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Relendo ‘O livro didático de Ciências no Brasil’1 1 Editor responsável: Pedro da Cunha Pinto Neto. https://orcid.org/0000-0001-7516-2109 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Lídia Orphão (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Rereading ‘The Science textbook in Brazil’

Resumo

A obra O livro didático de Ciências no Brasil, organizada por Hilário Fracalanza e Jorge Megid Neto, foi publicada em 2006. Mais de 10 anos após sua publicação, algumas de suas proposições precisam ser reanalisadas, dadas as alterações sofridas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que geraram impacto nos próprios livros. Este trabalho compara enunciados dos capítulos do livro com guias do livro didático produzidos pelo Ministério da Educação, pesquisas sobre o livro didático de ciências e manuais escolares produzidos durante a vigência do PNLD. Em que pesem as desatualizações da obra de Fracalanza e Megid Neto, muitos de seus apontamentos permanecem válidos, embora necessitem ser relativizados à luz das complexas relações enunciativas em que se situam os manuais escolares atualmente.

Palavras-chave
livro didático; ensino de ciências; políticas educacionais; enunciados; PNLD

Abstract

More than ten years after the publication of the book “O livro didático de Ciências no Brasil” [The Science textbook in Brazil], edited by Hilário Fracalanza and Jorge Megid Neto, in 2006, some of its propositions require a reanalysis due to changes in the National Textbook Program (PNLD). This paper compares excerpts from the book’s chapters with Didactic Book Guides produced by the Ministry of Education, researches on Science textbooks, and textbooks produced during the term of the PNLD. Despite the outdated assertions in the book of Fracalanza and Megid Neto, many of their statements remain valid until the present days, requiring but a relativization in light of the complex enunciative relations in which school textbooks are currently situated.

Keywords
textbooks; science teaching; educational policy; utterances; PNLD

Introdução

Em 1972, anos antes da constituição do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e do boom de pesquisas sobre o manual escolar, Dermeval Saviani já antevira nesse objeto um assunto complexo. Então, com o texto “Subsídios para o equacionamento do problema do livro didático em face da Lei n. 5.692/71” (Saviani, 2009Saviani, D. (2009). Educação: Do senso comum à consciência filosófica (18a ed.). Autores Associados.), o formulador da pedagogia histórico-crítica propôs uma reflexão cujos eixos permaneceriam norteando estudos sobre o livro escolar: a consideração desse objeto como mediador de uma relação comunicativa, e a consciência de que tal relação se situa num contexto politicamente determinado.

Esses dois eixos são identificáveis nas principais produções brasileiras sobre o livro didático de ciências. Nos anos iniciais deste século, surgiram duas obras que aglutinam estudos sobre o tema: focando no eixo “político”, O livro didático de Ciências no Brasil (2006), organizada por Hilário Fracalanza e Jorge Megid Neto, então pesquisadores da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); e enfatizando o eixo “comunicativo”, O livro didático de Ciências: contextos de exigência, critérios de seleção, práticas de leitura e uso em sala de aula (2012), coordenada por Isabel Martins, Guaracira Gouvêa e Rita Vilanova, do Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

As obras apresentaram diferentes graus de aceitação pela comunidade. Em termos bibliométricos, tomando-se as indexações na base Google Scholar, a coletânea das autoras da UFRJ conta, até agora, com 14 citações, enquanto o livro organizado na Unicamp recebeu 144 citações. Para uma comparação mais isonômica, observa-se que O livro didático de Ciências no Brasil angariava mais de 70 citações sete anos após sua publicação (atualmente, tempo transcorrido desde a publicação de O livro didático de Ciências: contextos de exigência, critérios de seleção, práticas de leitura e uso em sala de aula). Assim, considerando a melhor acolhida do livro oriundo da Unicamp, bem como a evolução do PNLD (e dos próprios manuais escolares) de 2006 até hoje, este trabalho busca analisar e rediscutir apontamentos de O livro didático de Ciências no Brasil.

A pesquisa comparou enunciados-chave do livro – passagens que exprimissem posicionamentos originais de seus autores, e não apenas a reprodução de achados da literatura, à época da publicação da antologia – com outros documentos. O processo de comparação, por sua vez, envolveu a identificação, nesse corpus, de como se apresentavam, em sua evolução histórica, os objetos dos principais núcleos proposicionais enunciativos de O livro didático de Ciências no Brasil. Nesse sentido, pode-se afirmar que a técnica analítica empregada se aproxima da análise temática, definida como a “contagem de um ou vários temas ou itens de significação, numa unidade codificação previamente determinada” (Bardin, 2016Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo (L. A. Reto & A. Pinheiro, Trads.). Edições 70., p. 77), visando descortinar significados expressos por uma comunicação e a tomada de inferências.

A apresentação dos resultados será antecedida pela descrição da antologia organizada por Fracalanza e Megid Neto e da formulação de um referencial sobre o que é, afinal e atualmente, o livro didático de ciências no Brasil. A seguir, retomaremos as considerações de natureza metodológica anunciadas acima, explicitando os critérios para a escolha dos documentos cotejados com O livro didático de Ciências no Brasil, a saber, guias do livro didático produzidos pelo Ministério da Educação (MEC), pesquisas sobre o manual escolar de ciências3 3 Este texto se orienta pelo seguinte padrão, quanto à grafia de nomes de disciplinas. As menções a campos disciplinares específicos, tais como referidos pela pesquisa acadêmica (por exemplo, “educação em ciências”), ou a um conjunto de disciplinas (por exemplo, “ciências”), empregaram apenas letras minúsculas. Já as menções a componentes curriculares da educação básica são demarcadas por letras maiúsculas (como “Ciências”, “Física” e “Química”). Em que pese o fato de a obra analisada – O livro didático de Ciências no Brasil – tomar como objetos os textos escolares do componente curricular Ciências, entendemos que alguns de seus apontamentos são válidos para os livros de ciências em geral (considerando, assim, também as obras dirigidas ao ensino médio). e os próprios livros produzidos durante a vigência do PNLD.

Alertamos os leitores que, neste trabalho, não descreveremos o atual funcionamento do PNLD.

O livro didático de Ciências no Brasil: uma leitura

O Quadro 1 apresenta as divisões de O livro didático de Ciências no Brasil, suas autorias e as origens de seus capítulos. A obra traz escritos preparados para outros contextos (até 2003) e textos propostos para a própria coletânea. Observa-se a presença marcante dos organizadores do livro nas autorias: predominam textos do falecido prof. Fracalanza (5) e de Megid Neto (4), seguidos por Ivan Amorosino do Amaral (2).

Quadro 1
Divisões de O livro didático de Ciências no Brasil, seus autores e as origens dos textos

Em “A trajetória do PNLD do MEC no Brasil”, Eloísa Höfling explica como o governo brasileiro terceirizou a questão do livro didático com o PNLD. Ao expor dados sobre as aquisições de livros nos primeiros 20 anos do programa, evidencia-se a presença de um grupo cada vez menor de editoras em suas sucessivas edições.

O capítulo “Avaliações oficiais sobre o LD de Ciências” discute elementos específicos do ensino das ciências, que deveriam balizar as avaliações do PNLD, apresentando resultados do mestrado de Flávia Leão, realizado sob orientação de Megid Neto. Para os autores, ao longo das edições do PNLD, as especificidades da educação científica foram preteridas em favor de critérios mais gerais, desestimulando o aprimoramento das edições didáticas.

Em “Os fundamentos do ensino de ciências e o livro didático”, capítulo de Amaral, o autor constata que os livros, assim como os critérios de sua avaliação pelo MEC, fiaram-se a uma perspectiva desatualizada, positivista e a-histórica. Assim, são discutidos fundamentos de uma teoria organizadora – com o slogan “revelar o Ambiente e desvelar a Ciência” – que possa orientar tal avaliação.

Na próxima divisão, escrita por Fracalanza, essa reflexão prossegue em discussão sobre como inovações difundidas no século XX a partir dos chamados “projetos de ensino” foram incorporadas à educação brasileira. Observa-se também que, na produção acadêmica sobre materiais para o ensino de ciências, dos anos 1970 até 2000, os projetos de ensino foram cedendo espaço aos livros escolares.

O capítulo seguinte reproduz o artigo “O livro didático de Ciências: problemas e soluções”, dos organizadores da coletânea, publicado em 2003 no periódico Ciência & Educação. Retomando a discussão do segundo capítulo, os autores observam que, então, nem o MEC promovia as especificidades do ensino de ciências, nem os professores estavam conscientes da situação. Além disso, o texto enumera agentes intervenientes nos problemas que envolvem o livro didático. O texto pauta, provocativamente, algumas soluções, como a realocação do investimento público no incentivo a inovações alternativas.

Com mais um texto na coletânea, Fracalanza discute no capítulo seguinte que, apesar da farta literatura sobre o manual escolar, os estudos parecem não impactar em sua melhoria. O que as pesquisas evidenciam é a padronização dos textos escolares.

Encerrando a obra, um capítulo escrito por cinco autores propõe um instrumento de análise de coleções didáticas, baseado em descritores que vão do projeto gráfico a aspectos teórico-metodológicos, gerais ou específicos para o ensino de ciências. Ao aplicar o instrumento em 21 coleções de Ciências, os resultados desapontam: nenhuma é considerada adequada.

Em resumo, O livro didático de Ciências no Brasil apresenta um panorama sobre o manual escolar brasileiro de ciências e sobre os problemas e questionamentos ao PNLD nos anos iniciais de sua segunda fase, conforme periodiza Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp.. Segundo a autora, se, em sua fase inicial (1985-1994), o programa tinha caráter assistencialista, a partir de 1995, o PNLD foi integrado a políticas educacionais mais amplas, afinadas com diretrizes de organismos internacionais. Tratava-se de um contexto – o Governo Fernando Henrique Cardoso – em que a relação entre Estado e educação foi marcada por maiores investimentos no material escolar, ampliando-se o PNLD.

A natureza enunciativa do livro didático

Desde sua publicação, em 2004, a tradução em português do trabalho de Choppin, “História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte”, vem sendo bastante referenciada, talvez por conta da tipologia, ali apresentada, das funções do livro didático: referencial, instrumental, ideológica e cultural e documental. A função referencial diz respeito ao manual enquanto suporte dos conteúdos considerados relevantes para a transmissão geracional. A instrumental considera o livro municiador, de professores e estudantes, com métodos para o estudo de conteúdos. A função ideológica e cultural explicita a associação do texto escolar a valores que, num dado momento histórico, deseja-se atualizar no processo de ensino. Finalmente, a função documental considera que o livro provê os mestres com documentos textuais e icônicos, que tais profissionais da educação poderão usar criticamente.

Provavelmente não foi intenção de Choppin ressaltar a autonomia relativa das quatro funções umas em relação às outras, mas convém explicitarmos como elas se imbricam. Primeiramente, se a função referencial diz respeito aos conteúdos e, a instrumental, às formas, de antemão já está posta sua inseparabilidade. Saviani (2008)Saviani, D. (2008). Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações (10a ed.). Autores Associados. nos lembra que forma e conteúdo só se dissociam a partir da lógica formal; do ponto de vista de uma lógica concreta – a lógica dialética –, tal separação é impossível. O autor traz como exemplo o ensino de história: se o fundamental é que o estudante apreenda o método – o situar-se historicamente –, isso só é possível por meio da familiaridade com a história propriamente dita e, logo, com os conteúdos históricos. Do mesmo modo, separar as funções referencial e ideológica e cultural supõe considerar o currículo como um artefato neutro – mas há décadas sabemos que não se trata disso: o que se ensina para quem não é uma decisão orientada apenas epistemologicamente e, no mais das vezes, o currículo constitui um “arbitrário cultural”, nos termos de Bourdieu e Passeron (2014)Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2014). A reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino (7a ed., R. Bairão, Trad.). Vozes., que traduz a aspiração de uma determinada classe para que tudo fique tal e qual. A função instrumental também é constituída por um componente ideológico e cultural, pois todo método de ensino se reporta a uma teoria educacional, o que já o compromete ideologicamente. Por fim, as funções referencial, instrumental e ideológica e cultural se relacionam com a documental, uma vez que o conteúdo do livro é sempre ressignificado ao ser consumido.

Essa tipologia, apesar de seus limites, é útil para explicitar o hibridismo discursivo do livro didático. Assim, partindo dessas funções e orientando-nos pelo chamado “Círculo de Bakhtin” e por seus comentaristas, consideraremos o livro escolar como composto por diversos tipos de enunciados. Na perspectiva de Voloshinov (Bakhtin, 2004Bakhtin, M. M. (Volochinov). (2004). Marxismo e filosofia da linguagem (11a ed., M. Lahud & Y. F. Vieira, Trads.). Hucitec.), o enunciado é a unidade concreta da língua, enquanto palavras e orações são unidades linguísticas abstratas, possuidoras apenas de um potencial comunicativo. A comunicação se dá efetivamente a partir da enunciação, inerentemente dialógica – todo enunciado é orientado responsivamente a um enunciado anterior e antecipa a réplica de um próximo enunciado –, constituindo a cadeia da comunicação verbal, em que cada enunciado, demarcado pela alternância dos sujeitos falantes, é um elo. Ainda, a enunciação não ocorre num vácuo linguístico, antes, responde a estruturas estabilizadas historicamente como gêneros do discurso (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. M. (2000). Estética da criação verbal (6a ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes.). Os gêneros surgiram de forma a integrar, e mesmo viabilizar, determinadas práticas sociais. Observa-se comumente a constituição de híbridos enunciativos nos objetos da cultura contemporânea e, como afirmamos no início deste parágrafo, o livro didático é um exemplo: suas páginas materializam a composição, a interseção e mesmo o conflito entre enunciados provenientes de gêneros diversos. Parafraseando Machado (2012)Machado, I. (2012). Gêneros discursivos. In B. Brait (Org.), Bakhtin: Conceitos-chave (5a ed., pp. 151-166). Contexto., o livro é produto da prosificação da cultura letrada, em que formas e gêneros insurgem dialogicamente uns nos outros.

As categorias de Choppin (2004)Choppin, A. (2004). História dos livros e das edições didáticas: Sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, 30(3), 549-566. https://doi.org/10.1590/S1517-97022004000300012
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permitem distinguirmos três ordens de enunciados participantes já no ato de produção do livro escolar: o texto científico, matéria-prima da função referencial; o discurso pedagógico, que caracteriza a função instrumental; e os enunciados típicos das comunicações políticas num contexto sócio-histórico, que se insinuam na função ideológica e cultural. No momento de consumo do livro – quando a função documental se sobressai –, tais enunciados são modalizados pelo discurso profissional do mestre e adquirem um sentido, para cada aluno, durante a leitura (que é também um ato concreto, determinado historicamente e, por isso, continuador do processo de enunciação iniciado na produção do livro didático).

Chamemos de “vozes” esses gêneros e enunciados típicos. Podemos realizar uma comparação entre os caráteres mais ou menos polifônicos de diferentes textos. Aqui, estamos adaptando livremente o conceito de polifonia – presente no estudo de Bakhtin (1981)Bakhtin, M. M. (1981). Problemas da poética de Dostoiévski (P. Bezerra, Trad.). Forense-Universitária. da prosa romanesca e definido como “uma multiplicidade de consciências equipolentes e imiscíveis dos heróis, com quem o autor dialoga” (Marchezan, 2010Marchezan, R. C. (2010). Diálogo. In B. Brait (Org.), Bakhtin: outros conceitos-chave (pp. 115-131). Contexto., p. 121) –, considerando mais polifônicos os materiais cuja composição refletir uma multiplicidade maior de vozes. Os esquemas da Figura 1 representam a orientação enunciativa de três tipos de textos: o artigo científico, a divulgação científica e o livro didático. Os lados que se orientam para as “vozes” ou para o “público” buscam refletir, respectivamente, a diversidade da composição discursiva dos textos e a quantidade/diversidade de interlocutores a quem se dirigem. Os tamanhos desses lados não são proporcionais nem refletem fielmente tais relações quantitativas.

Figura 1
Relação, para três gêneros, entre vozes composicionais e públicos-alvo

O primeiro esquema se refere ao artigo científico. A sociologia da ciência explica essa sua representação como um triângulo, orientado às vozes a partir da base e ao público pelo vértice oposto: segundo Latour (2011)Latour, B. (2011). Ciência em ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (2a ed., I. C. Benedetti, Trad.). Unesp., a retórica do discurso científico arregimenta uma multiplicidade de recursos para forçar o leitor a aceitar as afirmações que propõe. Assim, um artigo é uma obra “extremamente social”, “mais social do que os vínculos sociais considerados normais” (Latour, 2011Latour, B. (2011). Ciência em ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (2a ed., I. C. Benedetti, Trad.). Unesp., p. 93). Em sua elaboração, a autoria mobiliza textos anteriores sobre o mesmo assunto que toma como objeto, referências técnicas, discursos de autoridade etc. Todas essas vozes são engajadas no processo de convencimento do leitor, que se vê intimidado diante de tantos recursos e quase sem opções: aceitar as proposições do artigo ou, nos termos de Latour (2011)Latour, B. (2011). Ciência em ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (2a ed., I. C. Benedetti, Trad.). Unesp., “bater em retirada” (p. 65). Na Figura 1, a orientação do vértice para o público representa esse isolamento do leitor e o fato de o auditório do artigo científico ser restritíssimo.

O segundo esquema representa o texto de divulgação científica, com formato invertido em relação ao artigo. Publicação direcionada à sociedade em geral (daí a base alargada, orientada para o público), ressoa na vulgarização científica a autoria do estudo divulgado, cujas entoações valorativas são reiteradas. Na opinião da Latour (2011)Latour, B. (2011). Ciência em ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (2a ed., I. C. Benedetti, Trad.). Unesp., trata-se de um gênero complexo e contraditório: “É difícil divulgar a ciência porque ela é planejada para alijar logo de cara a maioria das pessoas” (p. 78). Assim, diversos recursos são mobilizados nessa empreitada comunicativa, como a simplificação da linguagem, a omissão de fórmulas matemáticas, as analogias e a inserção de ilustrações (Oliveira & Queiroz, 2017Oliveira, J. R. S., & Queiroz, S. L. (2017). Comunicação e linguagem científica: Guia para estudantes de química (2a ed.). Átomo.). Como o objetivo é a popularização de alguns poucos achados (em geral, um único texto de divulgação científica tematiza um único artigo científico), trata-se de um gênero muito pouco polifônico, quase monológico.

Entre esses dois gêneros de qualidades opostas, como se comporta o livro didático? Nota-se sua representação como um trapézio, sendo a base larga (não tão grande quanto a da figura da divulgação científica), com um lado oposto menor, mas também largo (maior do que o lado análogo do artigo científico). Isso representa seu direcionamento a um público amplo e diverso – todos os sujeitos em idade escolar –, embora mais restrito que o conjunto total da sociedade, alvo da divulgação científica. O lado orientado para as vozes é quase tão amplo quanto o lado orientado para o público, justamente pelo livro ser um texto híbrido, composto pelo discurso paradigmático das ciências de referência, pelo discurso pedagógico que traduz a intencionalidade educacional da autoria e pelo discurso político (assumido explícita ou sub-repticiamente) na função ideológica e cultural.

Essas três ordens de discurso formam apenas o núcleo composicional do texto didático. Neste artigo, mostraremos que múltiplos tipos de enunciados, pertencentes a diversos gêneros e oriundos de variadas práticas sociais, participam atualmente da produção do livro escolar brasileiro. A tese resultante será a de que, hoje, é cada vez mais difícil identificar inequivocamente os autores de uma dada publicação didática. Pode-se verificar, ao menos no caso da produção dos livros de ciências no Brasil, uma espécie de “autoria dissolvida” ou “difusa”.

O livro didático de Ciências no Brasil: uma releitura

Considerando a natureza enunciativa do livro, somada às transformações por que passou o PNLD, quais apontamentos podemos propor para as (re)leituras de O livro didático de Ciências no Brasil? Para responder, dividiremos esta seção em três momentos, tomando diferentes objetos de análise e cotejando a obra organizada por Fracalanza e Megid Neto com variados conjuntos de documentos:

  1. O mercado de livros – tensões e acomodações: considerando o livro didático enquanto produto comercial adquirido pelo MEC, foram eleitas como fontes documentais os guias do livro didático, de suas primeiras edições até 2019, com atenção aos componentes disciplinares contemplados a cada edição do PNLD.

  2. O ensino de ciências e o desenvolvimento do PNLD: permanecem os guias como fontes privilegiadas, com atenção, agora, para as listas de pareceristas da avaliação oficial de livros, ali presentes; e para as listas dos critérios das análises realizadas por esses avaliadores. Como o foco da seção é a avaliação oficial de livros didáticos, o recorte temporal é iniciado em 1995, com sua introdução no PNLD. No entanto, tomaram-se também informações históricas, coligidas na literatura, a respeito de programas (a partir de 1929) que são os embriões da atual política brasileira de avaliação e distribuição de livros didáticos.

  3. O livro didático de ciências no Brasil – um objeto em evolução?: nesta última subseção, emergem novas fontes documentais, com especial apreço pelos próprios livros didáticos, considerando as possíveis mudanças que o processo de avaliação oficial do PNLD possa ter imposto às sucessivas edições das obras distribuídas pelo programa. Para investigar essa possível evolução histórica, foram analisadas coleções que permaneceram distribuídas nas duas fases do PNLD – como aponta Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp., fases compreendidas nos períodos 1985-1994 e 1995-atualidade, respectivamente. Como fontes documentais auxiliares, quando não foi possível consultar os próprios livros, foram eleitas as pesquisas recentes que os tomaram como objeto.

O mercado de livros – tensões e acomodações

Freitag et al. (1997)Freitag, B., Motta, V. R., & Costa, W. F. (1997). O livro didático em questão (3a ed.). Cortez. e Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp. apresentam históricos dos livros didáticos e suas políticas no Brasil. Segundo as autoras, o programa surgiu em 1985, no Governo José Sarney, alterando uma política da ditadura civil-militar (o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental) e descentralizando a escolha do livro, que se tornou prerrogativa dos profissionais da educação básica. Passada uma década, no Governo Fernando Henrique Cardoso, o programa adquiriu sua feição atual, caracterizada pela compra governamental das obras indicadas por esses profissionais, mas conforme análises prévias de comissões de especialistas. Mais uma década depois, no início do Governo Luís Inácio Lula da Silva, propôs-se a universalização do fornecimento de livros escolares e, na transição para o Governo Dilma Rousseff, o PNLD se expandiu para outras modalidades de ensino, a educação de jovens e adultos (EJA) e a educação do campo. Finalmente, o Governo Michel Temer incluiu a educação infantil no PNLD.

Um diagrama sobre esse histórico é representado na Figura 2. É notável que, com o avanço do programa para novos níveis e disciplinas, o mercado de obras escolares se tornou uma opção rentável e regular para o crescimento das editoras atuantes no Brasil.

Segundo Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp., de 1985 a 1991, 64 editoras participaram do PNLD, sete delas concentrando o fornecimento de 84% dos livros. Nos guias do PNLD dessa época (intitulados Manual para indicação de livro didático), constam obras variadas de 18 componentes curriculares: além de parte daqueles presentes nas células finais da Figura 2, registram-se, no manual de 1992, Francês, Alemão, Educação para o Lar, Programas de Saúde, Educação Ambiental e livros multidisciplinares e profissionalizantes (com três componentes, Técnicas Agrícolas, Técnicas Comerciais e Técnicas Industriais). Ainda, esse manual foi o primeiro a não contemplar a Educação Moral e Cívica. A exclusão desses componentes reduziu a participação das editoras a 25 empresas, em anos iniciais da segunda fase do PNLD (1997-1998), ainda conforme Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp.. A autora aponta uma nova redução nos anos 2000, sendo que, em 2006, apenas 13 editoras participaram do programa e “das 64 editoras que disputaram uma fatia do mercado nos primeiros anos do programa, apenas 12 editoras permaneceram”, havendo também “incorporação das menores editoras pelas maiores” (p. 72).

Figura 2
Componentes curriculares atendidos nas edições do PNLD

Esses dados sugerem que atualmente o mercado brasileiro de livros didáticos é um oligopólio, com tendências à concentração ainda maior de grandes conglomerados nas compras do PNLD. Essa hipótese fora enunciada no primeiro capítulo de O livro didático de Ciências no Brasil, que tratou tais grupos editoriais como participantes das decisões do MEC ou, menos eufemisticamente, seus parceiros. Nos termos de Munakata (2012)Munakata, K. (2012). O livro didático como mercadoria. Pro-Posições, 23(3), 51-66. https://doi.org/10.1590/S0103-73072012000300004
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, tais agentes, insinuando-se como vozes cada vez mais presentes no processo de elaboração discursiva do livro didático, balizam a produção de um material para as escolas (contexto em que é considerado principalmente por seu valor de uso) conforme critérios mercadológicos (a partir de seu valor de troca).

Os dados de Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp. a respeito da presença cada vez mais marcante de grupos estrangeiros no nosso mercado editorial mantêm atuais as conclusões de Höfling (Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi., p. 29):

A acentuada centralização da participação de um grupo de editoras no PNLD, reforçada historicamente, coloca em questão as perspectivas de descentralização do Programa, assim como pode colocar em risco as tentativas de aperfeiçoá-lo …. Na medida em que, por sua posição no mercado, dispõem de mecanismos mais eficientes de divulgação e de marketing entre os setores compradores e consumidores de seus produtos, esses grupos editoriais alcançam grande poder de penetração e circulação entre seus “clientes”.

Quanto aos mecanismos a que Höfling se refere no fragmento acima, ao menos duas alterações sofridas pelo PNLD contribuíram para desestabilizar o círculo vicioso de fortalecimento dos grandes grupos editoriais (que, dotados de maior capital, dispõem de mais recursos para compelir as compras de seus produtos pelo governo). Primeiramente, a Portaria MEC n. 2.963/05 disciplinou as relações entre editoras e consumidores de livros didáticos, vedando, por exemplo, o oferecimento de vantagens, a escolas e professores, que pudessem induzir a adoção de obras no momento das escolhas do PNLD. Apesar dessas restrições, Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp. reporta as estratégias de um grande conglomerado participante do PNLD para permanecer em “contato” com os professores – por exemplo, veiculando propagandas em programas televisivos, com a participação de um famoso cartunista atestando a qualidade dos produtos. De qualquer forma, apesar do MEC interditar a presença das editoras nas escolas, não é proibido que encaminhem amostras de livros “para análise do professor” diretamente a elas, considerando a tendência dos docentes em escolher obras que tenham em mãos, em detrimento daquelas apenas resenhadas nos guias. A segunda alteração no PNLD, quanto a esse aspecto, tem justamente a ver com o acesso dos professores às obras resenhadas. Agora, com o Guia digital do livro didático, os professores podem “folhear” virtualmente os livros resenhados, acessando coleções cujas amostras não foram enviadas às escolas – mitigando desigualdades entre editoras grandes e pequenas.

Cada tensão criada pelo governo, na execução do PNLD, é acompanhada de acomodações e contraofensivas por parte das editoras. Em alguns casos, tais respostas podem exercer um papel construtivo, com subsídios para o aprimoramento do programa. Destaca-se, nesse viés, o dossiê de uma editora sobre a rejeição de quatro de suas obras no PNLD/2010 (Sampaio & Carvalho, 2010Sampaio, F. A. A., & Carvalho, A. F. (2010). Com a palavra, o autor: Em nossa defesa: Um elogio à importância e uma crítica às limitações do Programa Nacional do Livro Didático. Sarandi.). Foram apontadas falhas como desatualização e erros por parte dos avaliadores, emprego de critérios de avaliação ausentes no edital do programa e falta de isonomia na análise de coleções de diferentes autores. Essa publicação não implicou mudanças imediatas no PNLD, mas ao menos conscientizou o MEC de que as editoras podem dialogar com os técnicos do programa, atuando como seus vigilantes e articulando, às estratégias mercadológicas, conhecimentos científicos e pedagógicos. Em outros casos, a acomodação das editoras às regras do PNLD pode ser mais controversa. Grupos editoriais, diante das dificuldades que suas obras enfrentam no programa, criaram produtos alternativos que têm invadido o mercado. São os chamados “sistemas estruturados de ensino”, que atualizam o tecnicismo dos anos 1970 ao oferecer um material “à prova de professor”, com unidades didáticas e atividades rigorosamente dosadas. Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp. relata a inserção das grandes editoras, onipresentes no PNLD, também nesse novo nicho. Para as empresas, além da diversificação de seus produtos, os sistemas trazem amplas vantagens: a legislação referente ao PNLD não tem jurisdição sobre as estratégias de marketing que empregam os materiais, as quais prescindem de aprovação do MEC e, consequentemente, sendo textos “desideologizados”, possuiriam maior potencial na promoção do sucesso estudantil em vestibulares e exames nacionais.

Nesse panorama, propomos mais uma atualização no texto de O livro didático de Ciências no Brasil. O capítulo 5, dos organizadores da obra, apresenta um quadro das influências de diversos agentes sobre o manual escolar no Brasil (Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi., p. 162). Ali consta que as editoras executam ações de produção editorial, marketing e pressão para definir normas, políticas e ações públicas. Podemos acrescentar, então, as ações de crítica e colaboração para o aprimoramento das políticas e, contraditoriamente, desqualificação, questionamento e formulação de alternativas ao livro. Não se pode ignorar, também, que esse agente atua organizadamente, pois seus segmentos estão agremiados em associações civis – atualmente, a Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale) e a Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros).

O ensino de ciências e o desenvolvimento do PNLD

Do capítulo 2 ao 5, O livro didático de Ciências no Brasil aborda problemas do PNLD que comprometeriam a melhoria do ensino por meio dos livros didáticos.

O capítulo 2 (“Avaliações oficiais sobre o LD de Ciências”) esmiúça mais os vícios do PNLD-Ciências. A análise dos autores – Leão e Megid Neto – estabelece o silogismo: (i) O MEC compôs uma equipe, previamente à segunda fase do PNLD, que formularia critérios para a avaliação de livros, produzindo em 1994 um documento que deveria balizar as edições seguintes do programa; (ii) no entanto, não houve comunicação entre a equipe de 1994 e equipes subsequentes de avaliadores de livros; (iii) assim, o trabalho de 1994, que propunha descritores específicos para a análise de livros de ciências naturais, não foi considerado no transcorrer do PNLD, o que é evidenciado pela ausência cada vez mais flagrante de tais descritores nas edições de 1996, 1998 e 2001; (iv) consequentemente, nesse período, nem os livros didáticos aprimoraram suas concepções de ciência e ambiente (conceitos nucleares do documento de 1994), nem o PNLD indicou coerentemente as obras que atendiam aos requisitos indicados em 1994.

Alterações sofridas pelo PNLD, desde o início dos anos 2000, neutralizaram parte das críticas de Leão e Megid Neto. Os autores consideraram uma incoerência que, em sucessivas edições do programa, variassem as menções recebidas pelos volumes individuais de cada coleção didática. No entanto, desde o PNLD 2002, as coleções são avaliadas e resenhadas como um todo, e não mais por volumes. Ainda, Leão e Megid Neto consideraram preocupante a própria existência das menções atribuídas aos livros nos guias – não recomendados, recomendados com ressalvas, recomendados e recomendados com distinção –, uma estratificação que induziria a escolha dos professores por obras mais bem avaliadas. Tal hipótese acabou questionada por Castanheira e Evangelista (2002)Castanheira, M. L., & Evangelista, A. (2002). Processo de escolha, recebimento e uso de livros didáticos nas escolas públicas do País [Artigo apresentado]. 25aReunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Caxambu, MG, Brasil., que observaram que, ao contrário, os professores tendiam a adotar livros com menções mais baixas, com os quais já estavam mais familiarizados. De qualquer forma, isso também foi superado: desde o PNLD 2005, constam nos guias apenas obras aprovadas na avaliação, sem menções, interditando-se a escolha por coleções não recomendadas.

A escassez de critérios específicos para o ensino de ciências nas séries iniciais do ensino fundamental, preocupação central desse capítulo de Leão e Megid Neto (e tematizada no capítulo seguinte, “Os fundamentos do ensino de ciências e o livro didático”, de Amaral), também foi corrigida ao longo da trajetória do PNLD. Já no edital do PNLD 2004 houve maior preocupação com os temas ciência e ambiente, como reconhecem os autores;

Porém ainda não se propõem como critério de análise: as concepções de saúde, de corpo humano, de seres vivos. Apesar de no Guia de 2004 haver a preocupação em analisar os fenômenos por diversos aspectos, há uma nítida ênfase na Biologia.… No entanto, não especifica as áreas da Química e da Física, por exemplo, bem como não contempla questões relacionadas às Geociências e à Saúde.

(Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi., pp. 77-78)

A análise dos guias seguintes, do componente Ciências das séries iniciais do ensino fundamental, revela a absorção de tais críticas pelo PNLD. No guia de 2007, há um critério que aponta geologia e saúde como áreas em que os alunos devem ser iniciados, ao lado de astronomia, biologia, ecologia, física e química. Esse descritor continuou presente, praticamente nos mesmos termos, nas edições de 2010, 2013 e 2016 – nesta última, referindo-se a geociências, e não apenas geologia. Ainda, nas edições de 2007 a 2016, nota-se a progressiva incorporação de temas específicos das pesquisas sobre educação em ciências: analogias e animismos, linguagem das ciências e gênero textual científico, questões sociocientíficas e natureza da ciência, articulação do ensino escolar com a visitação a outros espaços, recurso a laboratórios virtuais e demais tecnologias. Também evoluiu a concepção da educação ambiental: se, nos primeiros guias, o respectivo critério se reporta às vertentes conservacionistas e pragmáticas, na edição de 2016, já se insinua a perspectiva crítica. Procedendo com a mesma análise, mas com os guias de Ciências para as séries finais do ensino fundamental (2008, 2011, 2014 e 2017), percebe-se um movimento semelhante. No entanto, Gramowski et al. (2017)Gramowski, V. B., Delizoicov, N. D., & Maestrelli, S. R. P. (2017). O PNLD e os guias dos livros didáticos de ciências (1999-2014): Uma análise possível. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências, 19, 1-18. https://doi.org/10.1590/1983-21172017190110
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, examinando esses guias a partir de 1999, concluem que, até 2014, os critérios específicos de Ciências, embora não rarefeitos, permaneciam minoritários, corroborando os apontamentos dos capítulos 2, 3 e 5 de O livro didático de Ciências no Brasil.

Como mencionado, Leão e Megid Neto sugerem que descontinuidades nas comissões avaliadoras podem fragilizar o PNLD. Os guias de Ciências (séries iniciais e finais do ensino fundamental) fornecem os seguintes dados: de 2005 a 2017, houve 231 avaliadores de livros e, desses, um quarto participaram de mais de uma edição do programa. O Gráfico 1 explicita a quantidade de participações dos avaliadores.

Gráfico 1
Avaliadores e suas quantidades de participações no PNLD-Ciências (2005-2017)

Se contemplássemos as avaliações de livros para o ensino médio – nos componentes Biologia, Física e Química –, haveria mais repetições de avaliadores. No entanto, fiemo-nos, por ora, às particularidades de Ciências. Pensamos que o processo atual de composição das comissões avaliadoras, em que parte dos membros é indicada pelos coordenadores e parte é sorteada entre cadastros num banco de dados do MEC, pode intensificar a renovação dos avaliadores e as descontinuidades. Se considerarmos o PNLD 2005 como edição-base, com 100% de avaliadores novatos no programa, observa-se que na edição seguinte (2007) manteve-se a renovação total desse grupo (fato, aliás, característico das comissões de Ciências, como sugerem Leão e Megid Neto). A partir do PNLD 2008, no entanto, a tendência foi de oscilação em torno do valor médio de 49% de novatos, como se observa no Gráfico 2. Surpreendentemente, na última edição (PNLD 2017), 81% dos avaliadores debutaram no programa.

Gráfico 2
Percentuais de avaliadores novatos por edição do PNLD-Ciências (2005-2017)

Por outro lado, não se deve desprezar as comissões coordenadoras, que ajudam a mitigar a renovação dos avaliadores. De 2005 a 2017, houve continuidade na Comissão Técnica (2007-2014), na Coordenação Institucional (2010-2014) e na Coordenação de Área (2010-2013), para citar alguns exemplos. Além disso, avaliadores experientes podem ascender às posições coordenadoras (uma avaliadora, com cinco participações no programa, alcançou a Comissão Técnica em 2017) e vice-versa (um coordenador em 2007 e 2014 atuou como avaliador em 2011 e 2013).

Revisemos os dados desta subseção. Como foi exposto ao final da subseção anterior, o capítulo 5 de O livro didático de Ciências no Brasil apresenta um quadro sobre os agentes que influenciam a conformação dos manuais escolares brasileiros. Segundo esse quadro (Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi., p. 162), as instituições de pesquisa executam ações de produção de alternativas aos livros, assessoria à elaboração de propostas curriculares, atualização de professores e, finalmente, análise e divulgação de aspectos relacionados aos livros didáticos. De acordo com nossa análise, as instituições de pesquisa podem exercer mais uma função: identificar limites e vícios do PNLD, visando seu aprimoramento – como atesta a absorção, pelo programa, das próprias críticas de O livro didático de Ciências no Brasil.

Já a análise da composição das comissões avaliadoras do PNLD-Ciências (2005-2017) demonstrou que o programa, além de ter ampliado a participação de profissionais da educação na escolha do livro, ampliou também a quantidade de participantes no próprio processo de análise oficial dos textos escolares. Mais de duas centenas de professores/pesquisadores avaliaram obras de Ciências no período considerado. Não deixa de ser interessante comparar esse número com aqueles dos primórdios das políticas brasileiras do livro: nosso primeiro colegiado julgador de manuais – a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) – instituído em 1938, compunha-se de apenas sete membros designados pela Presidência da República (Freitag et al., 1997Freitag, B., Motta, V. R., & Costa, W. F. (1997). O livro didático em questão (3a ed.). Cortez.). Com mecanismos mais objetivos para a formação do corpo de avaliadores do PNLD, o programa tem propiciado a participação de cada vez mais vozes, representantes dos mundos escolar e acadêmico, na constituição discursiva do livro de ciências – à época da CNLD, um material muito mais monológico.

O livro didático de ciências no Brasil: um objeto em evolução?

Como vimos, O livro didático de Ciências no Brasil considera que o PNLD, não tendo incorporado descritores emanados da pesquisa em educação em ciências (pelo menos não até o início do século XX), não induziu aprimoramentos nos manuais escolares. Merece atenção especial um comentário de Leão e Megid Neto, comparando um guia do livro didático com obras nele resenhadas (Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi., p. 73):

Notamos que para todos os livros existem elogios, geralmente propostos à acuidade conceitual ou à metodologia. No entanto, para os livros classificados apenas com duas e uma estrela [respectivamente, livros recomendados e recomendados com ressalvas], o parecer destaca os problemas e sugere ao professor que faça as adequações necessárias para a melhoria da obra. Entretanto, deve-se convir, isso sobrecarrega o professor enquanto alivia o trabalho de autores e editoras, uma vez que, se o livro não é rejeitado, não há a obrigação de corrigi-lo.

Provavelmente esse comentário não se aplicaria hoje. Desde a promulgação do Decreto n. 7.084/10, a distribuição de uma obra pelo PNLD está sujeita à correção das falhas pontuais identificadas pelos avaliadores, tipificadas em relação a conceitos, correção de links, gabaritos, visibilidade de logomarcas, erros em imagens, gramática/grafia, erros de transcrição de áudio, diagramação e supressões de informações desnecessárias. Trata-se de deficiências que, por não ocorrerem sistematicamente, são corrigíveis agilmente, geralmente conforme sugestões dos próprios avaliadores. Esses podem, por exemplo, indicar uma redação mais clara para uma frase mal escrita – evidenciando sua participação na composição discursiva dos livros. O mesmo vale para os manuais excluídos do PNLD: é de se supor que, com base nos pareceres de reprovação, autores e editores reformulem suas criações. Assim, os avaliadores têm um papel considerável na conformação dos produtos que chegam ao mercado ou às escolas da educação básica, configurando uma autoria não reconhecida. Oliveira e Rosa (2016)Oliveira, A. C. G., & Rosa, M. I. P. (2016). Recontextualização e hibridismos em processos de elaboração e avaliação de livros didáticos de Química. Química Nova na Escola, 38(3), 273-283. https://doi.org/10.21577/0104-8899.20160038
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mostram que os elaboradores de livros reconhecem essa interferência autoral das comissões do PNLD, que representam valores e expectativas do MEC – nas palavras de um autor, “O MEC é autor do livro, porque fala como deve ser o material” (p. 279).

Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp. relaciona a questão autoral com o mercado. Para a autora, estamos importando um modelo de produção textual dos países dos grupos editoriais que vêm se fortalecendo pela compra de editoras brasileiras – o modelo de obras coletivas, em que “os autores passam a ter posição diferente no processo produtivo dos livros, que têm a estrutura predeterminada …” (p. 280). Dessa forma, vários colaboradores (muitos deles, oriundos de universidades, docentes ou pós-graduandos) compõem o livro coletiva, mas não conjuntamente. O nome de um autor estampado na capa do produto acaba não refletindo o processo global de sua produção, adquirindo o status de marca comercial ou nome fantasia.

Mencionamos três vozes presentes no livro didático: os discursos de referência, pedagógico e ideológico-cultural. A pesquisa de Oliveira e Rosa (2016)Oliveira, A. C. G., & Rosa, M. I. P. (2016). Recontextualização e hibridismos em processos de elaboração e avaliação de livros didáticos de Química. Química Nova na Escola, 38(3), 273-283. https://doi.org/10.21577/0104-8899.20160038
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também conclui que o livro de ciências brasileiro é um híbrido discursivo; nos dizeres de um autor, reproduzidos no trabalho, “A autoria é uma falácia, não existe autoria, nós reelaboramos certos textos, estamos dialogando com a palavra do outro e convertendo-a em uma palavra própria …” (p. 279). As pesquisadoras discriminam outros intervenientes na produção do texto escolar: professores da educação básica que, a partir de sua práxis (indo além do discurso pedagógico abstrato, substância primordial da função instrumental), são convidados a testar materiais a serem submetidos ao PNLD; acadêmicos, que atuam não apenas diretamente na avaliação dos livros didáticos, mas também indiretamente, formulando consensos na literatura (balizadores de descritores do PNLD) e elaborando políticas educacionais, referenciadas nos editais do programa; o corpo técnico editorial que materializa o livro didático, diagramando textos, ilustrações arquivadas em bancos de imagens e demais recursos; e dirigentes editoriais que, em constante tensão com demais agentes, decidem pela edição ou não de uma obra.

Cassiano (2013)Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp. elenca uma lista semelhante de agentes do “ciclo vital do livro”, acrescentando a participação da mídia. Às vezes como porta-voz das editoras, em suas queixas em relação ao MEC, ou denunciando problemas operacionais do PNLD, os formadores de opinião têm atuado também como vigilantes do programa. Tal papel pode soar como patrulhamento, cobrando de autores, editores e avaliadores uma neutralidade que, como expusemos ao tratar da função ideológica e cultural dos livros, é, discursiva, epistemológica e politicamente, impossível.

Como elencamos na subseção anterior, o PNLD-Ciências foi incorporando descritores mais específicos da educação científica, sendo razoável supor que isso tenha impactado nos livros. Assim, o comentário de Amaral, no capítulo 3 de O livro didático de Ciências no Brasil, que afirma não encontrar grandes diferenças entre livros do início dos anos 2000 e aqueles de 15 anos antes, precisa ser reavaliado, assim como críticas semelhantes em outros momentos da obra, principalmente nos capítulos 6 (“Livro didático de ciências: novas ou velhas perspectivas”, de Fracalanza) e 7 (“Avaliando livros didáticos de Ciências”, de autoria coletiva). Na verdade, essas avaliações podem ser resumidas no seguinte fragmento do capítulo 6:

… como as diversas forças que atuam no sentido da padronização do sistema escolar [ênfase adicionada] também atuam na produção dos livros escolares, há de se convir que essas forças acabam por amalgamar os manuais que, então, são organizados conforme padrões preestabelecidos [ênfase adicionada]. Assim … os textos didáticos se encaminham para o invariável e seus autores, nos aspectos gerais, acabam por se confundir

(Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi., pp. 176-177).

O tema da padronização dos livros didáticos é mencionado em diversos estudos antigos ou recentes (Cassiano, 2013Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp.; Faria, 1986Faria, A. L. G. (1986). Ideologia no livro didático (5a ed.). Cortez; Autores Associados.), relacionando-se a um aspecto inerente à elaboração desse tipo de mercadoria: sua constituição enquanto produto da indústria cultural (Freitag et al., 1997Freitag, B., Motta, V. R., & Costa, W. F. (1997). O livro didático em questão (3a ed.). Cortez.; Garcia, 2017Garcia, N. M. D. (Org.). (2017). O livro didático de física e de ciências em foco: Dez anos de pesquisa. Livraria da Física.). Mas será que essas duas acusações – de que o livro estacionou no tempo e de que sofre de excessiva homogeneização – permanecem atuais?

Lembremos que o atual mercado de livros brasileiros, movimentando centenas de milhões de reais, é bastante atrativo às editoras. É ilógica a hipótese de que elas não queiram gerar produtos mais competitivos, e estudos recentes confirmam haver essa evolução do livro didático. Silva et al. (2017)Silva, P. C., Ito, N. M., Silva, V. F., Amauro, N. Q., & Mori, R. C. (2017). Processos cognitivos requeridos em exercícios de química: Evolução de uma coleção de livros de Ciências cobrindo três décadas [Artigo apresentado]. 9o Encontro Paulista de Pesquisa em Ensino de Química, Sertãozinho, SP, Brasil., comparando edições de um mesmo livro de Ciências cobrindo três décadas, observam uma alteração nos exercícios propostos: questões de memorização cedem lugar, mais recentemente, a atividades mais exigentes cognitivamente. Já Cruz et al. (2017)Cruz, B. D., Neves, J. A., & Luciano, R. A. (2017). O tema das drogas psicotrópicas em livros didáticos de química. 1o Encontro de Educadores em Ciências, São Carlos, SP, Brasil. observaram que o tema das drogas psicotrópicas, em livros atuais de Química, adere a referenciais mais atuais da educação em saúde, abandonando a pedagogia do amedrontamento que caracterizou manuais brasileiros até o início dos anos 1990 (Carlini-Cotrim & Rosemberg, 1991Carlini-Cotrim, B., & Rosemberg, G. (1991). Os livros didáticos e o ensino para a saúde: O caso das drogas psicotrópicas. Revista de Saúde Pública, 25(4), 299-305. https://doi.org/10.1590/S0034-89101991000400009
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). O caso dos livros de Química fornece também um exemplo de pesquisa em educação em ciências incorporada a um material escolar – fato que, para Freitag et al. (1997)Freitag, B., Motta, V. R., & Costa, W. F. (1997). O livro didático em questão (3a ed.). Cortez., era possível apenas em “países economicamente mais avançados” (p. 23). Trata-se do livro de Mortimer e Machado (2016)Mortimer, E. F., & Machado, A. H. (2016). Química (3a ed.). Scipione., que recorre à noção de perfil conceitual para organizar a sequência e a abordagem dos conteúdos. Compare-se, por exemplo, os perfis conceituais de átomo e calor (Mortimer & El-Hani, 2013Mortimer, E. F., & El-Hani, C. N. (2013). Conceptual profiles: A theory of teaching and learning scientific concepts. Springer.), respectivamente, à sequência de conteúdos de atomística e à introdução à termoquímica nessa obra.

Recentemente (2017) surgiu outra antologia, O livro didático de Física e de Ciências em foco: dez anos de pesquisa, organizada por Nilson M. D. Garcia. Nela constam 41 estudos, muitos confirmando que o manual de ciências evoluiu. Esses resultados mostram, por exemplo, que a física moderna se incorporou aos livros, atendendo a reivindicações curriculares antigas de especialistas; que os conteúdos são geralmente acompanhados de uma abordagem histórica, embora se possa questionar a perspectiva historiográfica adotada; e que as obras têm se apropriado das multimídias, indicando links para os alunos acessarem outras imagens e textos. Esse último resultado demonstra como o livro de ciências é, cada vez mais, inacabado em termos bakhtinianos: a enunciação, de que participa, já não se circunscreve às páginas impressas, avançando para outros suportes, com os quais interage dialogicamente e se enriquece polifonicamente.

No caso do componente Ciências, nas séries finais do ensino fundamental, é notável a existência de obras recentes que desafiam a organização clássica dos conteúdos: 6º ano – geociências, 7º ano – seres vivos, 8º ano – corpo humano/saúde, 9º ano – física/química. É interessante observar, quanto a esse aspecto, como os autores se adaptam ao PNLD. Por exemplo, a obra Ciências (Gowdak, 1986Gowdak, D. (1986). Ciências. FTD.), de organização clássica e distribuída nas primeiras edições do programa, apresenta um currículo diferenciado na sua primeira edição do século XXI (Gowdak & Martins, 2002Gowdak, D., & Martins, E. (2002). Ciências, novo pensar. FTD.): temas de física, de química e de ecologia constam em todos os volumes. A obra esteve presente nas edições de 2005 e 2008, mas foi excluída do PNLD 2011. Reformulada no início dos anos 2010 (Gowdak & Martins, 2012Gowdak, D., & Martins, E. (2012). Ciências novo pensar. FTD.), voltou a frequentar o programa nas edições de 2014 e 2017. A reformulação retomou a organização curricular clássica, mas mantendo a ecologia como conteúdo “transversal” aos volumes. A autoria parece ter se acomodado aos critérios do PNLD, dosando o nível de inovação curricular. Isso corrobora conclusões de diversos pesquisadores, para os quais o livro não representa fielmente as orientações curriculares oficiais, mas as reinterpreta (Cassiano, 2013Cassiano, C. C. F. (2013). O mercado do livro didático no Brasil do século XXI: A entrada do capital espanhol na educação nacional. Unesp.; Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi.; Garcia, 2017Garcia, N. M. D. (Org.). (2017). O livro didático de física e de ciências em foco: Dez anos de pesquisa. Livraria da Física.; Martins et al., 2012Martins, I., Gouvêa, G., & Vilanova, R. (Orgs.). (2012). O livro didático de ciências: Contextos de exigência, critérios de seleção, práticas de leitura e uso em sala de aula. Famer.; Oliveira & Rosa, 2017).

A propósito, Gramowski et al. (2017)Gramowski, V. B., Delizoicov, N. D., & Maestrelli, S. R. P. (2017). O PNLD e os guias dos livros didáticos de ciências (1999-2014): Uma análise possível. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências, 19, 1-18. https://doi.org/10.1590/1983-21172017190110
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afirmam que “A presença de pelo menos uma coleção com organização de conteúdos diferenciada em cada processo do PNLD-Ciências demonstra que algumas editoras se arriscam mercadologicamente, desenvolvendo coleções com outras perspectivas” (p. 16). Um dos estudos do livro de Garcia (2017)Garcia, N. M. D. (Org.). (2017). O livro didático de física e de ciências em foco: Dez anos de pesquisa. Livraria da Física. também afirma ter encontrado currículos inovadores de Física em duas das 10 coleções do PNLD-2011. Assim, os comentários de O livro didático de Ciências no Brasil a respeito da padronização dos manuais brasileiros permanecem atuais, mas devem ser relativizados.

Considerações finais

A questão do livro escolar brasileiro ficou mais complexa. Foi-se o tempo em que eram válidas as críticas de Bonazzi e Eco (1980)Bonazzi, M., & Eco, U. (1980). Mentiras que parecem verdades (7a ed.). Summus. e Faria (1986)Faria, A. L. G. (1986). Ideologia no livro didático (5a ed.). Cortez; Autores Associados., denunciando o discurso cínico, elitista e preconceituoso dos manuais. Faria (1986)Faria, A. L. G. (1986). Ideologia no livro didático (5a ed.). Cortez; Autores Associados., por exemplo, identificou uma visão estereotipada do mundo rural, em livros brasileiros de 1977: “É como se todas as pessoas do campo fossem pobres, simples, atrasadas. É como se não existissem classes sociais no campo” (p. 61). Não seria impensável, à época, que hoje essas pessoas seriam contempladas com livros específicos para sua realidade, desde o primeiro PNLD-Educação do Campo (2013)?

A partir do início do século XXI, o PNLD passou por transformações velozes, daí o fato de O livro didático de Ciências no Brasil, em pouco mais de 10 anos de existência, soar datado em algumas passagens. No entanto, vários dos posicionamentos expostos na obra permanecem mais ou menos atuais – em que pese a necessidade de aliar sua leitura com a consulta a outras obras, como as antologias mais recentes (Garcia, 2017Garcia, N. M. D. (Org.). (2017). O livro didático de física e de ciências em foco: Dez anos de pesquisa. Livraria da Física.; Martins et al., 2012Martins, I., Gouvêa, G., & Vilanova, R. (Orgs.). (2012). O livro didático de ciências: Contextos de exigência, critérios de seleção, práticas de leitura e uso em sala de aula. Famer.).

Talvez Fracalanza e Megid Neto (e outros autores presentes na organização da obra) não tenham previsto dois fatos: que o PNLD se estabelecesse como questão de Estado, e não de governo, contrariando o histórico de descontinuidade das políticas educacionais brasileiras (Saviani, 2008Saviani, D. (2008). Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações (10a ed.). Autores Associados.); e que o livro de ciências se tornaria uma arena discursiva tão complexa. Abra aleatoriamente um manual escolar atual: em poucas páginas de um livro de Química convivem textos jornalísticos, proposições científicas, dados de handbooks, fotografias, ilustrações e questões de exames – por exemplo, veja um capítulo do livro de Fonseca (2016, pp. 31-44)Fonseca, M. R. M. (2016). Química. Ática. v. 2.. Todos são enunciados e, como tais, possuem autorias e transmitem valores (Bakhtin, 2004Bakhtin, M. M. (Volochinov). (2004). Marxismo e filosofia da linguagem (11a ed., M. Lahud & Y. F. Vieira, Trads.). Hucitec.), atritando-se com o diálogo mais amplo de que o livro participa – cujos agentes vão além daqueles enumerados no capítulo 5 de O livro didático de Ciências no Brasil.

Finalizemos, assim, atualizando o quadro ali exposto (Fracalanza & Megid Neto, 2006Fracalanza, H., & Megid Neto, J. (Orgs.). (2006). O livro didático de ciências no Brasil. Komedi., p. 162), à luz do percurso que percorremos neste texto (Quadro 2).

Quadro 2
Múltiplas influências que diversos segmentos exercem sobre o livro didático no Brasil. Os conteúdos em vermelho se referem a atualizações da fonte à luz das conclusões do presente artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2019
  • Revisado
    05 Nov 2019
  • Aceito
    14 Jan 2020
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