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Dialética do esclarecimento e tecnologia: a mediação das redes sociais na produção da violência 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Maria Thereza Sampaio Lucinio - thesampaio@uol.com.br 3 3 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Resumo

Partindo dos dados elaborados por pesquisadores da Universidade de Warwick (UK), que indicam haver uma relação positiva entre o uso do Facebook e o aumento dos casos de ataques contra refugiados na Alemanha, o artigo tem como objetivo estabelecer um referencial para a compreensão da lógica de funcionamento das redes sociais e o seu papel de mediação na produção e intensificação das relações de violência. Para tal, o trabalho retoma elementos da obra de Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse em uma investigação que se orienta pela hipótese da existência da ação de um esquecimento em curso no modo como se organizam as mediações sociais. No lugar da defesa do que seria uma humanidade justa, são eleitos como fim princípios que se atualizam para manter a barbárie como ordem atuante.

Palavras-chave
Teoria crítica da sociedade; formação; racionalidade; tecnologias digitais; produção de relações de violência

Abstract

Based on data by researchers at the University of Warwick (UK), which indicate a positive relationship between Facebook use and the increase in attacks against refugees in Germany, the aim of this article is to establish a reference for understanding the functioning of social networks and their mediation role in the production and intensification of violence relations. This work resumes elements of the works of Theodor Adorno, Max Horkheimer, and Herbert Marcuse guided by the hypothesis of the existence of an ongoing forgetfulness in the social mediation organization. Instead of defending what would be a fair humanity, principles that keep barbarism as an active order are updated.

Keywords
Critical theory of society; formation; rationality; digital Technologies; production of violence relations

Introdução

Uma pesquisa divulgada pela Universidade de Warwick (UK) aponta um dado que acende o debate sobre os impactos do crescimento do espaço ocupado pelas redes sociais virtuais nas relações entre os indivíduos. Segundo os pesquisadores, o uso do Facebook relaciona-se ao aumento dos casos de ataques contra refugiados na Alemanha. Quanto maior o uso da rede social, maior a incidência de ataques, suscitando, assim, o questionamento acerca da contradição observada entre o progresso tecnológico e a manutenção de condições de insegurança social. Ao mesmo tempo em que ocorre o aumento da capacidade de transformação do modo como o indivíduo se relaciona com o mundo externo, de maneira a lhe permitir maior liberdade e segurança, também se verifica o aprofundamento de condições que ameaçam justamente essa liberdade e segurança. Mais do que isso, tal dado aponta para a existência de uma relação em que a transformação tecnológica serve à repetição de fenômenos, que ganham novos modos e instrumentos de ação.

Dessa maneira, entende-se que o desenvolvimento material carrega consigo uma contradição (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.), atualizada e mantida enquanto tal, caracterizando um estado de barbárie que acompanha as transformações sociais e se mantém apesar delas. Essa é a compreensão que indica a necessidade de uma análise crítica da relação entre a violência e o uso de redes sociais virtuais como instâncias mediadoras dessas transformações (Lash & Lury, 2007Lash, S., & Lury, C. (2007) Global culture industry: The mediation of things. Polity.).

Partindo da leitura dos fundamentos da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt de Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, que ordenam suas formulações a partir da problemática da dialética do esclarecimento, compreende-se haver no desenvolvimento da humanidade a ação de uma racionalidade que engendra movimentos de progressão e regressão (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.; Marcuse, 1979Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial. Zahar.). A barbárie é então identificada como sendo a persistência de elementos regressivos que se sobrepõe às potencialidades alcançadas pela ação emancipatória da razão.

Ao investigar a história do pensamento que marca a modernidade ocidental, Adorno e Horkheimer (2006)Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar. identificaram a existência de uma ordem que se estabelecia como hegemônica e que se realizava a partir do enredamento das forças materiais de produção, colocando em movimento tendências que servem à manutenção de tal ordem. A argumentação dos autores nos sugere que a análise da relação entre tecnologia e violência, a partir da mediação do Facebook nos casos de violência contra refugiados, pode significar a compreensão de que tal fenômeno representa a reprodução de elementos históricos sob uma nova roupagem, indicando a capacidade de apropriação das transformações culturais como forma de manutenção de relações típicas de poder.

Desse modo, a pergunta “por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie?” (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar., p.11) atualiza-se quando se pensa em uma sociedade de grande desenvolvimento tecnológico, marcada pela internet, com grande capacidade de reestruturação da produção, de disseminação quase instantânea de informações e com profundas mudanças no modo como as pessoas vivem. Se, por um lado, significa um momento de profundos avanços, por outro, os expressivos números da violência denunciam o predomínio da instrumentalização técnica e a precarização da vida e das relações humanas.

Essa análise aponta para o fato de que o que se coloca em movimento em tal momento da sociedade tecnológica e das relações que dela emergem não pode ser compreendido sem se considerarem as tendências históricas atuantes que são reordenadas a partir da apropriação de potencialidades culturais, que, assim, se afirmam e se legitimam. Uma das dimensões desse reordenamento é a formação do sujeito (Adorno, 1995bAdorno, T. W. (1995b). Palavras e Sinais: Modelos críticos. Vozes.) pela transformação das mediações que promovem tal formação. Essa dimensão é aqui considerada central para a compreensão do caráter da violência resultante da relação que os indivíduos estabelecem com as redes sociais, uma vez que aponta para o quanto as práticas tecnológicas produzem efeitos no processo de subjetivação.

A crítica à violência contra grupos minoritários, mediada pelas redes sociais virtuais, é, assim, fundamentada na compreensão dos mecanismos de manutenção da barbárie, colocando em evidência a existência de um tensionamento entre o abandono das possibilidades de transformação social, decorrentes das tecnologias digitais, e a progressão de tendências alinhadas ao princípio da dominação. Tal tensionamento é entendido aqui como expressão de um processo de esquecimento, indo ao encontro do que afirmam Adorno e Hokheimer (2006)Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar., que “toda reificação é um esquecimento” (p. 190). Compreende-se, dessa forma, como a violência vincula-se aos processos de formação do sujeito e orienta as dinâmicas sociais em torno da manutenção de interesses hegemônicos e excludentes.

O presente artigo tem como objetivo identificar os elementos que permitem compreender a persistência da barbárie, manifestada no entrelaçamento entre tecnologia e violência, como ação de um processo de esquecimento, que aponta para o questionamento da própria dimensão da racionalidade, retomado a partir da reflexão sobre a dialética do esclarecimento. Vale destacar que a pesquisa teórica se faz necessária à abordagem do objeto de investigação, principalmente se o propósito for a discussão dos elementos conceituais desenvolvidos pelos autores aqui reunidos e que possibilitam novos diagnósticos e análises do tempo presente.

Desse modo, cabe-nos perguntar: como estão inseridas as novas tecnologias que têm como base o armazenamento de dados e a hiperconexão (Morozov, 2018Morozov, E. (2018). Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Ubu, 2018.), em especial as redes sociais virtuais, tendo como recorte o Facebook, e como esse estado de coisas, marcado pelo esquecimento provocado pelas formas da cultura digital, afetam a subjetividade, de modo a manter as predisposições para o fascismo, próprias de um contexto generalizado de semiformação (Adorno, 2010Adorno, T. W. (2010). Teoria da semiformação. In Bruno Pucci, Antonio A. S. Zuin, & Luiz A. Calmon Nabuco Lastória, Teoria Crítica e inconformismo: Novas perspectivas de pesquisa (pp. 7-40). Autores Associados.)? A resposta implica a análise aqui desenvolvida sobre a relação entre tecnologia e violência, com base nos dados de Müller e Schwarz (2018)Müller, K., & Schwarz, C. (2018). Fanning the flames of hate: Social media and hate crime. SSRN Electronic Journal. http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3082972
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sobre as dinâmicas observadas a partir do uso do Facebook e nas discussões de Adorno, Horkheimer e Marcuse, de forma a revitalizar as considerações acerca da racionalidade e da técnica em seu enredamento com a subjetividade.

A racionalidade tecnológica da dominação

A crítica à racionalidade, estabelecida como dialética do esclarecimento (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.), é um procedimento que permite apontar como problemáticas as formas de organização social pautadas na manutenção de relações de violência que se articulam na estruturação e atuação de uma determinada configuração social. É no interior dessa crítica que se inserem a compreensão da tecnologia e o sentido da adesão ao uso violento das redes sociais.

Uma vez que tal racionalidade se refere ao modo como se ordenam as dinâmicas de produção e reprodução entre os indivíduos e o meio, e nisso se entende que os modos de comunicação e os instrumentos utilizados, como é o caso das redes sociais, já possuem um direcionamento interno à sua própria forma, compreende-se que a lógica que mantém o funcionamento desses instrumentos possui a capacidade de direcionar o seu uso para determinados fins. A violência se apresenta, então, como um desdobramento potencial desse mesmo uso, e não simplesmente como um desvio do seu funcionamento normal.

Adorno e Horkheimer (2006)Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar. já tinham clareza nos anos 1940, no contexto da publicação da Dialética do Esclarecimento, de que o progresso da ação humana no mundo produz, ao mesmo tempo, um estado de regressão, indicando que não existe uma unidade própria ao tempo. Mais do que permitir a abertura histórica necessária à experiência do ser sujeito, o que por sua vez justificaria a atividade da razão, na predominância de tendências que se apropriam dos elementos presentes na cultura para manter uma determinada conformação social, tal ausência de unidade termina por agir como um aprisionamento da cultura (Adorno, 2010Adorno, T. W. (2010). Teoria da semiformação. In Bruno Pucci, Antonio A. S. Zuin, & Luiz A. Calmon Nabuco Lastória, Teoria Crítica e inconformismo: Novas perspectivas de pesquisa (pp. 7-40). Autores Associados.) à ordem hegemônica que se impõe como dominação.

Uma contribuição importante desse entendimento é a indicação da existência de uma racionalidade atuante nos processos sociais produtores das situações de violência, que deixa de se voltar para o alcance das condições de liberdade, manifestando-se, ao contrário, como fomento à dominação (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.). O conceito de racionalidade instrumental traduz esse movimento indicando que o pensamento, em sua forma e em seu conteúdo, objetiva-se em formas de dominação, de modo a transformar o mundo, concebido como objeto de controle e manipulação, em instrumento. Tal processo faz com que toda atividade se transforme em produtora e reprodutora da lógica da mercadoria. Ou seja, opera-se a redução das potencialidades contidas nas relações que compõem a realidade social para permitir uma maior eficiência da progressão econômica.

As dimensões que compõem a existência material do indivíduo se predispõem à conformidade com um mesmo fim, e desse caráter parte o sentido que determina o predomínio do aperfeiçoamento da técnica, caracterizando a modernidade ocidental (Marcuse, 1979Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial. Zahar.). Disso resulta o aprofundamento da reificação humana na submissão à estrutura de desenvolvimento do mercado (Horkheimer & Adorno, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.). Com a repetição de modos de funcionamento que assegurem a sua continuidade, tal racionalidade opera, assim, uma espécie de cálculo na medida entre o que deve se manter e o que deve ser esquecido, de maneira a fortalecer pensamentos e comportamentos padronizados.

É também a análise dessa racionalidade, em seus aspectos subjetivos e objetivos, que permite a Adorno (1995b)Adorno, T. W. (1995b). Palavras e Sinais: Modelos críticos. Vozes. compreender haver uma divisão entre o sujeito, que é ativo na articulação da relação com o mundo, e o indivíduo, que está subjugado à organização desse mundo e sujeitado às condições de violência impostas pela própria organização humana. O quadro se agrava quando se evidenciam situações em que indivíduos atentam contra os seus próprios interesses mais imediatos ou contra a vida de outros indivíduos, como é o caso das manifestações racistas.

O processo de subjugação do indivíduo à racionalidade instrumental, que predomina nas relações sociais, impõe uma lógica de dominação sobre as relações humanas que torna outras formas de existência impraticáveis e passíveis de ataque (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.). Trata-se da aniquilação do sujeito como um ser histórico por um processo de conformação da realidade que opera a exclusão do diverso por meio de atos de violência que se materializam no contexto social. A crítica ao uso das redes sociais, que se transformam em um espaço para disseminação de discursos de ódio convertidos em ataques fora das redes (Müller & Schwarz, 2018Müller, K., & Schwarz, C. (2018). Fanning the flames of hate: Social media and hate crime. SSRN Electronic Journal. http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3082972
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), apoia-se, portanto, na crítica à própria racionalidade, que carrega consigo uma dialética.

A hipervisibilidade do indivíduo, característica da sociedade excitada (Türcke, 2010Türcke, C. (2010). Sociedade excitada: Filosofia da sensação. Editora Unicamp.), pavimenta o tempo e o espaço das redes sociais e o isolamento dos indivíduos. Enfraquecido na possibilidade de realizar-se enquanto sujeito de sua própria ação (Adorno, 2015Adorno, T. W. (2015). Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Editora Unesp.), o indivíduo acaba por reproduzir o cativeiro que lhe é imposto. Isso porque, em uma realidade que nega as condições para a aparição e manutenção do sujeito, que só existe como sujeito quando garantida a possibilidade de realização da diferenciação (Adorno, 1995bAdorno, T. W. (1995b). Palavras e Sinais: Modelos críticos. Vozes.), o indivíduo é levado a ceder ao todo que se impõe e impede qualquer tipo de diferenciação ao sistema, como se fosse permitida apenas a existência daquilo que age de acordo com a progressão do valor. A racionalidade passa, então, a servir ao cálculo da subordinação que é exigida pela sociedade.

Esse é o quadro que Marcuse (1979)Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial. Zahar. nomeia de sociedade de mobilização total, em que se indiferenciam o que pode ser identificado como oposição e o que vai servir à manutenção de princípios hegemônicos e dominantes. Em nível institucional, ocorre uma unificação de forças, dado o enfraquecimento da possibilidade de oposição nas relações sociais cotidianas. Quando os sujeitos não são reconhecidos pelo sistema e pela sociedade em geral, o conflito se impõe constante.

Surge, conforme Marcuse (1979)Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial. Zahar. e Adorno (1995b)Adorno, T. W. (1995b). Palavras e Sinais: Modelos críticos. Vozes., um paradoxo segundo o qual o mundo objetivo e quantificado se torna cada vez mais dependente do sujeito, em razão do predomínio da abstração e da técnica, como sua realização, sobre os processos materiais. As qualidades do mundo são reduzidas à apreensão pelo método, enquanto a neutralidade que é atribuída à objetividade de tal método resulta da operação de um sujeito histórico específico.

É nesse sentido que Marcuse (1979)Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial. Zahar. afirma que “o a priori tecnológico é um a priori político” (p. 150), porque é resultado de operações humanas, situadas em um conjunto de relações que impõe suas necessidades. A técnica e a prática não se separam da concepção que as produziram. E sendo a racionalidade mesma uma operação, compreende-se que ela contém um fim que, dentro da conformação das forças sociais da tradição moderna ocidental, é a dominação. Ou seja, a tecnologia se constitui forma de controle e dominação social. Nas palavras de Adorno e Horkheimer (2006)Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.,

nas condições atuais, os próprios bens da fortuna convertem-se em elementos do infortúnio. Enquanto no período passado a massa desses bens, na falta de um sujeito social, resultava na chamada superprodução, em meio as crises da economia interna, hoje ela produz, com a entronização dos grupos que detêm o poder no lugar desse sujeito social, a ameaça internacional do fascismo

(p.14).

Nesse contexto, as tentativas de libertação humana não encontram meios de se manter e de se realizar, porque carregam o imperativo da dominação que fundamenta a racionalidade do mundo administrado, e, frequentemente, volta-se ao lugar de dominação de onde se partiu, por não haver o rompimento com a imposição da necessidade de manter a progressão do capital. O resultado é a produção de uma sociedade, não apenas politicamente, mas “racionalmente totalitária” (Marcuse, 1979Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial. Zahar., p. 154). Pode-se dizer, então, que há a existência de um projeto social, que é anterior à aplicação das tecnologias e que se conforma no interior da realização do próprio conceito.

A dominação, como princípio único e unificador, ao mesmo tempo em que paralisa, permite a ação do indivíduo no mundo, ordena o seu movimento e faz com que a violência se efetive. Essa manifesta-se na relação entre aqueles que ocupam posições sociais distintas, em que uns têm a permissão e os instrumentos para realizar o ataque, e outros tentam se defender da violência.

Isso reforça a ideia de que não se pode clamar pela neutralidade ou pela forma pura, tanto do conceito quanto do método. Por trás de ambos, existe um sujeito produtor, constituído de conteúdo histórico, que se presentifica na forma de teoria e de prática (Adorno, 1995bAdorno, T. W. (1995b). Palavras e Sinais: Modelos críticos. Vozes.). Assim, a tecnologia, enquanto objetivação de um projeto social, garante o exercício dos interesses particulares nele contidos e justifica determinados tipos de ação. Se tal exercício reafirma a manutenção da barbárie, a violência é, portanto, a marca visível de um esquecimento que, ao mesmo tempo em que aponta para uma ausência, é produtor de relações sociais excludentes e autoritárias.

É a partir dessa tendência que se entende a tecnologia atual, intensamente individualizada. A mediação entre a realização de interesses particulares e dos interesses de cada indivíduo ocorre de tal forma que o resultado é o controle que recai diretamente sobre o indivíduo (Antunes & Maia, 2018Antunes, D., & Maia, A. (2018). Big data, exploração ubíqua e propaganda dirigida: novas facetas da indústria cultural. Psicologia USP, 29(2), 189-199. http://dx.doi.org/10.1590/0103-656420170156
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). A massa resultante da imposição de interesses se produz pela ação voluntária de cada pessoa instrumentalizada pela posse de seu dispositivo de acesso, por exemplo, às redes sociais. O indivíduo se torna instrumentalizado para controlar a si mesmo por meio da própria tecnologia.

Isso indica que a violência tem uma função conservadora, mas trata-se de uma conservação que se faz pela destruição daquilo que poderia realizar um progresso real; e que os procedimentos de exclusão, de aniquilação e de morte não são um desvio, mas uma constante que impede inclusive que qualquer desvio aconteça. O que aparece, de tempos em tempos, é a radicalização desse funcionamento, cujos elementos devem ser, então, compreendidos tanto em sua trajetória histórica quanto na conformação social atual.

A função de mediação das redes sociais

No contexto do predomínio das tecnologias digitais, que convertem as interações online nas plataformas de comunicação em dados (Kosinski et al., 2013Kosinski, M., Stillwel, D., & Graepel, T. (2013). Private traits and attributes are predictable from digital records of human behavior. PNAS, 110(15), 5802-5805. http://www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.1218772110
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), a mercantilização da individualidade, já indicada pelos autores Adorno (2015)Adorno, T. W. (2015). Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Editora Unesp. e Marcuse (1998)Marcuse, H. (1998). Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber. In H. Marcuse, Cultura e sociedade. (pp. 113-136). Paz e Terra., em suas reflexões acerca dos efeitos do avanço das sociedades industriais sobre a subjetividade, é operada em larga escala. Por esse motivo, não é possível considerar que a relação do indivíduo com as redes sociais seja imediatamente uma relação capaz de expandir o seu espaço de liberdade, na medida em que tais redes se inserem também nas leis da produção e circulação mercadológica, agora por meio do funcionamento algorítmico (Morozov, 2018Morozov, E. (2018). Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Ubu, 2018.).

A dialética do esclarecimento, aqui resgatada para elaborar a compreensão do uso da tecnologia na reprodução de violências, pode ser observada, concretamente, na determinação das relações sociais que culminam em dinâmicas excludentes, nas quais algumas vidas ganham relevância, enquanto outras são alvo do extermínio. A barbárie, resultante do predomínio da racionalidade instrumental sobre a vida, suscita a violência e a morte. Trata-se de um processo de aniquilação, na medida em que ocorre o falseamento de identidades que são alcançadas pela exclusão do que indica a existência da alteridade.

Nesse sentido, o entendimento da categoria mediação é essencial, principalmente pela capacidade de aprisionamento das potencialidades humanas. Em uma aproximação com o conceito de semiformação de Adorno (2010)Adorno, T. W. (2010). Teoria da semiformação. In Bruno Pucci, Antonio A. S. Zuin, & Luiz A. Calmon Nabuco Lastória, Teoria Crítica e inconformismo: Novas perspectivas de pesquisa (pp. 7-40). Autores Associados., poderíamos dizer que as redes sociais são instâncias mediadoras entre o indivíduo e os objetos da cultura. Nesse caso, elas cumprem um papel de deformação, tanto desses objetos quanto do indivíduo. Trata-se de um processo de inserção de ambos na lógica da dominação, em que as forças sociais produtivas são instadas a fortalecer as tendências hegemônicas de organização e integração social.

A violência que se dissemina pelas redes sociais, como parte de um conjunto de determinantes que se prolongam de acordo com as caraterísticas de cada tempo histórico, traz consigo apontamentos e desdobramentos importantes. Ao considerarmos que o efeito resultante do uso de um determinado instrumento, tais como as redes sociais virtuais, seria devido à apropriação desse por interesses ora destrutivos, ora construtivos, podemos perder de vista que existem elementos estruturantes que são capazes de se sobrepor aos esforços e movimentos de uma conjuntura, capturando tais esforços para afirmação de tendências (Kosinski et al., 2013Kosinski, M., Stillwel, D., & Graepel, T. (2013). Private traits and attributes are predictable from digital records of human behavior. PNAS, 110(15), 5802-5805. http://www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.1218772110
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).

Ou seja, as redes sociais como resultado da transformação das tecnologias comunicativas carregam consigo os interesses dos sujeitos históricos que detém os meios de produção e que determinam os fins daquilo que é produzido. São tais fins, isto é, a mercantilização crescente das formas e dos meios de vida, que sobredeterminam os usos da tecnologia, bem como a violência a ela relacionada. Ainda que tal processo não seja insuperável, o avanço da lógica que o compõe agrava a necessidade de compreensão dos elementos colocados como objeto de crítica e de superação.

O aprofundamento do espaço que é dedicado ao indivíduo e a evidência das relações comunicativas acabam por realizar a radicalização do processo de esquecimento sob a sua manifestação. O indivíduo que tem ampliado o seu espaço de liberdade na extensão do mundo virtual não encontra correlato de tal liberdade na materialidade (Morozov, 2019Morozov, E. (2019). Capitalism’s New Clothes. The Bafler. https://thebaffler.com/latest/capitalisms-new-clothes-morozov
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). Isso significa que a cultura atual caminha em direção à crescente precarização, por meio da aparência de flexibilização e ampliação de espaços de liberdade individual, operando a manutenção de problemas sociais estruturantes.

O impedimento à manifestação do múltiplo e do diverso e, portanto, da realização da condição de sujeito, realiza a subordinação da sociedade a interesses de classe que apenas se sustentam pela dominação. Dominação essa que, conforme abordado por Adorno nas Minima Moralia (1993), não se realiza de maneira imediatamente autoritária, mas se impõe repetidamente às manifestações do indivíduo, em um cerceamento contínuo que o molda às formas necessárias de manutenção do funcionamento dessa sociedade.

A violência é, então, inevitavelmente produzida por essa organização social. Isso porque o esquecimento que é provocado não deixa um vazio, mas carrega uma produção incessante de conteúdos e de formas sociais. A indústria cultural (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.), ao controlar a manifestação e a realização da subjetividade, realiza um esquecimento que produz modos de vida e existência, mantendo assim uma espécie de unidade social. Não há, portanto, um apagamento pacífico de tendências que poderiam se opor à regressão imposta. A face ativa do esquecimento é a violência.

Compreende-se, dessa forma, o mecanismo de administração de sentimentos de ódio que habita as redes sociais, originado dos processos de produção voltados à organização da sociedade. Não só por permitirem a disseminação de discursos de ódio, mas, principalmente, pela motivação de ações concretas, a partir das quais é possível entender as redes sociais como um espaço de fortalecimento discursivo, no sentido do enredamento psicológico e cognitivo do indivíduo à estrutura social.

É com base na manutenção de um sistema totalitário sustentado por um ordenamento racionalizado (Marcuse, 1998Marcuse, H. (1998). Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber. In H. Marcuse, Cultura e sociedade. (pp. 113-136). Paz e Terra.), que se entende a violência propagada pelo uso das redes sociais como relacionada ao processo de redução do espaço para existência e manifestação do diverso, do outro. O usuário, que posteriormente se engaja em comportamentos violentos, se apropria do conjunto de referências e de normas que são oferecidas pela lógica das redes, pautada na exaltação das experiências únicas e individuais, como formas aprimoradas de processos sociais uniformizantes (Lash & Lury, 2007Lash, S., & Lury, C. (2007) Global culture industry: The mediation of things. Polity.).

Na interação das redes sociais, o indivíduo se isola na sua ação individual e termina agindo em conformidade com uma ordem social, sem que exista expressamente a imposição de regras e a aplicação de punições. Os mecanismos de controle recaem, assim, diretamente sobre os indivíduos por conta do caráter altamente especializado da mediação, que se refina até não ser percebida como tal (Morozov, 2018Morozov, E. (2018). Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Ubu, 2018.). E, conforme aponta Adorno (2009)Adorno, T. W. (2009). Dialética negativa. Zahar., aquilo que se apresenta como mais imediato está, ao contrário, imerso em mediações.

Ao mesmo tempo em que excitam e mobilizam, as redes sociais desarmam e enfraquecem, formando um ambiente favorável para que comportamentos e atitudes discriminatórias sejam ampliados, a depender de um possível uso político e econômico. Quando Müller e Schwarz (2018)Müller, K., & Schwarz, C. (2018). Fanning the flames of hate: Social media and hate crime. SSRN Electronic Journal. http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3082972
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colocam que quedas no número de acessos ao Facebook são acompanhadas por quedas no número de ataques a refugiados, fica evidente que as plataformas são responsáveis por organizar as ações individuais. As redes como realização da racionalidade, que se desenvolve junto às forças produtivas, têm uma função importante em determinar os fenômenos sociais que acompanham esse desenvolvimento.

Assim, quando considerada historicamente a função dos discursos de ódio e dos comportamentos discriminatórios para a manutenção de interesses econômicos excludentes e opressores, fica mais claro entender o papel que é exercido pelo Facebook na violência contra os refugiados. Ainda que as redes sociais não funcionem como único determinante da violência que é manifestada, ou seja, não é apenas o uso do Facebook que causa os ataques, é relevante considerar como os estímulos que levam à violência se reorganizam a partir da estrutura dessas redes, em razão, principalmente, do seu formato de exibição de conteúdos pontuais e personalizados e da facilidade e velocidade com que eles se disseminam (Recuero, 2005Recuero, R. C. (2005). Comunidades virtuais em redes sociais na internet: uma proposta de estudo. E-Compós, 4. https://doi.org/10.30962/ec.57
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). Essas características apoiam-se no fato de que tais conteúdos têm como objetivo, mais do que informar, produzir novos conteúdos e interações e, portanto, mais dados (Morozov, 2018Morozov, E. (2018). Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Ubu, 2018.).

Como visto, a contradição expressa na massificação que ocorre a partir da afirmação do indivíduo tem como fundamento uma individualidade que não é capaz de compreender o diverso, o que implica a aniquilação desse diverso também na materialidade, na concretude (Adorno, 1995Adorno, T. W. (1995a). O que significa elaborar o passado. In T. W. Adorno. Educação e emancipação (pp. 29-49). Paz e Terra.). Os discursos de ódio se manifestam em atos de violência porque os processos online são também materiais. O descontentamento em relação à alteridade é realizado na forma de ataques contra os refugiados, que se constituem a própria encarnação do diverso. A violência firma-se, assim, como esquecimento.

A administração da individualidade

Nesse continuum histórico de dominação pela progressão de processos de esquecimento, o que se mantém esquecido é a manifestação da própria dominação, quando as potencialidades que estão contidas na cultura deixam de ser realizadas, ou ainda quando os recursos individuais e as forças produtivas organizam-se para realizar fins particulares, cujo resultado é a manutenção de uma situação de insegurança social. A tecnologia atual, que tem o processamento de dados como base de funcionamento (Boyd & Ellison, 2018Boyd, D. M., & Ellison, N. B. (2018). Social Network Sites: definition, history and scholarship. Journal of computer-mediated communication, 13, 210-230. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/j.1083-6101.2007.00393.x.
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), dá ao indivíduo as condições para ser ele mesmo o operador desse princípio de dominação. Ela se coloca como obstáculo e ameaça, a depender do recorte político e geográfico em que o indivíduo está inserido.

Os atos e motivações online ocorrem e são reivindicados como voluntários, ainda que sejam resultados de sondagens e de cálculos (Lambiotte & Kosinski, 2014Lambiotte, R., & Kosinski, M. (2014). Tracking the digital footprints of personality. Proceedings of the IEEE, 102(12), 1934-1939. https://doi.org/10.1109/JPROC.014.2359054
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), em que o mecanismo para produzir a massificação é deslocado e descentralizado, deixando com que o centro seja ocupado pelo seu modo de operação, apesar do “sujeito” parecer autônomo. E dessa forma, juntamente com a permissão para que qualquer um se instrumentalize e tenha a capacidade de participar, é produzido o caráter fascista que se espraia entre as multidões (Sancho, 2018Sancho, G. R. (2018). Multidões conectadas e movimentos sociais: dos zapatistas e do hacktivismo à tomada das ruas e das redes. In F. Bruno, B. Cardoso, M. Kanashiro, L. Guilhon, & L. Melgaço, Tecnopolíticas da vigilância: Perspectivas da margem (pp. 355- 375). Boitempo.) e coloca em prática os processos de exclusão e extermínio.

O específico, portanto, das redes sociais é seu caráter de mediação esquecida, que, ao promover a aproximação entre a manutenção da estrutura social e a ação individual, aparece como desprovida de motivação para além do seu próprio interesse ou desvio. Os objetos que circulam por esses meios não apenas sofrem a imposição da lógica da indústria para se ajustarem, mas impõem a si próprios tal lógica (Lash & Lury, 2007Lash, S., & Lury, C. (2007) Global culture industry: The mediation of things. Polity.). E uma vez que o indivíduo é reificado, o alinhamento da vida nos seus elementos mais cotidianos à lógica da indústria acaba por ocorrer quase que naturalmente. É possível perceber, assim, que o mecanismo, apontado por Adorno e Horkheimer (2006)Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar. como atuante na indústria cultural, alcança uma potência em que o espaço para diferenciação, como instância de constituição da autonomia do sujeito pela ação da consciência, é capturado como elemento de produção de valor.

Os problemas sociais que afetam a vida dos indivíduos são vivenciados por eles de forma online, em grupos de discussão, e se materializam nos discursos de ódio que vão eleger o inimigo a ser combatido. O comportamento offline retorna, então, numa inversão, como uma extensão do online (Lévy, 1996Lévy, P. (1996). O Que é Virtual? Editora 34.), e os discursos de ódio aparecem como comportamentos violentos de ataques à integridade física daqueles identificados como fonte da ameaça. Enquanto a estrutura social elege tal violência como norma, porque o seu princípio ordenador é a dominação, a forma da tecnologia permite com que essa norma se realize.

O esquecimento que é imposto implica a negação das possibilidades que estão contidas na existência não massificada, massificação essa formada justamente pela imposição de uma escrita e reescrita única da história, aprisionada à lógica da exclusão do diverso e que, portanto, apenas sustenta um tipo de ser humano passível de reconhecimento e de dignidade (Benjamin, 2012Benjamin, W. (2012). Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense.). O esquecimento não se dá por uma saturação da quantidade de dados agrupados pelos monopólios de informação que, ao contrário, realizam a aparência da impossibilidade de esquecimento, uma vez que aquilo que circula online tem a capacidade de ficar registrado por tempo indeterminado e pode ser recuperado a qualquer momento. O esquecimento aqui indicado é resultado do processamento bem sucedido desses mesmos dados e da materialidade que eles carregam, produzindo uma adaptação constante.

O esquecimento diz respeito a uma falha na elaboração do passado (Adorno, 1995aAdorno, T. W. (1995a). O que significa elaborar o passado. In T. W. Adorno. Educação e emancipação (pp. 29-49). Paz e Terra.), em que se perdem elementos que são necessários à experiência do sujeito, dando lugar à afirmação de tendências que mantêm a sujeição às condições dadas e que tomam a forma de uma autogestão individual permitida pela regulação algorítmica, que vai ditar ritmos, conteúdos e interações. O que personaliza o indivíduo é, ao mesmo tempo, o que é instrumentalizado e aquilo que é particular convertido em uma adaptação personalizada, realizando o potencial totalitário das redes sociais, que revitalizam os mecanismos massificadores da indústria cultural.

A impotência social da ação e do pensamento crítico tem como principal influência “o crescimento do aparato industrial e seu controle que abrangeu todas as esferas da vida” (Marcuse, 1999Marcuse, H. (1999). Tecnologia, guerra e fascismo. Editora Unesp., p. 86). Esse aparato tem como principal efeito a produção do ajustamento para manutenção de uma ordem social estruturalmente opressora e excludente, em que o indivíduo deve assimilar-se a tal ordem como condição para manutenção da sua vida, ou seja, ele acaba por se tornar o próprio objeto dessa estruturação. A isto se segue a deformação das possibilidades de emancipação, desviadas para a realização de interesses privados e levando os indivíduos a agir contra seus pares, de tal forma que o resultado dessa dinâmica é a produção da violência.

A partir da ideia de Marcuse (1999)Marcuse, H. (1999). Tecnologia, guerra e fascismo. Editora Unesp. de que “a segurança e a ordem são, em grande parte, garantidas pelo fato de que o ser humano aprendeu a ajustar seu comportamento ao de seu semelhante até os mínimos detalhes” (p.86), compreende-se como as redes sociais podem cumprir um papel de conformação de tal padronização, impondo ao indivíduo as condições para a sobrevivência, na necessidade de adaptação realizada pelas dinâmicas do funcionamento online. A fim de produzir essa ordem, situações, que no espaço offline são reduzidas, adquirem, no ambiente online, amplitude de quantidade e de alcance, mobilizando tendências capazes de manter o chamado engajamento (Recuero, 2005Recuero, R. C. (2005). Comunidades virtuais em redes sociais na internet: uma proposta de estudo. E-Compós, 4. https://doi.org/10.30962/ec.57
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). A capacidade de manter as interações na plataforma se converte em ativos rentáveis (Morozov, 2018Morozov, E. (2018). Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Ubu, 2018.), e os conteúdos que vão ao encontro de tal lógica são, assim, mantidos em evidência.

Por outro lado, dentro da investigação do lugar da violência mantida em condições de “avanços tecnológicos”, para além do questionamento acerca da relação entre a barbárie e a racionalidade tecnológica, que esclarece um posicionamento sobre o papel das redes sociais, a compreensão de por que os refugiados, no caso aqui analisado, são objeto dessa violência, localiza-se na retomada da questão sobre a relação entre sujeito e objeto (Adorno, 1995bAdorno, T. W. (1995b). Palavras e Sinais: Modelos críticos. Vozes.). É sob o domínio da racionalidade instrumental (Marcuse, 1979Marcuse, H. (1979). A ideologia da sociedade industrial. Zahar.) que o diverso se torna uma ameaça a ser dominada e exterminada, a fim de se manterem a configuração e a integração das forças sociais.

Dessa maneira, não é a possibilidade de experienciar a alteridade que vincula o sujeito ao objeto, mas a violência, na conformação de tal encontro à manutenção da lógica atuante. Assim, reforça-se uma ideia de sujeito baseada na exclusão do objeto, capaz de romper com essa lógica, configurando uma relação predisposta à violência.

As redes sociais se tornam, então, um veículo importante para manutenção dessa dinâmica. O que se inicia como ação de uma minoria racista acaba encontrando um espaço fecundo para ecoar e se fortalecer. Junto aos efeitos massificadores da razão, a serviço de interesses privados, a bolha, ou melhor, o fosso que se forma ao redor do indivíduo, no Facebook, por exemplo, o impede de entrar em contato com pensamentos diversos e intensifica o peso da sua opinião, que aparecem repetidas vezes no seu feed (Recuero, 2005Recuero, R. C. (2005). Comunidades virtuais em redes sociais na internet: uma proposta de estudo. E-Compós, 4. https://doi.org/10.30962/ec.57
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). O indivíduo é reforçado na impressão de haver um conjunto maior de pessoas favoráveis a tal violência, fortalecendo o impulso para a ação violenta. Dessa maneira, o Facebook contém as condições favoráveis para a ordenação de afetos e ideias, facilitando a passagem ao ato (Adorno, 2015Adorno, T. W. (2015). Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Editora Unesp.). Agindo como um espaço de mediação de condutas que deveriam ter sido superadas, a rede assume uma função regressiva ao permitir esse retorno, tornando cada vez mais evidente, conforme Adorno e Horkheimer (2016)Adorno, T. W. (2015). Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Editora Unesp., a manutenção da atividade conservadora do mito nas formas recentes do que se apresenta como progresso.

Conclusões

O estudo aqui apresentado fez uma aproximação reflexiva do impacto dos efeitos do aumento do uso das redes sociais sobre o ordenamento social. O predomínio da racionalidade instrumental, de feição mercantil, impõe a adesão totalitária, antes mesmo de reivindicar a necessidade de disputar o seu uso. O indivíduo, objeto de disputa, tanto pode ser cooptado pelo caráter autoritário do fascismo como pode alcançar um status de resistência. A análise do significado das redes sociais, enquanto espaço de produção e mediação de múltiplas formas de violência, deve considerar tanto a forma e conteúdo específicos que são veiculados na rede como a configuração política que amalgama a sociedade.

Qualquer alternativa implica a necessidade de transformação das bases que ordenam a sociedade, até então voltadas para a produção de formas mais eficientes de expropriação do trabalho e, assim, da vida humana. Desse modo, é insuficiente considerar que a internet, o big data e as redes sociais ameaçam as instituições, uma vez que a lógica que acompanha o seu funcionamento também é parte imanente das instituições (Marcuse, 1999Marcuse, H. (1999). Tecnologia, guerra e fascismo. Editora Unesp.). Os aplicativos digitais têm a capacidade de produzir mobilização real e transformar discursos de ódio em comportamentos violentos quando estão apoiadas em dinâmicas que determinam tal mobilização.

Compreender a barbárie como marca de um tensionamento interno à racionalidade equivale a dizer que há algo que tensiona a própria organização social, um tensionamento ativamente mantido, que existe não apenas como desvio, mas como um projeto orgânico. É importante incluir na análise o movimento histórico da cultura, articulado no âmbito das forças produtivas, em que se inserem as relações entre os indivíduos e que permitem, em última instância, identificar o sujeito como lócus de reflexão e de resistência no compromisso com a emancipação.

Ao reivindicar a liberdade humana como um direito, que deve se expandir a todos, faz-se necessário apontar os modos pelos quais tal liberdade se realiza, resguardando a radicalidade da exigência de emancipação como forma de superação da barbárie. Uma vez que os seus mecanismos de controle estão bem distribuídos e definidos, as transformações isoladas não são suficientes e correm um risco ainda maior de serem convertidas em mais dominação.

A radicalidade necessária consiste, no contexto de crítica da racionalidade e das formas de organização no mundo, em apontar quantas vezes forem necessárias para aquilo que se apresenta como instrumento da dominação. Desse modo, a resistência vincula-se à necessidade de diferenciar o que deve ser superado, ainda que apareça com roupas e discursos novos, e o que é de fato novo, entendido como aquilo que deve fazer parte da construção do futuro.

Espera-se, assim, reforçar a necessidade de se restabelecerem as bases para o desenvolvimento de uma racionalidade que dê conta de desdobrar e sustentar um modo de organização social pautado na realização da emancipação humana. Tais bases devem ser apoiadas na superação das forças que impõem o isolamento entre os indivíduos e enfraquecem as formas coletivas de ordenamento social. Trata-se de uma forma de ação capaz de estabelecer contatos entre as pessoas, em que as experiências dos indivíduos se somem, e não sejam colocadas como empecilho ao desenvolvimento vigente na sociedade de dominação atual (Adorno & Horkheimer, 2006Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (2006). Dialética do esclarecimento. Zahar.).

Tal compreensão, permitida pelas contribuições dos autores da primeira geração da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, reforça a atualidade da dialética do esclarecimento e o encontro com as formulações dos autores a partir de questões que mobilizam o presente, apontando para o duplo esforço que caracteriza a pesquisa teórica: a compreensão da obra em si, no seu recorte temporal, e a elaboração dessa compreensão no sentido de determinar o quanto ela é capaz de revitalizar a interpretação de questões do nosso tempo.

Acompanhando tal contradição, do esclarecimento presente na forma da racionalidade que impacta a capacidade de permitir a transformação ou o aprisionamento da realidade, o artigo pretendeu lançar luz sobre o problema da violência e seus modos de manifestação, como forma de chamar a atenção para os riscos existentes nas tecnologias das redes sociais. Buscou-se, simultaneamente, promover uma ligação entre elaborações produzidas a partir de questões que não mais se apresentam de maneira imediata e os questionamentos surgidos de elementos próprios do momento histórico, com a compreensão de que tais elementos remontam a um prolongamento das forças que ele (?) mantém, determinando os rumos de uma história baseada na dominação e na violência.

Como resposta ao esquecimento que organiza a manutenção da barbárie na dialética do esclarecimento, faz-se necessária a articulação de tais prolongamentos, de modo a compreender e identificar prisões e resgatar o potencial de resistência. O apontamento que resta é o mesmo indicado por Adorno (1995b)Adorno, T. W. (1995b). Palavras e Sinais: Modelos críticos. Vozes. para levar adiante as tentativas de superação da ordem dominante, o atentar-se para os interesses imediatos do indivíduo, capturando aquilo que mais intensamente lhe toca a pele, de onde pode partir a possibilidade de elaboração acerca das ameaças e possibilidades presentes nos enredamentos sociais.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Maria Thereza Sampaio Lucinio - thesampaio@uol.com.br
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    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2020
  • Revisado
    08 Jan 2021
  • Aceito
    25 Mar 2021
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