagogos. De Cock e Pereira afirmam que a pedagogia na França, em seu conjunto, possui uma perspectiva mais tecnicista que global, focando-se mais nas técnicas do que no fundo emancipador, estando a um passo de ser cooptada pelo neoliberalismo. Falhando em tomar o conjunto da obra de Freire, os pedagogos franceses aplicariam o que eles percebem como uma metodologia (como os métodos de alfabetização) e deixariam de lado uma parte do pensamento freiriano, com o risco de minimizar a perspectiva política do pedagogo. Segundo as autoras, as pedagogias que têm maior visibilidade na França não dão conta de responder aos desafios sociais contemporâneos. Retomando a distinção feita por Henry Giroux, elas consideram que na França a diferença entre pedagogias liberais e pedagogias críticas é borrada, pois a sociedade não é questionada em seus fundamentos. Segundo elas, o que poderia explicar o lugar particular de Paulo Freire ou das pedagogias críticas, seria a luta entre as pedagogias alternativas e dominantes, criticadas por Freire e que podem ser chamadas de “bancárias”, pois estariam a serviço da opressão. No artigo “A recepção de Paulo Freire frente ao neoconservadorismo na França”, Pereira (2020)Pereira, I. (2020). La réception de Paulo Freire face au néoconservatisme en France. Eccos, (52), e17098. http://doi.org/10.5585/eccos.n52.17098
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invoca Giroux, Meirieu e Chambat para qualificar o ambiente educacional de luta entre pedagogias novas e tradicional gerado pelos “réac’publicains8 8 NT: um neologismo de difícil tradução. Trata-se da junção da palavra francesa republicain (republicano) com o prefixo reac, de reacionário. Seria, então, uma espécie de “republicano reacionário”. , que Chambat (2016)Chambat, G. (2016). L’école des réac-publicains: La pédagogie noire du FN et des néoconservateurs. Libertalia. descreve como defensores de uma visão tradicional de educação autoritária e ao mesmo tempo neoliberal. Para Pereira, na França, estamos diante de uma dominação da racionalidade instrumental que uma releitura de Freire contrariaria. Nessa direção, ela promove pedagogias críticas como uma resposta a tal situação.

Em Paulo Freire, pedagogo dos oprimidos e das oprimidas9 9 O título em francês é Paulo Freire, pédagogue des opprimé.e.s, fazendo uso de uma forma inclusiva da linguagem que não funcionaria bem em português. A intenção, claro, é destacar que Freire defende a emancipação de homens e mulheres da condição de opressão. , Pereira afirma que “nem a obra nem o homem [Paulo Freire] são verdadeiramente conhecidos do grande público e mesmo dos círculos militantes” (Pereira, 2019Pereira, I. (2019). Anthologie internationale de pédagogie critique. Éditions du Croquant., p. 17).Contudo, é necessário nuançar essa afirmação, em primeiro lugar pela circunscrição precisa do que se entende por “círculos militantes”, mas igualmente porque isso é constantemente repetido pelos pesquisadores franceses interessados em Freire, sem que se tenha feito um estudo aprofundado sobre o tema. O presente artigo, inclusive, nos faz pensar que o pedagogo não é assim tão pouco conhecido pelos círculos militantes como se diz, ainda que isso, por definição, não apareça na pesquisa. A obra de Pereira é, ela mesma, abertamente militante. A autora considera as pedagogias críticas “como uma resposta teórico-prática para lutar conjuntamente contra o neoconservadorismo e o neoliberalismo, e pensamos que suas experimentações e suas conquistas nos sejam úteis e preciosas” (Pereira, 2009Pereira, I. (2019). Anthologie internationale de pédagogie critique. Éditions du Croquant., p. 13). Em formato curto e em linguagem acessível, a obra está composta em três partes. A primeira abrange uma rápida biografia do pedagogo brasileiro e uma apresentação de seu pensamento que acentua, ao contrário de Naouar, o engajamento político e “revolucionário” de Freire. Em seguida ela passa em revista a troca dialógica, a posição engajada do professor, a relação crítica com o saber, a autoridade, a estética e a ética etc. (ver p. 50, aqui no mesmo espírito que Naouar). A leitura de Freire é engajada:

Paulo Freire afirma explicitamente a necessidade de a educação e a pedagogia visarem objetivos politicamente emancipadores e mesmo revolucionários. O coração de sua pedagogia situa-se em uma prática dialógica crítica que visa a conscientização social. Ao dar centralidade à relação dialógica, ele evita reduzir o professor à figura de um engenheiro pedagógico que teria sua ação centrada nas técnicas pedagógicas. É nessa atitude que reside o caráter não autoritário da pedagogia de Paulo Freire que poderia, então, ser qualificada como pedagogia social e libertária.

(Pereira, 2019Pereira, I. (2019). Anthologie internationale de pédagogie critique. Éditions du Croquant., p. 51)

Sobre o aspecto “libertário” de Freire, entretanto, precisamos mencionar a observação de Hugues Lenoir (2018)Lenoir, H. (2018, fevereiro 12). Paulo Freire, pédagogie des opprimé-e-s par I. Pereira (note de lecture). Hugues Lenoir. https://www.hugueslenoir.fr/paulo-freire-pedagogie-des-opprime-e-s-par-i-peirera-note-de-lecture/
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, professor-pesquisador em ciências da educação, lembrando que Freire nunca reivindicou a implantação de um sistema libertário. Sua pedagogia, embora abertamente comprometida com a luta contra a discriminação, inclui, por exemplo, uma forte dimensão espiritual, que deve ser discutida para julgar sua possível categorização como “pedagogia libertária”.

A segunda parte do livro apresenta uma visão geral e internacional das experiências de Freire (incluindo também a sua experiência como secretário de educação em São Paulo) e uma introdução à pedagogia crítica. Essa parte mais didática explica alguns princípios orientadores das pedagogias críticas, traça uma história (cita alguns grandes nomes do movimento, como Kim Case, Michael Apple, Henry Giroux) e dá alguns exemplos de ações (os grupos de conscientização, as matemáticas radicais, a investigação conscientizante…). As chamadas pedagogias “críticas” são então detalhadas em famílias mais temáticas, como pedagogias queer ou feministas. A terceira parte é um apelo em favor do desenvolvimento de pedagogias críticas na França. Pereira afirma uma “finalidade emancipatória” da educação e critica a “revolução conservadora” que se desenrola na França, entre o neoliberalismo e o tradicionalismo de direita. Ela propõe, em resposta, uma pedagogia crítica para lidar com os problemas encontrados pela escola na França e as tensões internas das várias tendências educacionais. A obra é complementada por uma bibliografia e webgrafia dos textos de Paulo Freire em francês (produzida por Gauthier Tolini), bem como por algumas referências lexicais da pedagogia crítica.

Ainda que escrito por uma pesquisadora, Paulo Freire, pedagogo dos oprimidos e das oprimidas não se se coloca em uma perspectiva universitária. O livro foi publicado pela editora Libertalia, como parte da coleção N’autre école (uma coleção iniciada pelo coletivo Question(s) de classes, do qual Pereira é membra)10 10 NT: o título da coleção poderia ser traduzido como “Uma outra escola”. O coletivo que a produz, Questão(ões) de Classe, joga com o duplo sentido da palavra “classe”: pode ser a classe social, pode ser a classe escolar. . Os livros dessa editora abertamente libertária podem ser encontrados regularmente nas bibliotecas e barracas da extrema esquerda (comunismo libertário, anarquista) e coletivos de educação popular. A abordagem revolucionária é assumida, o intuito é apresentar Freire e as pedagogias críticas por meio de um prisma libertário. O livro de Pereira permite-nos, portanto, ver a leitura militante que se pode fazer do pedagogo. Ele é aqui abordado como pensador de uma educação revolucionária de esquerda e pai das pedagogias que se posicionam hoje como uma resposta às desigualdades que Paulo Freire já denunciava. O livro não é inteiramente dedicado ao pedagogo. É aí que reside toda a especialidade de Pereira: promover e divulgar as pedagogias herdadas do pensamento freiriano. As orientações editoriais e os meios implementados para distribuir uma obra também são visíveis no que diz respeito às obras sobre Paulo Freire. Embora tenhamos encontrado a obra de Pereira em diversas ocasiões em eventos organizados por educadores e ativistas de extrema esquerda ou em suas bibliotecas, não vimos as outras duas obras dedicadas ao pensador. Assim, o livro de Pereira tem se beneficiado da rede editorial Libertalia e sua leitura política de Freire é difundida. Também é um livro menor e mais acessível do que aquele de Naouar, que pretendia ser mais exaustivo. Seria sensato explorar com mais profundidade as ligações entre a divulgação do pedagogo e as escolhas editoriais.

Assim, a análise de Nóvoa (1996)Nóvoa, A. (1996). Paulo Freire (1921-1997). In J. Houssaye (Dir.), Pédagogues contemporains: Idées principales et textes choisis (pp. 59-102). Fabert. sobre os três tipos de “leitura” de Freire aplica-se apenas parcialmente ao contexto francês. Em geral, Paulo Freire é relativamente conhecido e bastante apreciado por pesquisadores educacionais interessados em pedagogia. Garibay & Ségnier (2009)Garibay, F., & Séguier, M. (2009). Pratiques émancipatrices, actualités de Paulo Freire. Syllepse. são uma leitura bastante didática, mas não desvirtuam o projeto político de Freire. Por sua vez, Naouar (2014)Naouar, O. (2014). Paulo Freire: Figures du pédagogue, imaginaire du pédagogique. L’Harmattan. desenvolve uma abordagem que se pretende muito acadêmica, muito teórica e de influência cristã-heideggeriana. Por fim, uma terceira leitura do pedagogo enfatiza o aspecto revolucionário de inspiração marxista e existencialista, via Pereira. Essas interpretações, portanto, destacam a singularidade de Freire, que tenta sintetizar múltiplas influências em uma perspectiva pedagógica e ética.

Abertura às contribuições do pensamento freiriano para a formação política popular

Por mais limitada que sejam a pesquisa universitária e a difusão das obras de Freire na França, apesar de tudo, o pedagogo ocupa um lugar particular nas esferas pedagógicas e militantes de esquerda. Malgrado a forte politização de seus textos, Paulo Freire é colocado ao lado de outros pedagogos que não são autores de proposições institucionais para responder às necessidades específicas da escola pública (Freinet, Montessori). Na França, as pedagogias não estatais são qualificadas como “novas” ou “alternativas”. Em seu artigo sobre o estado da arte das pedagogias alternativas na França, Wagnon (2018)Wagnon, S. (2018). Les pédagogies alternatives en France aujourd’hui: Essai de cartographie et de définition. Tréma (50). https://doi.org/10.4000/trema.4174
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coloca em evidência o aspecto de “palavra-valise” de uma pedagogia qualificada como “alternativa”. Frente ao vazio editorial referente a Freire, artigos e extratos de textos são partilhados entre as redes, seus vídeos disponíveis em plataformas online são vistos e sua imagem é difundida.

Mesmo que ele utilize pouco essa palavra, seu “método” de alfabetização é evocado com frequência para apresentá-lo; tal palavra (método) foi rapidamente captada pela pedagogia da segunda metade do século XX que lutava contra o analfabetismo. Durante todo esse período, os pedagogos e as pedagogas se concentraram sobre o método de alfabetização de Freire e sobre seus primeiros escritos, de modo a aplicar seus preceitos. A evolução de seu pensamento é pouco conhecida e a dificuldade de acesso a seus textos impede uma leitura em profundidade. Essa abordagem poderia manter numerosos leitores na ignorância dos textos, de modo que Freire ficaria como uma figura do imaginário. A iconografia poderia ter aqui um certo papel: “a evocação do nome de Freire suscita para a maioria uma imagem, aquela do homem velho com barbas brancas e a pele marcada, cujos traços parecem se situar em um lugar distante e cujo rosto sutilmente remete aos traços de um Abade Pierre, de um Fidel Castro, de um homem de Deus e de um revolucionário” (Naouar, 2014Naouar, O. (2014). Paulo Freire: Figures du pédagogue, imaginaire du pédagogique. L’Harmattan., p. 61)11 11 Henri Antoine Groués, mais conhecido como Abbé Pierre foi um sacerdote católico francês que fundou o Movimento Emaús. . Atualmente, tal imaginário em torno de Paulo Freire é muito presente: pode-se encontrar suas frases em cartazes de federações de educação popular, sua foto em locais militantes etc. Às vezes confundido com Augusto Boal – devido igualmente à proximidade entre as noções de “pedagogia do oprimido” e de “teatro do oprimido” – o pedagogo é, mais que uma fonte de reflexão, um símbolo de renovação pedagógica de esquerda.

Seu objetivo de transformação social é regularmente retomado para sublinhar o alcance político de seu pensamento, ainda que a leitura conservadora considere que o significado dado à palavra “mudança” varie consideravelmente de acordo com a obediência do convocador e que essa ideia, desenvolvida nas primeiras obras de Freire, não corresponda necessariamente ao que lhe é atribuído pelos atores franceses de pedagogias alternativas. Vários fatores explicam esses usos militantes dos conceitos freirianos. Mencionamos anteriormente a falta de distribuição de suas obras em francês, o que as tornaria acessíveis ao grande público, mas também devemos sublinhar a densidade e a complexidade do pensamento freiriano, que uma leitura fragmentária pode facilmente truncar. Vejamos, então se uma leitura potencialmente fragmentada de Freire compromete o rigor teórico de seu pensamento.

Uma vez que Paulo Freire é descrito por Richez (2010)Richez, J.-C. (2010). Cinq contributions autour de l’éducation populaire. Injep. como o principal pensador da educação popular no mundo, nos permitimos relembrar o estatuto particular que tem a fórmula “educação popular” na França. Conceito borrado, com contornos nebulosos, pode-se entender por educação popular tanto a sustentação escolar quanto a educação de adultos para lutar contra o capitalismo. Após uma grande atividade entre o final do século XIX e a segunda metade do século XX, a educação popular francesa conheceu um período de adormecimento político nos anos 1980, com a progressão de sua institucionalização (Ducomte, 2012Ducomte, J.-M. (2012). Anthologie de l’éducation populaire. Privat.), assim como as pedagogias alternativas (Allam, 2018Allam, M. C. (2018). La médiatisation des pédagogies alternatives entre les années 1970 et 2000. Tréma, 50. https://doi.org/10.4000/trema.4219
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). Atualmente, ela recuperou o terreno político, com o “retorno da questão social” (Morvan, 2011Morvan, A. (2011). Pour une éducation populaire politique: À partir d’une recherche-action en Bretagne [Tese de doutorado, Université de Paris-8 Vincennes-Saint-Denis]. Bibliothèque Numérique Octaviana. https://octaviana.fr/document/172299233#?c=0&m=0&s=0&cv=0
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) desde os anos 1990. É possível ver que a recepção de Freire na França, tanto no campo das publicações quanto no da pesquisa, segue o movimento de expansão, de refluxo e de retorno dessa concepção política da educação popular. O amplo leque de leituras que oferece a obra de Freire permite que ela seja regularmente citada pela educação popular; entretanto, uma série de perspectivas marcadas como “educação popular” não pode ser comparada ao seu pensamento, pois não visa necessariamente à transformação social.

Penderemos, então, para a educação popular política, tal como conceituada por A. Morvan (2011)Morvan, A. (2011). Pour une éducation populaire politique: À partir d’une recherche-action en Bretagne [Tese de doutorado, Université de Paris-8 Vincennes-Saint-Denis]. Bibliothèque Numérique Octaviana. https://octaviana.fr/document/172299233#?c=0&m=0&s=0&cv=0
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, que resumiremos assim: a educação popular política é uma perspectiva de coconscientização crítica do indivíduo (o que supõe a afirmação de uma organização social alienante contra a qual tal educação se posiciona) de suas condições de existência e de acompanhamento de suas ações para agir, coletiva ou individualmente, sobre tal condicionamento. Tal ramo radical da educação popular está de vento em popa depois dos anos 2010, como mostra a multiplicação de cooperativas de educação popular12 12 Entre outras, as SCOP “Le Pavé” (dissolvida), “L’Orage” (tornou-se “Orageuses”), “L’Engrenage”, “Vent Debout”, “Le Contrepied”, “La Trouvaille”, mas também as cooperativas “L’Ardeur”, “L’Étincelle”. ou de “conferências gesticuladas”, isto é, conferências que são um misto de exercício acadêmico e de narrativa de vida teatral (popularizadas por Franck Lepage, militante de educação popular). Nesse movimento, Freire talvez seja identificável nas entrelinhas, como quando a Societé Cooperative et Participative (Sociedade Cooperativa e Participativa – Scop)13 13 NT: um tipo de organização societária francesa, que costuma ser adotado por grupos e associações de educação popular. Veja informações na página (em francês): https://www.les-scop.coop/les-scop. “Le Contrepied” evoca a conscientização entre seus princípios fundadores14 14 http://www.lecontrepied.org/presentation/ , ou mais abertamente com certas Scop que se juntaram às redes de pedagogias “radicais” ou “emancipadoras”, pedagogias que podemos assemelhar às pedagogias críticas defendidas por Pereira: “as pedagogias radicais se situam na continuidade da obra de Paulo Freire. Elas agrupam as pedagogias: críticas, feministas, antirracistas, decoloniais, queer, ecopedagogia, antiopressão, antidiscriminação, igualitárias”15 15 http://lengrenage.blogspot.com/p/reseau-de-edagogies-emancipatrices.html/ .

No ramo radical da educação popular, Paulo Freire aparece como símbolo: uma de suas frases que se tornaram célebres é citada pela cooperativa L’Étincelle, não sem um pequeno remanejamento: “Ninguém educa ninguém, os homens se emancipam juntos, através do mundo”16 16 http://l-etincelle.fr . Eles referenciam a obra escrevendo Paolo Freire, “pédagogie des opprimées”17 17 NT: Pedagogia do oprimido é citada pela cooperativa como “pedagogia das oprimidas”. Mantivemos em francês no corpo do texto para ressaltar o destaque no título feito pelos autores do artigo. (itálicos nossos). O site education-populaire.fr, mantida por Adeline Lépinay (educadora de adultos, ela se posiciona em uma orientação de “educação popular política e libertária”), exibe a mesma citação na página de acolhida de seu blog18 18 http://www.education-populaire.fr/ .

Para procurar ver mais concretamente como o pensamento freiriano se encaixa no contexto educacional francês, examinaremos agora dois exemplos de coletivos militantes de educação política popular. Um deles é uma Universidade Popular (UP), o outro uma organização de formação para as profissões de animação19 19 NT: “Profissões de animação” no sentido que no Brasil falamos, por exemplo, em “animador/a cultural”. . De 2017 a 2019, realizamos um levantamento etnográfico que buscou compreender como os militantes da educação política popular (ou radical, com a ideia de buscar a raiz) se apropriam e definem o conceito de emancipação. Foi nesse estudo que lançamos luz sobre os referenciais teóricos e o sistema ideológico construído pelos militantes. Para facilitar a leitura, nos limitaremos aqui ao campo da “educação popular”.

Desde o início, o educador não é completamente desconhecido dos militantes. Encontramos uma de suas famosas frases nas xícaras de um dos coletivos e ele foi citado algumas vezes em entrevistas. Mas quando mencionamos seu nome em um workshop, os participantes que o conheciam confessaram a pouca informação que tinham sobre ele. De modo geral, há muitas semelhanças entre o pensamento freiriano e aquele dos militantes da educação popular: a educação é central para o processo de transformação social. Observe-se que, para eles, muitas vezes a educação é vista como um meio de transformação, enquanto para Freire é a sua essência. Como Paulo Freire, os militantes fazem uma análise marxista das relações entre os sujeitos: a sociedade é dominada por uma hegemonia capitalista nas mãos de uma minoria opressora, ela própria animada por uma “consciência necrofílica” (Freire 1974Freire, P. (1974). Pédagogie des opprimés suivi de Conscientisation et révolution. Maspero., p. 37). A educação majoritária hoje está a serviço dessa dominação que constrange os indivíduos, que os condiciona. Assim como Paulo Freire, os ativistas veem a educação não apenas como uma transmissão de conhecimento às crianças, mas como uma dinâmica que se processa ao longo da vida.

É a análise crítica, fundamentada na razão, que permitirá ao sujeito constituir uma “grade de leitura”, uma compreensão ativa do meio em que atua. Aqui estabelecemos claramente uma proximidade com a abordagem conduzida por Freire sobre todo o processo de conscientização. Sua perspectiva de transformação do indivíduo não é explícita, mas aparece de modo implícito, em filigrana. A técnica do “Rato”20 20 Sigla para Récit, Analyze, Transformation, Œuvre (Narração, Análise, Transformação, Obra). Ver: https://pouvoirdagirdesjeunes.centres-sociaux.fr/la-methode-rato-un-autre-outil-deducation-populaire/ , regularmente citada, poderia estar ligada à pedagogia freiriana: o sujeito, ao narrar a si mesmo, ao coletivizar-se e ao tomar consciência de suas condições de existência, se engaja em uma transformação pessoal, bem como na de seu ambiente. O trabalho, artístico ou não, é o culminar desse processo, mas também a abertura para o depois, para mais pessoas.

A exigência freiriana de exemplaridade entre educadores, não para atingir a “perfeição”, mas para incorporar seus valores, é geralmente observada entre educadores militantes. Mais especificamente, temos visto amplas evidências de que os militantes buscam aplicar seus valores, seja na forma de estágios ou em órgãos reguladores.

Por fim, a incompletude freiriana abarca a busca de utopia que detectamos entre os militantes da educação popular. Trata-se de formar e ir além da condição inicial, através do coletivo. Há constantemente uma abordagem epistemológica entre militantes, como encontramos em Freire: a autoanálise crítica via coletivo, o questionamento do evidente por meio das formações Bafa21 21 NT: Sigla para Brevet d’Aptitude aux Fonctions d’Animateur, isto é, uma autorização do Estado francês para atuar como animador(a) em atividades culturais e educativas. São formações breves e práticas, para jovens a partir de 17 anos, que podem ser feitas nas férias escolares ou durante o período letivo. Para mais informações, consulte: https://bafa.ufcv.fr/Le-BAFA/Le-BAFA-c-est-quoi , que levam os estagiários a questionar o que parece óbvio (como a hora de levantar-se) ou oficinas para a análise crítica de um fato social com base em obras sociológicas. Para eles, a educação não é neutra, é fundamentalmente política. Nessa ótica, os militantes reivindicam a vontade de lutar contra todas as formas de discriminação. Como muitos educadores, eles didatizam sua ética global em um processo perpétuo de “atuação”.

O conceito de conscientização, muito difundido, nem sempre se refere diretamente a Freire, só podemos supor que essa palavra sozinha concentra múltiplas influências, mas nem é preciso dizer que, entre elas, encontramos a obra Pedagogia do Oprimido e sua famosa “conscientização”, popularizada a partir de 1974. Os militantes desenvolvem uma teoria da ação baseada na conscientização: trata-se de compartilhar a própria história, de tomar consciência das próprias condições de existência, dos padrões de comportamento que condicionam os indivíduos. Contando regularmente com as produções das ciências sociais, eles validam seus sentimentos ao permitir que tomem consciência da natureza sistêmica de suas experiências. Mas esse trabalho de popularização da ciência também permite trazer à luz opressões invisíveis. A educação popular, sempre voltada para a atuação, desenvolve diversos instrumentos para a aplicação concreta de teorias e reflexões. Trata-se de uma tentativa de pedagogizar produções que inicialmente não se destinavam à educação. Contudo, mais do que uma simples aplicação didática, trata-se, como nos lembra Freire, de fazer sentido e coerência em sua abordagem como educador. Se o objetivo, movido por uma vontade ética, é desvelar as condições de existência dos indivíduos para apoiar sua transformação em um “ser-mais”, há uma adaptação necessária, um tensionamento das teorias que se deseja mobilizar. Acontece o mesmo com o conceito de práxis. Essa noção está particularmente presente nesse ramo radical da educação popular, porém, não pudemos verificar se sua implantação se deve exclusivamente a Freire. Para os militantes, a práxis é uma discussão contínua entre reflexão e ação.

Como produzir um coletivo e para que ele serve? Como integrar o indivíduo que tenta ser sujeito em um coletivo e como construir uma identidade coletiva? Aqui os militantes têm uma abordagem que pode complementar as reflexões de Freire: o coletivo é o suporte para o indivíduo, que apresenta suas ideias, suas reflexões que serão – após validação – digeridas pelo coletivo. O processo é, pois, o mesmo da abordagem “dialógica” defendida por Freire. O coletivo não é apenas um repositório de conhecimento, ele também transforma o conhecimento e as ideias de seus membros que, juntos, constituem seu sistema teórico. Nas oficinas desenvolve-se um trabalho comum, no qual o coletivo está no centro da sessão, sempre precedido/seguido de uma discussão na qual fala-se de si, da sua própria experiência que é relacionada com o fato ou com o trabalho acadêmico: constrói-se sentido e envolve sua subjetividade, sua identidade pessoal, que são integradas a essa experiência coletiva. Essa coletivização permite ao sujeito, como explica Paulo Freire (assim como Naouar), desconstruir-se e depois reconstruir-se em torno de uma identidade comum, de uma experiência comum; a identidade renovada do sujeito está ligada ao coletivo.

As teorias de Paulo Freire sobre o diálogo materializam-se em oficinas como o “passeio biográfico” ou o “pens’écoute” [escuta pensante]22 22 As oficinas comentadas são explicitadas na página: https://www.scoplepave.org/outils-et-methodes . A “escuta pensante” é um workshop entre duas (ou mais) pessoas, consistindo em uma narrativa: sobre um assunto dado pelo facilitador, cada participante poderá falar durante dois minutos, sem interrupção, não tendo o seu interlocutor direito a intervir ou reagir verbalmente; depois, os papéis são trocados. Não há, portanto, diálogo propriamente dito, mas nem por isso torna-se uma partilha de monólogos egocêntricos; trata-se, ao contrário, de uma acentuação da capacidade de escuta dos indivíduos, uma imposição de ouvir o outro, recuando para dar lugar a ele. Aquele que fala dirige-se a alguém, portanto há um pano de fundo dialógico (expressar-se para alguém, querer dizer algo para alguém), que se estabelece apesar de uma forma que sugere solilóquios. Em sua obra Pedagogia da Autonomia, Freire enfatiza a importância do silêncio construído. Trata-se de uma reversão da cultura inicial do silêncio, que ele denuncia como um silêncio deliberado e elaborado. O silêncio é considerado parte integrante da discussão e força a atenção, a legitimação do locutor. É um retraimento físico, mas não intelectual: para Freire e para os militantes da educação popular, esse silêncio torna mais fácil pensar nas próprias ideias. Visando a desconstrução das dominações, os instrumentos de regulação forçada da fala permitem que os “oprimidos” se expressem de forma mais plena. Os militantes frequentemente se referem a um estudo sobre a distribuição da fala (Monnet, 1998Monnet, C. (1998). La répartition des tâches entre les femmes et les hommes dans le travail de la conversation. Nouvelles Questions Féministes, (19). https://infokiosques.net/spip.php?article239
https://infokiosques.net/spip.php?articl...
) e compartilham uma publicação digital do artigo. Na maioria das vezes, o tema é imposto pelo facilitador: geralmente é um fato social ligado à nossa experiência pessoal que devemos compartilhar (“sofri uma dominação/impus uma dominação”, “como comecei a militar” etc.) para o outro: o mundo, a sociedade é explicitamente o suporte e o denominador comum entre as duas partes. É a experiência subjetiva do mundo de que o sujeito toma consciência e busca compartilhar com o outro, isso também vale para a oficina “pequena história/grande história”23 23 https://www.scoplepave.org/petite-histoire-grande-histoire , em que os indivíduos são levados a contar uns aos outros tendo os “grandes” eventos sociais como meio (o 11 de setembro, a copa mundial de futebol de 1998, o Nuit Debout24 24 NT: movimento social francês que teve início com assembleias noturnas em 31 de março de 2016 em Paris e depois espalhou-se. Foi um movimento de massas populares contra uma lei que propunha reformas trabalhistas. etc.). A diversidade de eventos trazidos à experiência subjetiva ecoa a ideia freiriana de que a experiência do mundo começa em pequena escala, sendo uma porta de entrada para uma maior compreensão dela.

Com o crescente reconhecimento das ciências sociais, dos estudos pós-coloniais, das sociologias feministas etc., o conhecimento científico passa a legitimar o discurso militante. No entanto, embora em alguns casos possam parecer frios e distantes da experiência sensível, uma leitura mais atenta destaca o aspecto central das emoções e sentimentos no processo de educação política popular. Além das oficinas mencionadas, algumas organizações formadoras (como os Ceméa25 25 NT: Centres d’Entraînement aux Méthodes d’Education Active, ou Centros de Treinamento nos Métodos de Educação Ativa. Ver: https://www.cemea.asso.fr/spip.php?rubrique552 ou os Francas26 26 NT: movimento de educação popular que se articula como uma federação nacional laica de estruturas e atividades, oferecendo cursos de formação. Ver: https://www.bafa-lesfrancas.fr/qui-sommes-nous ) insistem em respeitar as necessidades da criança e apoiá-la no manejo das emoções. Mencionamos a “fé” dos militantes na utopia, que se alimenta da raiva, elemento crucial em nossa investigação. Expressada ou enterrada, ela é gerada pelo sentimento de injustiça, vivida ou assistida, que muitos militantes da educação popular sentem diante do sistema. A indignação não é necessariamente o iniciador de seu compromisso, mas se reflete em muitos aspectos da vida dos coletivos: comunicados políticos de imprensa, histórias pessoais, iconografia marcada (punhos erguidos, cores fortes, tipografias pronunciadas), canções (noitadas de canções revolucionárias durante os fins de semana de treinamento), e de modo mais verbal: os tópicos de discussão (em oficinas ou informais) são na esmagadora maioria assuntos sociais problemáticos. Os coletivos não discutem o desenvolvimento pessoal: eles debatem sobre o desenvolvimento pessoal. No entanto, as emoções como tais não são particularmente destacadas nos padrões de pensamento, nos discursos que coletamos, estão presentes, mas relegados ao contexto teórico. Aqui, Paulo Freire relembra toda a sua legitimidade e poder. Ele cita a raiva como importante e legítima, mas alerta para o risco de ela se tornar um fim em si mesma e, acima de tudo, defende uma pedagogia do amor. O sujeito é capaz de ficar com raiva porque é capaz de amar. É a empatia fundadora do humano que Freire defende. Essa empatia é tingida de fé, uma esperança que “faz parte da natureza humana”. É a incompletude constitutiva do Homem que gera essa esperança universalmente presente. O humano, para sempre incompleto, inacabado, está em perpétuo processo de busca: essa consciência do condicionamento inicial e do movimento em direção à emancipação ecoa em grande parte o processo de conscientização preconizado pela educação política popular.

A questão da espiritualidade não é levantada pelos militantes, em particular por causa de uma forte antirreligiosidade. Notamos, no entanto, uma espécie de fé, uma crença na futura emancipação dos indivíduos, de que as linhas podem se mover. Assim, propomos a hipótese de que se pode confiar nas reflexões de Freire para insistir na necessidade de ter fé em algo para educar e que é essa fé, esse compromisso com uma crença – quer seja religiosa ou no Homem – o motor essencial do educador. Os ativistas falam muito sobre seu apego a uma utopia: é o princípio da crença em um ideal que os determina a agir.

A pedagogia freiriana também permite ir além de uma atitude particularmente didática que os militantes da educação popular podem ter. Onde alguns denunciam uma centralização excessiva na ferramenta, muitos militantes procuram aplicar em seu cotidiano os dados transformados em preceitos decorrentes de trabalhos acadêmicos.

Não se deve acreditar que todo o pensamento freiriano seja encontrado entre os militantes da educação política popular. Há, por exemplo, uma divergência sobre a questão do lugar do educador, daquele que os militantes chamam de sábio (aquele que sabe, que tem os conhecimentos necessários para lidar com um assunto). Enquanto para Paulo Freire o professor deve dominar (sempre criticamente) sua matéria e não pode ter autoridade se não dominar sua área de saber: “Não posso ensinar o que não sei” (Freire, 2013Freire, P. (2013). Pédagogie de l’autonomie. Erès.), nossa pesquisa revelou que os militantes preferem se ver como “facilitadores”, mediadores entre o conhecimento bruto e o aprendiz, que proporcionam uma experiência de aprendizagem técnica e não como fiadores do conhecimento. Nesse sentido, estão mais próximos de Rancière (1985)Rancière, J. (1985). Le maître ignorant. Fayard. do que de Paulo Freire.

Freire acredita que todo educador deve ser exemplar, mas também destaca a importância do erro. A finalidade não é potencialmente a mesma: se Freire regularmente evoca o fato de que o educador deve ser revolucionário, militante, para querer lutar contra o imperialismo, a discriminação e o capitalismo, sua teoria não se orienta necessariamente para um sistema libertário ou de autogestão, a sua pedagogia centra-se na educação como sendo o cerne de uma renovação da sociedade. Mas Paulo Freire pouco ou em nada desenvolve outros aspectos econômicos e políticos, como a organização do trabalho ou outros planos da expressão política dos sujeitos. Ele se concentra sobre a educação, enquanto os militantes têm uma abordagem mais global: o que desperta interesse é que no sistema dos militantes, Paulo Freire é um especialista que desenvolveu uma reflexão sólida sobre a educação, da qual eles derivam algumas generalidades. Já os militantes são uma práxis, a concretização das referências; seu quadro teórico é muito geralista, mas também muito abrangente, completo.

Uma das questões que frequentemente animava os educadores era a de como discutir com aqueles que ainda não são “conscientes”, “desconstruídos”, “politizados”. Numa abordagem autocrítica alinhada com o que defendeu Paulo Freire, os atores da educação popular têm consciência de seu status especial: são politizados, intelectuais. O debate no seio da Universidade Popular era recorrente: estaremos em uma torre de marfim? É um espaço de desconstrução reservado às classes média e alta do centro da cidade? “Devemos ir para os bairros?”, é uma pergunta frequente e constitutiva das tensões da educação popular. Sobre esse tema, Paulo Freire lembra que não cabe ao educador se mudar para a favela, mas, sim, lutar para mudar as condições de vida das pessoas. Não é necessário se ater a um discurso de raiva com tendência sectária, porém, ensinar um conhecimento crítico. Se essa afirmação permanece verdadeira, ela se revela muito geral e já bem compreendida pelos militantes. De modo que não permite resolver o eterno dilema de todo educador crítico.

Assim, a dificuldade de circunscrever com precisão o pensamento de Freire entra em ressonância com uma pedagogia cujos contornos são vagos e estão em perpétua negociação. Muitas semelhanças são perceptíveis nas duas partes e Paulo Freire às vezes é diretamente detectável. Os militantes geralmente o leram pouco ou não o leram, mas as orientações que eles sugerem são visivelmente semelhantes às defendidas por Freire. Não se lê Freire, todavia, suas ideias são discutidas. É importante lembrar o predomínio da linguagem oral sobre a escrita na educação popular. O constante vaivém entre teoria e prática, a práxis, está no cerne de qualquer sistema educacional. É um conjunto de preceitos morais ou uma metodologia pura? Para os militantes da educação política popular, a resposta está justamente em uma dialética permanente entre pensar e agir. De modo geral, a complementação das teorias da educação política popular com a obra de Paulo Freire permitiria fortalecer seu sistema (embora Naouar rejeite a ideia de um “sistema” freiriano, porque para ele seu pensamento é incompleto) e solidificar suas bases teóricas. A educação política popular, por sua vez, é um meio para estudar a relevância do pensamento freiriano em um cenário como o da França. Por sua perspectiva totalizante, alimenta também as aberturas que contribuiriam para completar esse “sistema”, que poderia ser o pensamento de Paulo Freire.

Conclusão

As poucas edições francesas de livros e artigos sobre Paulo Freire são as árvores que escondem a floresta. Desde que façamos uma leitura cuidadosa, rapidamente nos afastamos da ideia de falta de interesse dos franceses pelo pedagogo e seu pensamento. Muitos fatores e tensões abrem caminhos para elucidar o estatuto único de Freire na França. Já mencionamos o impacto das editoras na distribuição ou não de um livro. A onda terceiro-mundista da década de 1960 sofreu a ofensiva individualista da década de 1980, e sucessivas edições de várias obras do pedagogo foram interrompidas. No entanto, Freire já havia marcado profundamente o panorama educacional francês. Com a perspectiva de descolonização do pensamento educacional francês, ele é redescoberto e a pesquisa se apodera de sua obra. Parece que um primeiro período de difusão do pensamento de Freire no mundo francófono durante as décadas de 1960 e 1970 foi seguido por um longo refluxo até os dias de hoje. Nem é preciso dizer que a densidade de Freire impõe ao leitor francês paciência e método para apreender o todo, mantendo-se coerente e sólido. É provavelmente a amplitude de seu pensamento, que atinge um vasto público que se interessa pelas questões educacionais, que torna possível distinguir com tanta facilidade leituras muito diferentes de Freire, embora ainda tendo um significado fundamentalmente social, humano. Freire também permite que educadores de campo e pesquisadores universitários sejam discutidos. A multiplicidade de leituras que observamos mostra que, mesmo não sendo particularmente lido ou estudado em profundidade pela pesquisa, ainda assim permanece conhecido, presente. Além disso, a aura de Freire deve ser distinguida da de outros pedagogos relativamente conhecidos na França: qualquer que seja a leitura que se faça dele, o aspecto político mobilizado por seus conceitos que permaneceram carros-chefes na França, como a conscientização, é predominante. Mesmo pouco conhecido, o pensamento freiriano resiste à dissolução, à absorção pelas ideologias neoliberais que denuncia.

Vimos que pode haver uma aplicação concreta de Freire em um contexto francês fora da estrutura da alfabetização. E vimos que as diferenças que notamos entre Freire e os militantes da educação popular não são fonte de estranhamento, mas, sim, excelentes suportes para o aprofundamento de Freire, de acordo com seu apego à experiência como constitutiva do conhecimento.

A crescente popularidade de Paulo Freire não deve lançar o véu sobre os pontos internos de tensão da pedagogia francesa, que podem atrasar a implantação do pedagogo na França e em particular no ambiente escolar. Nós destacamos três desses pontos. A restrição francesa ao aspecto religioso de Freire deve ser comparada com a definição “exclusiva” da laicidade aplicada na França (Urbanski, 2016Urbanski, S. (2016). L’enseignement du fait religieux: École, république, laïcité. PUF.): o religioso é relegado à esfera privada e não deve ser visível no contexto escolar. Sobre o princípio da igualdade, da prevenção da discriminação e da tolerância, o sistema educacional francês impõe aos seus profissionais e usuários uma certa restrição à religião como, por exemplo, a proibição de símbolos religiosos “ostensivos” nos estabelecimentos. Para apreender plenamente as obras de Freire, é necessário, portanto, que o educador francês abandone sua percepção do que é a laicidade e o lugar da religião na educação. Em seguida, o universalismo francês que afirmava “indiferença às diferenças” entra em conflito com a valorização das especificidades de cada um que atravessa o pensamento freiriano. O modelo francês defende uma forma de integração que consiste em absorver os valores do Estado (conhecer a história da França, o hino nacional etc.) e, inevitavelmente, minimizar as especificidades culturais de cada pessoa. Nesse contexto, o pensamento impregnado pelo multiculturalismo de Freire pode ser potencialmente difícil de ser compreendido pelo leitor francês, pois a premissa básica de Freire contradiz a do ideal francês de igualdade. Sendo seres essencialmente interdependentes, nem todos nascemos iguais e o modelo defendido pela França, que preconiza direitos iguais e tratamento igual para todos, não permite igualdade de fato, muito menos equidade. O último ponto é o republicanismo, tese defendida em particular por Pereira (em seu artigo A recepção de Paulo Freire diante do neoconservadorismo na França, 2020). Paulo Freire defende uma abordagem crítica e revolucionária e está comprometido com a transformação social. Mostramos que seu pensamento é muito político para ser completamente higienizado e para ser apenas uma metodologia de alfabetização eficiente. A análise crítica que ele mobiliza vai de encontro à atitude em relação à república que o Estado pretende impor aos professores27 27 https://www.francetvinfo.fr/societe/education/refondation-de-l-ecole/les-cinq-points-de-frictions-du-projet-de-loi-pour-une-ecole-de-la-confiance_3185301.html. Última consulta em 31/05/2021. . A exemplaridade esperada pelo professor que se supõe representar a República não permite que se desenvolva a posição crítica de Freire. No entanto, a escola e o sistema educativo franceses poderiam aproveitar o trabalho do pedagogo para formar educadores atentos, críticos e empenhados em renovar os ideais da igualdade francesa.

Além disso, o estudo da recepção e da não recepção do pensamento de Freire na França também indica uma relação entre a França e o Brasil, inclusive nas teorias da emancipação, mesmo na pedagogia crítica, há muito tempo unilateral. Mas a França não pode estar exclusivamente na postura do educador e o Brasil na postura do educando, inclusive em questões de filosofia, ciências da educação e pedagogia. Os movimentos recentes de renovado interesse pelas pedagogias críticas indicam, ao contrário, que a obra de Freire pode permitir trabalhar por uma possível descolonização dos saberes e das práticas escolares e universitários na França; que, em todo o caso, permite colocar esse problema e, assim, funcionar como teoria emancipatória em relação à própria situação francesa. O pensamento de Freire conserva todo o seu radicalismo no campo das teorias e práticas de emancipação. Ainda permanece, hoje como na década de 1960, um pensamento pioneiro, do qual a filosofia e as ciências da educação na França, sem falar nas práticas escolares, ainda têm muito a aprender para perseguir ou se engajar na via da emancipação.

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2021
  • Aceito
    07 Out 2021
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