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Emancipação brasileira e princípios da boa educação na capital do Brasil (1827 - 1839) 2 2 Editor responsável: André Luiz Paulilo <https://orcid.org/0000-0001-8112-8070> 3 3 Normalização, preparação e revisão textual: Fernanda Corrêa (Tikinet) <revisao@tikinet.com.br>

Resumo

Os estudos sobre os periódicos têm demonstrado a potência dessa documentação como dispositivo político na correlação de forças entre interesses privados e econômicos, nas transformações dos espaços públicos. Nesse sentido, ancorado na perspectiva teórico-metodológica do rigor da pesquisa histórica e nos marcos teóricos de “Comunidade Imaginada” e de “intelectual mediador”, o objetivo deste trabalho é compreender as motivações dos redatores do jornal A Aurora Fluminense (1827–1839) a publicarem artigos sobre educação e instrução pública nas páginas desse periódico. Considerou-se que os redatores do periódico em exame visavam comunicar o que entendiam como verdades acerca da formação do “espírito público” e de potenciais patriotas.

Palavras-chave
imprensa periódica; educação política; Aurora Fluminense

Abstract

Studies on periodicals have demonstrated the power of this documentation as a political device in the correlation of forces between private and economic interests, in the transformations of public spaces. Accordingly, based on the theoretical-methodological perspective of the rigor of historical research and on the theoretical frameworks of “Imagined Community” and “Intellectual Mediator,” this work aimed to understand the motivations of the editors of the newspaper A Aurora Fluminense (1827–1839) to publish articles on education and public instruction on the pages of that periodical. We considered that the writers of that periodical aimed to communicate what they understood as truths as to the development of “public spirit” and potential patriots.

Keywords
Periodical Press; Political education; Aurora Fluminense

Introdução

Para pensar o Brasil, logo após a independência (1822), políticos, intelectuais e educadores interessados na problemática da educação se dedicaram a escrever sobre educação política, publicando ideias e propostas em impressos de circulação na Corte Imperial. Nesse quadro, este trabalho tem por objetivo inquirir os debates presentes nas páginas do periódico A Aurora Fluminense, a fim de examinar motivações e concepções defendidas por Evaristo da Veiga (1799–1837), intelectual mediador e principal editor do mencionado periódico, sobre a educação política. Ancorado nos fundamentos epistemológicos dos conceitos de “Comunidade Imaginada” (Anderson, 2008Anderson, B. (2008). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Companhia das Letras.), de “intelectual mediador” (Gomes & Hanse, 2016Gomes, A. M. C. G., & Hanse, P. S. (2016). Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política. Civilização Brasileira.), nos debates acerca das transformações dos espaços públicos (Morel, 2005Morel, M. (2005). As transformações dos espaços públicos: imprensa, ator, e sociabilidade na corte Imperial (1820-1840). Hucitec.) e no rigor da pesquisa histórica, a hipótese a ser testada é que o periódico em exame foi um dispositivo editorial, de caráter político, utilizado por Evaristo da Veiga para divulgar seu pensamento acerca dos limites de intervenção do Estado Imperial em formação na vida dos diversos atores sociais.

É nesse sentido que pretendo refletir sobre a noção de educação política, presente nas páginas do Aurora Fluminense, e de intelectual mediador, proposto por Gomes e Hanse (2016)Gomes, A. M. C. G., & Hanse, P. S. (2016). Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política. Civilização Brasileira.. Dessa forma, aproprio-me da palavra impressa em formato de jornal em sua materialidade perquirindo as ações de Evaristo da Veiga. Procuro demonstrar o instante e em que medida esse jornalista ampliou sua participação no seleto mercado editorial brasileiro – de livreiro a jornalista – e, ao fazê-lo, se esforçou para desequilibrar a balança do poder das autoridades constituídas. Para tanto, informava ao público leitor algumas de suas bandeiras: lutar por uma imprensa livre e defender a Constituição por meio da vulgarização de uma educação política de natureza emancipatória e conciliatória.

Evaristo da Veiga e o periódico A Aurora Fluminense

Cada acontecimento é sempre um momento, ponto ímpar e incomparável no tempo, que só revela o seu valor se referido a um movimento mais geral – o processo tecido pela narrativa –, que lhe reserva um lugar, assinala uma qualidade e imprime um sentido.

(Mattos, 1989Mattos, I. R. (1989). Do Império à República. Estudos Históricos, 2(4), 163-171., p. 163)

Aproximo-me da citação de Ilmar Mattos (1989)Mattos, I. R. (1989). Do Império à República. Estudos Históricos, 2(4), 163-171. por entender que só é possível compreender a noção de educação política presente nas páginas do A Aurora Fluminense na tessitura da narrativa histórica que inclua o personagem central: Evaristo da Veiga (1799–1837), considerado nesta reflexão como intelectual mediador. Evaristo nasceu em 8 de outubro de 1799 no Rio de Janeiro, então Corte Imperial, e viveu 38 breves anos de vida. Filho de Francisco Luís Saturnino Veiga, português chegado ao Brasil aos 13 anos, soldado miliciano4 4 O “soldado miliciano”, atuante no início do século XIX, foi o profissional da segurança do Império. Esses profissionais integraram o aparato militar daquele período que manteve a mesma organização que Portugal havia criado durante o período colonial. O cargo ficou em atividade até o final do Primeiro Reinado em 1831 (Keegan, 1995). na paróquia de Santa Rita, no Rio de Janeiro, depois nomeado professor régio de primeiras letras na freguesia de São Francisco Xavier do Engenho Velho, Evaristo viveu a infância e a juventude no Brasil Colônia e, quando adulto, no Brasil independente. Durante sua vida de estudante no Rio de Janeiro, aprendeu francês, latim e inglês, cursou aulas de retórica e poética, além de estudar filosofia. Nesse período, adquiriu interesse por jornalismo ao visitar as oficinas da Impressão Régia5 5 Impressão Régia foi a primeira editora brasileira, fundada pelo decreto de 13 de maio de 1808 na cidade do Rio de Janeiro. A Impressão Régia brasileira foi uma filial da editora (de mesmo nome) existente em Lisboa, capital de Portugal. A iniciativa foi em função da chegada da família real portuguesa em terras brasileiras e sua primeira publicação foi a Gazeta do Rio de Janeiro(órgão oficial da corte), além do jornal O Patriota, publicado entre 1813 e 1814. É a atual Imprensa Nacional. https://pt.wikipedia.org/wiki/Impress%C3%A3o_R%C3%A9gia nos porões do palácio do conde da Barca (Sousa, 2015Sousa, O. T. (2015). História dos fundadores do Império do Brasil. Senado Federal.).

Quando concluiu os estudos, o pai já abrira uma livraria na rua da Alfândega, rua central da cidade do Rio de Janeiro, e os livros que trazia da Europa tinham em Evaristo o primeiro leitor, o mais curioso. Seu projeto frustrado de partir para a Universidade de Coimbra encontrou compensação na livraria do pai6 6 https://pt.wikipedia.org/wiki/Evaristo da Veiga . Entre suas bandeiras de luta, a questão da unidade nacional foi presença marcante. Os interesses vitais do povo: fomento para indústria, sanear zonas quase inabitáveis e difundir a instrução pública também estiveram na sua pauta reivindicatória (Ramos, 2010Ramos, H. C. M. B. (2010). O periodismo jurídico brasileiro do século XIX. Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, 2(3), 54-97.). Inclusive foi um dos fundadores da Sociedade Amante da Instrução7 7 Evaristo da Veiga era presidente da Sociedade Amante da Instrução e secretário-geral da Sociedade Defensora da Aliança Nacional (Souza, 2006). e da Sociedade de Instrução Elementar. Ademais, outros espaços foram o centro de sua ação diária, como o jornal A Aurora Fluminense – objeto desta reflexão – e a tribuna da Câmara como Deputado por Minas Gerais a partir de 1830, tendo sido reeleito até sua morte precoce em 1837.

Soma-se aos espaços supramencionados a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional, instalada no Rio de Janeiro em 1831, logo após a partida de D. Pedro I para Portugal. Segundo seu biógrafo (Sousa, 2015Sousa, O. T. (2015). História dos fundadores do Império do Brasil. Senado Federal.), esse espaço seria mais um instrumento de ordem, disciplina social e orientação política. E, prosseguindo, o biógrafo afirma que Evaristo

Marca uma nova geração, aquela que assume o protagonismo após o adeus de Dom Pedro I no dia 7 de abril; a geração dos “liberais moderados, aqueles que combateram dura peleja entre os “restauradores” ou “caramurus”, que chamavam pelo retorno do monarca em luta em Portugal, e os “exaltados” e “republicanos”, que avançavam até os devaneios rousseanianos ou mesmo à imitação dos vizinhos com o ideário republicano. Desejosos da monarquia constitucional, os “moderados” atravessaram a regência e foram os grandes responsáveis pela manutenção da unidade nacional, pela realização dos avanços institucionais e a consolidação da elite política do Segundo Reinado. Jornalista d’Aurora Fluminense, Veiga era uma referência para eles. Autor do Hino da Independência, pautava-se sempre pela moderação; tanto que fez da temperança sua marca quando engalfinhavam-se as tensões de um país em fabricação, Era a cabeça centrada, concorrendo como ninguém para a consolidação da opinião liberal no país.

(Sousa, 2015Sousa, O. T. (2015). História dos fundadores do Império do Brasil. Senado Federal.)8 8 Os originais estão disponíveis na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Outras informações sobre Evaristo da Veiga estão disponíveis em https://pt.wikipedia.org/wiki/Evaristo_da_Veiga e http://www.academia.org.br/academicos/evaristo-da-veiga/textos-escolhidos

Essas experiências profissionais teriam sido essenciais para que Evaristo se tornasse o principal Editor do Jornal A Aurora Fluminense em 1828. Segundo Alves (2010)Alves, J. V. C. (2010). A defesa da constituição pelo jornal Aurora Fluminense na crise de 1829. Anais do Encontro Regional de História: História e Liberdade, Franca, 20. http://www.encontro2010.sp.anpuh.org/site/capa.
http://www.encontro2010.sp.anpuh.org/sit...
,

Credita-se a Veiga o posicionamento que o jornal logo assumiu, reivindicativo de uma posição central para a Câmara dos Deputados na cena política do Império. Tendo como ideal o regime parlamentar inglês, o jornal objetivava para essa casa do poder legislativo o mesmo papel que desempenhava a Câmara dos Comuns na Inglaterra. Evaristo da Veiga advogava a tese de que os ministros deveriam prestar contas de seus atos não somente ao Imperador, como dispunha o texto da Constituição de 1824, mas também aos deputados. Além disso, defendia que a formação dos gabinetes ministeriais deveria levar em conta a composição majoritária da Câmara dos Deputados, para trabalharem em concerto. Suas ideias levariam a uma “parlamentarização” do regime instituído pela Constituição de 1824, contrariando uma das atribuições precípuas do poder moderador, que dispunha que somente ao imperador cabia nomeação e demissão dos ministros.

(Alves, 2010Alves, J. V. C. (2010). A defesa da constituição pelo jornal Aurora Fluminense na crise de 1829. Anais do Encontro Regional de História: História e Liberdade, Franca, 20. http://www.encontro2010.sp.anpuh.org/site/capa.
http://www.encontro2010.sp.anpuh.org/sit...
, p. 6).

Ao fazer oposição à monarquia constitucional, Evaristo buscava respostas políticas e sociais aos desafios apresentados pela Nação recém-emancipada. Sobre a Constituição de 1824, não é demais lembrar que nela se estabeleceram as bases da estrutura política, do funcionamento do império brasileiro e de suas principais instituições, como a adoção da forma de governo monárquica, hereditária e constitucional. Além da separação do poder político em quatro instâncias: Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador, “chave mestra de toda organização política” exercida pelo imperador (Grinberg, 2002Grinberg, K. (2002). O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Civilização Brasileira.).

Também é importante fazer referência às diversas revoltas que eclodiram pelo território brasileiro, as questões em torno do momento histórico em que o príncipe regente decidiu ficar no Brasil depois de pedido da população; bem como da partida de D. Pedro I para Portugal, as Regências e a maior idade de D. Pedro II como parte do cenário motivador da atuação de Evaristo9 9 Todas essas problemáticas foram objeto de análise da história política. Destaco, dentre outros, os estudos de José Murilo de Carvalho (2005a, 2005b). .

Destacarei neste artigo apenas as respostas sociais relacionadas, segundo Evaristo, à necessidade de difusão da educação política de natureza conciliatória e emancipatória em um cenário de incipiente elaboração da política educacional. É importante sublinhar que historiadores da educação brasileira, no período em tela, “Têm chamado a atenção para os processos de constituição da forma escolar de educação, implementada ao longo do século XIX, em meio a disputas e tensões, associada aos projetos de nação e à formação do Estado brasileiro” (Gondra & Schueler, 2008Gondra, J. G., & Schueler, A. M. (2008). Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. Cortez, 2008., p. 19).

Nesse contexto, foi implementada no país a primeira Lei Geral do Ensino, que acabara de ser promulgada em 15 outubro de 1827. Em se tratando de ensino superior, Evaristo tinha conhecimento da existência da Universidade de Coimbra, para a qual não pôde ir. Já na movimentação cultural brasileira, Evaristo a observava em plena efervescência por meio de duas faculdades de Direito fundadas por D. Pedro I também em 1827, as Faculdades de Olinda e de São Paulo. Ademais, a reformulação das escolas de Medicina em 1830 e, em 1837, a fundação do Colégio de Pedro II, instituição de ensino secundário. Em 1838 – um ano após sua morte precoce –, Evaristo não presenciaria a formação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), congregando, segundo Schwarcz (1998)Schwarcz, L. M. (1998). As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. Companhia das Letras., a elite econômica e literária carioca.

Nesse ambiente, o jornalista Evaristo da Veiga tinha a exata dimensão da importância do seu jornal como espaço de partilhar informações acerca de suas posições/opções políticas, o que ficou evidente ao leitor atento da folha periódica no exato momento em que Evaristo da Veiga definiu a natureza política do periódico A Aurora Fluminense. Ao lado de Apolinário Pereira de Morais (1808–1833), José Francisco Xavier Sigaud (1796–1856) e Francisco Crispiniano Valdetaro (1805–1862), Evaristo da Veiga fundou a folha periódica A Aurora Fluminense em 1827, como já citado. O plano geral do periódico nos é apresentado por meio da palavra impressa na edição nº 1, de 21 de dezembro de 1827. A citação é longa, mas vale a leitura:

O plano desta folha periódica, que, pela terna lembrança da nossa independência e dos grandes serviços que lhe há prestado a capital do império, nós intitulamos – Aurora Fluminense – será conforme aos planos adotados em vários jornais, tanto da América como da Europa. O jornal será composto de três seções, que vêm a ser Interior, Exterior e Variedades. A primeira seção conterá duas partes; uma será consagrada à polêmica sobre as questões que interessam à Nação no exercício de seus direitos constitucionais; a outra constará de notícias do Brasil, dignas de fixarem a atenção dos leitores, capazes de dar informações verídicas sobre o país e de inspirar ao estrangeiro uma ideia vantajosa sobre esta parte da América. A segunda exporá as notícias exteriores. Na terceira finalmente terão lugar as correspondências que aos nossos concidadãos aprazer enviar-nos, as análises de obras interessantes, literárias ou políticas, hinos nacionais, e todos os fragmentos de literatura que de ordinário os outros jornais compreendem no artigo Variedades.

Nós, animados pelo amor da Pátria, e possuídos de um santo respeito para a Constituição e para o Soberano, que a jurou conosco, não nutrindo em nós outra paixão mais que a do bem público, não marcharemos sobre as pisadas daqueles que por efeito de paixões ambiciosas ou venais, fazem alternativamente da liberdade seu ídolo, ou um monstro de sua inimizade. A mocidade brasileira não segue as lições de alguns dos que a precederam; pelo contrário, ela deve mostrar ser sempre dócil à voz da razão, e surda às seduções capciosas da intriga, que nesta bela e ditosa parte do mundo mina todas as empresas úteis, reprime o impulso dos corações generosos, e só aplaude e festeja os abusos de que ela é o princípio motor. É nossa moral o não capitular com algum abuso, não desculpar, nem poupar alguma injustiça; e por mais poderoso que seja o atrativo da arbitrariedade, é dever sagrado do escritor, homem de bem e de honra, atacá-lo sem rebuço, assim como também sem temor lhe cumpre defender o infortúnio, por mais opresso e cheio de opróbrios que se lhe apresente.

Tais são os princípios, e tal é a profissão de fé dos que se puseram à frente desta empresa literária. A liberdade da imprensa, que se acha proclamada no Brasil, é a arma poderosa que nossas ainda jovens e débeis mãos devem aprender a manejar com destreza, para lutarem contra o despotismo e contra o governo absoluto. Trabalhemos, portanto, a apertar estreitamente a aliança entre o Povo e o Soberano, sejamos corajosos, perseverantes, e até mesmo importunos na exigência de nossas garantias; porém defendamo-nos severamente de todo e qualquer espírito de facção e de turbulência: assim é que conseguiremos obter vitória completa sobre os inimigos e detratores de nossa Pátria: pelo nosso amor da ordem, e pelo nosso culto para a Constituição é que nós conseguiremos dar ao nosso governo uma existência durável, aos nossos contemporâneos um exemplo de caráter, que para o futuro nos assegurará um lugar distinto entre as Nações civilizadas do antigo e do novo continente.10 10 A Aurora Fluminense, nº 1, 21 de dezembro de 1827. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795

Evaristo e o plano geral da folha: um conhecido livreiro na Corte Imperial e, ao assumir como editor-chefe do A Aurora Fluminense, acabou por ampliar sua participação no seleto mercado editorial. De periodicidade irregular, o jornal foi publicado na cidade do Rio de Janeiro durante os anos de 1827 a 1839, sendo Evaristo da Veiga o editor principal de 1828 até 1835 (Tabela 1).

Tabela 1
Edições da folha periódica A Aurora Fluminense – 1827–1835

Evaristo Ferreira da Veiga, Diogo Antônio Feijó, Manuel Odorico Mendes e muitos outros foram, segundo Sousa (2015)Sousa, O. T. (2015). História dos fundadores do Império do Brasil. Senado Federal., conhecidamente partidários de um regime de liberdade de imprensa, como da conveniência de um trono em garantia da unidade nacional (Sousa, 2015Sousa, O. T. (2015). História dos fundadores do Império do Brasil. Senado Federal.). Imbuído desse pensamento, Evaristo – à frente do jornal – fez oposição ao governo monárquico constitucional de forma bastante peculiar, em um período no qual se contabilizava uma população próxima de 200 mil habitantes no Rio de Janeiro (Corte Imperial), inclusive com elevado índice de pessoas que não sabiam ler nem escrever. Como foi noticiado em A Aurora Fluminense, em 1831, o referido periódico contava com o total de 1.100 assinantes, volume que, segundo Basile (2004)Basile, M. (2004). O Império em construção: projetos de Brasil e a ação política na Corte Regencial [Tese de doutorado não publicada]. Universidade Federal do Rio de Janeiro., era considerado expressivo na época. O próprio jornal, na edição nº 643 de 1832, informava aos leitores que “a população livre [do Rio de Janeiro] eleva-se a pouco mais de 5 milhões de habitantes, e talvez a escravatura possa ser calculada em 2 milhões com pequena diferença”.

Destaca-se que Evaristo manteve uma estratégia de comunicação significativa entre as diferentes províncias brasileiras dialogando com um conjunto variado de editores que Vieira (2019)Vieira, L. O. (2019). Origens da imprensa no Brasil: estudo prosopográfico dos editores de periódicos publicados entre 1808 e 1831 [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital USP. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-12122019-164105/pt-br.php.
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considerou como os “produtores de periódicos”12 12 Sobre a categoria “produtores de periódicos”, consultar Vieira (2019). . Evidências da existência dessa estratégia de comunicação são perceptíveis em pesquisas realizadas no A Aurora Fluminense e na historiografia recente.

A seguir, apresento uma fração desses editores e das respectivas províncias nas quais atuaram, visando fortalecer essa estratégia de comunicação. Da província de São Paulo: José da Costa Carvalho (1796-1860) e Libero Badaró (1798-1830); Baptista Caetano de Almeida (1797-1839) e Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), da província de Minas Gerais; Manuel Odorico Mendes (1799-1864), da província do Maranhão; Antônio Borges da Fonseca (1808-1872), da província da Paraíba; e Cipriano José Barata de Almeida (1762-1838), da província de Pernambuco13 13 Um estudo detalhado acerca do perfil dos produtores de periódicos pode ser conferido em Vieira (2019). .

O que nos instiga a pensar nessa estratégia de comunicação formada por esse conjunto de “produtores de periódicos”, incluindo Evaristo da Veiga, representante da Corte Imperial e editor da A Aurora Fluminense? Impedidos, em tese, de se comunicarem presencialmente, os integrantes dessa estratégia de comunicação formaram uma comunidade imaginada, tomando os periódicos como meios técnicos ideais para representar essa mesma comunidade imaginada (Anderson, 2008Anderson, B. (2008). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Companhia das Letras.). Com essa estratégia, os “produtores de periódicos” eternizaram os anseios do que defendiam como o ideal imaginado de um Brasil recém-independente.

Nesse contexto marcado por incertezas, reviravoltas, mudanças políticas e institucionais (Vieira, 2019Vieira, L. O. (2019). Origens da imprensa no Brasil: estudo prosopográfico dos editores de periódicos publicados entre 1808 e 1831 [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital USP. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-12122019-164105/pt-br.php.
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), escravidão e exploração aguda (Gondra & Schueler, 2008Gondra, J. G., & Schueler, A. M. (2008). Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. Cortez, 2008.), observa-se a difusão das luzes nos periódicos A Aurora Fluminense e O Observador Constitucional. No primeiro, segundo Evaristo, os fins da educação, fosse escolar ou fora desse espaço, seria preparar a mocidade respeitadora dos costumes e dos bons princípios, e que amasse cordialmente o trabalho e a dignidade de uma vida ativa e independente14 14 A Aurora Fluminense, 1827, edição 9, p. 34. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795 . No prospecto d’ O Observador Constitucional, de Líbero Badaró, de 1829, o editor defendia a educação para as classes inferiores como “o único meio para o sistema constitucional poder marchar mais solidamente com passos agigantados”15 15 O Observador Constitucional, 1829, edição 15, p. 1. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/observador-constitucional/814326 . Nesse sentido, há indícios de que naquelas páginas estavam impressos os objetivos de uma “boa educação”, transmutada em educação política, tema que abordarei a seguir.

Educação política na folha A Aurora Fluminense

Considerando as 1.134 edições do A Aurora Fluminense, totalizando 4.536 páginas, como viabilizar a pesquisa sobre artigos que tratassem especificamente de educação naquele periódico? A pesquisa foi organizada em dois momentos: (i) busca por meio de palavras-chave procurando observar se o vocábulo “educação” aparecia acompanhado pelos seguintes termos: política, constitucional e escolar (Tabela 2); (ii) em seguida, precedeu-se à leitura dos artigos onde essas palavras-chave foram localizadas.

Tabela 2
Aurora Fluminense – palavras-chave – 1827–1838

Das 348 ocorrências, a educação é referida como “Educação política” nos seguintes anos: cinco ocorrências em 1828, três em 1829, uma em 1830, uma em 1833, duas em 1835 e duas em 1838, perfazendo o total de 14 referências. As matérias referentes à educação política não são assinadas. Seriam autores anônimos ou de autoria do próprio editor, ou seja, Evaristo da Veiga? Há indícios de que Evaristo da Veiga seria o autor pelo tom conciliador da escrita, como o exemplo extraído da matéria que faz críticas contundentes à violência armada pela independência política que se vivia na América espanhola, especialmente na Argentina. Em relação aos referidos conflitos, assim se posicionou o editor:

Ninguém está mais convencido do que nós das vantagens do sistema, porque somos felizmente regidos; ninguém reconhece mais do que nós todo o perigo das transições violentas, e da dificuldade, que há em se plantar o verdadeiro Governo Republicano entre povos, aviltados pelo Despotismo, e sem nenhuma educação política. Nunca chamaremos Estados livres e felizes aqueles, em que os partidos se sucedem e degolam uns aos outros.16 16 A Aurora Fluminense, 1829, edição 142. Grifos nossos. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795

O excerto nos apresenta o editor do A Aurora Fluminense em uma retórica quase conciliada com o regime político de monarquia representativa recém-instalada no Brasil, não fossem os problemas do não respeito à Constituição brasileira – inclusive, por parte de autoridades constituídas.

No contexto dos anos 1830, no A Aurora Fluminense, jornal que influía poderosamente nos acontecimentos da época, Evaristo da Veiga liderava o movimento político e societário contra D. Pedro I, que, não suportando a pressão política interna e externa, abdicou do trono brasileiro em 13 de abril de 1831. Com a abdicação, fundou-se o Primeiro Reinado, iniciando-se o Período Regencial (Bandechi & Arroyo, 1970Bandecchi, B., & Arroyo, L. (1970). Novo dicionário de História do Brasil. Melhoramentos.). Enquanto combatente da ordem vigente, será no A Aurora Fluminense que a estrela política de Evaristo começaria a brilhar. Segundo Lúcia Guimarães (2002),

Seus artigos primavam pela defesa intransigente do constitucionalismo, do sistema representativo e da liberdade de imprensa, ao mesmo tempo em que censuravam as práticas autoritárias do governo de D. Pedro I. Eleito para a Câmara dos Deputados por Minas Gerais em 1830 integrou-se à bancada oposicionista, onde teve papel destacado, ao lado de Bernardo Pereira de Vasconcelos, Honório Hermeto Carneiro leão, Paula Souza e Melo, padre José Custódio Dias e outros liberais.

(p. 247)

Dessa forma, mesmo antes de sua eleição para Deputado nos anos 1830, Evaristo orientou a opinião pública por meio de artigos publicados no A Aurora Fluminense. Tal orientação passava pelo que entendia por temas que estiveram presentes nos principais artigos publicados na folha, como aqueles que tratavam da política e da educação.

Tratando-se da educação política na edição n 034 de 1828, a folha publicou notícia sobre o progresso da instrução em Minas Gerais e em São Paulo. Em Minas Grais, na cidade de São João del-Rei, informava o editor do Aurora que havia uma livraria pública que contava com uma “boa coleção dos melhores autores do direito público e de Filosofia”. Naquele espaço, acrescentava a folha, o sr. Baptista Caetano de Almeida (1797-1839) teria promovido a educação política daquele povo. Ação semelhante ocorreria em São Paulo sob a responsabilidade do político e jornalista sr. Jose da Costa Carvalho (1796-1860)17 17 A Aurora Fluminense, 1828, edição 34. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795 . Naquele momento, o argumento que predominou no referido artigo era que a educação política cumpriria a missão de conscientizar seus leitores de que havia uma posse desigual das riquezas brasileiras.

No mesmo ano de 1828, em notícia de abertura dos trabalhos da 3ª Sessão da Assembleia Legislativa daquele ano, o editor da folha informava ao público leitor os avanços observados por ele no curto espaço de sete anos em que emergira um novo país. De um país “sem direitos, sem leis, sem espírito público, sem representação nacional” para o sensível progresso em que caminhava a educação política, a civilização e o sistema administrativo18 18 A Aurora Fluminense, 1828, edição 39. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795 . A defesa do patriotismo foi a tônica da escrita do editor e sua prática exigia sacríficos. Quais sacrifícios? Que o espírito de classe deveria ceder ao amor do bem geral. Tal opção de vida despertaria um majestoso movimento social que desencadearia o amor à Pátria e à Constituição.

Nesse caso, especialmente sob o discurso da ausência – um país “sem direitos, sem leis, sem espirito público, sem representação nacional” – o editor do A Aurora Fluminense forjava seu entendimento de educação política: qual seja, aquela que teria por função precípua, desenvolver no indivíduo um forte amor à pátria em detrimento do amor a si mesmo.

Do ano de 1829 lemos na edição de número 142 que “os regimes republicanos instituídos recentemente na América espanhola após os movimentos revolucionários tornaram possíveis a vitória e a emancipação política da Argentina (1816) e da Colômbia (1819)”. Sobre essa questão política, Evaristo assim se posicionou:

Nunca chamaremos estados livres e felizes aqueles em que os partidos se sucedem, e degolam uns aos outros; em que a espada de St. Martin, de O’Higgins ou de Bolívar manda mais do que a Lei, e aonde não poderão ainda firmar instituições que alcancem a segurança individual e a ordem pública.19 19 A Aurora Fluminense, 1829, edição 142. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795

Evaristo prosseguia afirmando ao seu leitor que tais tensões seriam resultantes de total ausência de “educação política”, como se nota no mesmo ano de 1829, em edição de número 162, na qual lemos que a “boa educação é se posicionar com moderação” e que “a educação seria o único meio de regenerar um povo”20 20 A Aurora Fluminense, 1830, edição 310. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795 . Percebe-se que educação para a paz e para a civilidade marcaram presença nos fragmentos dos dois artigos supramencionados.

No ano seguinte, a folha denunciava o uso indevido dos recursos públicos para pagamento ao representante do Brasil nos Estados Unidos, cujo trabalho exercido pelo “Sr. José Silvestre Rebello” era “dirigir a construção das Fragatas Izabel e Príncipe Imperial”21 21 A Aurora Fluminense, 1830, edição 310. http://bndigital.bn.br/acervo-digital/aurora-fluminense/706795 . Afirmava a folha que, apesar dos “avanços da educação política nos últimos quatro anos”, o referido represente da Coroa brasileira nos Estados Unidos não se intimidara em se apropriar do dinheiro público. Desta feita, a educação política emerge com sendo capaz de formação de caráter.

No contexto no qual Evaristo nos apresenta as múltiplas possiblidades de que no seu projeto de educação política subsiste a ideia de que a solução para estabelecer uma “cultura” de respeito à Constituição passava também pela educação escolar. Nesse sentido, Evaristo conclamava para a necessidade de que a instrução pública fosse abrangente, ou seja, despida das sutilezas escolásticas.

O tema da educação política compareceu novamente nas páginas do A Aurora Fluminense em 1838. Nessa altura, Evaristo da Veiga havia falecido fazia um ano. Na edição 15, de 6 de junho daquele mesmo ano, sob o título “A política materialista e a racional” –único artigo com título que fazia referência à educação política –, o tom permanece semelhante aos anos anteriores: crítica à atuação dos políticos que integravam o poder governamental. Para informar ao leitor que a política praticada no país era aquela de interesses próprios dos políticos, o editor cita o filósofo francês Montesquieu (1689-1755) no que este afirmava a respeito do despotismo: “quando os selvagens da Louisiana querem fruto, cortam a árvore pelo pé para colhê-lo”. Ou seja, era uma política materialista. A política racional, por definição, seria o oposto do que vinha sendo praticado até aquele momento; seria a política da desnaturalização do comércio da escravatura que, segundo a folha, era o exemplo mais degradante da política materialista e atingia agudamente a moral do povo, cujo sistema, além de absolvê-lo, também o justificava.

Onde estaria a mudança no modo de fazer política e de ser político no Brasil? O exercício da política racional seria dependente da modernização da justiça e da relação desta com o júri, que ainda não teria lançado raízes no solo do país. Ao lado dessa constatação, a folha apresentava a solução do problema: a necessidade de promover a educação política na sociedade como condição sine qua non para que os delitos cometidos pelos políticos fossem penalizados. A historiografia recente aborda a questão da formação do Conselho de Jurados como um importante espaço de exercício da cidadania política. Para exemplificar, faço referência aos estudos de Carvalho (1996)Carvalho, J. M. (1996). Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, (33), 337-361. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2029/1168.
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. Segundo esse autor,

Na Constituição de 1824, o Poder Judiciário era composto, tanto no crime como no cível, pelos juízes e pelos jurados. Ser jurado, portanto, significava participar de modo direto do exercício do poder judicial, participação mais frequente e mais intensa, para os sorteados, do que aquela representada pelo exercício do voto. Mais frequente porque os conselhos de jurados se reuniam pelo menos duas vezes por ano e as sessões duravam quinze dias, ou o necessário para o julgamento dos processos pendentes. Mais intensa porque não há como comparar o ato rápido de votar com a demorada exposição às leis e aos procedimentos judiciais exigidas pelo exercício da função de jurado. Neste último, o contato com o Estado era mais profundo e pode-se razoavelmente supor que a socialização política dele resultante também fosse mais eficaz. Além de ser direito político, ser jurado era fazer parte de uma instituição que foi desde a origem baluarte da defesa dos direitos políticos e civis.

(Carvalho, 1996Carvalho, J. M. (1996). Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, (33), 337-361. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2029/1168.
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, p. 341)

Pelo exposto, não foi por acaso que a folha A Aurora Fluminense problematizou exatamente essa questão ao sinalizar a necessidade de maior cuidado na seleção dos jurados, preferencialmente aqueles iluminados pela educação (política, moral e religiosa). Por terem tido acesso às “luzes do século”, aqueles jurados reuniriam as condições necessárias para julgarem os políticos infratores quando fosse necessário? A folha indicia que não, apesar de cumprirem os prerrequisitos, ou seja, saberem ler e escrever. Nesse cenário, A Aurora Fluminense projeta a solução do problema por meio da organização de uma educação política eficaz somada à outra forma de governo.

Considerações finais

Considerei, nesta análise, os acontecimentos e as reflexões do período presentes no A Aurora Fluminense. Ao ampliar seu espaço de trabalho, ou seja, de livreiro e de jornalista, o que aconteceu à Evaristo da Veiga? Enquanto livreiro e jornalista, garantia o autossustento e o de sua família, e sua rede de sociabilidade, provavelmente, seria mais restrita ao Rio de Janeiro. No exercício do jornalismo, além de criar, no A Aurora Fluminense, um espaço e lugar de defesa de suas posições políticas, assumiu a natureza política do seu jornal e, dessa forma, acabou por construir uma rede de sociabilidade mais vasta. À vista disso, e por extensão, ampliou seu horizonte de possibilidades no convencimento de mais pessoas acerca do que ele almejava para o Brasil. Como? Como político, acumulou experiência nesse campo e a explorou durante a gestão do A Aurora Fluminense. No jornal, reunia um conjunto de informações sobre acontecimentos em diferentes lugares do Brasil e do exterior. Nas Sociedades nas quais atuou como filantropo, também ampliou sua convivência social. Com essa estratégia, pôde apresentar aos seus leitores a diversidade de realidades imaginadas por meio da circulação de si e do próprio jornal. Nessa medida, pode ter fomentado a cooperação entre autores/leitores ao estabelecer a aliança entre a imprensa e a educação, e acabou por criar condições para arregimentar aliados que também defendiam a ordem e a unificação da jovem Nação que se formava.

No entanto, naquele momento histórico, o Brasil era um campo aberto de sedições em torno da formação dos principais pilares de sustentação do Estado Imperial: poder jurídico (consolidação e respeito à Constituição) e organização do campo educacional, principalmente. Uma nova subjetividade deveria ser moldada: o futuro cidadão, novas sensibilidades artísticas, novos corpos, novos lares, novos sentimentos e desejos (Ramos, 2010Ramos, H. C. M. B. (2010). O periodismo jurídico brasileiro do século XIX. Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, 2(3), 54-97.). A palavra impressa deveria funcionar como um importante dispositivo editorial de difusão dessas múltiplas novidades, sendo que a própria imprensa era uma modernidade tecnológica que se instalara recentemente em solo brasileiro. Evaristo reconhecia essa condição moderna da imprensa, ao fazer referência a essa tecnologia quando afirmava que o século XIX era “o século de papel”.

Nesse momento, retomo a pergunta motivadora desta reflexão: a educação política foi uma necessidade de outros tempos? A resposta a essa questão nos conduz para outras interrogações. Evaristo da Veiga, ao defender a vulgarização da “educação política”, o fez mencionando problemas que, no seu entendimento, seriam resolvidos com a educação, como, por exemplo, “a liberdade do voto cidadão”. Ora, sabemos que no período houve um intenso debate em torno da definição do eleitorado e por extensão da cidadania política. Os constituintes de 1823 estabeleceram as condições que definiam o cidadão brasileiro como a distinção entre cidadãos ativos e cidadãos passivos. Os ativos teriam direitos políticos e civis, e os cidadãos passivos teriam direitos civis, mas não políticos. A diferença entre essas duas categorias seria exercida por meio do voto, que, por sua vez, relacionava-se com a propriedade, o que de fato passava a ser o fundamento da cidadania (Carvalho, 1996Carvalho, J. M. (1996). Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, (33), 337-361. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2029/1168.
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).

Evaristo da Veiga era proprietário de livraria e de jornal. Logo, a educação política estaria direcionada apenas à parcela da população proprietária com direito à participação eleitoral? Pela Constituição de 1824 – além do que foi mencionado –, para ter direito ao voto nas eleições primárias, exigia-se idade mínima de 25 anos, exceto para os casados, oficiais militares, bacharéis e clérigos (para os quais o limite caía para 21 anos). Não havia restrições quanto ao grau de instrução, isto é, os analfabetos podiam votar, assim como os libertos. O voto era obrigatório (Carvalho, 1996Carvalho, J. M. (1996). Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, (33), 337-361. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2029/1168.
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).

Essa previsão legislativa é motivadora para mais uma questão: Evaristo direcionava as críticas aos seus pares, que provavelmente controlavam seus eleitores por algum tipo de dependência ou tivera uma visão ampliada de cidadania? José Murilo de Carvalho (1996)Carvalho, J. M. (1996). Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, (33), 337-361. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2029/1168.
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, ao tomar o exemplo de José Antônio Pimenta Bueno (1803–1878) – o marquês de São Vicente e principal comentarista da Constituição de 1824 –, afirma que:

Pimenta Bueno via na cidadania ativa bem mais do que o direito de votar e ser votado. Segundo ele, cidadão político, ou ativo, era aquele que podia participar do exercício dos três poderes, que podia exercer a imprensa política, formar organizações políticas, dirigir reclamações e petições ao governo…. Pode-se mesmo acrescentar como direito político o que o autor chama de direito civil, a saber, o direito, garantido pelo Código de Processo Criminal de 1832, de resistência à ação ilegal das autoridades

(Carvalho, 1996Carvalho, J. M. (1996). Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, (33), 337-361. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2029/1168.
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, p. 340, grifos nossos).

Em seu tempo, Evaristo percebeu que o impacto da expansão do Estado Imperial na vida dos cidadãos seria negativo, especialmente nas questões do não respeito à constituição. Sua arma de luta foi a palavra impressa no A Aurora Fluminense. Dessa forma, a manutenção da ordem pela via da obediência às leis aconteceria por meio do convencimento pacífico, ou seja, via educação, que também lhe interessava como político que foi por sete anos de sua vida.

Considero ainda que intencionalidades comerciais marcaram presença na vida de Evaristo, já que era proprietário de livraria e do jornal A Aurora Fluminense. No entanto o maior valor do A Aurora Fluminense foi simbólico, ou seja, o de se afirmar como imprensa política por meio da força retórica de Evaristo da Veiga, que o manobrou como ferramenta de combate conciliatório à ordem estabelecida. Num Brasil com múltiplas realidades imaginadas, pode-se inferir que Evaristo fez de seu jornal um dispositivo editorial mediador de suas crenças, em que a educação política teria papel importante para a construção do pensamento emancipado, tecido por meio da difusão da intitulada “educação política” aos padrões do editor do A Aurora Fluminense.

Se entendermos os significantes “educação” e “política” como definidos no Dicionário da Língua Brasileira do ano de 1832, sendo educação dar criação, ensino de doutrinas e de bons costumes; e política, a arte de governar, então, por esses dois entendimentos, a educação política, defendida por Evaristo, nos permite pensar uma versão ampliada de cuidado com a pátria em formação e com a arte de educar o homem novo.

Nesse sentido, há indícios de que as regras da conduta política e aquelas que regiam a circulação de uma fração da população, especialmente as pessoas livres e que sabiam ler e escrever, além de possuírem certo poder econômico que as tornava eleitoras e elegíveis, certamente eram as que Evaristo gostaria de alcançar por meio do que entendia por educação política: educação para a civilidade e formação de caráter, para a paz e para desenvolver, na mocidade brasileira, forte amor à pátria que se encontrava em processo de formação. Dessa forma, o que estava em jogo era a urgência da formação do “espírito público” e de potenciais patriotas. Tais atributos seriam conquistados por meio da difusão dos princípios de uma boa educação.

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Editor responsável: André Luiz Paulilo <https://orcid.org/0000-0001-8112-8070>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2021
  • Revisado
    23 Nov 2021
  • Aceito
    03 Jan 2022
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