Acessibilidade / Reportar erro

Infância e pesquisa: as crianças e suas relações com os processos socioculturais 1 1 Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Childhood and research: children and their relations with sociocultural processes

PEREIRA, R.S.; PIRES, E. D. P. B. (. 2017. Infância, pesquisa e educação: olhares plurais. Curitiba: CRV

Para (re)pensar o contexto das infâncias contemporâneas tendo em vista os dispositivos e técnicas utilizados para governá-la, bem como o que está em risco na vida das crianças, o livro Infância, pesquisa e educação: olhares plurais contribui para problematizarmos o imperativo das tecnologias de governo que, marcado por uma visão adultocêntrica, permeia as relações de poder e saber. A obra em destaque foi organizada por Reginaldo Santos Pereira e Ennia Débora Passos Braga PiresPEREIRA, R. S., & PIRES, E. D. P. B. (Orgs.). (2017). Infância, pesquisa e educação: olhares plurais. Curitiba: CRV., docentes da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)2 2 Reginaldo Santos Pereira lidera o grupo de pesquisa Infância, Educação e Contemporaneidade (GPIEC) e desenvolve pesquisas sobre infâncias, currículo, avaliação, formação docente, estudos culturais e estudos pósestruturalistas em educação. Ennia Débora Passos Braga Pires coordena o Programa de Extensão Ludoteca, um espaço de práticas interdisciplinares em educação, e lidera o grupo de pesquisa Ludicidade, Didática e Práticas de Ensino (Ludipe); na sua trajetória acadêmica tem desenvolvido pesquisas sobre educação e ludicidade, política e gestão educacional. .

O livro está dividido em oito capítulos que reúnem estudos e pesquisas que possibilitam outros olhares para a compreender as infâncias, as crianças e suas relações com os processos socioculturais. Também traz elementos indispensáveis para a construção de uma educação da infância como potência de vida, que reconhece o sujeito criança e suas identidades nas múltiplas práticas culturais, nas experiências, criações, invenções, nos movimentos de resistência contra a colonização do seu mundo pelos adultos e nos gestos de ruptura contra o aceleramento do tempo do capital sobre suas vidas.

A visão colonial associada à ideia de futuro considera a infância a partir daquilo que ainda não é, mas que, supostamente, se tornará orientado pela lógica do trabalho. Por estar atrelada às demandas do modo de produção e expansão capitalista, ela é deslocada para a esfera do consumo. Deste modo, a criança negra, branca, indígena, pobre, menina, menino é transformada, sem qualquer constrangimento, em mercadorias de uma época – passa a ser prescrita a partir de normatizações do que deve ser, fazer e saber.

Diante desse contexto, os/as autores/as deste livro apresentam “desafios que interrogam os campos científicos, pedagógicos, curriculares, culturais, formativos, políticos, éticos e estéticos e, ao mesmo tempo, nos convida[m] a refletir sobre o que estamos fazendo conosco, com as nossas crianças e suas infâncias” (p. 14), em uma tentativa de romper com os mecanismos que contribuem para alimentar processos de exclusão e reprodução das desigualdades sociais, que asseguram a governabilidade das infâncias e das crianças, nos quais a dimensão de controle social e autoritarismo são evidentes.

Para compreendermos os processos de racialização e sua relação com crianças pequenas, Anete Abramowicz, Ana Cristina Juvenal da Cruz e Tatiane Cosentino Rodrigues propõem, no capítulo “A educação infantil e os processos de racialização”, pensarmos a educação infantil como um espaço de diáspora, uma vez que nesse campo se articulam as múltiplas configurações do poder de raça, sexualidade, gênero, etnia com as distintas experiências empíricas de diáspora individual ou coletiva. Com efeito, a raça, a sexualidade, o gênero e a classe social atuam nos processos de racialização da experiência da infância, produzindo um tipo de representação, e o espaço da educação infantil não está desvinculado disso.

Em uma crítica às políticas neoliberais pactuadas entre Estado e pesquisadores/as que criam currículos e avaliações nacionais e que colocam a educação infantil “cada vez mais refém e colonizada pela escola, transformando as crianças pequenas em alunos em um processo crescente de antecipação da escolaridade” (p. 21), esse capítulo apresenta uma oposição às pedagogias suplicantes e prescritas, à colonização das creches e pré-escolas em nome da escola, indicando uma pedagogia do intolerável como afirmação da vida.

Pensando a compreensão do tempo e dos espaços destinados ao brincar, assim como a defesa do lúdico como um direito da criança, Ennia Débora Passos Braga Pires e Jacqueline Araujo Corrêa Mendes, em “Brinquedotecas universitárias: reflexões sobre cultura lúdica em espaços e tempos institucionalizados”, discutem como os espaços e tempos do brincar estão organizados na atualidade, mostrando a riqueza e a diversidade das experiências lúdicas que as crianças vivenciam em brinquedotecas universitárias. Destacam que a cultura lúdica no capitalismo é influenciada pela mídia, compondo produções, narrativas e diversos produtos que incentivam o consumo. Problematizam também que nem todas as crianças têm condições e suporte financeiro de sua família para ter acesso a essa cultura lúdica global, à informação privilegiada e ao consumo de bens, o que exclui, no caso dessas crianças, o direito do brincar.

A respeito das especificidades das brinquedotecas, as autoras apontam que “além de serem espaços de convivência lúdica, tornam-se também laboratórios de investigação sobre o universo infantil e de mediação pedagógica lúdica” (p. 36). Sobretudo, possibilitam que crianças de todos os segmentos sociais tenham a vivência do lúdico com acesso a brinquedos, jogos, brincadeiras e atividades culturais. Portanto, esses espaços e tempos estruturados oportunizam que meninas e meninos experimentem a fantasia, exercitem a imaginação e criativamente expressem suas potencialidades.

Paralelamente a esse processo de inclusão que valoriza as diferenças, tendo em vista os modos pelos quais crianças pequenininhas e pequenas interpretam, reformulam e transformam as relações sociais, bem como o protagonismo e a participação infantil e das professoras e professores no planejamento das práticas educativas nas creches e pré-escolas, Flávio Santiago, Peterson Rigato da Silva, Solange Estanislau dos Santos e Ana Lúcia Goulart de Faria, em “Currículo e culturas infantis: inquietações à pedagogia da infância brasileira”, refletem sobre a construção do currículo para a pequena infância e sua relação com as políticas formativas e de base comum, o colonialismo e a diversidade.

Chamam atenção para as últimas medidas legislativas que pasteurizam “as singularidades das crianças em prol de um projeto de nação unitário, monolítico e enrijecido por padrões e ideários normativos de modos de ser e viver no mundo” (p. 54), que se configura na materialização sistêmica de valores adultocêntricos e no espaço micropolítico de disputas de poderes colonialistas, organizações curriculares fechadas e homogêneas, que vão estabelecendo tecnicamente modelos e manuais de instrução. Contrapondo essa forma de educação que “captura” e “aprisiona” os sujeitos, os questionamentos desse capítulo antropofagicamente produzem inspirações para a construção de um currículo diverso e aberto para o imprevisto, em que nossos ouvidos e olhares estejam desinibidos para com as culturas infantis e para as formas de estar no coletivo, fazendo escolhas políticas a favor das brincadeiras e dos jogos, das cem linguagens dentro dos espaços da educação infantil.

Já Reginaldo Santos Pereira e Nilson Fernandes Dinis, em “Literatura infantil e estudos culturais: contribuições para pensar os saberes e poderes sobre a infância”, destacam as formas como surge a relação entre literatura para crianças e escola, e quais enunciados discursivos a circundam. Com base em uma análise histórica da constituição da literatura infantil e a analítica dos estudos culturais filiada à perspectiva pós-estruturalista, os autores apresentam elementos para compreender os processos culturais que envolvem as relações sociais e de poder na esfera da educação, literatura e infância. Demonstram que a linguagem literária para as crianças carrega uma construção de sentidos, de modos de ser e estar no mundo, que se insere em uma esfera discursiva de representação da infância e que “regula conduta, disciplina ações, institui regras sociais e/ou morais, governa corpos e produz a subjetividade infantil” (p. 85) pedagogizada nos modelos individualizantes da nossa sociedade.

No bojo dessa discussão, é importante destacar que a produção da diferença e a multiplicidade que caracteriza o viver e estar no mundo só aparece recentemente na literatura infantil brasileira. E nisto, como ressaltam os autores, é necessário no âmbito escolar e nos estudos e pesquisas uma literatura menor, cuja produção para as crianças se distancie de pedagogias autoritárias, visões adultocêntricas e lições moralizantes que domesticam e governam as infâncias. Portanto, precisamos de uma literatura que possa descolonizar o pensamento e permitir às crianças a potência da inventividade e vivências pautadas no respeito à diversidade, às relações de gênero e étnico-raciais.

Paulo de Tássio Borges da Silva e José Valdir Jesus de Santana, no capítulo “Hãmyá Kitok Pataxó: trabalho, sociabilidades e agenciamentos entre as crianças pataxó do território Kaí-Pequi”, mostram a cultura pataxó pensada a partir da agência das crianças. Os autores apresentam cenas etnográficas com/entre as crianças e uma importante reflexão da tradição, dos ritos, do brincar, do universo lúdico como instância educativa de produção de sentidos e da relação infantil com o trabalho desenvolvido cotidianamente nas aldeias.

Inserido no contexto da globalização no território pataxó, os conflitos dos indígenas com as doutrinas neopentecostais, os problemas de infraestrutura e a vulnerabilidade social, esse capítulo evidencia o protagonismo das crianças, suas ações, negociações e entendimentos das questões e desafios das suas “comunidades”. Dos momentos noturnos de contação de causos, das pinturas corporais, dos banhos de riacho, das pescarias com arpão, da produção da farinha (um dos principais produtos da dieta pataxó), da panha da aroeira e da venda de artesanato na praia (da qual recebem um percentual utilizado conforme suas intenções), podemos tomar o conhecimento que elas “são portadoras de agenciamentos, construindo novas formas de se relacionar” (p. 109) e, assim, dinamizam os espaços de sociabilidade do ser criança e da cultura pataxó. Seguindo essa linha de pensamento, como podemos romper com visões eurocêntricas e colonialistas de imagens, sujeitos e poderes?

Edmacy Quirina de Souza e Nilson Fernandes Dinis, em “Imagens e relações étnico-raciais nos espaços educativos infantis”, trazem uma análise dentro da perspectiva foucaultiana sobre a produção imagética, discursiva e as relações étnico-raciais nos espaços educativos infantis. Discutem as relações e os efeitos de poder nesses espaços e os diferentes modos de subjetivação da criança negra diante das práticas de branqueamento, discursivas e não discursivas, que configuram ações preconceituosas e racistas.

Partindo de pinturas, desenhos, gravuras e fotografias que compõem o espaço escolar de creches e pré-escolas, esse capítulo apresenta dados que promovem reflexões sobre como as diferenças são discutidas com as crianças, apontando que “as escolas ostentam a imagem de uma sociedade genuinamente branca” de tal forma que “o ritual pedagógico de ornamento e embelezamento do espaço escolar exclui de seus currículos, de seus espaços, a história de luta das pessoas negras” (p. 136). Assim, se institui uma supremacia racial e princípios da branquitude, legitimam-se processos discriminatórios e segregacionistas, e naturalizam-se desigualdades e estereotipização do “outro”, rejeitando-se as diferenças.

No capítulo “Cotidiano, cotidiano escolar e crianças: construindo aproximações”, Paula Amaral Faria e Myrtes Dias Cunha apresentam revisão bibliográfica analítica abrangendo pesquisas publicadas entre 2006 e 2016 disponíveis nas bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Plataforma Sucupira e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). As autoras problematizam a contribuição dessas pesquisas para a compreensão das crianças, suas linguagens e culturas e apontam que “a convivência com a criança tem sido desvalorizada, deixando-a a margem ou excluída das pesquisas acadêmicas que optam por caminhos rígidos e já estabelecidos” (p. 155). Nesse sentido, é necessário que o fazer/tecer pesquisa no cotidiano escolar entre em contato com as singularidades infantis, como possibilidade de destacar o protagonismo das crianças, valorizando-as e tomando-as como sujeitos privilegiados nas pesquisas, ou seja, demonstrando sua participação efetiva.

Também pensando as relações sociais e pedagógicas no âmbito escolar visando superar as dificuldades de aprendizagem das crianças e promover seu desenvolvimento, Rita de Cássia Souza Nascimento Ferraz, em “A infância na escola: a relação entre professor e aluno com dificuldades de aprendizagem”, com base em uma perspectiva histórico-cultural pautada nos conceitos teóricos de Vygotsky, mostra que existe uma “necessidade de investimentos em cursos de formação regular e continuada de professores que possibilitem a construção de experiências inovadoras” (p. 182). Aponta, nesse sentido, que ações docentes que envolvam cooperação, instrução, correção, apoio e elogio, aproximação, atenção, receptividade e contato físico, considerando a dimensão afetiva da mediação, promovem sentimentos positivos nas crianças. Portanto, esses elementos são fundamentais na prática pedagógica articulada e construída no cotidiano da escola.

O livro organizado por Reginaldo Santos Pereira e Ennia Débora Passos Braga Pires expõe diferentes caminhos para enfrentarmos as tecnologias de governo que configuram um cenário de complexidades em que não há tempo para brincar, trocar afetos, rir, chorar, gritar, descansar – em que não há tempo para atividades que não sejam consideradas trabalho, que não estejam voltadas para a produção colonial capitalista em pequena e grande escala.

A discussão aqui apresentada convida o leitor e a leitora a refletir sobre as ações e as formas de pensar as infâncias, possibilita um encontro com as especificidades e as multiplicidades dos sujeitos crianças que produzem culturas infantis e resistem à colonização, à opressão e à subordinação ao mundo adulto. Como um referencial crítico, esta obra oferece subsídios para a construção de novos fazeres/teceres pedagógicos e políticos que valorizem as diferenças e a diversidade, estimulando a produção de novas relações com/entre as crianças e adultos/as na contemporaneidade, como uma forma de resistência ao desmonte que vem acontecendo em nosso país e que está presente na infância e na educação.

  • 1
    Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 2
    Reginaldo Santos Pereira lidera o grupo de pesquisa Infância, Educação e Contemporaneidade (GPIEC) e desenvolve pesquisas sobre infâncias, currículo, avaliação, formação docente, estudos culturais e estudos pósestruturalistas em educação. Ennia Débora Passos Braga Pires coordena o Programa de Extensão Ludoteca, um espaço de práticas interdisciplinares em educação, e lidera o grupo de pesquisa Ludicidade, Didática e Práticas de Ensino (Ludipe); na sua trajetória acadêmica tem desenvolvido pesquisas sobre educação e ludicidade, política e gestão educacional.

Referências

  • PEREIRA, R. S., & PIRES, E. D. P. B. (Orgs.). (2017). Infância, pesquisa e educação: olhares plurais Curitiba: CRV.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2018
  • Aceito
    03 Jun 2018
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br