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As pessoas que passavam xingavam ela de “macaca”: as facetas do racismo em textos infantis 1 1 Editor responsável: Helena Sampaio https://orcid.org/0000-0002-1759-4875 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com

Resumo

Como alunos de escolas públicas representam as manifestações de racismo em textos? Por meio da análise da polifonia, foram escrutinadas as nuances do preconceito racial presentes em relatos pessoais de alunos do sexto ano de uma escola pública. Considerar a divisão do locutor permitiu ver como o racismo comparece nas palavras das crianças de 10 a 12 anos. O insulto racial foi a principal marca de racismo reportado. Entretanto, ele nunca aparece na voz do narrador do texto, mas sim, na de outros enunciadores. Percebe-se que as crianças julgam erradas as manifestações racistas, censurando sua ocorrência. Elas são incluídas, entretanto, nas vozes alheias incorporadas nos textos. Conclui-se que a Teoria Polifônica da Enunciação é uma ferramenta útil para aprofundar a compreensão do discurso racista.

Palavras-chave
escrita; relatos; racismo; insulto racial; polifonia

Abstract

How do public school students represent manifestations of racism in texts? Through the analysis of polyphony, we scrutinized the nuances of racial prejudice in personal accounts of sixth-year students from a public school. Considering the speaker's division allowed us to see how racism appears in the words of children aged 10 to 12 years. Racial insults were the main marks of the racism reported. However, it appears never in the voice of the narrator of the text, but always in the voice of other enunciators. We noticed that children judge racist manifestations wrong, censoring their occurrence. However, such manifestations are included in the voices of others incorporated in the texts. We conclude that the Polyphonic Theory of Enunciation is a useful tool to deepen the understanding of racist discourse.

Keywords
writing; written accounts; racism; racial insult; polyphony

Introdução

Como alunos de escolas públicas representam as manifestações de racismo em seus textos? Para responder a esta questão, nós pedimos a alunos de 10 a 12 anos que escrevessem um relato pessoal, descrevendo uma situação na qual alguém (a própria criança ou uma pessoa conhecida) tivesse sido vítima de preconceito.

Nosso principal objetivo foi, por meio da análise da polifonia (Ducrot et al., 1998Ducrot, O. et al. (1998). Les mots du discours. Les Éditions de Minuit., Ducrot, 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ), escrutinar as nuances do racismo presentes nos textos redigidos pelas crianças. Ao darmos aos sujeitos a oportunidade de narrarem histórias envolvendo preconceito racial, visamos investigar as diversas vozes que aparecem quando os alunos das escolas se posicionam a este respeito.

Considerando que: a) pesquisadores têm dado pouca atenção aos escritores das idades intermediárias (Chapman, 2006Chapman, M. (2006). Research in writing, preschool through elementary, 1983-2003. L1 Educational Studies in Language and Literature, 6(2), 7-27. https://doi.org/10.17239/L1ESLL-2006.06.02.04.
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) às quais correspondem ao início do ensino fundamental 2; b) não existem estudos a respeito de como crianças brasileiras relatam aos adultos palavras e atitudes negativas dirigidas a elas, especialmente em contexto escolar (Valente, 2005Valente, A. L. (2005, abr.). Ação afirmativa, relações raciais e educação básica. Rev. Bras. Educ., 28, 62-76. ); c) um estudo a este respeito pode colaborar para as discussões em torno da educação antirracista ( Silva, 2021Silva, M. (2021). Da educação eurocêntrica à educação antirracista: uma introdução. Dialogia, (38), e20213. https://doi.org/10.5585/38.2021.20213
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); e d) para nós, “o discurso está no cerne do racismo” (Van Dijk, 2002Van Dijk, T. A. (2002). Discourse and Racism. In D. T. Goldberg, & J. Solomos. A Companion to Racial and Ethnic Studies (pp. 145-159). Massachusetts: Blackwell Publishing.. p. 145), neste artigo, pretendemos enfatizar o estudo dos aspectos linguísticos dos relatos infantis para compreender as sutilezas que as facetas do racismo podem tomar nas escritas das crianças.

Embora haja muitas investigações a respeito do racismo no Brasil, poucas se concentram na linguagem. Moreira-Primo e França (2020)Moreira-Primo, U. S, & França, D. X. de. (2020, jan./abr.). Efeitos do racismo na trajetória escolar de crianças: uma revisão sistemática. Debates em Educação, 12(26), 176-198. realizaram uma revisão sistemática em 34 textos (artigos, dissertações ou teses) publicados entre 1999 e 2018. Todos eram estudos empíricos com o objetivo de analisar os efeitos do racismo na trajetória escolar de crianças. Os autores puderam verificar que as principais temáticas tratadas nestes estudos foram assuntos que não se voltam especificamente à forma de dizer, quais sejam: a constituição da identidade da criança negra; as preferências pelas características dos brancos; as intersecções do racismo com gênero e classe; o racismo religioso; o fracasso e o desempenho escolar; o racismo dos professores e na escola; e o discurso de suposta igualdade.

Alguns exemplos de textos que abordam a exploração da linguagem, ao tratar a temática do racismo, são Cleanand (2013)Clealand, D. P. (2013, May). When ideology clashes with reality: racial discrimination and black identity in contemporary Cuba. Ethnic & Racial Studies, 10(6), 1619-1636. e Sue e Golash-Boza (2013)Sue, C., & Golash-Boza, T. (2013). ‘It was only a joke’: how racial humour fuels colourblind ideologies in Mexico and Peru. Ethnic & Racial Studies. 36(10), e15821598., os quais, em estágio inicial de suas pesquisas, se propõem a analisar fenômenos linguísticos, para, ao explorar os dados, privilegiar o conteúdo em detrimento da análise linguística e discursiva.

Uma educação para além da cultura do silêncio

O raciocínio que sustentou nossa investigação é consonante com a construção de uma educação emancipatória, aquela que leva alunos e profissionais da educação de uma consciência ingênua para uma consciência crítica (Freire, 2021bFreire, P. (2021b). A importância do ato de ler em três artigos que se completam. Cortez.). Por este motivo, julgamos importante ter no horizonte ambientes de ensino e de aprendizado que promovam a libertação de todos os envolvidos no processo de ensinar e aprender a ler e a escrever (Freire, 2008Freire, P. (2008). Education for critical consciousness. Continuum. , 2019Freire, P. (2019). A pedagogia do oprimido (80. ed.). Paz e Terra., 2020Freire, P. (2020). A pedagogia da esperança. Paz e Terra.).

A principal causa das mazelas enfrentadas por pessoas negras no nosso país é a situação social e econômica. Contudo, o apagamento da memória coletiva, da cultura e da identidade dos povos africanos, pode estar relacionado aos altos índices de repetência e evasão escolares dessa parcela da população. Portanto, ainda que a educação escolar sozinha não seja capaz de mudar todos os rumos da sociedade, é inegável que ocupe um espaço de destaque na construção coletiva de uma consciência crítica (Munanga, 2005Munanga, K. (2005). Apresentação. In K. Munanga (Org.), Superando o Racismo na escola. (2. ed. revisada, pp. 15-20). Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.).

Apostamos na invenção de uma nova educação democrática, comprometida com a emancipação social, capaz de ajudar os povos a superar seu passado colonial (Romão &Gadotti, 2012Romão, J. E., & Gadotti, M. (2012). Paulo Freire e Amilcar Cabral. A descolonização das mentes. Editora e Livraria Paulo Freire.). O principal objetivo desta educação é superar a “cultura do silêncio” existente em relação à cultura dominante do opressor ou invasor (Freire, 2019Freire, P. (2019). A pedagogia do oprimido (80. ed.). Paz e Terra.). Assim, em uma educação democrática, o oprimido deveria ganhar voz, podendo vir a ser capaz de colocar em palavras seus anseios, sentimentos, problemáticas, inquietudes e perplexidades.

A dificuldade central para concretizar essa meta está no fato de que, muitas vezes, o oprimido se fascina pela cultura do opressor e não percebe que deixou de lado a sua própria. Inadvertidamente, passa a falar como se fosse ele, do lugar daquele que o oprime, deixando o que seria o seu lugar singular de enunciação vazio.

Assim, para o trabalhador da educação e o pesquisador que se voltam às questões ligadas à relação do falante com a linguagem, sempre resta como um enigma a questão de o quanto o processo educativo será capaz de ajudar na superação do colonialismo de segunda geração, a colonização “da mente por meio de disciplinas como a educação, ciência, economia e lei” (Le Grange, 2016Le Grange, L. (2016). Decolonising the University Curriculum. South African Journal of Higher Education. 30(2),1-12. , p. 4, tradução nossa).

Trata-se, na perspectiva de Gomes (2021)Gomes, N. L. (2021). O combate ao racismo e a descolonização das práticas educativas e acadêmicas. Revista De Filosofia Aurora, 33(59). https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059.DS06
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de descolonizar as mentes, por meio da construção de práticas pedagógicas antirracistas. Para a autora, tais práticas são fundamentais para desconstruir “a lógica racista presente na nossa socialização e nos processos formativos construídos na vida privada e pública” (p. 437). Essa desconstrução interessa aos alunos de todas as raças e grupos étnicos, uma vez que “ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas” (Munanga, 2005Munanga, K. (2005). Apresentação. In K. Munanga (Org.), Superando o Racismo na escola. (2. ed. revisada, pp. 15-20). Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade., p. 16).

Para nós, a condição do sucesso desse empreendimento seria levar em consideração abordagens que contemplem o ato de ler como um processo discursivo em que autor e leitor são sujeitos sócio-historicamente determinados e ideologicamente constituídos. Nessas propostas, como a de Coracini (1995)Coracini, M. J. F. R. (Org.). (1995). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. Pontes Editores., o sentido não é preestabelecido, mas configurado pelo momento histórico-social.

Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que consequentemente exige várias frentes de batalhas, não temos dúvida de que a transformação de nossas cabeças de professores é uma tarefa preliminar importantíssima. Essa transformação fará de nós os verdadeiros educadores, capazes de contribuir no processo de construção da democracia brasileira, que não poderá ser plenamente cumprida. enquanto perdurar a destruição das individualidades históricas e culturais das populações que formaram a matriz plural do povo e da sociedade brasileira.

Conclui-se desta posição que, se alguém quer atuar como agente de descolonização no ato educativo, é imprescindível que, ao ensinar a ler, lance luz sobre como foram construídos os significados relacionados aos processos de colonização; e que, ao ensinar a escrever, dê voz aos alunos , convidando-os a relatar as suas próprias experiências por meio de textos escritos e não de acordo com propostas externas.

Relatar experiências no ensino fundamental

Relatar uma experiência em um texto escrito em contexto escolar implica construir uma narrativa, ou seja, criar uma “representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem, e mais particularmente da linguagem escrita” (Genette, 2013Genette, G. (2013). Fronteiras da narrativa. In R. Barthes et al., Análise Estrutural da Narrativa (8. ed, pp. 255-274). Vozes. , p. 255). Implica, ainda, de acordo com o mesmo autor, descrever personagens, objetos e cenários concernidos na construção dos fatos a serem narrados. A história da narrativa, oral ou escrita, parece se confundir com a própria história da humanidade. Ela está presente em todas as culturas, tempos e lugares, em múltiplas formas de apresentação (Barthes, 2013Barthes, R. (2013). Introdução à análise estrutural da narrativa. In R. Barthes, R., Análise Estrutural da Narrativa (8a ed., pp. 19-62). Vozes. ).

Do ponto de vista da ação a ser executada, quem escreve um relato de experiência precisa produzir uma narrativa tematizando eventos que viveu ou testemunhou. Por este motivo, relatar

pode ser excelente exercício de elaboração da experiência existencial do indivíduo, de uma sociedade e mesmo do mundo; permite ampliar a compreensão do caráter provisório de cada estado ou situação da vida, levando ao reconhecimento do caráter transformacional da ação sobre o si mesmo e na realidade.

(Rezende & Souza, 2018Rezende, N. L., & Souza, M. C. de. (2018). Do ensino escolar da escrita de textos narrativos. Linha D’Água, 31(2), 143-158. . pp. 146-147)

Adotando uma perspectiva psicanalítica, o potencial de ressignificação da experiência humana proporcionado pelo ato de relatar não demanda que o texto do relato porte supostas verdades do ponto de vista factual. Toda narrativa, mesmo ficcional, traz, em si, a dimensão da realidade psíquica do seu autor (Bartholomeu & Assolini, 2020Bartholomeu, J. A. P, & Assolini, F. E. P. (2020). Falar de si: o discurso narrativo como recurso para a subjetividade. Brazilian Journal of Development. 6(11), 85372–85386. ). Por este motivo, o pesquisador que se volta à análise de narrativas pode, ao observar que os eventos narrados são discursivamente construídos no texto, inferir “como estereótipos são aceitos ou rejeitados, ou como as identidades localmente instituídas relacionam-se com discursos especializados ou de senso-comum que circulam na sociedade” (Bastos & Biar, 2015Bastos, L. C, & Biar, L. A. (2015). Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA, 31, 97-126. , p. 109).

Finalmente, como bem pontuam Lemos Vóvio e Armada Firmino (2019)Lemos Vovio, C., & Armada Firmino, E. (2019, ago.). A construção de identidades étnico-racial em eventos de letramento numa escola pública municipal de São Paulo. Íkala, 24(2), 307-327. , as práticas de letramento, como é o caso da escrita de relatos, podem ser um meio para enfrentar o racismo, ainda presente nas escolas brasileiras. Tais práticas oportunizam o confronto de múltiplas identidades, com as quais os sujeitos podem ou não se identificar. Assim, proporcionam aprendizagens sobre si e sobre as diferenças e, por isso, podem promover uma educação para as relações étnico-raciais (Lemos Vóvio & Armada Firmino, 2019Lemos Vovio, C., & Armada Firmino, E. (2019, ago.). A construção de identidades étnico-racial em eventos de letramento numa escola pública municipal de São Paulo. Íkala, 24(2), 307-327. ).

Do racismo nas escolas brasileiras

O racismo é uma “forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento” (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). O que é racismo estrutural. Pólen.. p. 26). Sendo sempre estrutural, ele se manifesta por meio de práticas que culminam em desvantagens para uns ou privilégios para outros, dependendo do seu grupo racial. Assim, racismo vai além do preconceito racial. Se este é um juízo baseado em estereótipos, aquele progride para um tratamento diferenciado aos membros das raças alvo de preconceito.

A sociedade brasileira tem se organizado sobre as premissas da exclusão e da falta de participação racial (Fiorin, 2016Fiorin, J. L. (2016, jan./abr.). Identidade nacional e exclusão racial. Cadernos de estudos linguísticos, 58(1), 63-75. ). Para Guimarães (1999)Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. Editora 34. cada racismo só pode ser compreendido dentro de sua própria história. No caso brasileiro, é preciso considerar, de saída, que o racismo foi considerado um tabu até recentemente. Afirmava-se que os brasileiros viviam em uma democracia racial. Essa falsa ideia de harmonia de raças fez com que desigualdades socioculturais brasileiras não fossem levadas em conta.

Guimarães (1999)Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. Editora 34. argumenta, ainda, que a própria noção de raça denota uma realidade social e não um fato biológico. O autor explica que não há nada visível na cor da pele ou no formato do nariz que justifique a discriminação de alguns indivíduos. Esses fatos só funcionam dentro de uma ideologia preexistente. Assim, quando alguém atribui certas características a um determinado grupo, por exemplo, dizer que nordestinos são ignorantes, está naturalizando um traço supostamente social “fazendo com que a esfera das relações raciais pareça pura ilusão provocada por um plano muito bem urdido de dominação e opressão sociais” (Guimarães, 2004Guimarães, A. S. A. (2004). Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista De Antropologia, 47(1), 9-43. , p. 11).

No caso do racismo brasileiro, em contraposição ao que ocorre nos Estados Unidos, Nogueira (2007)Nogueira, O. (2007). Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, 19(1), 287-308. observou que ocorre preconceito racial de marca, ou seja, se exerce em função da aparência (traços físicos, fisionomia, gestos ou sotaque). Então, conforme Guimarães (1999)Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. Editora 34., negros com a pele mais escura tendem a ser alvos mais frequentes de racismo do que negros de pele mais clara.

Esta faceta do racismo é visível no insulto racial, um instrumento usado para mostrar ao negro o significado negativo atribuído à sua cor pela sociedade (Guimarães, 2000Guimarães, A. S. A. (2000). O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estudos Afro-Asiáticos, (38), 1-15. , 2002Guimarães, A. S. A. (2002). Classes, raça e democracia. Editora 34.). Quando questionados a respeito do racismo, as crianças e os adolescentes costumam dizer que o insulto e a discriminação racial são comuns dentro das escolas e os associam a práticas de bullying (Jorge, 2016Jorge, M. (2016, nov.). Ação pedagógica de prevenção às práticas racistas na escola: a percepção sobre racismo entre estudantes do sexto ano do Ensino Fundamental. Revista Educação, Artes e Inclusão, 12(03), 86-100. ). No entanto, professores e funcionários de escolas tendem a minimizar essas ocorrências e seus efeitos. Consequentemente, o racismo é uma realidade persistente nas instituições de ensino (Bernardo & Maciel, 2015Bernardo, T., & Maciel, R. O. (2015, jan./jun.). Racismo e educação: um conflito constante. Contemporânea, 5(1), 191-205.).

Felizmente, a sociedade brasileira vem tomando iniciativas contra o racismo. Um marco foi a promulgação da Lei n.º 7716 (Brasil, 1989Brasil. Lei n.º 7716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 1989. ) que estabelece o racismo como crime. Outro foi a Lei n.º 10 639 (Brasil, 2003Brasil. Lei n.º 10 639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n.º 9394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 2003. ) que inclui, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura afro-brasileira”.

Desde a promulgação da referida Lei n.º 10 639, pesquisas têm sido feitas para acompanhar as condições de sua concretização e o sucesso na sua implementação. Por exemplo, Martins e Sales (2014)Martins, D. S. F., & Salles, L.M.F. A (2014, set./dez.). inserção da história e cultura afro-brasileiras no cotidiano escolar: um estudo de caso. Educação: Teoria e Prática, 24(47), 118-136. verificaram que os professores avaliaram que o estudo da História e Cultura afro-brasileira tem reduzido os conflitos relacionados a questões étnico-raciais e que os alunos apontaram que o aprendizado dessa temática tem tido impacto sobre o racismo, principalmente na escola.

Embora tenham sido observadas mudanças importantes, os alunos ainda enfrentam situações de racismo em suas comunidades escolares e não percebem ações relevantes de professores e funcionários. Do mesmo modo não identificam práticas relacionadas ao estudo da cultura e da história afro-brasileira na maioria das disciplinas do currículo. Em relação a esse aspecto, os professores afirmam que, mesmo considerando a importância do tema, algumas vezes não se sentem preparados para incorporar essa questão aos currículos de suas disciplinas (Gonçalves, 2018Gonçalves, R. C. (2018, dez.). Quinze anos da Lei 10 639/03 - avanços e retrocessos. RIDPHE_R Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico Educativo, 4(2), 434-439.).

Atentas ao fato de que algumas de suas manifestações ainda ocorrem em escolas brasileiras (Candau & Leite, 2011Candau, V. M., & Leite, M. S. (2011, dez.). Diferença e desigualdade: dilemas docentes no ensino fundamental. Cad. Pesquisa, 41(144), 948-967. ; Carvalho, 2005Carvalho, M. (2005, abr.). Quem é negro, quem é branco: desempenho escolar e classificação racial de alunos. Rev. Bras. Educ., 28, 77-95.; Gomes, 2003Gomes, N. L. (2003). Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Educ. Pesqui., 29(1), 167-182. . ; Santiago, 2020Santiago, F. (2020). “Não é nenê, ela é preta”: educação infantil e pensamento interseccional. Educação em Revista, 36(1), e220090.), nas quais alunos negros podem padecer de agressão verbal por parte de seus colegas, mesmo quando os agressores também são negros (Fazzi, 2007Fazzi, R. de C. (2007). O drama racial de crianças brasileiras: socialização entre pares e preconceito. (2. ed.). Belo Autêntica.), interessamo-nos investigar como a teoria polifônica da enunciação (Ducrot, 1998Ducrot, O. et al. (1998). Les mots du discours. Les Éditions de Minuit., 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ) permite perceber configurações discursivas que estão para além da negação da existência do racismo, forma mais comum de sua ocorrência na América Latina (“não sou racista, mas...”) (Van Dijk, 1992Van Dijk, T. A. (1992, jan.). Discourse and the Denial of Racism. Discourse & Society, 3(1), 87 - 118. , 2005).

Da polifonia na linguagem

Considerando que, no Brasil, as conversas a respeito do racismo tendem a ser heterogêneas, e marcadas por conflitos entre falantes e, mesmo, internos ao sujeito falante, julgamos importante incorporar os estudos polifônicos da enunciação aos nossos esforços analíticos (Ducrot, 1998Ducrot, O. et al. (1998). Les mots du discours. Les Éditions de Minuit., 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ).

Damos seguimento aos estudos anteriormente iniciados (Riolfi & Costa, 2018Riolfi, C. R., & Costa, R. de O. (2018). Estrutura argumentativa em textos de alunos brasileiros. Cadernos De Pesquisa, 48(169), 776–800. https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/5106
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) por meio dos quais analisamos a polifonia presente em textos de crianças. Como a teoria da polifonia de Ducrot toca a constituição do sentido dos discursos, uma das vantagens desse procedimento poderia ser promover o desenvolvimento da compreensão leitora (Niederauer, 2015Niederauer, C. M. (2015, jan./mar.). Reading comprehension: a discourse, various voices, one sense. Domínios de Lingu@Gem, 9(1), 253-267. ).

A palavra polifonia foi originalmente usada, no contexto da análise de textos literários, para definir uma “pluralidade de vozes e consciências independentes e não fundidas”3 3 Nossa tradução do original em inglês “11 “A plurality of independent and unmerged voices and consciousnesses”. (Bakhtin, 1984Bakhtin, M. (1984). Problems of Dostoevsky's poetics (Trad. Caryl Emerson). University of Minnesota Press. . p. 6). Posteriormente, foi introduzida nos estudos linguísticos para questionar a unicidade do falante e para designar um desdobramento enunciativo no interior do enunciado, semelhante a uma peça de teatro onde diferentes personagens estão em cena (Ducrot, 1998Ducrot, O. et al. (1998). Les mots du discours. Les Éditions de Minuit., 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ).

Ducrot (1987)Ducrot, O. (1981). Provar e dizer: linguagem e lógica. Global., para quem a argumentação está na linguagem, considera o valor argumentativo das palavras para analisar a direção argumentativa do discurso (Ducrot, 1981Ducrot, O. (1981). Provar e dizer: linguagem e lógica. Global., 2008Ducrot, O. (2008). Argumentação e “topoi” argumentativos. In E. Guimarães, E. (Ed.), História e sentido na linguagem. (2. ed.). Pontes Editores. , 2020Bartholomeu, J. A. P, & Assolini, F. E. P. (2020). Falar de si: o discurso narrativo como recurso para a subjetividade. Brazilian Journal of Development. 6(11), 85372–85386. ). Julga que a argumentação é um tipo de relação discursiva que liga um ou mais argumentos a uma conclusão (Anscombre & Ducrot, 1983Anscombre, J-C., & Ducrot, O. (1983). L´argumentation dans la langue. Mardaga. ). Assim, em sua análise da direção argumentativa de enunciados, está atento à presença de diferentes vozes que se depreendem por meio de uma leitura atenta.

Para fazê-lo, primeiramente separa a pessoa empírica (o sujeito falante) da entidade discursiva representada no texto, à qual nota com a letra L, inicial de “locutor”. Então, propõe um primeiro nível de polifonia: a separação entre L e as diversas vozes por ele veiculadas, os enunciadores (a serem notados por meio da letra “e”). Enquanto L é representado no texto como a entidade que se responsabiliza pelo discurso, sendo a instância à qual o pronome “eu” deve ser atribuído, os “e” não são necessariamente nomeados: e1, e2, en são vozes trazidas pela enunciação que expressam pontos de vista aos quais L reage, concordando ou discordando (Ducrot, 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ).

Então, é possível haver enunciados nos quais L aparentemente aponta para uma dada conclusão, ao tomar responsabilidade pela fala, mas a presença dos enunciadores e1, e2, en denuncia outra narrativa. Isso se vê, por exemplo, em “Eu não sou racista, até tenho amigos negros”. Aí, na primeira parte da frase, L porta um e1 que tenta construir um ethos, uma construção compartilhada entre um enunciador e um coenunciador, um processo interativo de influência sobre o interlocutor (Maingueneau, 2005Maingueneau, D. (2005). Ethos, cenografia, incorporação. In R. Amossy (Org.), Imagens de si no discurso: A construção do ethos (pp. 69-92). Contexto., 2011Maingueneau, D. (2011). A propósito do ethos. In A. R. Motta & L. Salgado (Org.), Ethos discursivo (2. ed., pp. 11-30). Contexto.), de ser progressista e livre de preconceitos. Entretanto, a presença de “até” marca linguisticamente a presença de duas vozes. Na segunda parte do enunciado, ocorre um e2 que, mesmo afirmando ter amigos negros, já deixou anunciada sua restrição a pessoas negras.

Metodologia

Instrumentos e coleta de dados

Devido a uma parceria entre pesquisadores e professores, os participantes foram convidados a escrever durante as aulas (Costa, 2019Costa, R. O. (2019). A(r)riscar-se: o estilo na escrita de crianças. [Tese de Doutorado, Faculdade de Educação]. Universidade de São Paulo. São Paulo. doi:10.11606/T.48.2019.tde-19062019-120354. www.teses.usp.br
www.teses.usp.br...
). A escrita de relatos de experiências pessoais era uma tarefa familiar para os alunos, pois, seguindo a orientação dos currículos governamentais para as aulas de português, os professores dos participantes estavam praticando a escrita de relatos (Currículo da Cidade, 2019). Antes de escrever, a tarefa foi lida em voz alta, e eles tiveram a oportunidade de fazer perguntas. Em média, eles levaram uma hora para completá-la.

Compusemos nosso instrumento com quatro tirinhas, seguidas de uma solicitação de uma tarefa de escrita. As histórias em quadrinhos são um recurso substancial na educação, porque favorecem o processo de aprendizagem, agregando palavras e imagens. Além disso, o caráter elíptico de sua linguagem obriga o leitor a pensar e imaginar (Vergueiro, 2014Vergueiro, W. (2014). Uso das HQs no ensino. In A. Rama, & W. Vergueiro (Orgs.), Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula (pp. 7-30). Contexto.). Todas as tiras foram protagonizadas pela mesma figura: Armandinho, um menino que, apesar da idade, vivencia e desencadeia situações de enfrentamento da desigualdade (Buchmann Cardoso & Mortari, 2014Buchmann Cardoso, L., & Mortari, E. (2014). Movimentos Sociais x Cartum- Armandinho: O menino dos movimentos e das redes sociais. Anais Intercom. Palhoça – SC. ). O personagem foi criado pelo ilustrador brasileiro Alexandre Beck (Soares, 2013Soares, E. (2013, abr.). Contestador, ‘Armandinho’ ganha fama no Facebook. O Globo, Rio de Janeiro. ). As tiras são transcritas da seguinte forma:

Tira 1: Pai de Armandinho: Muitas pessoas são portadoras e nem sabem. E todos sofremos com isso! Pai de Armandinho: Pode ser transmitido pelos pais, amigos da escola e até pela tevê! Armandinho: E tem cura? Pai de Armandinho: Tem! Pai de Armandinho: Preconceito se trata com educação. Tira 2: Amigo de Armandinho: Dinho, você viu a blusa que o Beto está usando? Armandinho: Vi sim! Amigo de Armandinho: Tem coisa mais ridícula que aquilo? Armandinho: Tem, sim. A mania que alguns têm de zoar dos outros. Tira 3: Amiga de Armandinho: Eles não me deixam jogar porque sou menina. Armandinho: Mas não é por isso! Armandinho: É porque você joga melhor do que eles! Tira 4: Armandinho: Carrinho é de “menino” e boneca é “de menina”. Como assim?! Adulto desconhecido: (silêncio) Armandinho: Lá em casa, minha mãe dirige… e meu pai me cuida!

Nenhuma das tiras trata a respeito do racismo. O efeito de sentido presente na primeira é a de que o preconceito é errado, consistindo em uma questão de pessoas sem instrução. Há uma equivalência entre “preconceito” e “doença”, criada principalmente pelos verbos “transmitir”, “curar” e “tratar”. A segunda tira cria um efeito de sentido contra o bullying, classificando-o como “ridículo” e nomeando-o como “mania”. Tanto a terceira como a quarta tiras criam um efeito contra a discriminação de gênero.

Duas perguntas foram feitas aos alunos: você já sofreu algum tipo de preconceito? Você já viu alguém nessa situação? Em seguida, foi solicitado aos participantes que escrevessem um relato pessoal, descrevendo uma situação em que eles próprios, ou uma pessoa conhecida, tivessem sido vítimas de preconceito. Essa escolha foi baseada na crença de que esse tipo de relato pode ser uma ferramenta útil contra o preconceito (Dominicé, 2006Dominicé, P. (2006, ago.). A formação de adultos confrontada pelo imperativo biográfico. Educ. Pesqui., 32 (2), 345-357. ).

Participantes

De um grupo de 113 alunos do 6.º ano do ensino fundamental II de uma escola pública da capital de São Paulo, Brasil, que inicialmente concordaram em participar da pesquisa, 47 crianças relataram situações de racismo e, portanto, tornaram-se os participantes desta pesquisa. Vinte eram meninos e vinte e sete eram meninas. Durante a coleta de dados, eles tinham 11 ou 12 anos.

A escola onde os textos foram coletados está situada em uma localidade periférica da capital de São Paulo: Itaim Paulista, onde 54% da população se considera negra. Nossos participantes seguem o mesmo padrão racial. Os salários médios das famílias são aproximadamente 15% da renda média das famílias que vivem nas regiões mais privilegiadas da cidade. (Igualdade racial..., 2010).

Os participantes foram esclarecidos sobre os procedimentos da pesquisa e aceitaram participar de forma voluntária. A direção da escola assinou um termo de consentimento livre e esclarecido, previamente assinado pelas pesquisadoras, que se comprometeram a manter sigilo em relação à identidade dos participantes da pesquisa. Para fins de preservar a identidade das crianças, quando os nomes próprios dos sujeitos foram incluídos nos relatos, eles foram substituídos por pseudônimos. O mesmo ocorreu com detalhes biográficos de caráter pessoal que pudessem, eventualmente, levar à identificação de quem escreveu.

Resultados e discussão

As crianças produziram textos manuscritos, não ilustrados. Na sua maioria, foram redigidos em letra cursiva. Em média, os relatos têm entre 200 e 300 palavras. Com exceção de um caso de um aluno que afirmou ter sido discriminado por ser branco, todos se referiam a eventos de preconceito contra negros.

Em nossa análise, encontramos alusões a diferentes modalidades de preconceito racial. Isso parece apontar que, não obstante a tendência da negação do racismo no Brasil (Guimarães, 1999Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. Editora 34., 2004; Telles, 2003Telles, E. (2003). Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Relume-Dumará: Fundação Ford.; Van Dijk, 1992Van Dijk, T. A. (1992, jan.). Discourse and the Denial of Racism. Discourse & Society, 3(1), 87 - 118. , 2005Van Dijk, T. A. (2005). Racism and Discourse in Spain and Latin America.: John Benjamins.), caso convidadas a se expressar a este respeito, crianças em idade escolar conseguem reportar ocorrências de preconceito racial. As crianças relataram eventos tanto de agressão verbais quanto físicas contra pessoas negras. As verbais apareceram em 44 textos (77,20%) e as não verbais em 13 (22,80%).

As atitudes racistas não verbais reportadas referiram-se à violência física (53,84%); evitação da pessoa negra (38,46%); administração da relação de amigo com pessoa negra, no sentido de interrompê-la (7,69%). Com relação às atitudes racistas verbais, o insulto racial (Guimarães, 2000Guimarães, A. S. A. (2000). O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estudos Afro-Asiáticos, (38), 1-15. , 2002Guimarães, A. S. A. (2002). Classes, raça e democracia. Editora 34.) ocorreu em suas diversas facetas.

“Cheguei em casa fedendo a preto”: onipresença do insulto racial

O insulto racial (Guimarães, 2000Guimarães, A. S. A. (2000). O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estudos Afro-Asiáticos, (38), 1-15. , 2002Guimarães, A. S. A. (2002). Classes, raça e democracia. Editora 34.) foi a faceta do racismo mais saliente no corpus. A eficácia do insulto racial como instrumento de humilhação está na possibilidade de delimitar a distância entre L e seu interlocutor. Do ponto de vista de quem insulta, ao escutar as palavras que lhe são dirigidas, quem é insultado deveria reconhecer sua pobreza, sua anomia social, isto é, a desorganização social e familiar, sua sujeira e sua animalidade (Guimarães, 2000Guimarães, A. S. A. (2000). O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estudos Afro-Asiáticos, (38), 1-15. , 2002Guimarães, A. S. A. (2002). Classes, raça e democracia. Editora 34.).

A análise mostrou um padrão de ofensas raciais. Os locutores presentes nos relatos das crianças portam vozes que alegam a inferioridade dos negros e a justificam. Em muitos textos, a polifonia gerada por estas vozes é ampla, criando realidades complexas. A justificativa encontrada para a alegada inferioridade dos negros dá-se por meio de traços tais como sua origem, classe social, religião, aparência e diferenças culturais.

Ademais, o insulto racial é usado para estear a acusação de padrões de higiene precários, a anomia moral, a anomia social, a coisificação do negro, a sugestão de defeitos físicos e morais, e o status social mais baixo.

No que segue, vamos exemplificar cada um dos modos de insulto racial presente no material analisado.

  1. Acusação de baixo padrão de higiene. Trata-se de associar a pele negra com falta de higiene, ou mesmo, fazer menção ao seu odor corporal. No corpus, frequentemente L introduz uma voz e1 que narra uma situação na qual um terceiro insulta um negro, usando palavras que denotam sujeira, como em: “E aí algumas meninas começaram a chingar ele de cheirinho, chero podre, lixão e.t.c.”. Outra possibilidade é o emprego de discurso direto. Neste caso, há uma voz e2 que insulta o negro como em: “Cheguei em casa fedendo a preto”.

  2. Anomia moral. Alude à acusação de desvio do pacto social (conduta delinquente, imoralidade etc.). Muitas vezes, há uma associação disto com as religiões de matriz africana, vistas de forma pejorativa. A palavra “macumba”, usada para designá-las de maneira indiscriminada, é mencionada como algo a se temer ou a se envergonhar. As associações de “macumba” com sujeira são comuns, como em “Macumbeira piolhenta”. No trecho “Sai de perto dessa menina senão você vai pegar macumba”, L introduz uma voz e1 que apoia seu imperativo para que o interlocutor se afaste de uma pessoa negra comparando “macumba” a uma doença contagiosa. Portanto, há, aí, uma afirmação implícita, segundo a qual as religiões de pessoas negras têm as mesmas propriedades que os agentes causadores de doenças.

  3. Anomia social. Refere-se ao uso de ser negro como uma desculpa para pretextar inferioridade social ou justificar uma proibição de contato. De modo muito comum, estão mencionadas nos relatos situações nas quais ao menos um enunciador e1 propôs uma situação de anomia social do negro (“Volta pra África!”) justificando esta proposta por sua origem (Africano; Neguinha da Africa) ou pela cor da pele (Asfalto; Bom-bom; Nega maluca; Nego; Neguinho; Preto; Seu negro!).

  4. Coisificação. Relaciona-se à comparação do negro com um animal, objeto ou parte do corpo, tendo em vista sua humilhação. Um exemplo é: “Eles começaram a dar risada da minha cara. Depois, eles começaram a me chamar de macaca, por causa da minha cor.”. O insulto racial mais frequente nos relatos é a comparação do negro com um macaco. Também são frequentes as metáforas ligadas à cor da pele, como em “Carvão”; “Carvão de Preto”; “chocolate”; “Feijão preto”.

  5. Imputação de status social inferior. Trata-se de dirigir-se ao negro como se ele fosse um serviçal, seja do interlocutor ou de terceiros. Este processo pode ser observado no seguinte excerto, no qual L narra um insulto racial infligido à sua tia: “No dia que chamaram ela de empregada, ela tava no cinema, aí uma senhora estava atrasada e com um lanche bem grande nas mãos, aí essa mulher caíu [e derrubou o lanche], daí essa senhora falou que ela [a senhora negra] tinha que limpar tudo”.

  6. Insinuação de defeitos físicos ou mentais. A alusão mais comum persente no corpus é a de feiura, associada à cor da pele ou à forma do cabelo dos negros. Segue-se um exemplo, no qual L introduz e1 que inclui itens lexicais culturalmente associados ao insulto racial: “seus cabelo duro, você parece um capeta com esse cabelo aí”.

“Pois me sentia humilhada”: o racismo de acordo com suas vítimas

Em 13 textos (27,7% do corpus), o narrador constituiu-se como um L que se representa como uma pessoa negra, vítima de um comportamento racista. L descreve-se como alguém que, interessado em viver a própria vida, foi agredido de maneira injusta e inexplicável.

Tendo interpretado o racismo como algo que machuca, essas vozes apontaram para a presença de uma consciência moral nos relatos. Assim, houve consonância com pesquisas anteriores, cujos resultados sugerem que as crianças podem moralizar ações que envolvem danos, definidos como um continuum percebido intuitivamente (Schein & Grey, 2018Schein, C., & Gray, K. (2018, Feb.). The theory of dyadic morality: reinventing moral judgment by redefining harm. Personality and Social Psychology Review, 22(1), 32-70. ).

Todos os textos são marcados pela presença de vozes de pessoas equânimes, que podem atribuir valor a todos os seres humanos, e cujos princípios permitem avaliar o que é certo e o que é errado. Esse efeito é reforçado, porque, em todos os textos, os enunciadores nem julgam o agressor e nem reagem à agressão recebida.

O Quadro 1 reproduz um relato produzido por uma vítima de racismo, no caso, uma menina de 11 anos.

Quadro 1
Reprodução de relato escrito por um dos participantes da pesquisa

No texto reproduzido no Quadro 1, L emprega enunciadores que, pouco a pouco, levam o leitor a acompanhar um drama de amadurecimento pessoal de uma menina negra. De um estado inicial de tristeza e humilhação, a protagonista da narrativa deixa de dar peso à agressividade alheia, pois reduz a fala dos agressores à qualidade de “besteiras” (linha 18).

Inicialmente, L cria um cenário no qual a protagonista, imersa em seu cotidiano, é agredida sem motivação prévia. Nas linhas 1 e 2, introduz e1, a voz de um aluno executando suas tarefas, que descreve uma cena escolar na qual os atores agem de acordo com as normas sociais (estava fazendo o desenho que a professora mandou fazer). Cria-se, aí, a imagem de um sujeito disciplinado e obediente, fazendo com que o leitor tenda a aderir a sua perspectiva de narração.

Então, por meio do discurso indireto, ocorre e2, correspondente à voz dos agressores, que, inicialmente, estavam falando a respeito da protagonista. Ela afirma: começaram a falar do meu nome, nas linhas 3 e 4. Subsequentemente, há a introdução de um e3 que reproduz a interrogação dirigida ao agressor da menina (“— Porque vocês estão falando de mim?”, na linha 5). A agressividade reportada escala com a presença de um e4, manifestado por meio do relato da ação hostil (“dar risada da minha cara”, na linha 6).

Finalmente, nas linhas 7 e 8, este segmento do texto se conclui com a presença de um e5 cuja função é esclarecer a relação entre os insultos “macaca” e “de cabelo duro” e a cor da pele da protagonista (por causa da minha cor), estabelecendo uma relação de causalidade entre ter pele negra e ter sido insultado.

Na linha 9, L inclui uma nova voz para relatar uma reação não violenta para uma situação violenta ou degradante. e6 relata o ato de chorar para expressar tristeza (eu comecei a chorar). Segue-se e7 que explica o motivo, o sentimento de humilhação (porque eles ficaram me humilhando).

Na linha 10, e8 explicita o aspecto durativo da situação, que vinha se arrastando no tempo (sempre chegava). e9, então, na linha 11, porta a voz da mãe da protagonista (— Ivy, por que você está triste?).

Nas linhas 14 a 17, e10 e e11 são vozes que continuam a entabular um diálogo. Primeiro, a protagonista interroga a respeito da opinião da mãe a respeito da cor da sua pele. Então, esta voz a elogia, exortando-a a se aceitar (você é linda desse jeito).

No parágrafo de conclusão, linhas 18 a 20, e12 é uma voz que ressignificou sua situação, tendo aprendido a dar menos importância ao preconceito racial.

Posto isso, cumpre dizer que, para além dos mecanismos já explorados ao longo da análise do texto reproduzido no Quadro 1 – mecanismos estes que estão presentes de maneira geral em todo o corpus – , temos, ainda, a presença de locutores que:

  • Reconhecem que o sofrimento das pessoas negras é uma realidade social e discordam da existência do racismo.

    Exemplo 1: Isso me machucou bastante, mas é a realidade, vivemos em um mundo onde a pessoa branca que rouba é inocente, e a negra que não fez nada é culpada.

    Na primeira parte do texto, L apresenta um e1 que descreve os efeitos psicológicos do racismo sobre ele (Isso me machucou bastante). Em seguida, introduzido pelo operador argumentativo “mas” (Ducrot, 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ), ocorre um e2 que alega conhecer a realidade dos fatos a este respeito (mas é a realidade). e3, presente em “vivemos em um mundo” é o responsável por apresentar uma a ser atribuída ao narrador do texto, potencialmente confundido com o sujeito falante.

    Por fim, essa ética é expressa na última parte do texto, onde o contraste entre as afirmações de e4 (a pessoa branca que rouba é inocente) e e5 (a negra que não faz nada é culpada) mostra que L percebe a injustiça social e está em desacordo com ela.

  • Acreditam na justiça e na igualdade humana

    Exemplo 2: Tem pessoas branca e pretas, mas isso não muda nada, todas somos iguais.

    L apresenta um e1 que compartilha um fato: a cor da pele das pessoas é diferente (Tem pessoas branca e pretas). Usa, então, o operador argumentativo “mas” (Ducrot, 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ) para levar o texto à sua conclusão, a saber, esse fato não invalida e2: a cor não muda a essência das pessoas (isso não muda nada) e3: todos os seres humanos têm o mesmo valor (todas somos iguais).

  • Orgulha-se de uma parte do corpo frequentemente alvo de racismo.

    Exemplo 3: Comecei a cuidar mais e dar mais volume ao meu cabelo.

    L apresenta um e1 que compartilha sua decisão de investir em cuidados pessoais (cuidar; meu cabelo). Como a conjunção “e” está presente na sequência, seria de se esperar encontrar as especificações das ações realizadas, o que de fato ocorre pela presença de e2 (dar mais volume ao), cuja voz associa a característica natural do cabelo da pessoa negra (o volume) com a beleza e a estética.

“As pessoas que passavam xingavam ela de ‘macaca’”: o racismo relatado pelas testemunhas oculares

O texto apresentado no Quadro 2, a seguir, exemplifica a produção das testemunhas de racismo. Trata-se de 34 textos (72,3% do corpus) nos quais o narrador constituiu-se como um L que presenciou discriminação racial.

Quadro 2
Reprodução de relato escrito por um dos participantes da pesquisa

Neles, L descreveu cenas em que os enunciadores viram um terceiro apresentar um comportamento racista em relação a uma pessoa negra. Em todos eles, L se identificou com a vítima e expressou um julgamento negativo contra o racismo.

O texto reproduzido no Quadro 2 foi redigido por uma menina de 12 anos. Nele, ocorre um narrador que se constitui como um L que se apresenta como testemunha ocular do racismo. Esta característica é introduzida já nas linhas 1 e 2, por meio da presença da voz e1, colega de classe da vítima. Esta voz está presente na expressão “era minha colega de classe”. Ela dá credibilidade a e1, apresentado como alguém que tem um conhecimento aprofundado dos fatos, posto que teve a oportunidade de examiná-los em base diária. Este efeito é reforçado na conclusão do texto (linhas 13 e 14), onde e2 acrescenta a informação a respeito da quantidade de tempo que vinha observando as agressões (porque convivi três anos).

L também se constitui como alguém que está apartado das condutas racistas. Este efeito pode ser observado nas linhas 2 e 3, onde existe o cuidado de especificar quem eram as crianças preconceituosas (“as outras crianças”, “os meninos”). Esta impressão é reforçada nas linhas 4 e 5, por meio da utilização da expressão “coisas feias” para qualificar negativamente a escolha lexical dos agressores.

O posicionamento de L contra os agressores e a favor da menina negra também pode ser inferido de “só porque ela era negra” (linha 5). Neste segmento, há um e3 que afirma “ela é negra” e um e4 que, ao utilizar “só porque”, implica que ser negro não configura em razão para ser insultado.

Há, ainda, uma tentativa de convocar a empatia do leitor. Na linha 6, e5 descreve os sentimentos da menina negra com forte apelo emocional (“ela não aguentava mais”). Na linha 8, existe a menção a “tudo oque ela passava”. A escolha por esta forma de dizer permite supor a presença de um enunciador e6 que simpatiza com uma vítima que, em seu julgamento, vem sofrendo excessivamente.

L finalmente explicita a conclusão para a qual seu texto se encaminha por meio da inclusão de um enunciador e7 que avalia o preconceito negativamente “Preconceito é uma coisa muito feia” (linha 11) e, por meio da conjunção explicativa “por que”, explicita seus motivos: “machuca as pessoas” (linha 12).

Nas linhas 12 a 14, onde um e8 se mostra como um aliado amigável da menina negra vítima de preconceito racial, o efeito de separação entre L e os sujeitos preconceituosos é fortemente obtido. Ele dá-se em especial na linha 13, onde se lê “convivi… com”, agregando proximidade.

Posto isso, cumpre dizer que uma característica geral nos textos é a separação entre os enunciadores e a conduta racista. Este efeito é obtido quando L emprega enunciadores que:

  • Excluem-se do grupo de pessoas que exibiram comportamento racista.

    Exemplo 4: Já presenciei um preconceito quando eu estava na casa do meu primo e ia passando um menino que era negro ai os meninos lá da rua começaram a gritar “olha o neguinho, olha o neguinho.”

    O narrador se constitui como um L que inclui uma voz e1 que se configura como uma testemunha ocular (Já presenciei um preconceito). Então, e2 declara saber quem são os autores da injúria racial (os meninos lá da rua começaram a gritar). A partir da ênfase na origem dos meninos, é possível inferir que L está se separando dos racistas. Finalmente, e3, a voz dos meninos da rua, reproduz o insulto (“olha o neguinho, olha o neguinho.”).

  • Avalia o racismo como triste, errado ou inadequado.

    Exemplo 5: Isso (o racismo) é horrível e as pessoas não percebem o mal que elas causam.

    O exemplo 5 foi extraído de uma conclusão de um texto onde L narra um ato de preconceito contra um colega negro, enquanto e1 julga o preconceito negativamente (Isso é horrível), e2 acrescenta um julgamento negativo sobre pessoas insensíveis que não conseguem perceber quando estão machucando as vítimas (as pessoas não percebem o mal que elas causam).

  • Qualifica as vítimas de racismo com atributos julgados de forma positiva socialmente.

    Exemplo 6: A mãe dela conseguiu aconselha sua linda filha a continuar (a estudar) [...] ela sabia que tia um grande potencial de ser feliz.

    No exemplo 6, vemos o fragmento de uma narrativa na qual uma menina negra é descrita com qualidades positivas: é linda, estudiosa e merece ser feliz.

    L introduz uma voz e1 que contextualiza a relação da garota com sua mãe (a mãe estimulando a criança a estudar). Próxima a ela está e2 que, em paralelo à narrativa, louva a beleza da negra (linda).

    Em seguida, L apresenta um e3 que opina a respeito da vítima de racismo (tia um grande potencial de ser feliz) e um e4 que atribui esse julgamento à mãe da personagem (ela sabia que).

  • Cria um cenário no qual a vítima é um cidadão modelo, explicitando o relacionamento entre e a vítima, de modo a dar credibilidade ao relato.

    Exemplo 7: Minha tia foi vítima de um preconceito racista quando ela trabalhava em um posto de gasolina, e as pessoas que passavam xingavam ela de “macaca”.

    No exemplo 7, L introduz um e1 que narra ter conhecimento de um episódio de insulto racial (Minha tia foi vítima de um preconceito racista). Então, e2 esclarece que a agressão ocorria com frequência, por parte de passantes (as pessoas que passavam xingavam ela). Finalmente, e3 traz a voz do agressor e reproduz, entre aspas, a voz do agressor (“macaca”).

  • Mostra empatia pela vítima e/ou confronta o agressor.

    Exemplo 8: Eu fiquei muito brava. Eu fui para cima logo porque não tenho paciência com isso (racismo). Se fosse comigo ia ser pior para ele. […] Então eu falei cala a boca que a pessoa não está aqui para se defender.

    L introduz um e1 que é a voz de uma menina que compartilha os efeitos emocionais de ter testemunhado uma ocorrência de racismo (Eu fiquei muito brava). e2 prossegue narrando as ações subsequentes e suas motivações (Eu fui para cima logo porque não tenho paciência com isso). Então, e3 explicita sua identificação com a vítima, fazendo um raciocínio desde o seu lugar (Se fosse comigo). Finalmente, e4 reproduz o enunciado que foi dito previamente, no momento de confrontação com o agressor: (Então eu falei cala a boca).

  • Valoriza aspectos que, geralmente, são alvo de zombaria racista.

    Exemplo 9: Passou um tempo, meu primo resolveu deixar o cabelo crescer. O cabelo dele ficou bonito. Mas quando seus amigos viram, falaram que o cabelo dele era duro, feio.

    L introduz um e1 que narra a resolução tomada por um garoto negro com relação ao próprio cabelo (resolveu deixar o cabelo crescer). Então, e2 julga positivamente os resultados desta decisão (ficou bonito). Finalmente, introduzido pelo operador argumentativo “mas” (Ducrot, 2020Ducrot, O. (2020). O Dizer e o dito. Pontes Editores. ), segue-se um e3 que, por meio do discurso indireto, reproduz a condenação feita por pessoas racistas (o cabelo dele era duro, feio).

  • Diferencia a descrição do insulto quando a palavra “negro” é utilizada.

    Exemplo 10: Aí ele tropesou em um menino chamado Gustavo. [...]. ─ Seu negro, você é cego. Aí ele falou assim: ─ Eu sou negro porque deus me veiz assim.

    O excerto foi retirado de um relato no qual uma criança negra sem nome inadvertidamente se acidenta em Gustavo. Este, tomado de raiva, insulta o narrador, utilizando-se de vocabulário capacitista e de insulto racial.

    Então, L introduz a voz e1 que relata o incidente (ele tropesou em um menino chamado Gustavo). e2, por sua vez, representa a voz de Gustavo (─ Seu negro, você é cego.). Segue-se e3 que ressignifica a palavra “negro”, assumindo-a como uma descrição (─ Eu sou negro porque deus me veiz assim). Esta fala, por sua vez, foi introduzida por e4, responsável por dar voz à criança negra (Aí ele falou assim).

Conclusões e recomendações

A pesquisa cujos resultados foram partilhados neste artigo usou as lentes da polifonia para analisar relatos pessoais nos quais as manifestações de racismo estão representadas em diversas vozes. Percebemos que existe uma clara divisão enunciativa nos textos. Se, por um lado, o insulto racial aparece em todos os relatos, por outro, o racismo é manifesto quando os alunos narram situações nas quais eles incluem enunciadores diferentes daquele constituído como o locutor do texto.

Então, considerar a divisão do locutor permitiu, antes de tudo, imaginar que, muito provavelmente, todas as crianças participantes da pesquisa sabem que o racismo deve ser avaliado como algo errado. Esta hipótese se assenta na constatação de que o responsável legal pelos textos (o locutor) não emite opiniões do campo do preconceito racial. Possibilitou, ainda, detalhar diferentes modalidades da presença da discriminação e do preconceito refletidas na escrita dos participantes da pesquisa. As vítimas de racismo não condenam seus agressores, apresentando-se como justas e sensatas. As testemunhas identificam-se com os agredidos e desaprovam os agressores.

Por fim, ter constatado que o preconceito racial circula na forma das vozes de terceiros incluídas nos relatos (os diferentes enunciadores), levou-nos a perceber a importância das atividades de leitura por meio das quais professores e alunos aprendam a reconhecer enunciadores conflitantes presentes em textos. Este reconhecimento pode promover o desenvolvimento da compreensão leitora (Niederauer, 2015Niederauer, C. M. (2015, jan./mar.). Reading comprehension: a discourse, various voices, one sense. Domínios de Lingu@Gem, 9(1), 253-267. ), sendo um esforço consonante com uma concepção de ensino da leitura e da escrita que transcende aos aspectos técnicos, consistindo em “experiência dialógica” (Freire, 2021aFreire, P. (2021a). Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar (31.ed.). Paz e Terra., p. 81). No contexto específico da pauta racial pode, ainda, colaborar para combater o discurso racista e promover relações mais igualitárias na escola e na sociedade.

Posto isso, resta deixar indicado alguns desdobramentos destes estudos para o campo da educação. Convidar alunos das séries intermediárias a relatar suas experiências, em especial aquelas envolvendo temáticas conflitantes e que tendem a permanecer mascaradas pela cultura do silêncio (Freire, 2019Freire, P. (2019). A pedagogia do oprimido (80. ed.). Paz e Terra.), é uma ação solidária à construção de uma sociedade igualitária, na qual o potencial transformador da palavra é uma virtualidade para todas as pessoas, independente de quem seja. Ao consistir em um espaço de reelaboração da experiência subjetiva e ao colocar em jogo questões identitárias, este tipo de educação pode fundar outras formas de ler as palavras e ler o mundo (Lemos Vóvio & Armada Firmino, 2019Lemos Vovio, C., & Armada Firmino, E. (2019, ago.). A construção de identidades étnico-racial em eventos de letramento numa escola pública municipal de São Paulo. Íkala, 24(2), 307-327. ).

Assim, conclui-se que a Teoria Polifônica da Enunciação é uma ferramenta útil para descrever e aprofundar a compreensão das características do discurso racista em nosso país, marcado por uma invisibilidade até pouco tempo atrás (Guimarães, 1999Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. Editora 34.). Se, no nível dos locutores, o discurso se declara como sendo o de uma pretensa democracia racial, o deslindamento dos enunciadores pode dar a ver o racismo estrutural (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). O que é racismo estrutural. Pólen.).

Por fim, cumpre dizer que as pesquisas sobre as expressões do racismo avançaram consideravelmente nos últimos anos, mas ainda há necessidade de estudos articulando linguagem, educação e preconceito. Os textos analisados nesta pesquisa foram inspirados por tiras que traziam denúncias contra o preconceito em geral. Isso pode ter influenciado os resultados em duas direções. Uma é o fato de o racismo ter aparecido em 40% dos relatos redigidos por crianças que moram em uma região onde 54% da população é negra e, portanto, há possibilidade de que maior número de alunos tenha vivido ou testemunhado preconceito racial. Outra é o fato de que todos os locutores dos relatos se apresentaram como politicamente corretos. Assim, questiona-se se pesquisas que tenham produções espontâneas como objeto não teriam resultados diferentes. Um terreno fértil seriam os debates orais ou os comentários e suas réplicas em redes sociais.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com
  • 3
    Nossa tradução do original em inglês “11 “A plurality of independent and unmerged voices and consciousnesses”.

Referências

  • Almeida, S. (2019). O que é racismo estrutural. Pólen.
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Editor responsável: Helena Sampaio https://orcid.org/0000-0002-1759-4875

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2022
  • Revisado
    24 Jul 2023
  • Aceito
    06 Nov 2023
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