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Amizade e Educação Infantil 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah – leda.farah@terra.com.br. 3 3 Apoio: O presente artigo teve apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Amistad y educación infantile

Resumo

O artigo tem como objetivo contribuir com os estudos da Educação Infantil, explorando as amizades entre as crianças, marcadas por raça, gênero, classe e idade, num Centro Municipal de Educação Infantil que atende crianças com 5 anos. Trata-se de uma etnografia realizada na cidade de São Paulo, ao longo de sete meses, fazendo uso do registro em caderno de campo. Com base nas análises, pode-se destacar que as relações entre as crianças e a percepção que elas têm sobre suas identidades étnico-raciais e de gênero se constituem no contato com as diferenças. Na convivência cotidiana, as crianças constroem sentidos com a realidade, transformam os sentidos propostos a cada momento em que brincam juntas praticando a amizade.

Palavras-chave
amizade; interseccionalidade; crianças; pré-escola

Resumen

El artículo tiene como objetivo contribuir a los estudios de educación de la primera infancia, explorando las amistades entre los niños marcados por raza, género, clase y edad, en un Centro Municipal de Educación temprana que atiende a niños de 5 años. Es una etnografía realizada en la ciudad de São Paulo, durante más de siete meses, que utiliza el registro en el cuaderno de campo. Con base en los análisis, se puede resaltar que las relaciones entre los niños y la percepción que tienen bajo sus identidades étnico-raciales y de género están constituidas en contacto con las diferencias. En la convivencia cotidiana, los niños construyen significados con la realidad, transformando los significados propuestos en cada momento cuando juegan juntos practicando la amistad.

Palabras clave
amistad; interseccionalidad; niños; preescolar

Abstract

This article aims to contribute to the studies related to Early Childhood Education, exploring the friendships marked by race, gender, class, and age, in a Municipal Center for Early Childhood Education that attends 5-year-old children. It is an ethnography carried out in the city of São Paulo for seven months, using field notes. Based on the analyses, we highlight that the relationships between children and the perception they have on their ethnical-racial and gender identities are established by the contact with the differences. In their daily experience, children built meanings with reality and transformed the proposed meanings every time they played together practicing friendship.

Keywords
friendship; intersectionality; children; pre-school

Introdução

Este artigo procura contribuir com os estudos da Educação Infantil, explorando as amizades entre as crianças, marcadas por raça, gênero, classe e idade, num Centro Municipal de Educação Infantil que atende crianças com 5 anos na cidade de São Paulo.

É uma tarefa não muito simples verificar qual conceito de amizade vem sendo construído nas pesquisas, pois ele repousa num desafio que é teórico – definir o que é, quais os aspectos necessários para que ocorra – e metodológico: como ter acesso a um tipo de relação entre as pessoas. Entre os dados apontados nas pesquisas aqui analisadas, um aspecto predominante na amizade na infância são as formas pelas quais as crianças brincam, assim como as exigências contextuais do espaço social em que elas se inserem (Almeida, 2016Almeida, E. C. S. (2016). “Se você estiver aqui, você é nossa amiga, senão não é”: as interações entre um grupo de crianças no ambiente da Educação Infantil. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.; Borba, 2005Borba, A. M. (2005). Culturas da infância nos espaços e tempos do brincar: um estudo com crianças de 4-6 anos em Instituição Pública de Educação Infantil. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense.; Delgado et al., 2017Delgado, A. C. C., Würdig, R. C., & Cava, P. P. (2017, abril/junho). Interatividade nas culturas da infância: aproximações, amizade e conflitos entre bebês. Revista Educação em Questão, 55(44), 144-168.; Gomes, 2012Gomes, F. R. B. (2012). A amizade entre crianças na escola. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.; Müller, 2008Müller, F. (2008). Socialização na escola: transições, aprendizagem e amizade na visão das crianças. Educ. Rev., 32, 123-141.; Nunes, 2017Nunes, M. D. F. (2017). Mandigas da infância: as culturas das crianças pequenas na escola municipal Malê Debalê, em Salvador (BA). Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.; Prado, 2006Prado, P. D. (2006). Contrariando a idade: condição infantil e relações etárias entre crianças pequenas da Educação Infantil. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas.; Santiago, 2019Santiago, F. (2019). Eu quero ser o Sol! (Re)interpretações das intersecções entre as relações raciais e de gênero nas culturas infantis entre as crianças de 0-3 anos em creche. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas.).

Todos os dados apontados nas pesquisas supracitadas formam um conjunto de estudos que nos remete à diferenciação social nas culturas infantis, relacionadas à raça, ao gênero, à classe, à idade e à percepção de “nós” ou uma identidade de grupo. Dialogando com os trabalhos encontrados, ressaltei, dentro de suas perspectivas, possíveis olhares, indícios, pistas que me ajudassem a pensar a construção da amizade entre as crianças na Educação Infantil e denominei de práticas de amizade as ações que as crianças fazem para manter diversos contatos entre elas, tendo em vista as situações cotidianas que vivenciam no espaço educativo. Mesmo entendendo a complexidade do tema, lancei-me na busca por aspectos que me ajudassem a pensar as práticas de amizade de maneira articulada, contextualizada, levando em consideração os aspectos tanto macro quanto micro que as circundam.

Nesta pesquisa conceituo a amizade como ação de brincar junto. Quando brincam juntas, as crianças compartilham ideias, coisas que somente elas sabem, constroem modos de ser, de relacionar-se e de viver. E são essas configurações, esses múltiplos entrecruzamentos que impulsionam as suas práticas de amizade no interior das culturas infantis, que ganham a todo instante propriedades muito particulares, produzidas a todo momento pelas crianças.

A abordagem teórico-metodológica e a inserção do pesquisador no campo

Nos espaços das creches e pré-escolas, dependendo das relações que as crianças estabelecem com as pessoas adultas e da criação de momentos nos quais as crianças possam participar das tomadas de decisão coletivas, o protagonismo delas pode ser promovido ou apagado. Como atrizes e atores sociais, por meio do brincar e da interação entre elas, e entre elas e as pessoas adultas, as crianças mostram-se protagonistas de suas vidas, bem como criadoras de culturas infantis. Nas ações coletivas, tomam decisões, solucionam problemas, atuando como protagonistas da sua própria história, embora nem sempre tenham seus desejos e pontos de vista reconhecidos pelas pessoas adultas.

De acordo com Quinteiro (2002)Quinteiro, J. (2002, julho/dezembro). Sobre a emergência de uma sociologia da Infância: contribuições para o debate. Perspectiva, 20, 137-162., por meio da brincadeira, a criança é capaz de construir significados para as ações que realiza, e isto é algo importante para as atividades culturais, pois por meio do brincar elas constroem amizades, expressam-se, resolvem preocupações e medos, compartilham suas ideias e descobertas, desafiam a autoridade adulta, ou, ainda, por meio dos confrontos e da diferenciação social, articulam e criam formas de interpretar o mundo. Nesse sentido, o brincar é uma das formas de expressão do protagonismo infantil, principalmente no contexto das culturas infantis, ou seja, no exercício legítimo das crianças de reproduzir, transformar e criar a sociedade (Corsaro, 2011Corsaro, W. A. (2011). Sociologia da Infância (Lia G. R. R., Trad., pp. 31-220). Artmed.; Fernandes, 2004Fernandes, F. (2004). As “trocinhas” do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. In F. Fernandes, Folclore e mudança social na cidade de São Paulo (pp. 195-315). Martins Fontes.).

A partir dessa noção do brincar das crianças, presente nas culturas infantis, este estudo toma a brincadeira como atividade social de caráter humano que, para as crianças, constitui-se um protagonismo imprescindível para a construção das práticas de amizade, assim como para suas maneiras de compreender o mundo. Como aponta Kishimoto (2011)Kishimoto, T. M. (2011). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. Cortez., é pelo brincar que a criança diz o que sabe e o que gosta de fazer; portanto, ver a criança agindo livremente e enxergar como ela brinca é uma maneira de compreendê-la – de reconhecer os sentidos que ela atribui às coisas em um processo criativo de produção de culturas, bem como de entendimento das infâncias.

Por sua vez, lidar com o rompimento da ideia de infância única implica necessariamente análise das relações raciais, de gênero, de classe e de idade que perpassam as experiências sociais das crianças. Como afirma Arroyo (2018)Arroyo, M. (2018). Descolonizar o paradigma colonizador da infância. In Santos, S. E. et al., Pedagogias descolonizadoras e infâncias: por uma educação emancipatória desde o nascimento (pp. 57-68). Edufal., “avançam os estudos da infância e os estudos pós-coloniais ao reconhecer que as relações raciais, de gênero e as relações de classe são fundamentais para entender a infância” (p. 44). Nesse sentido, para visualizar os processos sociais, parto da análise interseccional proposta por Crenshaw (2002)Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Dossiê III Conferência Mundial Contra o Racismo. Revista Estudos Feministas, 10(1), 1.º sem, 171–188. http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf.
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, que permite entender as dinâmicas da interação entre diversos mecanismos de opressão.

Como um processo de descoberta, Davis (2016)Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe (Heci R. C. Trad.). Boitempo. destaca que a análise interseccional alerta para a compreensão de que o mundo à nossa volta é mais complicado e contraditório do que poderíamos antecipar. Trata-se de uma abordagem que amplia o entendimento de que as opressões não agem isoladas, mas se multiplicam e geram outras situações – não só se somam, tampouco só se intensificam com outras já existentes, mas vão se reforçando (Akotirene, 2019Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. Pólen, 2019.). É com essa perspectiva, que possibilita uma análise das complexidades impostas pelos sistemas de dominação capitalista, racista, machista e adultocêntrica, que lanço mão da interseccionalidade como um conceito teórico-metodológico, à semelhança de um caleidoscópio vivo e cambiante.

A partir desses aportes, este artigo traz a urgência de desenvolver pesquisas com as crianças, negras e brancas, atrizes sociais ativas localizadas em um contexto brasileiro marcado pela diferenciação racial, de gênero, de classe e idade. Os trabalhos construídos a partir da perspectiva interseccional podem, assim, auxiliar as pesquisas com crianças, pois, como diferentes estudos realizados já demonstraram (Nunes, 2017Nunes, M. D. F. (2017). Mandigas da infância: as culturas das crianças pequenas na escola municipal Malê Debalê, em Salvador (BA). Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.; Santiago, 2019Santiago, F. (2019). Eu quero ser o Sol! (Re)interpretações das intersecções entre as relações raciais e de gênero nas culturas infantis entre as crianças de 0-3 anos em creche. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas.), nas relações estabelecidas nas creches, nas pré-escolas e nas escolas emergem questões referentes não apenas ao adultocentrismo, mas também ao racismo, ao sexismo e à opressão de classe, e é, portanto, insuficiente analisar as situações vivenciadas nesses espaços a partir de apenas um desses polos.

Assim, observando e brincando com as crianças, realizei uma etnografia: relacionei tal situação com o trabalho de campo realizado e com as práticas de amizade. Para a antropóloga Peirano (2008)Peirano, M. (2008). Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, 2, 1-12. http://journals.openedition.org/pontourbe/1890.
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, as qualidades individuais do(a) pesquisador(a), aliadas ao contexto do grupo pesquisado e à bagagem teórica do(a) pesquisador(a) fazem com que, ao estudar um problema, diferentes pesquisadores(as) produzam distintos trabalhos científicos. Porém, segundo a autora, isto não acarreta falta de credibilidade nas descobertas, posto que o efeito das idiossincrasias tende a ampliar o acervo do campo de conhecimento.

A respeito da discussão que faz um movimento pendular entre Antropologia e Etnografia, gerando diferentes pontos de vista entre pesquisadores(as), Ingold (2011)Ingold, T. (2011). Antropologia não é etnografia. (F. F. C. Caio, Rev., & C. D. Rodrigo, Trad.) In T. Ingold, Being alive (pp.229-243). Routledge. lança uma crítica que nos mostra uma possível resposta: “É claro, a etnografia tem seus métodos, mas não é um método. Não é, em outras palavras, um conjunto formal de meios processuais concebido para satisfazer os fins da investigação antropológica. Ela é uma prática por direito” (pp. 20-21). De acordo com Charlon (2010)Charlon, M. L. P. (2010, julho/dezembro). Os cadernos de campo de Roger Bastide. História: Questões & Debates, 53, 85-119. http://revistas.ufpr.br/historia/article/viewFile/24118/16149.
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, pautada no antropólogo Grootaers (2001)Grootaers, J. (2001). De l' exploitation des archives de terrain? une textualisation en chaîne. Gradhiva – Revue d'Anthropologie et d'Histoire des Arts, 30-31.: “Sabemos também que a descrição etnográfica é, de certa forma, o resultado de muitos fatores: personalidade do pesquisador, seu encontro com o ‘outro’, suas escolhas estratégicas na apresentação de detalhes, a construção de seu texto etc.” (p. 86).

A entrada em campo não foi fácil, não sabia o que o campo iria me apresentar, estava ansioso e não fazia ideia do que poderia acontecer. As meninas e os meninos da turma me olhavam e, quando eu as(os) olhava, sorriam para mim e eu correspondia aos seus sorrisos. Mostravam-me seus brinquedos e suas atividades realizadas na sala. Em alguns momentos, queriam se sentar em meu colo. Faziam com que eu me movesse entre elas, envolvendo-me em suas brincadeiras. Como apontam Santos e Santiago (2016)Santos, S. E., & Santiago, F. (2016). (Des)construindo metodologias com crianças pequenininhas: incitações sociológicas Sul-Sul. In F. I. Ferreira et al., III Seminário Luso-Brasileiro de Educação de Infância: “Investigação, formação docente e culturas da infância” (pp. 736-745). White Books. http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/52368.
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, os desafios que surgem na operacionalização das pesquisas com as crianças nos provocam a (re)pensar constantemente as metodologias, justamente porque “as pesquisas com crianças devem subverter a ideia fechada e sistêmica de uma metodologia rígida, pois as culturas infantis são atos de criação, que se desdobram com os fluxos da experiência” (p. 740). As crianças faziam-me não só flexibilizar a minha postura adulta com as brincadeiras, mas também refletir constantemente a respeito da minha escolha metodológica.

Nessa interação com as crianças, aconteceram alguns desajustes; por exemplo, minha escolha de ficar inicialmente parado, sentado na sala da turma, anotando freneticamente o que as meninas e os meninos faziam, como se eu fosse uma espécie de “máquina de escrever” – o que não deu certo, pois as crianças me incitavam a conversar e, principalmente, a brincar com elas. Esse meu desajuste serviu, sobretudo, como explicam Beaud e Weber (2007)Beaud, S., & Weber, F. (2007). Observar. In S. Besud & F. Weber, Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados etnográficos (J. A. Sergio, Trad., & C. N. Henrique, Trad., & Rev., pp. 95-117). Vozes., como subsídio para transformar os obstáculos em ferramentas de conhecimento. Assim, com tal reflexividade, procurei manter uma postura aberta às possibilidades de encontro com as crianças pequenas, a fim de conhecer as suas práticas de amizade no cotidiano da pré-escola.

Em diversos momentos em que eu estava com as crianças da turma e com a professora, alternavam-se situações de angústia e de euforia, e eu procurava entender o que elas faziam, sabiam, falavam, e como praticavam as suas amizades no dia a dia. Por não ter nenhuma ideia do que iria acontecer no campo, tinha medo de não conseguir os dados. A sensação de medo que sentia ao estar no campo de pesquisa era algo forte e marcante, e isso variava conforme a instância de produção. Havia momentos em que eu pensava que estava me aproximando da turma. As crianças brincavam comigo, diziam quem eram os seus amigos e suas amigas, falavam do que gostavam, mostravam onde brincavam e com quem brincavam. Por outro lado, eu pensava na avalanche de anotações que teria que registrar no caderno de campo. Isso me preocupava. Pensava se depois eu iria conseguir analisá-las.

A respeito da sensação de medo quando estamos imersos no campo, embora a antropóloga Zaluar (1985)Zaluar, A. (1985). O antropólogo e os pobres: introdução metodológica e afetiva. In A. Zaluar, A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza (pp. 10-32). Brasiliense. não tenha trabalhado com as infâncias, as suas reflexões a partir da sua experiência etnográfica com pessoas das camadas populares urbanas no Rio de Janeiro, na década de 1980, contribuem para este entendimento: “Olhando para trás, percebo que junto com o medo inexplicável, havia certa ambiguidade na minha postura cujas raízes não consegui deslindar na época” (p. 12). Em minha convivência com as crianças pequenas, eu tinha medo de não conseguir receber sua confiança, por ser uma pessoa de fora. Refletia se conseguiria dar conta da pesquisa ou se, em algum momento, eu poderia me “atrapalhar” com tudo o que estava fazendo. Imaginava que isso se tornaria um caos futuro. Havia ainda outro fator: se, a princípio, a cultura ali presente no campo configurava-se como enigmática, em alguns momentos ela parecia aos poucos se revelar diante de mim. Contudo, a escolha metodológica proporcionou a operacionalização desta pesquisa com crianças, cuja principal intenção não foi expô-las, mas trazer para a cena os diferentes encontros que tive com elas no espaço da pré-escola pesquisada.

O caderno de campo foi o instrumento em que anotei as observações realizadas durante as atividades de campo e registrei as impressões, além de descrever as ações das crianças da turma no convívio entre elas, com outras crianças e com as pessoas adultas no contexto da pesquisa. A maioria dos registros do caderno de campo foram anotados quando estava in loco, e os nomeei de “relatos de caderno de campo”, mas houve momentos nos quais foi imprescindível parar de escrever para escutar as crianças e acompanhá-las, sobretudo porque elas queriam que eu brincasse. As crianças sempre pegavam em meus braços para caminharmos juntos. Particularmente, eu adorava aquele contato próximo, elas tinham uma energia incrível e brincávamos de pega-pega, de rodar no gira-gira, de balançar.

Então, deixava o caderno de campo em cima de uma mesa na sala da turma e me envolvia nas brincadeiras. Para poder brincar com as crianças, eu colocava uma caneta azul no bolso e alguns papéis pequenos, que utilizava como lembretes. Neles, eu anotava comentários das crianças e das pessoas adultas. Fazia isso em pé, às vezes sentado na grama do parque, apoiado nas paredes dos banheiros, na mesa do refeitório. As crianças adoravam me ver anotando os bilhetes. Elas riam da cena. Algumas vezes, tanto as meninas quanto os meninos me ajudavam a enfiar os lembretes nos bolsos da minha calça jeans. Convém destacar que, na Pedagogia da infância, a criança é tomada como uma atriz social que faz pesquisa; como uma investigadora criativa e exigente – nós, pessoas adultas, é quem precisamos descolonizar o nosso pensamento e nossas percepções a respeito delas e de suas produções (Santos et al., 2017Santos, S. E., Anjos, C. I., & Faria, A. L. G. (2017, abril). A criança das pesquisas, a criança nas pesquisas... A criança faz pesquisa? Práxis Educacional, 13(25), 158-175. http://periodicos2.uesb.br/index.php/praxis/article/view/958.
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).

Eu fazia isso para retomar na memória os eventos, quando fosse efetivar o registro no caderno de campo. A partir desses lembretes, eu escrevia o que via, ouvia e sentia, assim que chegava em casa. Esses registros foram colocados em uma folha anexa, ao lado das observações in loco, e os nomeei de “notas do caderno de campo”, formando, juntamente com os “relatos do caderno de campo”, um caderno de campo único.

A respeito do processo de escrita no caderno de campo, embora não tenha pesquisado com as crianças, remeto-me a Wacquant (2002)Wacquant, L. (2002). O sabor da ação. In L. Wacquant, Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. (R. Angela, Trad., pp. 11-19). Relume Dumará., durante sua etnografia realizada em um ginásio de boxe, localizado numa comunidade afro-americana de Chicago. Após ter-se deparado com as inúmeras circunstâncias preliminares de sua pesquisa, decidiu treinar boxe numa academia. Para o sociólogo, a experiência etnográfica construída entre treinar boxe, observar e escrever foi um desafio. Ouso afirmar que brincar, observar e escrever com as crianças pequenas foi uma atividade ainda mais difícil. As crianças da turma eram carinhosas e criativas, queriam a minha atenção, não dava para recusar os pedidos. E eu também, com o tempo, estava me entrosando cada vez mais com elas.

No 24.º dia do mês de abril de 2019, fui ao encontro da professora Olga4 4 Todos os nomes das crianças e das pessoas adultas nesta pesquisa, exceto do autor, são fictícios. , mulher branca, regente da turma, que me recebeu na sala das professoras. Na nossa conversa, ela me disse que estava muito cansada devido à greve municipal que durou 32 dias, que o ano letivo seria bem difícil e que as pessoas na unidade educativa estavam exaustas. Olga me entregou uma cópia da lista da turma do “Infantil II5 5 Utilizo a nomenclatura da turma dada pela unidade educativa, em itálico e com aspas. , composta por 23 crianças com 5 anos de idade: eram 13 meninas, sendo 4 negras e 9 brancas; e 10 meninos brancos, como disposto no quadro 1:

Quadro 1
A turma participante

A turma do “Infantil II” tinha somente quatro meninas negras e nenhum menino negro. Para buscar os dados referentes à raça das pessoas que compunham o Centro Municipal de Educação Infantil, acessei o Projeto Político-Pedagógico. Os dados foram coletados nos questionários socioculturais aplicados pela coordenação pedagógica, que seguiu a categoria cor (raça) indicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. As(os) profissionais que atuavam na unidade, bem como as mães e os pais das crianças, fizeram a sua autoidentificação. Já as crianças foram heteroidentificadas por suas famílias.

No tempo de campo, constatei que classificar pela heteroidentificação os dados referentes à cor (raça) das crianças era um procedimento padrão na unidade educativa, aceito pelas famílias das crianças quando preenchiam a ficha de matrícula e o questionário sociocultural. Elas não faziam nenhuma solicitação de mudança desses documentos. Como apontam Rosemberg (1996)Rosemberg, F. (1996). Educação infantil, classe, raça e gênero. Cadernos de Pesquisa, 96, 3-86. e Rocha e Rosemberg (2007)Rocha, E. J., & Rosemberg, F. (2007). Autodeclaração de cor e/ou raça entre escolares paulistanos(as). Cadernos de Pesquisa, 37(132), 759-799., isto constrói, dentre outras questões, uma naturalização de que as crianças podem ser “preservadas” no que diz respeito aos problemas que envolvem as relações raciais em nosso país. Pontuo tal fato, pois, como elucida Nunes (2016)Nunes, M. D. F. (2016). Cadê as crianças negras que estão aqui? O racismo (não) comeu. Latitude (UFAL), 10, 383-424., as “crianças vivem numa sociedade que, por mais que não se queira ver racializada, mantém uma série de ações e atividades que denotam que este marcador é utilizado para definir lugares e espaços” (p. 408).

Aqui é necessário entender esse modo de classificação utilizado pela unidade educativa e aceito pelas famílias, conforme a proposição de Nogueira (1985)Nogueira, O. ([1954] 1985). Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. In O. Nogueira, Tanto preto, quanto branco: estudo de relações raciais. T. A. Queiroz.: a cor (ou raça) não é oriunda apenas da autodeclaração e autoclassificação, mas também da heteroclassificação, isto é, da classificação atribuída por um aspecto exterior. A heteroclassificação, como alguns pesquisadores – dentre eles Petruccelli (2000Petruccelli, J. L. (2000). A cor denominada: um estudo do suplemento da Pesquisa Mensal de Emprego de julho de 1998. IBGE., 2007)Petruccelli, J. L. (2007). A cor denominada: estudos sobre a classificação étnico-racial. DP&A / LPP-UERJ. – sugerem, também atrela classe e raça, e quem realiza tal classificação constantemente é o Estado – ou as dimensões do Estado. No bojo dessa discussão, conforme Alves (2014)Alves, J. (2014). From necropolis to blackpolis: necropolitical governance and black spatial praxis in São Paulo. Antipode, 46(2), 323-339. e Gomes (2017)Gomes, N. L. (2017). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Vozes. também apontam em suas pesquisas realizadas em diferentes contextos, os movimentos negros afirmam: na dúvida se alguém é negro, pergunte à polícia.

A cor (ou raça) das mães e dos pais das crianças, num total de 151 pessoas, é assim distribuída: 64 pretas, 41 pardas e 46 brancas, conforme disposto no gráfico 1:

Gráfico 1
Raça das mães e dos pais

As meninas e os meninos heteroidentificadas(os) pelas suas mães e pelos seus pais, num total de 248 crianças, são: 12 pretas, 43 pardas, 51 brancas e 142 não foram declaradas, como se pode observar no gráfico 2:

Gráfico 2
Raça das meninas e dos meninos

A maioria das mães e dos pais não declararam a cor (ou raça) das suas filhas e dos seus filhos. Segundo informações da coordenação pedagógica, algumas famílias não preencheram parte dos questionários socioculturais no início do ano letivo de 2019.

No tocante às 142 crianças “não declaradas”, levantei a hipótese de que no Brasil vivemos grandes marcas da desigualdade deixadas pelo legado da escravidão e que constituem hierarquias, de fato, na estrutura social. Muitas vezes, quando as mães e os pais das crianças declaram uma criança de pele negra como parda ou branca, não estão somente reproduzindo uma lógica pautada numa brancura (Fanon, 2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.). Mas também, em certa medida, as famílias podem procurar estratégias para proteger suas filhas e seus filhos no contexto brasileiro “que carrega uma complexa relação entre raça, racismo, preconceito e discriminação racial” (Munanga & Gomes, 2006Munanga, K., & Gomes, N. L. (2006). O negro no Brasil de hoje. Global., p. 175).

No 26.º dia do mês de abril, apresentei-me para as famílias como professor de crianças e pesquisador da infância; expliquei do que se tratava a pesquisa e que ela não traria riscos previsíveis para as crianças, que haveria o sigilo e a privacidade delas, bem como as condições de armazenamento e uso do material coletado e o cumprimento das questões de ética6 6 Todas as medidas diante do Comitê de Ética em Pesquisa foram tomadas, sendo emitido, no dia 23 de abril de 2019, o Parecer número 3.278.019, que respalda a ética dos procedimentos metodológicos do projeto de pesquisa. . As famílias estavam atentas às minhas explicações. As crianças ora prestavam atenção em nossa conversa, ora brincavam entre elas com os seus brinquedos. Dona Carmem, mulher branca, identificou-se como a avó de Carla, menina branca, e levantou um questionamento:

  • - Mas... professor Artur, será que a minha neta é preconceituosa? Nós ensinamos lá em casa que temos que respeitar todo mundo!

  • - Olha Dona Carmem, fique tranquila. Quando realizamos pesquisas não sabemos como as crianças podem nos mostrar ou falar sobre um determinado assunto. Eu acredito que a educação que a sua família tem dado para a sua neta é a melhor possível. Acho que o caminho seja este mesmo, o de se respeitar as pessoas independente de origem, raça, gênero, condições financeiras etc. Não é mesmo?

  • - Ah meu filho, eu fico aliviada de saber que você também pensa assim, você vai conhecer a minha neta e vai ver que ela é um amorzinho!

  • (Relatos do caderno de campo, 26 de abril de 2019).

Carla foi até a avó Carmem e a abraçou, olhou para mim e sorriu. Eu dei uma piscada para ambas. As famílias concordaram com os nossos posicionamentos.

Quando refletimos acerca dessas preocupações destacadas pela avó de Carla e pelas demais famílias, temos de ter em mente que desde a infância, como aponta Santiago (2019)Santiago, F. (2019). Eu quero ser o Sol! (Re)interpretações das intersecções entre as relações raciais e de gênero nas culturas infantis entre as crianças de 0-3 anos em creche. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas., as relações sociais são marcadas fortemente por uma lógica racista, assim como as interpretações das relações construídas pelas crianças são também marcadas por pontos de vista adultocêntricos, pautados em lentes que as classificam quase sempre de modo racializado. Esses aspectos, também ligados às práticas de amizade, encaminham para o entendimento de que a amizade pode determinar o modo pelo qual as pessoas enxergam suas relações, como também a forma com que elas se relacionam no interior dela e em toda a sociedade.

Para além disso, o encontro com as famílias das crianças da turma também me levou à reflexão do quanto a preocupação de não parecer preconceituoso(a) ou mostrar que não tem preconceito é uma questão que aflige as pessoas, senão todas, pelo menos algumas. Acredito que Carmem de fato estava preocupada com as possíveis atitudes que sua neta poderia ter em relação às demais crianças da turma, e que isso poderia ser mostrado na pesquisa. Então, ela, de certa maneira, tentava legitimar a educação dada a Carla no âmbito familiar.

Mirando essa situação de maneira mais ampla, como afirma Carneiro (2011)Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro Edições., podemos refletir que a discriminação e o preconceito no Brasil são resultados de uma postura de rejeição histórica, uma vez que a sociedade brasileira sempre procurou ocultar que não tínhamos esse problema. Esse mecanismo que disfarça a realidade só agrava os problemas, na medida em que se constrói uma cultura de impunidade em relação às práticas criminosas de racismo, violência contra as mulheres, homofobia e vários outros problemas. A pesquisadora pontua que a sociedade brasileira precisa de direcionamentos e ações afirmativas de conscientização contra essa política que ela chama de “hipócrita”, para que se reconheça que o problema sempre existiu e que é preciso agir conforme as necessidades que ele apresenta, ou seja, enfrentando-o.

Nós somos amigas especiais: as meninas negras

Atento às crianças da turma em relação as suas percepções de pertencimento de grupo, notava que as quatro meninas negras só ficavam juntas no parque. Dentre elas, Eduarda era quem mais interagia com as demais crianças em outros espaços, principalmente com Carla, sua amiga. Núbia, Tamires e Manuela interagiam pouco nos demais espaços. Essas observações me levantaram algumas indagações: Por que ficavam só entre elas no parque? Como elas se percebiam na turma? Elas estariam “silenciadas” nas suas relações? A minha presença adulta negra trazia alguma percepção?

As quatro meninas negras numa turma de crianças majoritariamente brancas caracterizavam-se como “amigas especiais”. No décimo terceiro dia do mês de setembro, estávamos no tanque de areia, com cinco metros de diâmetro, que tinha um escorregador de madeira em seu interior. Eduarda subia e descia do escorregador; nisso, Núbia abria os braços para que, quando Eduarda chegasse ao final, ela a abraçasse. Esse movimento arrancava os risos de ambas. Núbia também fazia o mesmo trajeto que Eduarda, e as duas alternavam a sequência na brincadeira. Assim que se cansaram, elas resolveram que ficaríamos sentados. Ao nos ver, Tamires e Manuela correram ao nosso encontro. Então, ficamos tomando banho de sol. Aproveitei para ampliar o nosso diálogo, a fim de saber mais das suas práticas de amizades, e entender por que ficavam sempre juntas no parque:

  • - Meninas, pelo jeito vocês se gostam bastante, né?

  • - Sim, a gente gosta! – respondeu Núbia.

  • - Verdade... verdade... verdade – confirmaram Eduarda, Tamires e Manuela.

  • - Eduarda, é diferente brincar com a Carla. Ela também é sua amiga, né? – perguntei.

  • - É... mas ela não é igual a gente.

  • - Eu gosto de fazer lanche com a Núbia! – disse Tamires.

  • - E eu gosto dos seus lanches, só que vocês já sabem, o meu tem que ter pimenta! – confirmei.

  • Minutos depois, Manuela completou:

  • - Tio, nós somos amigas especiais.

  • (Relatos do caderno de campo, 13 de setembro, 2019).

Acerca das nomeações das amizades realizadas pelas próprias crianças, Borba (2005)Borba, A. M. (2005). Culturas da infância nos espaços e tempos do brincar: um estudo com crianças de 4-6 anos em Instituição Pública de Educação Infantil. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense. apontou em sua pesquisa que as crianças pequenas caracterizavam como melhores amigas(os) aquelas(es) pelas(os) quais nutriam admiração quando realizavam as suas brincadeiras preferidas. Nesta direção, as quatro meninas negras mostram que ser “amiga especial” também é brincar juntas, levando-se em conta a percepção de grupo, o afeto, as noções de raça, gênero e corpo.

A amizade das meninas negras não era algo frágil, diluído com o tempo. Pelo contrário, tinha uma dinâmica que se fortalecia a cada momento em que elas brincavam juntas. Aproximando essa construção da amizade entre as quatro meninas negras (que também pode ocorrer entre as pessoas adultas) da compreensão da “casa da diferença”, conceituada por Lorde (1982)Lorde, A. (1982). Zami, a new spelling of my name. Crossing.: “Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser lésbicas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes” (p. 226).

Esse entendimento da “casa da diferença”, que foi base de boa parte da teoria feminista referente ao gênero nos Estados Unidos no final dos anos 80, possibilita visualizar como a “amizade especial” entre as meninas negras Núbia, Eduarda, Tamires e Manuela fecunda outros olhares para a compreensão das amizades entre as crianças, principalmente quando articulamos essa dimensão da amizade no bojo das questões étnico-raciais e de gênero.

Embora Lorde (1988)Lorde, A. (1988). A burst of light: Essays. Firebrand Books. não trate diretamente da amizade, ela reconhece que as diferenças entre as mulheres (também entre as meninas) são amplas e variadas, discute a noção do corpo negro, luta e resistência, e traz uma reflexão importante de como a luta pela sobrevivência é cotidiana, uma batalha política carregada de percepções acerca do corpo, das relações sociais e do autocuidado. De acordo com suas reflexões, algumas pessoas não foram destinadas a sobreviver. Ter um corpo, ser pertencente a um determinado grupo social, ser um sujeito, pode ser uma sentença de morte. As noções de como você é, onde você está, com quem você está, mostram que sobreviver é uma ação radical; uma negativa à não existência até o fim; uma negativa à não existência até que você já não exista.

A perspectiva feminista negra traz em sua pauta de lutas a importância de discutir essas questões que evoco, para desconstruir e derrubar padrões socialmente naturalizados, que posicionam no grupo segregado a população negra, e esta, consequentemente, sofre com os silenciamentos – tão sutis, na maioria das vezes, que não reconhecemos. Como afirma Carneiro (2003)Carneiro, S. (2003). Mulheres em movimento. Estudos Avançados, 17(49), 117-132., revelando os silenciamentos e os mecanismos de opressão, a luta das mulheres negras vem enegrecendo a sociedade: “a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial como a questão de gênero na sociedade brasileira” (p. 3).

Numa turma de crianças pequenas, entre as quais as meninas negras não estão em menor número, será que as meninas negras se reconheceriam pertencentes a um grupo específico étnico-racial e de gênero? Se houvesse meninos negros na turma, será que isso aconteceria? Se fosse em outro contexto de pesquisa, como seria essa percepção das crianças negras?

Os efeitos dos processos discriminatórios e segregacionistas fazem com que cada pessoa – e notadamente as crianças pequenininhas negras, como consta na pesquisa de mestrado de Santiago (2014)Santiago, F. (2014). Meu cabelo é assim... igualzinho o da bruxa, todo armado! Hierarquização e racialização das crianças pequenininhas negras na educação infantil. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas., realizada na creche – se dê conta de que a sociedade lhe reserva certos lugares e oportunidades, certos direitos, e a exclui de outros. As meninas e os meninos desde bem pequenas(os) percebem o racismo e o sexismo presentes nos espaços da creche e da pré-escola, e manifestam-se em diferentes linguagens, atitudes, posturas e com suas amizades.

Estamos em uma sociedade desigual socialmente e também racialmente, cujo padrão cultural é pautado em valores determinados por uma cultura da brancura, patriarcal, heteronormativa, euro-cristã, elitista; e tudo que se distancia desse padrão acaba sendo classificado, discriminado e segregado. Nesse contexto, Collins (2000)Collins, P. H. (2000). Black feminist thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. Routledge. aponta que a dimensão interpessoal abarca o racismo e o sexismo cotidiano, as experiências vividas diariamente de discriminação e as reações de oposição e de resistência a esses atos.

Neste caso, Eduarda, Núbia, Manuela e Tamires poderiam estar reagindo à oposição e resistindo nessa arena da vida como “lutadoras” que brincam juntas?

Nem sempre o gênero é um marcador que possibilita a análise de certas formas de violência, e o fato de ser menina ou mulher nem sempre é levado em conta em algumas situações. Violências que incidem em um determinado grupo étnico, por exemplo, podem ocultar problemas que sejam específicos, e assim, podem não ser debatidos na devida medida. Crenshaw (2002)Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Dossiê III Conferência Mundial Contra o Racismo. Revista Estudos Feministas, 10(1), 1.º sem, 171–188. http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf.
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denominou essa situação de subinclusão, ou seja, nesses casos as questões relativas às mulheres (e meninas) negras por não afetarem diretamente as mulheres (e meninas) brancas, não é algo tomado como um problema de gênero; ou, por não afetarem os homens (e meninos) negros, não é percebido como uma questão racista. Nesse fenômeno, a dimensão racial do problema o torna invisível como questão de gênero, e vice-versa, embora as vivências específicas das pessoas vitimadas por apenas uma categoria e privilegiadas pelas demais sejam consideradas problemas do grupo social, mesmo quando não afetam diretamente as mulheres (e meninas) negras.

Daí a importância de se fazer uma abordagem interseccional, inclusive a respeito da construção das amizades, a fim de evitar que determinadas questões sejam invisibilizadas, comprometendo não só a análise que se faz de um problema, mas também as ações para possíveis enfrentamentos. “A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silenciosamente moldam o pano de fundo” (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Dossiê III Conferência Mundial Contra o Racismo. Revista Estudos Feministas, 10(1), 1.º sem, 171–188. http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf.
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, p. 176).

Assim acontece com o racismo e a violência de gênero no Brasil: totalmente enraizados em nossa sociedade, fazem parte das estruturas de poder, a ponto de tornarem-se invisíveis. Tendo em vista as imposições históricas, sociais e culturais que dificultam a “condição feminina”, entendo que a construção de uma identidade ligada à negritude e à ancestralidade representa um grande desafio para a menina e a mulher negra (também para o menino e o homem negro). Outros fatores também são igualmente desafiadores, por exemplo, estabelecer as amizades e os vínculos afetivos, reconhecer as próprias experiências, escrever sua história e propagar as vozes que a definem (Silva, 1998Silva, P. B. G. (1998, julho). Chegou a hora de darmos à luz a nós mesmas: Situando-nos enquanto mulheres e negras. Cad. CEDES, 19(45), 7-23.).

Nas discussões do movimento negro entrelaçadas ao feminismo, podemos asseverar que a maneira como as meninas negras Eduarda, Manuela, Núbia e Tamires se reúnem no parque para brincar juntas, praticando as suas amizades, inclusive comigo, um adulto negro atípico que brincava e conversava com elas, tem a possibilidade de ser entendida como uma forma de organização, um princípio que permeia as relações entre afrodescendentes, que se constroem nos fluxos diaspóricos. Estou me referindo nesse momento ao que Silva (1995)Silva, P. B. G. (1995). Africanidades brasileiras: como valorizar raízes e afro nas propostas pedagógicas. Revista do Professor, 11(44), 29-30. conceitua como “africanidades”; ou seja, a herança que mulheres e homens africanos deixaram para nós, ensinando “uma invejável capacidade de resistência, uma forte e esperançosa crença nas pessoas, ... uma ação criadora capaz de enfrentar as continuadas tentativas de extermínio do povo negro” (p. 29).

Meninas e meninos e mulheres e homens negros, por serem exatamente corpos que lutam contra as opressões, são vistos de maneira mais presente em espaços de debate, confrontos e enfrentamentos; assim, comumente, acabamos por deixar de lado a necessidade de falar a respeito de como esses corpos se afetam, por si mesmos e pelo corpo da(o) outra(o), no que diz respeito à constituição das práticas de amizade.

Nesse âmbito, para as meninas pequenas negras da turma, brincar com as amigas especiais era tão importante quanto as demais atividades educativas. Por este ângulo, como mostra hooks (2000)hooks, B. (2000). Vivendo de amor. In J. Werneck, M. Mendonça, & E. C. White, O livro da saúde das mulheres negras. Nossos passos vêm de longe (pp. 188-198). Pallas: Criola., falando dos afetos: “A partir do momento em que conheço meus sentimentos, posso também conhecer e definir aquelas necessidades que só serão preenchidas em comunhão ou contato com outras pessoas” (p. 196). Pautada em Lorde (1998), ela também nos alerta: “Devemos nos engajar num processo de pensamento visionário que transcenda as formas do saber privilegiado pelo poder opressivo se estamos operando mudanças realmente revolucionárias” (hooks, 1992hooks, B. (1992). Black looks: Race and representation. South End Press., p. 78). A partir dessa forma de significação e de (re)existência das meninas pequenas negras Eduarda, Tamires, Manuela e Núbia, que, com suas brincadeiras e potencialidades, praticavam as suas amizades e expressavam-se e recriavam-se constantemente, precisamos estar sempre abertos(as) às diferenças e à diversidade.

Não tenham medo, eu protejo vocês: as lendas urbanas

No tempo de campo, notei que as crianças iam construindo suas amizades, protegendo umas às outras. Elas brincavam de provocar o medo entre elas, a partir do manejo de uma lenda urbana da internet que estava em evidência na época.

No nono dia do mês do mês de agosto de 2019, a turma estava no parque, e eu observava as brincadeiras entre meninas e meninos, meninas e meninas, meninos e meninos da turma. Umas crianças corriam, outras usavam as balanças, outras preferiam brincar no tanque de areia. Meninas passavam as mãos nos rostos de alguns meninos e os meninos riam. Eis que Eduarda, Murilo, Nicolau e Otávio, que estavam brincando juntos, pararam e me fizeram uma pergunta:

  • - Artur, você sabe quem é a Momo?

  • - Oi, Eduarda! Olha, eu sei mais ou menos. Quem é ela?

  • - Ela é uma boneca da internet que faz o mal!

  • - Hum... como assim?

  • - A gente entra na internet e ela aparece. Você sabia que ela fala coisas pra gente se matar? Minha mãe falou que se ela aparecer pra mim é pra chamar ela! Nesse instante, Murilo, Nicolau e Otávio pareciam um pouco assustados com o que a Eduarda estava dizendo. Então, perguntei:

  • - E você, Eduarda, tem medo da Momo? Vocês meninos também têm medo?

  • Eduarda, rapidamente respondeu:

  • - Não, eu não tenho medo dela!

  • Os meninos ficaram quietos, gesticulando os ombros e virando as palmas das mãos para cima. Eduarda, atenta a tudo, olhou para os meninos e enfaticamente disse:

  • - Não tenham medo, eu protejo vocês.

  • (Relatos do caderno de campo, 9 de agosto de 2019).

Na construção das amizades no interior das culturas infantis, as crianças criam lógicas, enredos, e, assim, produzem sentidos com a realidade. Isto se dá no momento em que elas brincam juntas, na experiência coletiva articulada pela imaginação, com o uso do corpo e das diferentes linguagens infantis. Durante as brincadeiras de aproximação-evitação entre as crianças, segundo Corsaro (2011)Corsaro, W. A. (2011). Sociologia da Infância (Lia G. R. R., Trad., pp. 31-220). Artmed., elas articulam um agente ameaçador – neste caso, a Momo7 7 A boneca Momo está associada à lenda Ubume do folclore japonês, que versa sobre o espírito de uma mulher que morreu durante a gravidez ou no parto. Algumas histórias contam que Ubume compra doces e outras comidas para as crianças que ainda estão vivas, com moedas que depois se transformam em folhas secas. Em outras histórias, Ubume atrai a atenção de um humano vivo, e o leva até o local onde seu filho está escondido. Às vezes, Ubume sequestra as crianças (Omnyo-za Brasil, n.d.). – reconhecido por elas com nomeações e reações de medo e proteção, de uma forma que elas acabam potencializando suas amizades a partir da acumulação de tensão, da excitação da ameaça, do alívio e da alegria da fuga.

Coletivamente, as crianças da turma lidavam com o medo, protegiam-se, enfrentavam o perigo, inserindo esses aspectos em suas práticas de amizade, as quais elas produziam e controlavam. Eduarda, Carla, Arnaldo e Guilherme tocavam sempre no assunto da boneca Momo com as demais crianças da turma. Arnaldo dizia: “Tio, é da hora! Sabia que eu gosto de assistir filmes de terror?” (Notas do caderno de campo, 20 de agosto de 2019). Isso acontecia quando estávamos na sala da turma, no refeitório ou no parque, o que gerava uma atmosfera de tensão entre as crianças. Nicolau, um dos meninos que desde o início ficou bem próximo a mim, me perguntava: “Amigo, hoje você viu a boneca Momo no seu celular? Tenho medo daquela boneca feia” (Notas do caderno de campo, 20 agosto de 2019). Outras crianças da pré-escola chamavam a Momo “boneca feia” (Notas do caderno de campo, 20 agosto de 2019).

Na vida moderna, diversas ameaças permeiam o cotidiano. Podemos observar que, de certa maneira, todos os sujeitos podem se sentir desprotegidos(as) em algum momento, e isso ocorre por diversos motivos. É comum a percepção de que se vive em uma cultura do medo, marcada pela ansiedade de não se sentir protegido pelas instituições ou redes de segurança que parecem fornecer a sensação, senão de total segurança, mas de alguma segurança. Nesse contexto, pelo viés socioantropológico, Teixeira e Porto (1998)Teixeira, M. C. S., & Porto, M. R. S. (1998, dezembro). Violência, insegurança e imaginário do medo. Cad. CEDES, 19(47), 51-66. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-32621998000400005&script=sci_abstract&tlng=pt.
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afirmam que “a insegurança no mundo moderno está cada vez mais ligada à ascensão da violência, que, por sua vez, promove a base e o fortalecimento de um imaginário do medo” (p. 51).

A lenda urbana da Momo era discutida entre as crianças da turma dia após dia, tanto as meninas quanto os meninos explicavam como a boneca aparecia no vídeo, e que não se podia fazer o que ela pedia. Como aponta Corsaro (2011)Corsaro, W. A. (2011). Sociologia da Infância (Lia G. R. R., Trad., pp. 31-220). Artmed., ao produzirem essas ações, “as crianças compreendem e lidam mais firmemente com representações sociais do mal e com o desconhecimento na segurança de suas culturas” (p. 81), entrelaçadas na sociedade. Essa personagem, conhecida como boneca Momo em vários lugares do mundo, surgiu em 2018, como uma lenda urbana, provavelmente no Facebook8 8 Facebook é uma mídia social e rede social virtual lançada em 4 de fevereiro de 2004, operada pela Facebook Inc. e sua propriedade privada. Fundada e criada pelos programadores e empresários norte-americanos Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. , como uma suposta corrente que se espalhava pelo Whatsapp9 9 WhatsApp é uma multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones. , em que a imagem de um rosto feminino, com aparência extremamente perturbadora, era acompanhada de mensagens que instruíam crianças a se mutilar e a machucar outras crianças. A corrente ficou conhecida como Desafio da Momo. Não se sabe por quem a Momo foi criada, por se tratar de uma personagem construída no espaço de rede de dados e mensagens virtuais.

Acerca desse gênero narrativo em ampla circulação nas sociedades contemporâneas, especialmente nos meios virtuais, há diferentes definições de lenda propostas dentro de campos de investigação distintos. Lopes (2017)Lopes, C. R. (2017). Lendas urbanas na internet: entre a ordem do discurso e o acontecimento enunciativo. Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Modernas, Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, Universidade de São Paulo., em sua pesquisa de doutorado, discute a lenda como forma simbólica nos seguintes termos: “Ela é uma marca, traço ou sintoma que, por meio do discurso, aponta para o desejo de conjurar o acaso, de dar sentido à percepção vaga e generalizada de insegurança e falta de controle sobre os ‘riscos’ [ênfase no original] que enfrentamos” (p. 203).

Para ajudar na reflexão sobre o imaginário que plasma visões de mundo e modela condutas e estilos de vida, em movimentos contínuos ou descontínuos de preservação da ordem vigente ou de introdução de mudanças, Martins (1993)Martins, J. S. (1993). A aparição do demônio na fábrica, no meio da produção. Tempo Social, 5(1-2), 1-29., analisando a aparição da figura do demônio em uma grande fábrica na cidade de São Paulo, em 1956, elucida que, na cultura ocidental – que recebe influências europeias, africanas, asiáticas e orientais –, nas grandes concepções míticas e arquetípicas do humano, na negação da humanidade do homem, o demônio aparece, entre outras questões ligadas à racionalidade do trabalho, como figuração da ameaça a essa humanidade.

As apreensões geradas em uma sociedade capitalista fornecem o material de que as lendas urbanas são feitas, pois, com uma cultura marcada pelas informações midiáticas permeada por avanços científico-tecnológicos cada vez mais rapidamente substituíveis, propagam e difundem informações por toda parte. Por extensão, quem a conta faz parte também do grupo e compartilha com esse grupo o discurso e suas regras de funcionamento, pois as crianças, pelas suas potencialidades, criam a sua própria história, formulam, reelaboram e dão diferentes sentidos ao conjunto de práticas (. Fernandes, 2004Fernandes, F. (2004). As “trocinhas” do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. In F. Fernandes, Folclore e mudança social na cidade de São Paulo (pp. 195-315). Martins Fontes.). E essa noção as legitima como construtoras de culturas infantis.

Somos amigos porque gostamos de dinossauros: os interesses em comum

No 17.º dia do mês de setembro de 2019, estávamos novamente brincando juntos no parque. Fiquei com Guilherme, Igor, Jacson e Arnaldo, que brincavam de soltar os pneus do escorregador. Os meninos faziam a menção de que os amigos tinham interesses em comum – por exemplo, gostar de dinossauros:

  • - Tio, você sabia que as aves são dinossauros que evoluíram? – perguntou Arnaldo.

  • - É mesmo? Puxa, que bacana eu não sabia! Qual é o dinossauro que você mais gosta? – questionei.

  • - Eu gosto de todos os Pterodáctilos!

  • - Eu gosto do T. rex – comentou Guilherme.

  • - Uau, o T. rex parece com você – brinquei.

  • - Também parece com você, bebê! – respondeu Guilherme.

  • - Tio, então somos amigos porque gostamos de dinossauros! – acrescentou Arnaldo.

  • (Relatos do caderno de campo, 17 de outubro de 2019).

Esta é uma estratégia das crianças para nomear quem é amigo(a) e quem não é, o que inclusive articula a permanência de uma pessoa no grupo, pois há uma interação e a troca de conhecimentos que precisam ser mantidos coletivamente, assegurando a continuidade das suas amizades (Ferreira, 2004Ferreira, M. M. M. (2004). Do “avesso” do brincar ou... as relações entre pares, as rotinas da cultura infantil e a construção da(s) ordem(ens) social(is) instituinte(s) das crianças no jardim-de-infância. In M. J. Sarmento, & A. B. Cerisara, Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação (pp. 55-104). Edições ASA.).

Os saberes das crianças da turma acerca dos dinossauros configuravam-se tanto como tentativa de entrada quanto de permanência no grupo, dependendo da situação em que ocorriam, sendo ela de ajuda ou apoio. As meninas e os meninos, por sua vez, ao adotarem a estratégia de apoio ou ajuda para iniciar ou manter uma interação, o faziam, possivelmente, porque entendiam a necessidade de alguém e se dispunham a contribuir, captando a percepção da amiga ou do amigo – como mencionado anteriormente –; a turma tinha uma disposição habitual, construída diariamente, que contornava as suas amizades.

Os dinossauros tinham uma centralidade nas práticas de amizades entre elas. Quando estavam na brinquedoteca, a turma quase não brincava com bonecas e carrinhos. Guilherme sempre imitava o rugido do tiranossauro: “Grrrrr!” (Notas do caderno de campo, 21 de outubro de 2019). Corria atrás das meninas, que fugiam dele e soltavam gritos pela brinquedoteca. De vez em quando, havia um confronto entre as crianças da turma para ver quem ficaria com determinados dinossauros, mas não demorava muito e elas se resolviam. O confronto era mais para que houvesse as trocas dos dinossauros.

Em diferentes momentos das atividades, como parte do dia a dia, as crianças compartilhavam suas experiências. Muitas vezes, elas conversavam a respeito dos dinossauros. Eu percebia que se sentiam atraídas pelos saberes que Arnaldo compartilhava. Sabiam os nomes, assim como as habilidades, o habitat, dentre outras informações. Arnaldo era quem mais se interessava pelos dinossauros. E por diversas vezes nos ensinava, e a suas amigas e seus amigos, a respeito dos fósseis – formas, tamanhos, hábitos alimentares e as mais variadas espécies de dinossauros. Ele dizia: “Eu vou ser paleontólogo” (Notas do caderno de campo, 29 de outubro de 2019).

No tocante a essa perspectiva da troca de experiências entre as crianças que são amigas quando elas estão juntas, Camaioni (1997)Camaioni, L. (1997). Il bambino e gli amici. In L. Camaioni, L’infanzia (pp. 69-76). Società Editrice Il Mulino. afirma que “crianças amigas ​​são mais avançadas no jogo social, na cooperação e também na capacidade de interagir socialmente, quando confrontadas com crianças da mesma idade que não têm amigos” (p. 72).

Arnaldo mostrava às amigas e aos amigos da turma as suas revistas e, com entusiasmo, contava o que assistia nos programas de televisão referentes à temática. As crianças pequenas utilizavam o afeto, a experiência, a imaginação, o corpo, as linguagens e elaboravam a produção das suas práticas de amizade, brincando com os dinossauros. Tanto as meninas quanto os meninos produziam sentidos para as suas brincadeiras, transformavam os sentidos propostos a cada momento em que brincavam juntos. Nesse sentido, como destaca Camaioni (1997)Camaioni, L. (1997). Il bambino e gli amici. In L. Camaioni, L’infanzia (pp. 69-76). Società Editrice Il Mulino.: “As expressões de afeto, o interesse no que seu amigo pensa ou sente, o prazer de estar juntos, conversando sobre experiências comuns, confessando segredos, memórias e fantasias, são todos aspectos da amizade que podemos unir na dimensão de intimidade” (p. 72).

Com essa intimidade entre as crianças que são amigas, como aponta Corsaro (2011)Corsaro, W. A. (2011). Sociologia da Infância (Lia G. R. R., Trad., pp. 31-220). Artmed., as brincadeiras delas podem ser realizadas de diversas maneiras, objetos inanimados podem ser tratados como animados. As crianças podem resolver algumas incertezas advindas das suas interações com o mundo adulto, compartilhando-as com suas amigas e seus amigos. De acordo com Fernandes (2004)Fernandes, F. (2004). As “trocinhas” do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. In F. Fernandes, Folclore e mudança social na cidade de São Paulo (pp. 195-315). Martins Fontes., ao brincarem, as crianças utilizam os diversos aspectos da sociedade da qual fazem parte, produzindo cultura, e a organização se estabelece em função das próprias brincadeiras no interior do grupo.

Considerações finais

Na difícil tarefa de compreender a construção das amizades entre as crianças, como constatei no levantamento bibliográfico e na análise dos estudos que dialogaram com esta pesquisa, é preciso lançar olhares às crianças a partir do que elas pensam, sentem, falam, agem, tentando significar as amizades entre elas. Assim, é necessário buscar enxergar as meninas e os meninos, despir-se de estereótipos construídos historicamente e culturalmente acerca delas(es) – por exemplo, que elas(es) não sabem o que estamos procurando em suas relações. Efetivamente, é preciso envolver-se, lançar-se ao brincar, ficar de “peito aberto” para compreender com elas as suas práticas de amizade.

Com base nos eventos e como vimos ao longo desta pesquisa, uma condição precípua para a amizade entre as crianças é brincar juntas. Com suas brincadeiras, as crianças enchem as suas vidas com doses de alegrias e encontros geradores de potências que rompem as relações verticalizadas. A partir das suas ações conjuntas, elas e eles praticam as suas amizades articuladas por seus afetos, por seus vínculos, por seus saberes, por seus interesses em comum, por suas percepções sobre os seus corpos, raça, gênero, classe e idade, pelos usos que fazem do espaço da pré-escola.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah – leda.farah@terra.com.br.
  • 3
    Apoio: O presente artigo teve apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 4
    Todos os nomes das crianças e das pessoas adultas nesta pesquisa, exceto do autor, são fictícios.
  • 5
    Utilizo a nomenclatura da turma dada pela unidade educativa, em itálico e com aspas.
  • 6
    Todas as medidas diante do Comitê de Ética em Pesquisa foram tomadas, sendo emitido, no dia 23 de abril de 2019, o Parecer número 3.278.019, que respalda a ética dos procedimentos metodológicos do projeto de pesquisa.
  • 7
    A boneca Momo está associada à lenda Ubume do folclore japonês, que versa sobre o espírito de uma mulher que morreu durante a gravidez ou no parto. Algumas histórias contam que Ubume compra doces e outras comidas para as crianças que ainda estão vivas, com moedas que depois se transformam em folhas secas. Em outras histórias, Ubume atrai a atenção de um humano vivo, e o leva até o local onde seu filho está escondido. Às vezes, Ubume sequestra as crianças (Omnyo-za Brasil, n.d.Omnyo-za Brasil (n.d.). Resenha de Verão de Ubume, de Natsuhiko Kyogoku. https://onmyouzabrazil.jimdo.com/contos-1/ubume/
    https://onmyouzabrazil.jimdo.com/contos-...
    ).
  • 8
    Facebook é uma mídia social e rede social virtual lançada em 4 de fevereiro de 2004, operada pela Facebook Inc. e sua propriedade privada. Fundada e criada pelos programadores e empresários norte-americanos Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes.
  • 9
    WhatsApp é uma multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones.

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2020
  • Aceito
    20 Nov 2020
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