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Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator 1 1 Texto base para o dossiê temático “Desenvolvimento humano, drama e vivências: Vigotski e a questão da psicologia da criação pelo ator”, de L. S. Vigotski”, organizado por Priscila Nascimento Marques https://orcid.org/0000-0002-7111-6372 e Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391, publicado pela Revista Pro-Posições V. 34 (2023) https://www.scielo.br/j/pp/i/2023.v34. 2 2 Editor responsável: Cesar Donizetti Pereira Leite https://orcid.org/0000-0001-8889-750X 3 3 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha. verah.bonilha@gmail.com 4 4 Apoio: Fapesp 2015/17830-1.

On the question of the psychology of the actor’s creation

A questão da psicologia do ator e da criação teatral é a um tempo extremamente antiga e inteiramente nova. Por um lado, não havia, ao que parece, nenhum pedagogo ou crítico teatral significativo, nenhum homem de teatro de modo geral que, de uma forma ou de outra, não tenha colocado essa questão e que, em sua atividade prática, de docência e em avaliações não tenha partido de alguma compreensão da psicologia do ator. Muitos profissionais do teatro criaram sistemas excessivamente complexos para a interpretação do ator, nos quais encontraram expressão concreta não apenas às aspirações puramente artísticas de seus autores, aos cânones do estilo, mas também aos sistemas de psicologia prática da criação pelo ator. É o caso, por exemplo, do famoso sistema de K. S. Stanislávski, cuja formulação teórica completa nós, infelizmente, ainda não temos.

Se tentarmos seguir as fontes da psicologia teatral, elas nos levarão a um passado muito distante, e veremos os problemas grandes e de difícil resolução dessa área, os quais, durante séculos, agitaram de diferentes formas as mentes dos melhores representantes do teatro. A questão colocada por D. Diderot no famoso Paradoxo do comediante já antecipa as mais árduas disputas entre diferentes sistemas teatrais contemporâneos; ele, por sua vez, foi antecedido por uma série de pensadores teatrais que, muito antes de Diderot, apresentaram a questão de formas um pouco diferentes, mas no mesmo plano.

Há algo de fundamental nessa formulação do problema e, quando passamos ao estudo atento de seu desenvolvimento histórico, inevitavelmente nos convencemos de que ela está enraizada na própria essência do trabalho criativo do ator como ele se revela ao entendimento imediato, o qual ainda é inteiramente guiado por uma perplexidade ingênua diante de um fenômeno psicológico novo.

Assim, se o problema da psicologia do ator nos sistemas teatrais, apesar de todas as alterações, preservou como questão central o paradoxo sobre as emoções do ator, nos novos tempos foram traçados para esse mesmo problema caminhos oriundos de pesquisas de outro tipo. As novas pesquisas começaram a inscrever a profissão do ator no círculo geral de pesquisas sobre a psicologia das profissões, colocando em primeiro plano a abordagem psicotécnica do ofício do ator. No centro das atenções costuma estar a questão de como devem ser desenvolvidas certas qualidades e características do talento humano, de modo a garantir ao seu portador sucesso no campo da criação teatral. Criam-se testes para a investigação da fantasia, habilidades motoras, memória verbal, excitabilidade dos atores, com base nos quais são compostos profissiogramas do trabalho do ator, exatamente a partir do mesmo princípio de composição de profissiogramas análogos para quaisquer outras profissões, e assim, seguindo o registro de qualidades preestabelecidas, selecionam para determinada profissão pessoas que melhor correspondem a essa lista.

Somente nos últimos tempos temos observado a tentativa de superar as deficiências de uma e de outra abordagem ao problema que nos interessa e de colocá-lo de uma nova maneira. Nesse sentido, tem-se em vista trabalhos de novo tipo. Também nós consideramos o problema da psicologia do ator como uma questão absolutamente nova e quase não investigada.

O modo mais fácil é estabelecer uma nova abordagem a um problema antigo por meio da contraposição de duas orientações anteriores. Ambas têm uma deficiência comum, além de uma peculiar falha metodológica radical que caracteriza cada uma isoladamente e que, até certo ponto, são opostas em um e outro sistema de pesquisa.

A deficiência comum das orientações anteriores é o total empirismo, a tentativa de partir daquilo que está na superfície, constatar fatos coletados diretamente, e elevá-los à categoria de leis cientificamente descobertas. Embora o empirismo com o qual lidam as pessoas de teatro seja um campo de fenômenos profundamente peculiares e extremamente significativos na esfera geral da vida cultural, embora aqui operem tais fatos como a criação cênica de grandes mestres, o significado científico desses materiais não ultrapassa os limites da coleta de dados factuais e reflexões gerais sobre a colocação do problema. Esse mesmo empirismo radical caracteriza as pesquisas psicotécnicas sobre o trabalho do ator, que são igualmente incapazes de se elevar acima dos dados factuais imediatos e apreendê-los a partir de um entendimento geral do tema, predetеrminado metodológica e teoricamente.

Ademais, como já foi dito, cada uma dessas orientações tem defeitos específicos.

Os sistemas cênicos que partem do ator, da pedagogia teatral, da observação realizada nos ensaios e durante o espetáculo, e que são comumente enormes generalizações da experiência do ator ou do diretor, enfatizam características da vivência específicas, peculiares, pertinentes apenas ao ator, esquecendo-se de que elas devem ser compreendidas no contexto de leis psicológicas gerais, esquecendo-se de que a psicologia do ator constitui apenas uma parte da psicologia geral no sentido tanto abstrato e científico quanto concreto e real da palavra. E quando esses sistemas tentam se apoiar na psicologia geral, as tentativas revelam ligações mais ou menos casuais, à maneira do que ocorre entre o sistema de Stanislávski e o sistema psicológico de T. Ribot.6 6 Théodule-Armand Ribot (1839-1916), psicólogo francês. (N. T.)

A pesquisa psicotécnica, ao contrário, deixa escapar toda a especificidade, toda particularidade da psicologia do ator, e vê em seu trabalho criativo apenas uma composição especial das mesmas qualidades psíquicas que, numa composição distinta, são encontradas em qualquer profissão. Ao se esquecerem de que a atividade do ator envolve um tipo especial de trabalho criativo das condições psicofisiológicas e não analisarem essas condições específicas em toda a variedade de sua natureza psicológica, os pesquisadores psicotécnicos diluem o problema do trabalho criativo do ator numa psicologia de testes geral, e ademais banal, deixando de lado o ator e toda a especificidade de sua psicologia.

A nova abordagem da psicologia do trabalho criativo do ator se caracteriza antes de tudo por uma tentativa de superar o empirismo radical de ambas as teorias e conceber a psicologia do ator em toda a especificidade qualitativa de sua natureza, mas à luz de leis psicológicas mais gerais. Considerando seu aspecto factual, a questão adquire um caráter inteiramente diferente: de abstrata, ela se torna concreta.

Se, anteriormente, o testemunho de determinado ator, de determinada época sempre foi examinado sob o ponto de vista da eterna e imutável natureza do teatro, agora os pesquisadores abordam esse fato antes de mais nada como fato histórico, que se realiza e que deve ser compreendido primeiramente em toda complexidade de seu condicionamento histórico. A psicologia do ator passa a ser um problema da psicologia concreta, e muitos pontos de vista irreconciliáveis da lógica formal, contradições abstratas de diferentes sistemas igualmente apoiados em dados factuais, passam a ser explicados como uma contradição viva, concreta e histórica de diferentes formas do trabalho criativo do ator, que se alteram de uma época para outra e de um teatro para outro.

Por exemplo, o paradoxo do comediante de Diderot consiste no fato de que o ator, que representa fortes paixões e agitações da alma no palco e conduz a plateia à mais elevada comoção emocional, permanece ele mesmo alheio e à sombra da paixão que ele representa e que comove o espectador. A colocação absoluta da questão por Diderot é a seguinte: deve o ator vivenciar aquilo que ele representa ou sua interpretação é uma “macaquice” sublime, a imitação de uma imagem ideal? A questão da condição interna do ator no momento da intepretação cênica é o nó central de todo o problema. O ator deve ou não vivenciar o papel? Essa questão está sujeita a séria discussão, ainda mais porque a própria colocação do problema pressupõe uma solução única. Contudo, até Diderot sabia, ao contrapor a interpretação de duas atrizes (Clairon e Dumesnil7 7 Clair Josèphe Hippolyte Leris (1723-1803), conhecida como La Clairon, e Marie Françoise Dumesnil (1813-1803), atrizes francesas. (N. T.) ), que elas eram representantes de dois sistemas de interpretação distintos e igualmente possíveis, ainda que opostos em certo sentido.

Na nova colocação da questão, da qual estamos tratando, o paradoxo e a contradição que ele encerra encontra sua resolução numa abordagem histórica à psicologia do ator.

Segundo as belas palavras de Diderot , “antes de dizer: ‘Zaíra, vós chorais’ ou ‘Vós compreendereis, minha filha’, o ator escutou-se durante muito tempo a si mesmo; é que ele se escuta no momento em que vos perturba, e todo seu talento consiste em não sentir, como supondes, mas em expressar tão escrupulosamente os sinais externos do sentimento, que vós vos enganais, a esse respeito. Os gritos de sua dor são notados em seu ouvido. Os gestos do seu desespero são decorados, foram preparados diante de um espelho. Ele conhece o momento exato em que há de tirar o lenço e em que as lágrimas hão de rolar; esperai-as a esta palavra a esta sílaba, nem mais cedo nem mais tarde. Este tremor da voz, estas palavras suspensas, estes sons sufocados ou arrastados, este frêmito dos membros, esta vacilação dos joelhos, estes desfalecimentos, estes furores, pura imitação, lição recordada de antemão, trejeito patético, macaquice sublime”8 8 Diderot, D.(1984). Paradoxo sobre o comediante. In Textos escolhidos. (Tradução e notas: Jacó Guinsburg, p. 165). Abril Cultural. (N. T.) .

Todas as paixões do ator e sua expressão, como diz Diderot, são parte de um sistema de declamação, estão subordinadas a uma determinada lei de unificação, são combinadas de determinada forma e acomodadas harmonicamente.

Em essência, no paradoxo de Diderot são confundidas duas coisas muito próximas, mas que não se fundem totalmente. Em primeiro lugar, Diderot trata do caráter supraindividual, ideal das paixões que o ator transmite no palco. São paixões e movimentos da alma idealizados, não sentimentos naturais, reais de um determinado ator, são artificiais, inventados pela força criativa da pessoa e, nessa medida, devem ser examinados na qualidade de criações artificiais, como um romance, uma sonata ou uma estátua. Graças a isso, eles se distinguem, em termos de conteúdo, dos sentimentos correspondentes do próprio ator. “O gladiador antigo, como um grande comediante, e um grande comediante, assim como o gladiador antigo, não morrem como se morre no leito, mas são obrigados a representar uma outra morte para nos agradar, e o espectador delicado sentiria que a verdade nua, a ação despida de qualquer apresto, seria mesquinha e haveria de contrastar com a poesia do resto”.9 9 Diderot (1985, p. 167). (N. T.)

Não apenas do ponto de vista do conteúdo, mas no sentido das relações formais e do encadeamento que determina seu fluxo, os sentimentos do ator são distintos dos sentimentos reais. “Mas sinto vontade de vos esboçar – diz Diderot – uma cena entre um comediante e sua mulher, que se detestavam; cena de amantes ternos e apaixonados; cena interpretada publicamente no placo, tal como vou apresentá-la e talvez um pouco melhor; cena em que dois atores pareceram mais do que nunca estar em seus papeis; cena em que arrancaram aplausos contínuos da plateia e dos camarotes; cena que nossas palmas e nossos gritos de admiração interromperam dez vezes. É a terceira do quarto ato do Despeito amoroso, de Molière, que foi um triunfo para eles”10 10 Diderot (1985, p. 169). (N. T.) . E a seguir, Diderot cita o diálogo entre o ator e a atriz, que ele chama de dupla cena, uma cena de amantes e uma de esposos. A cena da explicação amorosa se funde aqui com a da disputa familiar, e nessa fusão Diderot vê a maior prova de que ele está certo.

Como já foi dito, a visão de Diderot se apoia em fatos e nisso reside sua força, seu significado permanente para a futura teoria científica sobre o trabalho criativo do ator. Mas há ainda fatos de caráter oposto, que, contudo, em nada contradizem Diderot. Trata-se da existência real de outro sistema de interpretação e outra natureza da vivência artística do ator no palco. A prova disso, para tomar um exemplo próximo, é toda a prática cênica da escola de Stanislávski.

Essa contradição, insolúvel para a psicologia abstrata devido à colocação metafísica da questão, admite uma possibilidade de resolução se for abordada por um ponto de vista dialético.

Já dissemos que a nova corrente coloca o problema da psicologia do ator como problema da psicologia concreta. Nesse caso não são as leis eternas e imutáveis da natureza da vivência do ator no palco, mas as leis históricas das diversas formas e sistemas de interpretação teatral que se tornam linha mestra para o pesquisador. Por isso, na refutação do paradoxo de Diderot que encontramos em muitos psicólogos ainda se manifesta uma tentativa de resolver a questão num plano absoluto, a despeito da forma concreta e histórica do teatro cuja psicologia está sendo estudada. Contudo, a premissa básica de qualquer pesquisa orientada historicamente nesse campo é a ideia de que a psicologia do ator expressa a ideologia geral de sua época, e que ela também se altera no processo de desenvolvimento histórico do homem, assim como se alteram as formas exteriores do teatro, seu estilo e conteúdo. A psicologia do ator do teatro de Stanislávski é muito mais distinta da psicologia do ator da época de Sófocles do que um edifício contemporâneo se distingue do anfiteatro da Antiguidade.

A psicologia do ator é uma categoria histórica, de classe, e não biológica. Essa posição expressa um pensamento central para todas as novas pesquisas, que determina a abordagem da psicologia concreta do ator. Por conseguinte, não são as leis biológicas que determinam primordialmente o caráter das vivências cênicas do ator. Essas vivências são parte de uma complexa atividade de criação artística que possui determinada função social e de classe, historicamente condicionada pelo nível do desenvolvimento espiritual de uma época e classe, e, portanto, as leis de entrelaçamento das paixões, as leis de refração e do entrelaçamento dos sentimentos do papel com os sentimentos do ator devem ser resolvidas, antes, no plano da psicologia histórica e não naturalística (biológica). Somente após essa resolução pode emergir a questão de como, do ponto de vista das leis biológicas do psiquismo, é possível certa forma histórica de interpretação.

Dessa maneira, não é a natureza das paixões humanas que determina diretamente a vivência do ator no palco, ela apenas contém as possibilidades de surgimento de muitas, das mais diversas e variadas formas de encarnação cênica de imagens artísticas.

Ao reconhecer a natureza histórica do problema em questão, chegamos à conclusão de que estamos diante de um problema que se apoia duplamente nos pressupostos sociológicos do estudo do teatro.

Em primeiro lugar, assim como qualquer fenômeno psicológico concreto, a interpretação do ator é parte de uma atividade sociopsicológica que, antes de tudo, deve ser estudada e determinada como parte do todo ao qual pertence. É preciso revelar a função da interpretação cênica em determinada época para determinada classe, as principais tendências das quais dependem a influência do ator sobre o espectador e, consequentemente, determinar a natureza social da forma teatral em que certas vivências cênicas recebem sua explicação concreta.

Em segundo lugar, ao reconhecer o caráter histórico do problema, nós, ao tratarmos da vivência do ator, falamos não tanto do contexto psicológico individual quanto do contexto sociopsicológico no qual ela está inserida. A vivência do ator, segundo a feliz expressão alemã, não é tanto um sentimento de “eu”, mas um sentimento de “nós”. O ator cria no palco sentimentos impessoais, sentimentos ou emoções que se tornam emoções de toda plateia do teatro. Antes de serem encarnados pelo ator, eles receberam uma formulação literária, estavam no ar, na consciência social.

A angústia tchekhoviana em As três irmãs reconstruída no palco pelos atores do Teatro de Arte de Moscou passa a ser uma emoção de toda plateia, pois, em grande medida, ela era uma forma cristalizada do estado de espírito de grandes círculos sociais, para os quais sua expressão cênica era como que um meio de tomada de consciência e refração artística sobre eles mesmos.

À luz das posições expostas, fica claro o significado do testemunho do ator sobre o seu trabalho.

A primeira coisa que observamos é o estabelecimento do significado limitado desse material. O testemunho do ator sobre seus sentimentos, os dados de sua auto-observação e de seu estado geral não perdem, nessa perspectiva, seu enorme significado no estudo da psicologia do ator, mas deixam de ser as fontes únicas e universais para o julgamento de sua natureza. Eles mostram como o ator toma consciência de suas próprias emoções, qual a relação delas com a constituição de sua personalidade, mas não nos revelam a natureza dessas emoções em toda sua real plenitude. Trata-se apenas de um material factual parcial, que ilumina o problema apenas em um aspecto, isto é, no aspecto da autoconsciência do ator. Para que se possa extrair o significado científico desse material, devemos compreender a parte que ele apresenta do sistema como um todo. Devemos compreender a psicologia de determinado ator em todo seu condicionamento histórico e social concreto, só então se tornará clara e compreensível a relação legítima entre certa forma de vivência cênica e o conteúdo social que é transmitido ao público por meio da vivência do ator.

Não podemos nos esquecer de que as emoções do ator, na medida em que são fatos da arte, extrapolam os limites de sua personalidade, e compõem o diálogo emocional entre ator e público. As emoções do ator experimentam o que F. Paulhan11 11 Fréderic Paulhan (1856-1931), psicólogo francês. Autor de “Que’est-ce que le sens des mot?” (1928), texto muito influente para a definição vigotskiana de sentido e significado em Pensamento e Linguagem. (N. T.) bem definiu como “feliz transformação dos sentimentos”. Elas se tornam compreensíveis apenas quando estão inseridas num sistema sociopsicológico mais amplo, do qual fazem parte. Nesse sentido, não se pode separar o caráter da vivência cênica do ator, tomado em seu aspecto formal, do conteúdo concreto, o qual é composto pelo conteúdo da imagem cênica, pela relação e interesse por essa imagem, pelo significado sócio-histórico e pela função que a vivência do ator desempenha naquele caso específico. Digamos que a vivência de um ator que tenta ridicularizar certo sistema de imagens psicológicas e cotidianas e a de um ator que tenta fazer uma apologia dessas mesmas imagens serão distintas.

Aqui acertamos em cheio um aspecto psicológico extremamente importante, cuja falta de clareza gerou, em nossa visão, uma série de equívocos acerca do problema em questão. Por exemplo, a maioria daqueles que escreveram sobre o sistema Stanislávski identificou esse sistema em seu aspecto psicológico com as tarefas estilísticas as quais ele inicialmente serviu, ou seja, igualaram o sistema Stanislávski e sua prática teatral. De fato, toda prática teatral é a expressão concreta de algum sistema, mas ela não esgota todo seu conteúdo, que pode ter ainda muitas outras expressões concretas; a prática teatral não transmite o sistema em toda sua extensão. Um passo em direção ao afastamento do sistema de sua expressão concreta foi dado por E. B. Vakhtángov, cujo esforço estilístico se distingue tão nitidamente do naturalismo inicial do Teatro de Arte de Moscou, e que, não obstante, tomou consciência do próprio sistema como emprego das ideias centrais de Stanislávski a novas tarefas estilísticas.

Isso pode ser mostrado pelo trabalho de Vakhtángov na montagem de A princesa Turandot. Desejando transmitir no palco não apenas o conteúdo do conto, mas sua relação contemporânea com ele, sua ironia, o sorriso “endereçado ao conteúdo trágico do conto”, Vakhtángov criou um novo conteúdo para a peça.

B. E. Zakháva12 12 Boris Evguênievitch Zakháva (1896-1976), aluno de Vakhtángov, ator, diretor e historiador do teatro. (N. T.) conta uma ótima história sobre a montagem dessa peça: “Nos primeiros ensaios, Vakhtángov empregou o seguinte procedimento: propôs aos atores interpretar não os papeis indicados na peça, mas atores italianos interpretando aqueles papeis... Sugeriu, por exemplo, à atriz que faria o papel de Adelma que interpretasse não Adelma, mas uma atriz italiana interpretando Adelma. Ele fantasiava com a ideia de ela ser esposa do diretor da trupe e amante do primeiro ministro, de seus sapatos estarem rasgados, serem grandes demais, ficarem sobrando no calcanhar, baterem no chão etc. Outra atriz, que interpretava Zelima, era preguiçosa, não queria interpretar e não escondia isso do público (estou com sono)”.13 13 Zakháva, B. E. Vakhtángov e ego studiia [Vakhtángov e seu estúdio]. Academia, 1927, p. 136. (N. T.)

Vemos, assim, que Vakhtángov altera o conteúdo imediato da peça, mas na forma de sua revelação ele se apoia no mesmo fundamento que baseia o sistema de Stanislávski: Stanislávski ensinou a encontrar no palco a verdade dos sentimentos, a justificativa interna de qualquer forma cênica de comportamento.

“A justificativa interna, – diz Zakháva – a principal exigência de Stanislávski, permanece sendo uma das principais exigências de Vakhtángov, mas o conteúdo mesmo desses sentimentos em Vakhtángov é completamente diferente do conteúdo em Stanislávski... Deixe que os sentimentos se tornem outros, que exijam outros meios teatrais de expressão, mas a verdade desses sentimentos era e continuará sendo a base inalterável do solo que poderá fazer crescer as flores da verdadeira grande arte”.14 14 Zakháva (1927, p. 129). (N. T.)

Vemos como a técnica interior de Stanislávski, seu naturalismo psicológico passa a servir a tarefas estilísticas completamente diferentes, em certo sentido opostas àquelas que eram discutidas no início do desenvolvimento. Vemos como certo conteúdo dita uma nova forma teatral, como o sistema se revela muito mais amplo do que uma certa aplicação concreta.

Por isso, o testemunho do ator sobre sua interpretação, especialmente o testemunho totalizado, composto por generalizações de suas próprias experiências práticas, e além do mais muito variadas, as quais desconsideram o conteúdo, cuja forma de encarnação constitui a emoção do ator, é incapaz por si só de explicar seu caráter e sua natureza. É preciso extrapolar os limites da vivência imediata do ator para poder explicá-la. Esse verdadeiro e notável paradoxo de toda psicologia infelizmente ainda não foi apropriado por muitas correntes. Para explicar e compreender a experiência é preciso ir além de seus limites, é preciso esquecer-se dela por um minuto, abstraí-la.

O mesmo é verdadeiro em relação à psicologia do ator. Se a vivência do ator fosse um todo fechado, um mundo que existe em si mesmo, seria necessário buscar as regras que a dirigem exclusivamente em sua esfera, na análise de sua composição, na descrição minuciosa de seu relevo. No entanto, se a vivência do ator se distingue das vivências do dia a dia por fazer parte de um sistema inteiramente outro, então sua explicação deve ser encontrada nas leis de construção deste último.

Na conclusão, gostaríamos de apontar brevemente a transformação que o velho paradoxo do ator sofre na nova psicologia. Nas condições atuais da nossa ciência, ainda estamos longe da resolução desse paradoxo, mas estamos próximos de sua correta formulação como um problema genuinamente científico. Como vimos, a essência da questão, que parecia paradoxal a todos que sobre ela escreviam, consiste na relação entre a emoção artificialmente criada para o papel e a emoção real, verdadeira e natural do ator que interpreta o papel. Pensamos que a resolução dessa questão é possível se levarmos em conta dois aspectos igualmente importantes para sua correta interpretação.

O primeiro é a conhecida posição de Stanislávski sobre o sentimento involuntário. O sentimento não pode ser suscitado por comando, diz Stanislávski. Não temos poder direto sobre os sentimentos da mesma forma como temos sobre os movimentos ou sobre o processo associativo. Mas se o sentimento “não pode ser suscitado... voluntária e diretamente, ele pode ser atraído, se nos voltarmos àquilo é mais suscetível ao nosso poder, isto é, às ideias”.15 15 Citado em: Guriévitch, L. (1927). Tvórtchestvo aktióra: o priróde khudójestvenykh perejivánii akitióra na stsene: opyt razrechênie viékogo spóra [Criação pelo ator: sobre a natureza das vivências artísticas do ator no palco: experiência de resolução de uma disputa secular]. GAKhN. Vygótski altera a citação original, onde se lê “suscetível à nossa consciência”, ao invés de “suscetível ao nosso poder”. (N. T.) E, de fato, todas as pesquisas psicofisiológicas contemporâneas sobre as emoções mostram que o caminho para a dominação das emoções e, consequentemente, para a evocação voluntária e criação artificial de novas emoções não está baseado na interferência direta de nossa vontade sobre a esfera dos sentimentos, como ocorre no campo do pensamento e do movimento.

Trata-se de um caminho muito mais tortuoso e, como diz corretamente Stanislávski, mais parece com atração do que com evocação direta do sentimento de que precisamos. Apenas indiretamente, pela criação de um sistema complexo de ideias, concepções e imagens, em cuja composição se insere determinada emoção, podemos suscitar o sentimento de que precisamos e, assim, conferir o colorido psicológico específico ao sistema como um todo e sua expressão exterior. “Esses sentimentos – diz Stanislávski – não são absolutamente aqueles que o ator vivencia na vida”.16 16 Idem. (N. T.) Trata-se de sentimentos e concepções purificados de todo excesso, generalizados, desprovidos de seu caráter abstrato.

Segundo a correta expressão de L. Ia. Guriévitch17 17 Liubov Iákovlevna Guriévitch (1866-1940), escritora, tradutora e historiadora do teatro, com quem Stanislávski se correspondeu durante a escrita dos livros O trabalho do ator sobre si mesmo e O trabalho do ator sobre o papel. (N. T.) , se eles passaram pelo processo de formalização artística, eles se distinguem das emoções reais correspondentes por uma série de indícios. Nesse sentido, concordamos com a afirmação de Guriévitch de que “a resolução da questão, como geralmente ocorre em polêmicas insistentes e longas, reside não no meio termo entre dois extremos”, mas em um outro plano, que permite ver o objeto sob um novo ponto de vista. Somos forçados a esse novo ponto de vista pelos documentos acumulados sobre a questão da criação cênica, pelos testemunhos dos próprios atores-criadores, assim como pelas pesquisas realizadas nas últimas décadas pela psicologia científica”.18 18 Guriévitch (1927, p. 62). (N. T.)

Mas essa é apenas uma parte da questão. A outra consiste em que, uma vez que o paradoxo do ator é transferido para o terreno da psicologia concreta, ele retira uma série de problemas insolúveis que compunham seu conteúdo antes e, em seu lugar, propõe novos problemas, mas produtivos e passíveis de serem resolvidos, que impulsionam o pesquisador a novos caminhos. Sob esse ponto de vista, todo sistema de interpretação está sujeito não a uma explicação biológica-estética estabelecida de uma vez por todas, mas a uma explicação psicológica concreta e historicamente mutável, e ao invés de um paradoxo do ator estabelecido de uma vez por todas para todos os tempos e povos, temos diante de nós uma série de paradoxos históricos de atores de determinados meios e épocas. O paradoxo do ator se transforma em pesquisa sobre o desenvolvimento histórico da emoção humana e sua expressão concreta nos diferentes estágios da vida social.

A psicologia ensina que as emoções não são uma exceção em relação a outras manifestações de nossa vida psíquica. Assim como todas as outras funções psíquicas, as emoções não permanecem na relação estabelecida incialmente por força da organização biológica do psiquismo. No processo da vida social, os sentimentos se desenvolvem e aquelas relações iniciais se decompõem; as emoções estabelecem novas relações com outros elementos da vida psíquica, surgem novos sistemas, novas ligas de funções psíquicas, surgem unidades de ordem superior, dentro das quais predominam leis especiais, interdependências, formas especiais de relação e movimento. Estudar a ordem e a relação dos afetos é a principal tarefa da psicologia científica, pois o que constitui a solução paradoxo do ator não são as emoções tomadas em sua forma isolada, mas as relações que as unem a sistemas psicológicos mais complexos. Essa solução, como já se pode antever, levará o pesquisador a uma posição de significado fundamental para toda psicologia do ator: as vivências do ator, suas emoções, se apresentam não como função de sua vida psíquica pessoal, mas como fenômeno que possui sentido e significado objetivo e social, que serve de estágio de transição da psicologia para a ideologia.

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    Texto base para o dossiê temático “Desenvolvimento humano, drama e vivências: Vigotski e a questão da psicologia da criação pelo ator”, de L. S. Vigotski”, organizado por Priscila Nascimento Marques https://orcid.org/0000-0002-7111-6372 e Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391, publicado pela Revista Pro-Posições V. 34 (2023) https://www.scielo.br/j/pp/i/2023.v34.
  • 3
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha. verah.bonilha@gmail.com
  • 4
    Apoio: Fapesp 2015/17830-1.
  • 5
    Tradução a partir do original russo de Priscila Nascimento Marques <https://orcid.org/0000-0002-7111-6372>, Ver em “Notas”.
  • 6
    Théodule-Armand Ribot (1839-1916), psicólogo francês. (N. T.)
  • 7
    Clair Josèphe Hippolyte Leris (1723-1803), conhecida como La Clairon, e Marie Françoise Dumesnil (1813-1803), atrizes francesas. (N. T.)
  • 8
    Diderot, D.(1984). Paradoxo sobre o comediante. In Textos escolhidos. (Tradução e notas: Jacó Guinsburg, p. 165). Abril Cultural. (N. T.)
  • 9
    Diderot (1985, p. 167). (N. T.)
  • 10
    Diderot (1985, p. 169). (N. T.)
  • 11
    Fréderic Paulhan (1856-1931), psicólogo francês. Autor de “Que’est-ce que le sens des mot?” (1928), texto muito influente para a definição vigotskiana de sentido e significado em Pensamento e Linguagem. (N. T.)
  • 12
    Boris Evguênievitch Zakháva (1896-1976), aluno de Vakhtángov, ator, diretor e historiador do teatro. (N. T.)
  • 13
    Zakháva, B. E. Vakhtángov e ego studiia [Vakhtángov e seu estúdio]. Academia, 1927, p. 136. (N. T.)
  • 14
    Zakháva (1927, p. 129). (N. T.)
  • 15
    Citado em: Guriévitch, L. (1927). Tvórtchestvo aktióra: o priróde khudójestvenykh perejivánii akitióra na stsene: opyt razrechênie viékogo spóra [Criação pelo ator: sobre a natureza das vivências artísticas do ator no palco: experiência de resolução de uma disputa secular]. GAKhN. Vygótski altera a citação original, onde se lê “suscetível à nossa consciência”, ao invés de “suscetível ao nosso poder”. (N. T.)
  • 16
    Idem. (N. T.)
  • 17
    Liubov Iákovlevna Guriévitch (1866-1940), escritora, tradutora e historiadora do teatro, com quem Stanislávski se correspondeu durante a escrita dos livros O trabalho do ator sobre si mesmo e O trabalho do ator sobre o papel. (N. T.)
  • 18
    Guriévitch (1927, p. 62). (N. T.)
  • 19
    Foram consultadas a publicação original: Vygotski, L. S. (1936)Vygotski, L. S.(1936). K voprosu o psikhologuii tvórtchestva aktióra. In P. M. Jakobson, Psikhologuiia stsenítcheskikh tchuvstv aktióra (A psicologia dos sentimentos cênicos do ator, pp. 197-211). Goslitizdat.. K voprosu o psikhologuii tvórtchestva aktióra. In P. M. Jakobson, Psikhologuiia stsenítcheskikh tchuvstv aktióra (A psicologia dos sentimentos cênicos do ator, pp. 197-211). Goslitizdat; bem como a republicação do texto no primeiro volume da obra completa: Vygotski, L. S. (2015)Vygotski, L. S. (2015). Polnoe sobrânie sotchiniénii. Tom 1: Dramaturguiia i teatr (Obra completa reunida. Volume 1: Dramaturgia e teatro, Organização e notas de Vladimir Sobkin, pp. 437-445). Lev.. Polnoe sobrânie sotchiniénii. Tom 1: Dramaturguiia i teatr (Obra completa reunida. Volume 1: Dramaturgia e teatro, Organização e notas de Vladimir Sobkin, pp. 437-445). Lev.
  • 20
    Sobre o título, vale a pena destacar que no original tem-se “psicologia da criação do ator”. Contudo, a tradução literal traz em língua portuguesa uma ambiguidade indesejada (não se trata de criar atores, mas da criação por eles realizada). Para evitar esse problema e, ao mesmo tempo, interferir o mínimo possível na estrutura do original, optou-se por alterar a preposição, ao invés de incluir outro termo (por exemplo, trabalho criativo ou atividade criativa). No texto original, as citações são feitas entre aspas, apenas com indicação do nome do autor. Foram buscadas as fontes do russo e do que havia sido traduzido para o português para inserir as demais informações (autor, ano, número de página), com a referência completa apresentada em nota de rodapé.

Referências

  • Vygotski, L. S.(1936). K voprosu o psikhologuii tvórtchestva aktióra. In P. M. Jakobson, Psikhologuiia stsenítcheskikh tchuvstv aktióra (A psicologia dos sentimentos cênicos do ator, pp. 197-211). Goslitizdat.
  • Vygotski, L. S. (2015). Polnoe sobrânie sotchiniénii. Tom 1: Dramaturguiia i teatr (Obra completa reunida. Volume 1: Dramaturgia e teatro, Organização e notas de Vladimir Sobkin, pp. 437-445). Lev.
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Editor responsável: Cesar Donizetti Pereira Leite https://orcid.org/0000-0001-8889-750X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
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