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De volta ao brejo: a ausência do sublime em Dewey e o sublime na educação 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior – revisao@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Capes/Fulbright

Back to the swamp: the absence of the sublime in Dewey and the sublime in education

Resumo

Neste artigo analiso a ausência do sublime em Dewey e o sublime na educação condensados na pergunta: o que significa para a formação humana afirmar que Dewey ignorou o sublime? Inicio o raciocínio apresentando a ausência do sublime nos escritos do filósofo. Posteriormente, apresento o sublime kantiano e seu impacto nos projetos modernos de emancipação, particularmente o projeto educacional da Bildung americana pautado na naturalização do idealismo objetivo hegeliano. Por fim, trago o sublime kantiano pensado na educação e na política por Lyotard para debater a formação humana e a crise da democracia hoje. O que está em jogo é a disputa entre emoções sem razão na busca de sentido político e educacional no espaço público amplificado pelas mídias sociais: fanatismo e ignorância. Argumento que é por meio da humildade da ignorância que podemos trazer à existência um propósito, a formação humana como uma ética de vida contra o fanatismo no presente.

Palavras-chave
sublime; Bildung; ignorance; John Dewey; Jean-François-Lyotard

Abstract

In the present article I analyze the absence of the sublime feeling in the philosophy of Dewey as condensed in this question: What does it mean to human formation the claim that Dewey ignored the sublime? I start off by presenting the absence of the sublime feeling in Dewey’s philosophy. Then, I present the Kantian sublime and its influence on modern projects of emancipation, especially the educational project in the American Bildung based on the naturalization of Hegel’s objective idealism. Next, I present the Kantian sublime as thought in political and educational terms by Lyotard to discuss human formation and the current crisis of democracy. At stake is the dispute between emotions without reasoning in the search for a purpose to politics and education based on the amplified public space created by social media: fanaticism and ignorance. I argue that by means of ignorance we can bring into existence a purpose to the human formation as an ethics of life against the present fanaticism.

Keywords
sublime; Bildung; ignorância; John Dewey; Jean-François Lyotard

Secar o brejo e criar pontes: metafísica e comunicação

Ao longo dos anos tenho me dedicado ao tempo presente, a agir sobre os problemas, debater os discursos e estudar as estruturas como objeto e ator em uma ontologia do presente. Entre leituras pragmatistas, críticas, hermenêuticas e da diferença, caí no brejo da “analítica do sublime” na teoria estética proposta por Immanuel Kant (1987, 2008). Disso fiquei na dinâmica da sintonia (“attunement”[1987]; “disposição” [2008]) transcendental do sentimento sublime tal qual foi interpretada não apenas no campo dos produtos artísticos, mas particularmente nos campos das práticas que buscam dar sentido a política e a educação.

Entre os pensadores mais recentes que fizeram importantes interpretações do sublime kantiano para dar sentido nessas áreas, destaco primeiramente a filósofa Hannah Arendt. Ao propósito deste trabalho, ela é particularmente importante pois serve de elo interpretativo entre John Dewey e Jean-François Lyotard na questão do sublime kantiano e a busca de propósitos político e educacional. De Arendt (1994)Arendt, H. (1994) The Ivory Tower of Common Sense. In J. Kohn (Ed.), Essays of Understanding: 1930-1954 (pp. 194-96). New York: Schocken Books. contra Dewey, contando com as influências dos alemães modernos supramencionados, refiro-me às críticas contidas no ensaio “The Ivory Tower of Common Sense”. Destaco que o pragmatista é apresentado como um intelectual perdido em sua “torre de marfim” da academia, pois teria se deixado levar por abstrações que o tomaram com um otimismo míope de possibilidade da unidade entre o homem e a sociedade, através dos avanços científicos, caracterizado em sua Bildung americana.

Esse otimismo, enraizado em sua filosofia da educação, teria sido a principal força dos movimentos progressistas que buscaram dar sentido à educação: a defesa de um mundo infantil separado da vida adulta, no qual o primeiro se torna o centro da educação; a defesa de uma ciência da educação enquanto pedagogia, na qual se enfatiza mais o processo do que as pessoas no percurso educativo; e, por fim, o método particular do aprender-fazendo, pelo qual os alunos foram separados das experiências de ensino e aprendizagem dos professores e dos conteúdos. Por tudo isso, Arendt critica Dewey por ter um papel central na crise da autoridade na educação na segunda metade do século XX.

Por sua vez, acredito que o problema da falta de uma atenção de Dewey à questão do sublime em Kant fez mais sentido ao analisar a sua teoria política explicitada a partir das palestras de 1970 (Arendt, 1992Arendt, H. (1992). Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press.). Nelas, Arendttrata o juízo estético kantiano como sendo um tipo de quarta crítica da teoria política que o filósofo de Königsberg não escreveu. Ela se baseia no ajuizamento do sublime para criticar o desejo de unidade entre o ser e o mundo de Hegel quando a unidade não vem. Então a mente “se encontra imediatamente engajada em seu próprio tipo de estado de guerra” (Arendt, 2006Arendt, H. (2006). Between Past and Future. New York: Penguin Books., p. 7-8). A filósofa parte da dinâmica da sintonia transcendental de guerra do sublime para estabelecer o caráter de pluralidade em uma sociedade que seria essencialmente agonística.

Entretanto, ela estabelece que o modo como as pessoas entram nessa sociedade seria por meio de um segundo nascimento enquanto reflexão, o que chama de natalidade como ação por meio da comunicação. Justamente nesse ponto, de maneira irônica, a sua teoria da natalidade é acusada de se envolver com a possibilidade do alcance de uma unidade interna – ainda que, externamente, entre o ser e o mundo, a dinâmica da sintonia do sublime prevaleça. Quem aponta essa contradição na leitura de Arendt da teoria estética de Kant foi Lyotard, outro importante pensador que transitou pelo sentimento sublime para pensar os sentidos da política e da educação. Para ele (Lyotard, 1997Lyotard, J. F. (1997). Sobreviviente. In Lecturas de Infancia (pp. 61-88). Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires.), há uma pressa por parte de Arendt em fazer uma “leitura antropológica” da dinâmica da sintonia transcendental do sublime como sociedade agonística baseada na possibilidade de superar, internamente, o incomensurável, o não-representado, a desarmonia da dinâmica do sublime no jogo livre entre os poderes mentais da imaginação e da razão. Essa seria a justificativa para a pressa, isto é, uma vontade de proteção contra a inquisição do sublime para fazer funcionar a sua noção de natalidade que, por sua vez, buscaria abrigo na harmonia do juízo do gosto ou do belo.

Resumidamente, esse é o caminho das pedras que me trouxe até a ausência de atenção ao sentimento sublime nos escritos de John Dewey. Mas encontrei pouco material sobre o sublime entre os filósofos e educadores seguidores do pragmatista. Por exemplo, no livro Songs of Experience, um alongado estudo acerca das variadas modalidades de experiência e suas interpretações e usos na história da filosofia, Martin Jay (2005)Jay, M. (2005). Songs of Experience. Berkeley: University of California Press. faz apenas um breve comentário ressaltando o fato de que Dewey ignorou o sentimento sublime em sua filosofia pautada na noção de experiência.

Fora dos livros, um bate-papo pela internet com o professor Jim Good, em dezembro de 2014, rendeu algo mais substancial em relação a essa ausência. Reproduzo um trecho dessa conversa abaixo4 4 A conversa é reproduzida com a autorização escrita de Jim Good: “I have often thought that Dewey’s negligence of the sublime, or his under appreciation for human suffering (which seems like a similar complaint), might be a matter of his personality. He seems to have been unusually unflappable in his own life. So perhaps topics like the sublime or suffering did not occupy him the way they would a person who is more likely to fall into depression. I think Dewey went through a very trying time, which is reflected in his poetry, but it did not seem to affect his philosophical thinking as much as one might expect”. :

Eu geralmente acho que Dewey negligenciou o sublime, ou ele apreciou pouco o sofrimento humano – o que me parece ser uma crítica similar, devido a sua personalidade. Ele me parece ter sido, de modo incomum, uma pessoa serena em sua vida. Então talvez tópicos como o sublime ou o sofrimento não o ocuparam de tal modo que ocupariam uma pessoa mais propícia a cair em depressão. Eu acho que Dewey passou por situações muito difíceis, que são refletidas em sua poesia. Mas que não parecem ter afetado o seu pensamento filosófico como esperado.

Para comentar a ausência da análise do sublime nos escritos de Dewey, Good vai do campo filosófico para o campo pessoal e psicológico, pautando na personalidade equilibrada de Dewey uma ausência do sublime em sua filosofia – algo circunscrito apenas às suas poesias. Mas aprofundando na pesquisa, descobri que é o próprio trabalho histórico-filosófico de Good que fornece os elementos para se analisar a ausência do sublime na filosofia de Dewey. Good é um dos expoentes pesquisadores do permanente depósito do idealismo objetivo de Hegel no pensamento de Dewey e na proposta deweyana da Bildung americana5 5 Gostaria de destacar mais dois livros fundamentais à essa linha de pesquisa: o aspecto histórico no trabalho de Louis Menand, The Metaphysical Club (2001); e o aspecto político no trabalho de Robert Westbrook, John Dewey and American Democracy (1991). .

Ao formular sua noção de experiência, Dewey critica a experiência estética estabelecida na Crítica da faculdade do juízo (Kant, 2008Kant, I. (2008). Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária.) como algo isolado dos desejos, das ações e da incitação das emoções. Porém, ele se refere apenas à “torre de marfim do ‘Belo’” (Dewey, 1980Dewey, J. (1980). Plan of Organization of the University Primary School. In J. A. Boydston (Ed.), John Dewey: The Early Works, 1882-1898 (Vol. 5, pp. 223-43). Carbondale: Southern Illinois University Press., p. 253, tradução nossa)6 6 Citação original: “to the ivory tower of ‘Beauty’”. . E qual seria a justificativa filosófica de Dewey para reconstruir apenas a estética do “Belo” em sua noção de experiência?

Parece-me que o ajuizamento do sublime se encaixa na metáfora do “brejo” da metafísica que Dewey tentou secar:

Secar o brejo da metafísica de dentro da lógica da investigação nos permite construir essências duradouras (eidos), propósitos temporários (télos), aperfeiçoamento da essência (entelecheia), fundações relativamente estáveis (arché – até as placas tectônicas se movimentam) e substância suficiente (ousia) para servir de funções à investigação sem a promessa de se completar a busca por certeza

(Dewey citado por Garrison, 2003Garrison, J. (2003). Dewey, Derrida, and the ‘Double Bind’. In Educational Philosophy and Theory 35-3, 349-62., p. 360).

Dewey estava preocupado com a criação de essências duradouras, propósitos temporários, aperfeiçoamento da essência, fundações relativamente estáveis e substância suficiente como elementos da investigação que criam e recriam novos elementos relativos, isto é, fora da exaltada busca pela certeza. Essa crítica de Dewey de secar o brejo que é a metafísica, e ainda assim ter elementos lógicos da investigação, faz sentido à luz de sua metáfora da “ponte natural”. Isto é, a linguagem como o elemento da contínua busca por unidade estável da existência com as essências anteriormente citadas. Essa busca contínua por unidade estável culmina, em sua investigação, nas bases estabelecidas na comunicação – e não em certezas.

… existe uma ponte natural que junta o poço entre existência e essência; a saber, comunicação, linguagem, discurso. O fracasso em reconhecer a presença e funcionalidade dessa interação natural na forma de comunicação cria um abismo entre existência e essência, e esse abismo é factício e gratuito

(Dewey, 1981Dewey, J. (1981). Experience and Nature. In J. A. Boydston (Ed.), John Dewey: The Later Works, 1925-1953 (Vol. 1, pp. 3-326). Carbondale: Southern Illinois University Press., p. 111, tradução nossa)7 7 Citação original: “... there is a natural bridge that joins the gap between existence and essence; namely communication, language, discourse. Failure to acknowledge the presence and operation of natural interaction in the form of communication creates the gulf between existence and essence, and that gulf is factitious and gratuitous”. .

A ponte natural é essa interação entre existência e essência, ou experiência e linguagem. A ponte que funciona para interligar existência e essência é chamada comunicação, linguagem, discurso. A ponte natural coloca Dewey do lado da esperança de sucesso da união como experiência contra o brejo, ou a nova metáfora do “abismo”. Essa esperança é principalmente marcada pela naturalização do idealismo objetivo de Hegel a partir dos avanços da psicologia e da biologia no início do século XX. Desse modo, Dewey se afasta da desesperança no fracasso trazida pelo abismo como experiência. Esse fracasso, por sua vez, é pautado no isolamento da experiência dos desejos, ações e emoções com base no prazer desinteressado e, portanto, “factício e gratuito”, do sentimento sublime de Kant.

No Brasil, esse debate ocorre indiretamente com base nos escritos dos filósofos críticos e da diferença, como Theodor Adorno, Hannah Arendt, Michel Foucault e Lyotard, e seus seguidores. Quem se ocupou com a base do juízo de gosto na noção de experiência de Dewey foi o educador Pedro Pagni. Para ele, mesmo que Dewey tenha reconstruído a sua noção de experiência com base na qualidade estética, ele “acaba por pressupor uma unidade prévia, subordinando o sensível ao inteligível e conciliando a imaginação com as categorias do entendimento”; e conclui, “esse processo implica um juízo do gosto” (Pagni, 2014Pagni, P. (2014). Experiência estética, formação humana e arte de viver: Desafios filosóficos à educação escolar. São Paulo: Edições Loyola., p. 80-81). É justamente nessa pressuposição de uma unidade prévia, que funciona para colocar o sensível e a imaginação em forma e ordem perante o cognitivo e o entendimento, respectivamente, que Dewey nos indica seu afastamento da dinâmica do ajuizamento sublime.

Assim, nesse caminho tortuoso da pesquisa acerca da ausência do sentimento sublime na filosofia de Dewey, passamos por um breve comentário, por uma questão de cunho pessoal (personalidade), e chegamos ao ponto filosófico que nos importa, isto é, o da unidade natural ou prévia da experiência na comunicação. Mas as referências e interpretações em jogo não param por aqui.

David Fott (1998)Fott, D. (1998). John Dewey: Americas’ Philosopher of Democracy. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers. se utiliza justamente da ponte natural para fazer, ao contrário do que argumentamos, uma associação entre o sublime e a noção de consumação da experiência em Dewey. Para Fott, quando Dewey traz o termo naturalizado “consumação”, ele quer dizer a resolução bem-sucedida de um problema do indivíduo e o restabelecimento de sua totalidade integrada com o ambiente. Dewey também chama esse momento de consumação de momento estético da experiência.

O professor Richard Bernstein, um dos principais seguidores vivos de Dewey, contextualiza isso para nós. Para Bernstein (2006, p. 271, tradução nossa)Bernstein, R. (2006). The Ineluctable Lure and Risks of Experience. History and Theory, 45, 261-275., a noção de experiência de Dewey buscou,

… restabelecer algum equilíbrio a algumas posições extremas e extravagantes na trajetória de discussão da experiência estética que se seguiu de Kant. Há um ritmo interno ao “ter uma experiência” – um ritmo no qual existe uma dificuldade sentida, uma ruptura, uma tensão que precisa ser superada e resolvida. Se esse tensão é resolvida de maneira bem-sucedida, então uma nova integralidade é trazida a existência – uma consumação que Dewey chama de momento estético na experiência8 8 Citação original: “... to restore some balance to some of the wild extremes taken in the trajectory of the discussion of aesthetic experience in the aftermath of Kant. There is a rhythm internal to ‘having an experience’ – a rhythm in which there is a felt difficulty, a rupture, a tension that needs to be overcome and resolved. If this tension is successfully resolved then there is a new integrated wholeness – a consummation that Dewey calls the aesthetic moment in experience”. .

Seguindo com Fott (1998, p. 111)Fott, D. (1998). John Dewey: Americas’ Philosopher of Democracy. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers., se a consumação da experiência é esse momento de completude, ele também vai dizer que tal momento faz emergir um “senso de incompletude”, no caso, uma paradoxal continuidade do abismo entre existência e essência. Por sua vez, essa incompletude aponta na direção de uma nova série de eventos que irá incorporar progressivamente as resoluções dos momentos de consumação anteriores nas novas experiências – o que em Dewey se constitui como continuidade. Essa dinâmica de completude pela comunicação e incompletude do abismo seria, portanto, uma característica um tanto sublime da noção de experiência e sua continuidade em Dewey.

Acontece que pautar uma possível associação entre o sublime e a noção de consumação da experiência em Dewey na incompletude da experiência é não dar o devido valor à análise do sentimento e do ajuizamento sublime. E isso é tão, ou mais importante, do que ignorá-lo ao se pensar os desafios da formação humana no presente. Assim, me proponho a investigar mais profundamente o sublime à luz da formação individual e da formação do espaço público em nosso presente. Ao longo do texto, posicionarei o sentimento sublime kantiano perante a unidade natural da experiência e as características atribuídas ao sublime por Good, Fott e pelo próprio Dewey, isto é, sofrimento, incompletude como progresso e isolamento9 9 Não considerarei a questão da depressão neste artigo por extrapolar o seu foco técnico, a saber, a dinâmica da sintonia do sublime em teorias filo-educacionais organizadas com a finalidade de apontar o propósito da educação e produzir conhecimentos práticos para a execução de ensino. Contudo, se a depressão pode ser caracterizada, de modo geral, como um estado de baixa do espírito, então o que se pode considerar sublime é a melancolia, pois trata-se de uma depressão severa caracterizada por uma profunda tristeza. .

O sublime kantiano como brejo

Basicamente, no juízo determinante, o particular é subsumido sob o universal, seja um conceito, um princípio ou uma regra. Essa dinâmica de subsumir particulares sob o universal também acontece mesmo quando o universal, que prescreve o domínio do particular, é ausente. Isso se dá quando incorremos em um problema para o qual ainda não temos uma resposta, um conceito, princípio ou regra que nos ajude a resolver a situação à frente, organizando-a. Daí um outro modo de ajuizamento emerge, o estético, cuja dinâmica da sintonia com o mundo é a reflexiva do livre jogo (free play) das faculdades mentais no ato de julgar; portanto, subjetiva.

No caso do ajuizamento estético do gosto sobre o belo, é pressuposto uma livre interação harmônica entre as faculdades da imaginação e da cognição. Kant (2008, p. 104)Kant, I. (2008). Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária. diz que, ao apresentar um juízo de gosto sobre o belo, a mente encontra-se em um estado de “tranquila contemplação” da apresentação, uma harmonia subjetiva prazerosa. A dinâmica do ajuizamento do gosto envolve uma apreensão dos objetos das artes ou da natureza pela imaginação (apresentação), sua expressão pela linguagem (expressividade) e sua comunicação na sociedade na qual se apela, como dedução universal do julgamento do gosto, ao sentido comum. Portanto, ao emitir um juízo de gosto, mesmo sendo subjetivo, eu espero que todos concordem com o meu juízo.

Vejamos isso melhor. A qualidade “lindo” não é atributo objetivo de, digamos, um cavalo, mas uma qualidade subjetiva que sinto pelo prazer trazido pelo jogo livre entre a imaginação e a cognição. Tratar a qualidade subjetiva como se tivesse característica objetiva é um erro. Para Kant (2008, p. 103)Kant, I. (1987). Critique of Judgment. Indianapolis: Hackett. esse erro ocorre como uma fraude do ajuizamento ao atribuir qualidade cognitiva ao juízo estético de um objeto, uma confusão chamada de “sub-repção”. Em sua Tese inaugural, de 1770, Kant (1987, p. 114, nota de rodapé do tradutor)Kant, I. (1987). Critique of Judgment. Indianapolis: Hackett. a chama de “falácia da sub-repção”, quando o nosso intelecto aplica um truque ao escorregar um conceito do sentido como se fosse o conceito dotado de características intelectuais do entendimento. Mas, como vimos, o ajuizamento do belo é apresentado como uma harmonia subjetiva das faculdades mentais desqualificada de características intelectuais. Se há o apelo ao consenso universal, este é apenas condicional no sentido de como se todos concordassem comigo, apenas de maneira intersubjetiva.

Do mesmo modo que o juízo do gosto emerge do prazer no jogo livre das faculdades, o ajuizamento do sublime também não é sobre o universal, a categoria de um conceito, princípio ou regra. Mas também não é exclusivamente sobre o prazer e a comunicabilidade universal deduzida pelo sentido comum. Ele emerge do poder e do medo. O poder de uma força da natureza que é apresentada, que aparece como grandiosa (matemático), como poderosa, como temível (dinâmico), e o medo que emerge na inabilidade de a imaginação sequer apreender e apresentar essa afetação. Nesse ajuizamento, ao tentar representar o sublime na natureza, o “ânimo sente-se movido”, em vibração. Esse movimento é provocado pelo excesso da escala da experiência, que faz o ânimo agitado, abalado pela deformidade, pela falta de forma que se parece a um “abismo” provocado pela alteração entre a repulsa e a atração ao mesmo objeto (Kant, 2008Kant, I. (2008). Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 104).

A peculiaridade da experiência do ajuizamento sublime é que ela apenas emerge via essa força da natureza como algo sentido necessariamente como uma violência. A dinâmica do sublime envolve esse sentimento de violência que provoca, mesmo diante da inabilidade da imaginação, um movimento de dominação prazerosa da natureza que se coloca como uma violência ainda maior do que a sentida como força da natureza. E por se tratar de um prazer no ato de dominação do sublime sobre o particular, que emerge mesmo e apesar da inabilidade da imaginação, que o ajuizamento sublime se insere como um prazer desinteressado, desprovido de sentido, de interesse, de vontade e sem propósito.

Por isso podemos dizer que essa dinâmica do ajuizamento sublime é pautada nessa dupla percepção: (i) percebermos o momento de dominação prazerosa (atração); e (ii) percebemos o momento da inabilidade de nos mover para além do momento da grandiosidade como aparece à mente, de nos mover para além da repulsa. Daí o prazer no sublime ser considerado um prazer na dor, isto é, no ajuizamento sublime o “prazer procede da dor” (Gasché, 2007Gasché, R. (2007). The Honor of Thinking: Critique, Theory, Philosophy. Stanford: Stanford University Press., p. 352). Por isso que Good associa o sublime ao sofrimento. Mas se Dewey o evitou, filosoficamente foi justamente por causa da sua dinâmica subjetiva, isto é, um ajuizamento que faz o ser tentar sair do brejo puxando-se pelo próprio cabelo (Raspel, 2010Raspel, R. E. (2010). Aventuras do Barão de Munchausen. São Paulo: Iluminuras.) nessa dupla percepção entre prazer e dor como um puxa e empurra entre dominação e inabilidade para tal, na qual nada pode vir a acontecer, nada pode ser trazido à existência via expressividade e compartilhada via comunicação. Por isso que não faz sentido associar a incompletude como progresso na consumação com o sublime que menciona Fott. Pois se o momento estético da experiência em Dewey é a consumação da experiência, no sublime é nessa dupla percepção que frustra a consumação que encontramos o momento estético do sublime.

Mas essa frustração, este estado miserável da inabilidade de consumir a experiência é também o momento fundador da nossa subjetividade, o nosso eu. O sublime o funda na “analítica” ao legitimar justamente o domínio e a violência exercida no ato de julgar do sujeito, em termos de subsunção: a dominação no sublime se pauta no ânimo de um prazer desinteressado no qual a violência do ajuizamento se torna bela, melhor dizendo, se torna sublime. Na origem do sujeito no sublime, o que a dupla percepção faz é encurtar a distância entre o ser e a natureza externa, por um lado, e a distância interna entre a percepção da natureza como temível, grandiosa, e o medo sensível dela. Esse duplo encurtamento faz com que o indivíduo civilizado, da sociedade, da cultura, colapse com a pessoa, com o corpo, com o sujeito enquanto natureza. O preço a ser pago pelo indivíduo na sociedade ao se elevar sobre a natureza é o de ter que se reduzir ao mesmo princípio de sobrevivência que mantém a pessoa viva na natureza, a saber, a autopreservação diante dos perigos sensíveis. Essa redução para se autopreservar diante da violência sentida gera um sentimento de humildade que mantém a humanidade do ser, pois faz emergir o momento de elevação do ser sobre a natureza como experiência sublime enquanto uma busca ética.

A justificativa para isso é que essa sintonia ligada ao sublime tem um caráter sagrado, e não natural, como vimos na comunicação em Dewey. A premissa do prazer na experiência sublime é o sentimento de um sacrifício ou privação. Mas qual o sacrifício em questão? É o da imaginação em render seus poderes. Quanto mais a imaginação rende seus poderes de apresentar a grandiosidade da natureza, mais ela se expande e adquire poder. Nessa rendição da imaginação é que ela consegue ultrapassar seus próprios limites. Em outras palavras, esse intercâmbio ocorre primeiramente com a imaginação percebendo a sua completa falta de poder, sua inabilidade em apresentar algo à mente, sua extrema escassez. Escasso, o ato de dominação na submissão do universal sobre o particular apenas se insere como um prazer desinteressado, desprovido de sentido, de interesse, de vontade e sem propósito – desinteresse inscrito na analítica do sublime de Kant como supersensível. O supersensível é algo para além dos sentidos, da cognição e até mesmo da razão; então em um segundo momento, o sublime percebe o verdadeiro sentido desse intercâmbio: a contínua abundância do supersensível.

É também nesse sentido que o ajuizamento sublime fica ausente na filosofia de Dewey, ele não aceita o abismo da coisa em si, do supersensível kantiano. Em “Human Nature and Conduct”, Dewey (1988a, p. 126, tradução nossa)Dewey, J. (1988a). Human Nature and Conduct. In J. A. Boydston (Ed.), John Dewey: The Middle Works, 1899-1924 (Vol. 14, pp. 1-227). Carbondale: Southern Illinois University Press. diz queno crescimento o indivíduo deixa para trás a “imensidão ilógica (inane) do desconhecido à solta” para habitar naquele “desconhecido especial que quando aparece na imaginação (hit upon) reestabelece uma ação ordenada e unificada”10 10 Citação original: “... immense inane of the unknown at large”; “... special unknown which when it is hit upon restores an ordered, unified action. ” . Ao indagar essa imensidão ilógica, percebemos o quão o sentimento sublime retarda e problematiza os projetos de emancipação modernos e a busca de liberdade do sujeito e da sociedade na democracia moderna. Particularmente, refiro-me ao projeto educacional deweyano de uma Bildung americana com base na investigação como atitude científica e na comunicação para a formação de indivíduos integrais e em harmonia com o seu ambiente.

A ponte: comunicação na Bildung americana

O modelo de educação da Bildung hegeliana exerceu forte influência nos intelectuais americanos na segunda metade do século XIX. Entre eles encontrava-se um grupo conhecido como “os hegelianos de St. Louis” – principal cidade no estado do Missouri. Eles aderiram e reconstruíram a Bildung de modo a fazer surgir um idealismo americano ímpar, um que influenciou fortemente Dewey. Good (2005, p. xx, tradução nossa)Good, J. A. (2005). A Search for Unity in Diversity: The “Permanent Hegelian Deposit” in the Philosophy of John Dewey. New York: Lexington Books. nos diz: “… o impacto mais significativo do hegelianismo no pensamento maduro de Dewey é o modelo filosófico da Bildung11 11 Citação original: “... the most significant Hegelian deposit in Dewey’s mature thought is Bildung model of philosophy”. .

A Bildung arquitetada e defendida pelos hegelianos de St. Louis foi reconstruída no seguinte termo: tomar Hegel a partir da condição americana, a saber, seu compromisso de oferecer oportunidades no estado moderno a pessoas subdesenvolvidas, a unificação da nação com a conquista da fronteira do Oeste e a criação de estados livres após a Guerra Civil. Contrários ao caráter elitista da Bildung hegeliana, emblemática na figura do homem cosmopolita, os hegelianos de St. Louis assumiram que qualquer pessoa com uma mente voltada à investigação era capaz de lidar com elementos da lógica especulativa e aplicá-los a problemas práticos. Entre suas ações, advogaram, com sucesso, que o sistema de ensino público deveria se basear na Bildung americana.

As escolas públicas fundamentadas na Bildung americana se tornariam o lugar onde crianças e jovens aprenderiam como pensar, de maneira crítica e persistente, os ideais próprios e alheios, bem como os ideais da sociedade. A capacidade lógica individual deveria ser colocada a serviço dos problemas práticos e da busca de soluções. O sentido do ensino era formar os alunos para, em última instância, exporem os modos nos quais as práticas vigentes ficassem aquém dos ideais – onde houvesse um abismo, um brejo entre existência e essência. Nesse caso, a base filosófica para a formação na Bildung americana deveria ser a sabedoria prática.

Para tanto, seria necessária uma preparação filosófica no sentido deixá-los aptos a desenvolver estudos interdisciplinares de modo a ter uma visão holística dos ideais da sociedade, suas práticas e instituições. E as duas grandes ameaças filosóficas à Bildung americana eram a modalização da experiência, com uma preferência extravagante para a epistemologia e a lógica, e a profissionalização da filosofia, que se solidificou nos Estados Unidos no início do século XX com os realistas kantianos subindo ao poder na condução da American Philosophical Association.

Dewey se tornou um importante pensador e ativista da Bildung americana ao encarar de frente essas duas ameaças. Essa influência no pensamento de Dewey é exibida pela primeira vez no livro Psicology (1980), de 1887, no qual Dewey assume, em oposição ao privilégio dado pelos neo-hegelianos britânicos às questões epistemológicas e lógicas, uma filosofia orientada mais para as questões práticas e éticas e a busca de uma unidade entre o indivíduo e a sociedade. Para Dewey, a filosofia não deveria estar subordinada à epistemologia e a lógica não deveria ser colocada na frente da vida. Nessa esteira, em 1890, Dewey (1980, p. 53-54)Dewey, J. (1980). Plan of Organization of the University Primary School. In J. A. Boydston (Ed.), John Dewey: The Early Works, 1882-1898 (Vol. 5, pp. 223-43). Carbondale: Southern Illinois University Press. escreveu um dos poucos artigos diretamente voltado ao ensino superior, no qual ele afirma que este “não deve ser sobre a aprendizagem de fatos, mas sobre a formação do caráter”.

Já como presidente da American Philosophical Associationem 1905, antes da subida dos realistas kantianos ao poder, em seu discurso de posse, Dewey tentou acordar seus colegas da “imperturbabilidade desapaixonada” trazida pela profissionalização da filosofia e suas categorias profissionais, como sensacionalista ou idealista, positivista ou transcendentalista ou, ainda, materialista ou espiritualista (Good, 2007Good, J. A., & Garrison, J. (2013). Traces of Hegelian Bildung in Dewey’s Philosophy. In P. Fairfield, John Dewey and Continental Philosophy (pp. 44-68). Carbondale: Southern Illinois University Press., p. 237).

Assim, Dewey manteve ao longo dos seus escritos a luta contra a modalização da experiência e a profissionalização da filosofia, com o foco no indivíduo comum e sua capacidade de pensar logicamente enquanto princípio ético para a construção de uma Bildung americana democrática, inclusiva. As disputas iniciais contra as filosofias modernas eram centradas na questão da consciência, desde o cartesianismo até os neo-kantianos, havia a defesa de uma substância exterior à experiência, seja o cogito ergo sum ou a coisa-em-si kantiana. Era implícito nessas filosofias que a consciência se referia a um indivíduo autossuficiente cujas atribuições mentais antecediam o espaço público, as suas interações sociais e a constituição de instituições. A própria “Analítica do sublime” (Kant, 2008Kant, I. (2008). Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária.) se faz como uma crítica à consciência como um indivíduo autossuficiente. E posteriormente a crítica hegeliana a Kant e o impacto permanente do idealismo de Hegel em Dewey é justamente pautado na crítica à crença de que objetos do conhecimento humano existissem antes das operações do pensamento.

Isso significa que Dewey refuta a ideia de uma consciência antecedente transcendental para se debruçar nos movimentos ativos do ajuizamento, da criação de significados compartilhados à participação social. Assim, há uma importante virada na comunicação da Bildung americana: a consciência depende da comunicação, e não o contrário – Dewey afirma que até mesmo o solilóquio é trazido à existência pelo fato de que existe uma vida associada que o precede, na qual significados são expressos e compartilhados, comunicados. Daí que, para Dewey (1958, p. 166), comunicar-se é “a mais maravilhosa” das realidades humanas no processo participativo da vida associada.

Esse foco na atividade do pensar-fazer encontra um lugar de destaque na busca pela Bildung americana como um modo de educação cujo propósito é o crescimento. Vejamos com Garrison (1997)Garrison, J. (1997). Dewey and Eros: Wisdom and Desire in the Art of Teaching. New York: Teachers College Press. como a educação pautada na comunicação e na sabedoria prática produz esse crescimento na boa docência. O autor (1997) apresenta a estória do aluno Tony Mitchells e como a percepção moral na prática docente ajudou na criatividade de Tony na sala de aula. Tony era um aluno do estado de Iowa com pouca escolarização, mas que deveria aprender as competências e corresponder às provas aplicadas na aula de inglês (language arts) do quarto ano do ensino fundamental. As aulas eram direcionadas a aprendizagem da leitura, escrita, gramática e soletração. Judith Samuelson era a professora da classe e responsável pelo currículo. Ela fazia os alunos lerem e comentarem livros infantis, ainda que ela sempre tivesse as melhores respostas na ponta da língua. Ela tinha como meta educar os alunos nas mecânicas da alfabetização e sua prática docente ficava sob a pressão da instrução do currículo e das provas internas, e das avaliações externas aos alunos.

No caso de Tony, e de qualquer outro aluno americano do quarto ano do ensino fundamental de Iowa, as provas internas se enfileiravam com uma extensa agenda de avaliações externas: duas provas estaduais obrigatórias: o teste do passaporte da alfabetização em fevereiro e o teste de Iowa de capacidades básicas em março; também era aplicado um teste regional obrigatório chamado “Pesquisa do alcance das capacidades básicas” no início de maio; somam-se às avaliações externas, sete provas administradas sob a supervisão da psicóloga da escola, entre elas: a escala de inteligência de Wechsler, o teste de inteligência não-verbal e o teste de vocabulário de imagens Peabody.

Tony ia mal nos testes e nos exercícios em sala de aula e a única justificativa para a sua performance se pautava na sua reentrada atrasada na educação formal. Sua família trabalhava com circo e viajava constantemente, e tal situação era apontada como a única responsável pelo baixo desempenho escolar de Tony.

Então surgiu Pam Simpson na vida do garoto. Pam era estagiária (teacher observer) na sala de aula e se ofereceu para ensinar sobre um determinado livro, ultrapassando os limites do currículo e as interações superficiais com os alunos para chamar à existência, por meio de sua prática pedagógica, novos valores. Escrever uma autobiografia inspirado no livro trabalhado por Pam se tornou a ferramenta criativa de Tony, na qual ele pôde ultrapassar os limites da sua condição social, se expressar e comunicar suas habilidades de leitura e escrita com os outros em sala de aula. Por parte da estagiária, essa experiência permitiu que as habilidades individuais do aluno fossem vistas e ouvidas durante a atividade.

A atitude de Pam que a permitiu ver e ouvir as habilidades de Tony é a percepção moral exigida na prática docente. E trazer as habilidades de Tony à existência com uma autobiografia é a percepção estética exigida na prática docente. Segue que essa percepção é o requerimento moral fundamental do professor na filosofia de Dewey. Em outras palavras, ele tem uma responsabilidade moral em cultivar sua percepção estética sobre os alunos na sala de aula. A percepção da responsabilidade moral que permite aos alunos trazerem à existência seus desejos e paixões desafia práticas docentes centradas em avaliações e, por conseguinte, no certo e errado da cultura científica especializada dominante (o que não quer dizer que não exista certo e errado na instrução). Sem dúvida que a atitude de Pam desafiou a professora Judith, presa, infelizmente, à instrução do currículo e às pressões das provas internas e das avaliações externas dos alunos.

O próprio domínio da cultura científica na educação mostra o quão complexo é trabalhar com seres humanos, e atividades como a prática docente estão no centro dessa complexidade. Daí Garrison se perguntar logo no início do livro: “Que coisa é essa que todo professor entende intuitivamente e que está entremeado em suas práticas cotidianas, ainda que ausente de quase todas as teorias e pesquisas sobre ensino?” (1997, p. xix, tradução nossa)12 12 Citação original: “What is this thing that every teacher intuitively understand lies in the middle of everyday practice yet is missing from almost all theory and research on teaching?” .

A resposta de Garrison é o amor e o cuidado, no sentido de ver e ouvir as necessidades, emoções, desejos, interesses e propósitos dos alunos; no sentido de simpatia, base da boa docência. O professor entende isso intuitivamente pois ainda não existem métodos altamente refinados em sala de aula para coletar dados emocionais dos alunos. As teorias sobre o pensamento, o sentimento e a ação humana têm um campo aberto para se desenvolverem.

Mas as disputas sociais e econômicas no século XX, legitimadas na própria autoridade dentro do regime democrático, por um lado, e na intersecção entre ciência e tecnologia, por outro, estabeleceram uma nova Bildung com base na formação técnica profissional em substituição à esperança do projeto da Bildung americana de Dewey e à boa docência. Isso exigiu que outras noções de experiência pautadas na diferença, na pluralidade e, principalmente, no sublime fossem trazidas à existência.

De volta ao brejo: o sublime kantiano na educação de Lyotard

Se Lyotard não possui uma filosofia da educação organizada e explicitada, como Dewey, ainda assim sua inquisição sobre o sentimento e o ajuizamento do sublime lhe rendeu uma narrativa filo-educacional apresentada como um sinal que se insinua nos propósitos da educação e na formação de conhecimentos para a prática de ensino. Lyotard (1991, p. 52, tradução nossa)Lyotard, J. F. (1991). Lessons on the Analytic of the Sublime. Stanford: Stanford University Press. diz: “pode ser dito que no sentimento sublime o pensamento se torna impaciente, desesperado, desinteressado em buscar os propósitos da liberdade por meio da natureza”13 13 Citação original: “It might be said that in the sublime feeling thinking becomes impatient, despairing, disinterested in attaining the ends of freedom by means of nature”. .

Como vimos anteriormente, no sentimento sublime a imaginação falha em apresentar qualquer objeto que pudesse harmonizar com o mundo, mesmo que em princípio. Daí que o pensamento se torna impaciente, desesperado, desinteressado em buscar qualquer finalidade para a experiência ou a ação. Mais especificamente, as interações entre as faculdades mentais tomadas pelo sublime se tornam incomensuráveis, encontram-se em um estado de desarmonia. No caso, o pensamento é tomado por um sentimento de horror do incomunicável, que é um sentimento de medo do abandono. É algo que sentimos como se não suportássemos a experiência pela qual passamos, seja com o corpo (sublime dinâmico) ou a razão (sublime matemático).

Avançando sobre o sublime kantiano, Lyotard (1984)Lyotard, J. F. (1984). The Postmodern Condition: A Report on Knowledge: Minneapolis: University of Minnesota Press. apresenta umainterpretação do juízo estético de Kant para o campo político e oferece, nesse termo, uma explicação ao medo do abandono. Ele o associa a uma força que empurra diferenças, disputas ou litígios para além dos limites dos jogos da linguagem atuais, tais como denotações que estabelecem distinções entre verdadeiro ou falso, ou percepções que estabelecem distinções entre justo e injusto. O terror emerge quando, em vez das partes trazerem à existência mais expressividades e diálogos para as disputas, essa força faz com que as partes tentem eliminar o outro – e não aplicar uma jogada melhor do que a da outra parte. Uma vez que o ambiente é dominado pelo terror, os laços sociais são destruídos, pois as escolhas passam a ser: subsumir-se às necessidades, emoções, desejos, interesses e propósitos do outro; ou calar-se para sempre.

Essa interpretação do juízo estético de Kant para o campo político lhe rendeu debates e litígios. Um deles envolveu filósofos que acham que o estado dominado pelo terror e, portanto, o estado totalitário, emerge da presença da Ideia na experiência, em uma relação de justaposição entre razão especulativa e totalitarismo, como o colocado adiante pelo filósofo francês Gérard Raulet para explicar o nazismo. Esse erro é comum entre os hegelianos que trouxeram a noção dialética do acúmulo da experiência para o domínio da política, como se o estado totalitário pudesse ser explicado em termos ideológicos como a superioridade da síntese da experiência de determinados grupos sobre outros. Mas, para Lyotard, os estados totalitários não apelam para a síntese, ao invés eles apelam para a autoridade dentro do regime democrático para instaurar políticas de exclusão, exceção e extermínio.

Outra confusão comum acerca do domínio do terror que envolveu Lyotard em litígios filosóficos é a justaposição entre filosofia do sublime e terror. O destaque de Lyotard aqui é que o terror não é produzido através de políticas da razão prática pura, o que se assemelharia a uma política do sublime. Um absurdo do ponto de vista do papel do status quo e, mais especificamente, dos gestores públicos na formulação de políticas públicas no governo dos indivíduos e da sociedade. Mas foi isso o que muitos pensaram a respeito da condição pós-moderna de Lyotard, de que tratava-se de uma filosofia política do sublime.

Pelo contrário, como é analisado na condição pós-moderna, o terror é fruto de uma impaciência criminosa sentida por aqueles que sustentam uma ética universalista e são confrontados com os obstáculos irrisórios dos eventos singulares. Por isso que o pensador francês acredita que o terror é engendrado na “suspeita interminável de que toda e qualquer consciência pode manter persistente e secretamente um pensamento sobre qualquer objeto, incluindo sobre si própria” (Lyotard, 2003Lyotard, J. F. (2003). The Postmodern Explained. Minneapolis: University of Minnesota Press., p. 69, tradução nossa)14 14 Citação original: “... interminable suspicion that each consciousness can harbor about any object, including itself”. . Essa suspeita revive o abismo da coisa-em-si kantiana e do sentimento sublime diante do movimento da imaginação e do conceito forjado no juízo determinante e no ajuizamento reflexivo do gosto. No caso, o sublime insinua um abismo na base dos próprios discursos emancipatórios, tais como aqueles que incitam a Bildung e um sentimento nostálgico por unidade por meio da ponte natural, da comunicação como o mais maravilhoso instrumento da vida em comunidade. Daí que, em vez de apresentar uma filosofia política do sublime, a análise do sublime obrigou Lyotard a escrever o epíteto do projeto de emancipação moderno ao mesmo tempo em que colocou para frente uma interpretação do sublime na educação para um cenário para além do moderno.

No que diz respeito à relação professor e aluno, vale destacar que o sentimento sublime se insere como terror e abandono na dimensão artística e política da prática pedagógica como o ânimo de que nada venha a ocorrer, tanto por parte do professor quanto do aluno. É justamente esse tempo e espaço onde e quando nada acontece que Lyotard chama de inumano.

Trazer a noção do inumano à existência implica um ato de fortalecer o sentido do irrepresentável na representação. No livro O inumano, Lyotard (1992b)Lyotard, J. F. (1992b). The Inhuman: Reflections on Time. Stanford: Stanford University Press. afirma que trata-se de uma condição humana marginalizada no progresso da ciência, da revolução industrial e no desenvolvimento da economia centrada na democracia. Ao mesmo tempo trata-se da condição ontológica do humano, algo que sempre o habitou e, portanto, a sua própria possibilidade enquanto tal.

Em um outro livro escrito após as polêmicas com Habermas e Rorty acerca da condição pós-moderna, Lyotard (2003)Lyotard, J. F. (2003). The Postmodern Explained. Minneapolis: University of Minnesota Press. relaciona a condição inumana do humano à infância. A infância enquanto uma condição, e não uma cronologia no desenvolvimento humano, é o “risco de estar à deriva”, é aquilo que tira o humano do seu curso (Lyotard, 2003Lyotard, J. F. (2003). The Postmodern Explained. Minneapolis: University of Minnesota Press., p. 101, tradução nossa)15 15 Citação original: “... risk of being adrift”. . Como o pintor que nada produz em sua tela enquanto espera que algo aconteça, algo que lhe afete, é importante que os professores reconheçam que esse ambiente educativo abandonado, deficiente, miserável, desapoderado, à deriva, fora de curso se constitui como a própria possibilidade de educação. Aqui, ao invés de recorrer à defesa do momento estético da experiência em sala de aula com base na ponte natural da comunicação, o francês afirma que é o trabalho do filosofar que salva o inumano, que salva o infante no ambiente escolar.

Nesse caso, qual é a relação do filosofar, se não natural como a ponte da comunicação, com os conhecimentos e habilidades profissionais organizados no currículo? Primeiramente, o ajuizamento sublime, de um lado, e do outro os conhecimentos e habilidades profissionais, não são antíteses, isto é, um não é o oposto do outro dentro da relação retórica. Pois suas lógicas não são dialeticamente relacionadas – cometer esse erro é fazer a síntese entre eles. Para Lyotard, o ajuizamento sublime e os conhecimentos e habilidades profissionais estão em uma relação de aposição, uma paratésis, ao invés de uma antítese, no sentido de que ambas as linguagens podem fornecer uma base ao sentido do ensino, mas não em comunhão, em comunidade, pois não há afinidade de uma com a outra.

A relação estabelecida é a de substituição de uma linguagem pela outra. Mas se elas não são antitéticas, mas paratésis, então a infância do pensar é precisamente aquilo que retarda e problematiza o projeto do Iluminismo e a busca do sujeito autônomo. Também retarda e problematiza o projeto educacional de uma Bildung americana com base na atitude científica para a formação profunda e desinteressada de indivíduos integrais e em harmonia com o seu ambiente. A infância do pensamento é precisamente aquele momento de interrupção desses projetos.

De modo geral, Lyotard entende que a premissa dominante no campo da educação ainda é a de que o humano vem dotado de uma mente inadequada ao mundo e, por isso, precisa ser reformada via pedagogia pautada no treinamento. Daí que surge a noção, que Lyotard traz, de que a infância é o monstro da filosofia.

Isso porque a infância é justamente o risco de estar à deriva, aquilo que tira o humano do seu curso. Assim, a infância é aposta à realidade do cumprimento do currículo em sala de aula. Pois o currículo está pautado na ideia de progressão e no princípio do ganho de tempo, semana após semana no curso escolar por meio de aulas expositivas e lições organizadas no plano de ensino. Tanto a progressão quanto o ganho de tempo se desdobram em iniciativas escolares com base nos valores da prospecção, do desenvolvimento, da meta, da performance, da velocidade, dos contratos, da execução, do preenchimento, e por aí segue. Daí que o fim da educação, ou é estabelecido de maneira autoritária e externa à relação professor e aluno, ou é estabelecido de maneira artificial e interna à relação professor e aluno.

Para Lyotard, educação, mais precisamente educação filosófica, está historicamente associada ao treinamento, o que ele liga à pedagogia e a reformas políticas sob a égide do modelo educacional da Bildung hegeliana. As bases da pedagogia e da reforma educacional assumem a figura do mestre, que vem para salvar a mente que encontra-se em um possível estado de infância e que, ao mesmo tempo, aguarda se completar. A base da pedagogia na figura do mestre tem uma lógica formativa pautada na noção do regresso infinito: quem ensina os alunos? Os professores! Quem ensina os professores? Os professores educadores! Quem ensina os professores educadores? São os professores educadores que formam outros professores educadores! E assim em diante, naquilo que Lyotard (2003, p. 100)Lyotard, J. F. (2003). The Postmodern Explained. Minneapolis: University of Minnesota Press. denomina de “circulus vitiosus”, e que termina em aporia desde Platão.

Para que uma nova subjetividade surja aquém e além da atividade formativa estabelecida no regresso infinito da educação, é preciso filosofar enquanto uma disposição autodidata, pautada no trabalho duradouro, obstinado e altamente responsável provocado pelo sentimento sublime. Daí que não se confunde com a educação filosófica, isto é, com o treinamento em filosofia com vistas à profissionalização filosófica. A atividade autodidata enquanto atividade formativa de aposição ao cumprimento do currículo no curso escolar traz à existência a necessidade constante de recomeçar e, assim, a necessidade constante de renovar os laços com a condição da infância de estar à deriva, ser tirado do curso. Essa disposição por uma atividade autodidata enquanto isolamento da sociedade é a resposta ao círculo vicioso formativo e pode ser entendida como algo sublime se estiver assentada em uma ideia para além do interesse sensível. É um isolamento sem retornar à barbárie, sem ser insociável, pois não se trata de abandonar a sociedade. Trata-se da própria dinâmica de origem da sociedade, da civilização, da cultura com uma vibração que pode ser considerada o tom ético na origem.

Seguindo esse tom ético, temos que a finalidade primária da educação é o trabalho com a descompostura. No que diz respeito à formação humana, a descompostura aponta para uma formação reversa, para um “esquecimento inicial”. Esse esquecimento faz a pessoa aprender a perder a forma, provocada pela deformidade, pela falta de forma (formlessness) no jogo livre das faculdades mentais quanto à profunda antipatia a certos princípios. Essa questão marca uma importante distinção com a boa docência pautada em Dewey. Se lá o que faz a boa docência funcionar é o sentimento de simpatia do professor provocada pelas mazelas de vida do aluno, na descompostura é um profundo sentimento de antipatia que agita o ânimo.

Assim, no que diz respeito à educação escolar, esse trabalho duradouro e obstinado requer como premissa um sentido de paciência, ao invés dos sentidos de progresso e ganho de tempo. É um trabalho aposto à impaciência criminosa sentida por aqueles que sustentam uma ética universalista e são confrontados com os obstáculos irrisórios dos eventos singulares. A paciência deve ser exercida, por conseguinte, na leitura filosófica na qual se faz presente a capacidade de ouvir enquanto se lê e, assim, se aprende a desaprender.

O brejo e a lama: o sublime e a paixão na política contemporânea

Com a inclusão de bilhões de pessoas do campo e da cidade nas mídias sociais, o que se testemunhou em meio ao epíteto dos projetos de emancipação modernos foi a criação e a tomada de um novo espaço público de debate e litígios acerca do modo como somos governados. Se a criação desse espaço público ocorreu pelas interações nas novas tecnologias de comunicação, a sua tomada ocorreu pela participação violenta e dominante em um espaço público agonístico, inclusive e principalmente em países democráticos como a Inglaterra, o Brasil e os Estados Unidos.

Esse ponto foi recentemente corroborado pelo neurocientista Antônio Damásio. Em um ensaio intitulado “The Link Between the Governing and Governed is Broken: Will chaos or a new consensus follow” (2019), ao debater o importante livro Rupture: the crisis of liberal democracy, de Manuel Castells (2018)Castells, M. (2018). Rupture: The Crisis of Liberal Democracy. Cambridge: Polity., Damásio (citado por Gardels, 2019Gardels, N. (2019). The Link Between the Governing and Governed is Broken: Will chaos or a new consensus follow? The World Post – Berggruen Institute. Recuperado de https://www.berggruen.org/the-worldpost/articles/weekend-roundup-the-link-between-the-governing-and-governed-is-broken/
https://www.berggruen.org/the-worldpost/...
, tradução nossa) diz:

… essas mesmas redes de participação social que desempenharam um papel fundamental na superação da antiga ordem e são agora a plataforma-padrão de autogovernança não são conduzidas primariamente pelo discurso racional, mas pelos mesmos impulsos emocionais que atuam nas redes neurais da mente, às quais elas estão agora conectadas. Elas são, de fato, extensões protéticas e amplificadoras da natureza humana. Onde reinam as emoções sem a mediação da razão, proliferam o medo, o preconceito, o ódio, a desinformação e o pensamento mágico16 16 Citação original: “... these very participatory social networks that played a key role in upending the old order and are now the default platform of self-governance are primarily driven not by reasoned discourse but by the same emotional impulses as the neural networks of the mind to which they are now connected. They are, in effect, prosthetic extensions and amplifiers of human nature. Where emotion reigns unmediated by reason, fear, prejudice, hatred, misinformation and magical-thinking thrive”. .

Essas “emoções sem a mediação da razão” dizem respeito a um aspecto fundamental do sublime que aparece na interpretação de cunho neurocientífico. Ao comentar o livro de Castells, Damásio chama atenção para o fato de que há um novo espaço público de participação social: o das mídias sociais. Por meio do surgimento desse novo espaço social foi possível a participação do público na tentativa de superação da antiga ordem de governo. Mas esses novos espaços estão dominados pelos mesmos impulsos emocionais, sem a mediação da razão que atua nas redes neurais da mente. Só que quando esses impulsos aparecem sobre um novo governo das coisas no espaço público, agora eles, por meio das redes sociais, se amplificam e se estendem como natureza humana sem alterar o seu significado. Onde essa emoção sem a mediação da razão reina, um dos efeitos é a proliferação do medo, do preconceito, do ódio, da desinformação e do pensamento mágico – nesse caso atual das redes sociais, amplificados, mais fortes.

O evento catalisador do sublime no momento é a força do poder nacionalista e populista conservador em substituição às políticas liberais progressistas (e clássicas?) nos campos econômico e dos costumes. Essa força que toma o espaço público das mídias sociais é subjetiva e diz respeito à paixão. Nesse caso, paixãoem colocar desejos e fazer escolhas, sem a submissão a princípios, entre interesses ordinários pautados em escolhas populistas versus técnicas, liberal progressista ou clássico na economia versus nacionalista e liberal nos costumes versus conservador. Nesse caso, a paixão se equivale a apetites e inclinações sem a vinculação a princípios – a lama. Daí Kant (2008, p. 118, nota de rodapé 128) dizer que a paixão “não pode jamais e em nenhuma relação ser denominada sublime”.

O que há de grave aqui é que a liberdade do ânimo é abolida, supressa, pois é dominada pela exaltação que pode ser denominada de fanatismo. O fanatismo é uma ilusão, um sonho ou um delírio trazido pela paixão: uma ilusão em desejar algo para além dos limites da sensibilidade, um sonho segundo princípios e um delírio com a razão (Kant, 2008Kant, I. (2008). Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 121). Entretanto, em contraposição à qualidade estética do sublime observada anteriormente, ao se confrontar com o limite da imaginação, seu estado miserável, o fanatismo não se rende a ponto de fazer emergir o momento fundador da nossa subjetividade, como um ēthos, o nosso eu. Ao contrário, o que rege o fanatismo é uma pressa de se proteger em uma lei moral comum no sentido de uma ética universalizante que não permite a busca de conceitos, princípios ou regras cujas bases estejam fora de suas determinações e se fixam como meras reverberações de discursos políticos ideológicos organizados para guerras na lama.

Por isso que ao mesmo tempo em que esse fanatismo político e/ou religioso é uma paixão sem a mediação da razão, ele é totalitário e busca a proteção na harmonia interna das ideologias e/ou dos dogmatismos. Por isso que o seu efeito é a proliferação do medo, do preconceito, do ódio, da desinformação e do pensamento mágico – se há pouco tempo essa proliferação estava restrita ao espaço público do happy hour, do coffee break ou do almoço de domingo, hoje ela está mais forte do que nunca por meio das extensões protéticas e amplificadoras da natureza humana nas redes sociais.

Já o sublime não se confunde com uma paixão alimentada e que alimenta o absurdo de uma política da razão pura – seja à direita ou também à esquerda do jogo político partidário, digo aos leitores mais exaltados. Enquanto apresentação pura de um afeto – e não da paixão –, o sublime apenas se coloca na moralidade de maneira negativa. Isto é, ele é um afeto que emerge da inabilidade da imaginação no jogo livre com a razão e, assim, é sentido como uma experiência de resistência a um poder na natureza ou na cultura que é percebido como uma força grandiosa. Esse afeto faz emergir um sentimento de entusiasmo na pessoa que a joga em conflito com si própria, uma vez que a faz agir de maneira desinteressada e consequentemente em oposição àquilo que é do seu maior interesse. Daí Kant dizer que o sublime como entusiasmo pode fazer parecer que a pessoa está com demência. Mas, na comparação, o fanatismo é um desvario ou mania ridícula – ridícula no sentido oposto ao que provoca riso ou escárnio, mas mais no sentido de algo que surge de modo inquietante ou obscuro como uma loucura (“in a somber way” – “grüblerisch) (Kant, 1987Kant, I. (1987). Critique of Judgment. Indianapolis: Hackett., p. 136). Se no entusiasmo a imaginação está desenfreada, no fanatismo essa paixão inquietante esta desregrada – sem regras. Se o entusiasmo é uma demência passageira que derruba de vez em quando até mesmo os entendimentos mais sólidos ou sadios, a mania é uma doença que destrói esses entendimentos (Kant, 2008Kant, I. (2008). Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 122).

É nesse sentido negativo do jogo livre entre a inabilidade da imaginação e a razão que o sentimento de terror e abandono do sublime faz emergir a humildade da ignorância no ser, ou melhor, a humildade de que a reflexão impaciente, desesperada, desinteressada, deformada, agitada, inábil, desarmônica entre imaginação e razão que emerge como sentimento sublime coloca o indivíduo diante de sua própria ignorância. Se juízo algum vem à existência por ignorância, é nessa humildade que o indivíduo se defronta com a sua subjetividade e a cultura na origem e mantém a sua humanidade em frente à tentação do fanatismo, da ética comum, universalizante. Deve-se, assim, para se ter um ajuizamento sublime, encarar o estar à deriva, abandonado, e enfrentá-lo com o trabalho duradouro, obstinado, paciente e altamente responsável do filosofar.

Então podemos dizer que se trata da dinâmica de uma sintonia ética por excelência, de uma voz sublime enquanto ignorância, enquanto simplicidade – desestetizada. Essa ignorância como fundadora da subjetividade e da cultura, e mantenedora da humanidade, é o que legitima o sentimento de prazer em uma dominação da experiência como desinteressada e a violência do eu sobre a natureza e sobre a cultura. Essa ignorância é o momento da infância do pensar que antecede à linguagem, o discurso organizado, a fala racional, para se colocar justamente como ruptura, como nova linguagem neste novo espaço público da política contemporânea.

Conclusão

É nessa atenção com a origem da subjetividade e da cultura – educação, sociedade, espaço público – diante dos riscos da totalidade na forma e do totalitarismo na democracia política no presente, que se legitima este debate sobre a ausência do sublime na unidade natural ou prévia na filosofia de Dewey em relação ao sublime na educação.

Na educação, a inquisição do sublime traz o modo peculiar como ele nos sintoniza com a natureza e a cultura – e a política. Vimos como dessa sintonia emerge um sentimento e um ajuizamento sublime que se insinua, nos termos pautados no trabalho autodidata e na descompostura de Lyotard, como o principal desafio aos educadores e professores de uma utópica Bildung brasileira que nunca vem à existência. Pois o sublime como a origem sagrada da subjetividade insinua-se justamente como puxa e empurra nos obstáculos da realidade prática escolar e seus objetos educacionais, tais como os currículos, planos de aula, planos de carreira do Magistério, metodologias explicativas, comportamento, avaliações e responsabilidades didáticas.

Mas antes de ser o inimigo de um projeto educacional na Bildung de Dewey, esse brejo que é o ajuizamento do sublime é o que, na verdade, coloca professores e alunos diante de sua humilde ignorância e mantém a sua (nossa) humanidade em aposição ao propósito da Bildung atual como formação técnica profissional no presente.

Assim, é do brejo que emerge uma ânsia ética justaposta com a origem da subjetividade e da cultura, que evita a falácia da sub-repção ao lidar com os objetos educacionais que fazem parte das pontes para a formação humana em face da resolução bem-sucedida dos importantes obstáculos irrisórios da realidade na prática escolar.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Apoio: Capes/Fulbright
  • 4
    A conversa é reproduzida com a autorização escrita de Jim Good: “I have often thought that Dewey’s negligence of the sublime, or his under appreciation for human suffering (which seems like a similar complaint), might be a matter of his personality. He seems to have been unusually unflappable in his own life. So perhaps topics like the sublime or suffering did not occupy him the way they would a person who is more likely to fall into depression. I think Dewey went through a very trying time, which is reflected in his poetry, but it did not seem to affect his philosophical thinking as much as one might expect”.
  • 5
    Gostaria de destacar mais dois livros fundamentais à essa linha de pesquisa: o aspecto histórico no trabalho de Louis Menand, The Metaphysical Club (2001)Menand, L. (2001). The Metaphysical Club. New York: Farrar, Straus and Giroux.; e o aspecto político no trabalho de Robert Westbrook, John Dewey and American Democracy (1991)Westbrook, R. (1991). John Dewey and American Democracy. Ithaca: Cornell University Press..
  • 6
    Citação original: “to the ivory tower of ‘Beauty’”.
  • 7
    Citação original: “... there is a natural bridge that joins the gap between existence and essence; namely communication, language, discourse. Failure to acknowledge the presence and operation of natural interaction in the form of communication creates the gulf between existence and essence, and that gulf is factitious and gratuitous”.
  • 8
    Citação original: “... to restore some balance to some of the wild extremes taken in the trajectory of the discussion of aesthetic experience in the aftermath of Kant. There is a rhythm internal to ‘having an experience’ – a rhythm in which there is a felt difficulty, a rupture, a tension that needs to be overcome and resolved. If this tension is successfully resolved then there is a new integrated wholeness – a consummation that Dewey calls the aesthetic moment in experience”.
  • 9
    Não considerarei a questão da depressão neste artigo por extrapolar o seu foco técnico, a saber, a dinâmica da sintonia do sublime em teorias filo-educacionais organizadas com a finalidade de apontar o propósito da educação e produzir conhecimentos práticos para a execução de ensino. Contudo, se a depressão pode ser caracterizada, de modo geral, como um estado de baixa do espírito, então o que se pode considerar sublime é a melancolia, pois trata-se de uma depressão severa caracterizada por uma profunda tristeza.
  • 10
    Citação original: “... immense inane of the unknown at large”; “... special unknown which when it is hit upon restores an ordered, unified action. ”
  • 11
    Citação original: “... the most significant Hegelian deposit in Dewey’s mature thought is Bildung model of philosophy”.
  • 12
    Citação original: “What is this thing that every teacher intuitively understand lies in the middle of everyday practice yet is missing from almost all theory and research on teaching?”
  • 13
    Citação original: “It might be said that in the sublime feeling thinking becomes impatient, despairing, disinterested in attaining the ends of freedom by means of nature”.
  • 14
    Citação original: “... interminable suspicion that each consciousness can harbor about any object, including itself”.
  • 15
    Citação original: “... risk of being adrift”.
  • 16
    Citação original: “... these very participatory social networks that played a key role in upending the old order and are now the default platform of self-governance are primarily driven not by reasoned discourse but by the same emotional impulses as the neural networks of the mind to which they are now connected. They are, in effect, prosthetic extensions and amplifiers of human nature. Where emotion reigns unmediated by reason, fear, prejudice, hatred, misinformation and magical-thinking thrive”.

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2020
  • Revisado
    12 Fev 2020
  • Aceito
    12 Maio 2020
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