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Papel sintético a partir do plástico reciclado

ENTREVISTA

Papel sintético a partir do plástico reciclado

A professora e pesquisadora Dra. Sati Manrich, da Universidade Federal de São Carlos do Departamento de Engenharia de Materiais - UFSCar-DEMa vem trabalhando há mais de 10 anos com reciclagem de materiais poliméricos, destacando-se o desenvolvimento e obtenção de "papel sintético". Esse trabalho envolveu pesquisadores de Universidades, alunos em formação nos cursos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-graduação em Ciência e Engenharia de Materiais -PPGCEM do DEMa, alunos de iniciação científica do curso de graduação em Engenharia de Materiais, bem como pesquisadores de indústrias. A matéria desta edição apresentada pela revista "Polímeros: Ciência e Tecnologia" foi uma forma encontrada para homenagear a pesquisadora pelo importante invento de obtenção do "papel sintético a partir do plástico reciclado", feito esse que vai contribuir com o desenvolvimento sustentado e o meio ambiente. A Professora, que é sócia fundadora da ABPol, já publicou nessa revista diversos artigos sobre papel sintético, tendo contribuído de forma significativa com os objetivos desse veículo de comunicação científico.

Professora Sati, primeiramente, parabéns pela brilhante invenção e principalmente pela dedicação nesse tema durante todos esses anos. Qual o significado do termo "papel sintético"?

Eu é que agradeço à ABPol por esta oportunidade, em nome de todos os professores, pesquisadores e alunos que participaram dos projetos com esse tema. Quanto ao termo "Papel Sintético" é utilizado para designar folhas ou filmes obtidos a partir de plásticos, que apresentam características similares ao papel (de celulose) e que são destinados principalmente a aplicações para impressão e escrita. Gostaria de enfatizar aqui que o foco da nossa pesquisa sempre foi o "Papel Sintético Ecológico", ou seja, aquele obtido a partir de plástico pós-consumo ou de resíduo urbano reciclado.

Em que aplicações o papel sintético pode substituir o papel celulósico?

Na confecção de produtos para aplicações em impressão e escrita como catálogos, cartilhas e manuais; outdoors, banners e cartazes para comunicação visual; rótulos, etiquetas, cartões, telas para pintura e até livros e cédulas para dinheiro. No caso do papel de plástico reciclado, não pode ser usado em contato direto com alimentos. Entretanto, os produtos não estão restritos a esses citados; outras substituições poderão surgir dependendo da criatividade dos empreendedores que, aliás, é uma característica muito positiva dos brasileiros. O papel sintético poderia também ser usado em cadernos, mas até agora não conquistou esse mercado dominado pelo papel de celulose. Ainda para essa aplicação, as vantagens de resistência e durabilidade do papel sintético, além de aceitar grafite e a escrita com canetas esferográficas ser muito melhor no sintético, são contrapostas com a desvantagem de não ser adequado para tintas base água, não se podendo escrever com as canetinhas hidrográficas coloridas, nem impressas com impressoras jato de tinta. O novo papel de plástico reciclado pode ser adequado para impressão e escrita com tintas base água, desde que passe por uma etapa a mais no processo de fabricação, o que encarece o produto final. Neste caso muito provavelmente será contabilizada a razão custo/benefício. Apesar de que, em favor do futuro do nosso planeta, todos os setores e segmentos da sociedade, deveriam "pagar" a mais em tecnologias limpas e amigas do meio ambiente, com a certeza de que esse "pagamento" seria como um investimento para as nossas futuras gerações.

É uma invenção patenteada? Caso possa nos revelar, como é possível obter papel a partir de plástico?

Foi depositado o pedido de patente no INPI em abril/2007, sendo que a tecnologia já estava pronta em escala piloto desde março/2006. Foi feito também o pedido de extensão ao exterior via Tratado de Cooperação em Patentes (PCT), em abril/2008. O papel de plástico pode ser obtido por processos diferentes: por laminação ou co-extrusão de filmes de compostos de termoplásticos contendo cargas inorgânicas e aditivos, como no nosso invento ou pode ser obtido por deposição de resinas ligantes em uma matriz de tecido-não-tecido, também de termoplásticos como poliolefinas e copolímeros, polímeros derivados do estireno e PET.

Quais as principais vantagens do papel sintético em relação ao celulósico?

Em termos de propriedades são: maior durabilidade, maiores resistências química e à água/umidade, melhor aspecto (qualidade) visual, maior resistência a intempéries. Em termos ambientais, as vantagens do papel sintético ecológico são enormes.

Essa pesquisa foi realizada somente na UFSCar ou teve participação de outros laboratórios de pesquisa? E as verbas necessárias para esse desenvolvimento foram governamentais ou teve participação de empresas privadas?

As pesquisas sobre o tema "papel sintético a partir de resíduo plástico urbano" são pioneiras em termos mundiais e foram desenvolvidas somente na UFSCar. Foram vários projetos de pesquisa, a maioria financiada por instituições de fomento estatais como a FAPESP e o CNPq/PADCT III, além de bolsas CNPq, FAPESP e Capes. Foram todos sob minha coordenação, desde que concebi a idéia do papel sintético ecológico em meados de 1995. Apresentei a primeira proposta nesse tema à FAPESP, que concedeu Auxílio Pesquisa processo Nº 1995/9966-5. De empresas privadas, houve somente o financiamento de um projeto de extensão pela Polibrasil Resinas SA, atual Quattor (UFSCar-Empresa CCUE 001/98), que foi interrompido pela empresa logo após o primeiro ano de vigência de um total previsto de 3 anos. No projeto com a Vitopel, não houve financiamento da pesquisa de sua parte. Foi feita uma parceria especificamente para a realização dos testes em planta piloto, que foi fundamental para verificar a viabilidade da tecnologia e caracterização dos papéis sintéticos utilizando os equipamentos e matérias primas para estabilização e limpeza dos mesmos, recursos humanos e alguns aditivos da Vitopel. Contamos também com o importante apoio de várias empresas e instituições para utilização de alguns equipamentos de caracterização não existentes na UFSCar, sem a necessidade de contra-partida ou pagamento pelo uso (Polibrasil, Cromex, 3M do Brasil, FEQ-Unicamp, Unesp-Sorocaba, Braskem-PVC), além de doações de matérias-primas e aditivos (Polibrasil, Basf, Polietilenos União, Braskem, GE). A todos, os nossos sinceros agradecimentos e, em particular, à Polibrasil na pessoa do Eng. Cláudio Marcondes, que viabilizou doação massiva de matéria-prima e de uma extrusora filme tubular em desuso na fábrica para o nosso laboratório 3R-nrr/UFSCar.

Com relação à contribuição para o desenvolvimento sustentado e meio ambiente, por que o papel sintético pode ser considerado positivo? Para sua obtenção, o consumo de energia é menor do que para o papel de celulose?

Até o momento não foi possível realizar uma análise de ciclo de vida comparativa entre os dois tipos de papel para determinar quantitativamente as diferenças no consumo de insumos e energia. Entretanto, conhecendo ambos os processos de forma geral, com relação aos impactos ambientais e desenvolvimento sustentável, vejo muitos pontos positivos para os de papel sintético, que são visivelmente de menor consumo de água, menos poluentes e não necessita do corte de árvores. Se comparar com o nosso invento, só vejo vantagens e elas são enormes para a versão ecológica. Por exemplo, substituindo uma fatia de mercado do papel de celulose, o papel sintético ecológico contribuiria para a redução no volume de plástico descartado e desperdiçado nos aterros, lixões e rios, consequentemente reduziria os seus impactos negativos ao meio ambiente. Reduziria ao mesmo tempo a quantidade de árvores derrubadas, mesmo que de reflorestamentos que são, aliás, vastas áreas de monoculturas. Poderia contribuir também para diminuir o consumo de água que está se escasseando no planeta e, de forma muito positiva, diminuiria o potencial poluente das fábricas de papel de celulose. Porque os processos utilizados nas indústrias desse tipo de papel empregam enormes volumes de água e produtos tóxicos ou altamente poluentes para separação da lignina, hemicelulose e outros, e para "branquear" a celulose. Mesmo comparado ao papel de celulose reciclado, essas vantagens ambientais permanecem.

Como todo produto novo, o papel sintético poderia ser até mais caro que o papel celulósico. Existe interesse por parte do governo em incentivar a produção desse produto, com subsídios ou eliminação de impostos, por exemplo?

Essa questão é muito interessante. Ainda não existe iniciativa nesse sentido por parte do governo ou das empresas privadas em fazer pressões especificamente em relação a este novo produto, mesmo porque ele ainda não existe no mercado. Temos expectativa, entretanto, que isso venha a ocorrer, a exemplo de incentivos anteriores de redução e até isenção de alguns impostos em produtos fabricados com resíduos reciclados.

Esse produto é de propriedade apenas da Universidade? Existe interesse comercial por parte da empresa Vitopel ou de outras pela tecnologia de fabricação de papel sintético?

A propriedade intelectual foi dividida igualmente entre a UFSCar, FAPESP e Vitopel. Em 2005, foi feito um projeto de extensão Universidade/Empresa para viabilizar os testes em planta piloto, com contrato definindo a cessão de um terço da propriedade intelectual em troca da realização gratuita dos testes já comentados. Foi definido que os custos para patentear também obedeceriam a essa divisão. Desta forma, a Vitopel detem a preferência para o licenciamento exclusivo da tecnologia.

Desde o início das conversações em 2003 a empresa demonstrou interesse na exploração comercial dos resultados da pesquisa, tendo ratificado em 2006. Entretanto, em 2008, em um dos contatos feitos pela UFSCar para solicitar posicionamento a respeito, foi afirmado categoricamente que não havia qualquer interesse nisso. Com a matéria divulgada na revista Pesquisa FAPESP, começamos a receber um número razoável de contatos de empresas e pessoas físicas interessadas no invento. E, felizmente com a enorme repercussão após a reportagem no Jornal Nacional da Rede Globo, em 03/02/2009, até perdemos a conta do número de novos contatos de interessados, grande parte de empresas. Atualmente a Agência de Inovação da UFSCar, que gerencia os inventos dessa instituição, está atuando de forma intensa juntamente com o nosso acompanhamento para resolver o licenciamento da tecnologia para a Vitopel, de forma a disponibilizar o papel sintético ecológico no mercado o mais rápido possível. Porque o interesse em sua utilização é enorme.

O papel sintético obtido a partir de plástico reciclado poderá ser reciclado novamente?

Sim, é possível ser reciclado novamente, retornando à mesma aplicação ou para fabricação de outros produtos. Não fizemos estudos específicos para determinar o número de vezes que poderá ser reciclado, porém sabe-se que isso pode ser muito variável dependendo da composição específica e do resíduo/produto a ser reciclado para compor o material para o papel sintético.

Quais as principais dificuldades encontradas nos projetos de pesquisa sobre o papel sintético?

O início de tudo é sempre difícil. Executei o primeiro projeto praticamente sozinha, em que, além de pesquisadora efetiva, fui catadora solitária de lixo plástico seletivo, duas vezes por semana. Tive auxílio do aluno IC, Alexandre Maruca, com bolsa FAPESP de 10 meses para os processos de limpeza, moagem e algumas caracterizações. Por ser uma pesquisa tipicamente de desenvolvimento tecnológico, foram muitas as pressões opostas: de manter o sigilo de propriedade industrial e intelectual e de publicar em periódicos reconhecidos. Tanto que o primeiro artigo completo contendo parte dos resultados obtidos naquele primeiro projeto foi publicado nesta revista da ABPol em 2001, somente 3 anos após a sua conclusão. Artigo que foi traduzido integralmente pela Editora Elsevier e publicado nesse mesmo ano no Polymer Recycling, a pedido de permissão pela própria editora. Existiram outras dificuldades também, desde as mais comuns a qualquer atividade de pesquisa acadêmica e de parceria Universidade/Empresa, até aquelas envolvendo interpretações de pessoas que estavam creditando para si a idéia original e a pesquisa sobre papel sintético de lixo plástico urbano.

Professora Sati, a senhora gostaria de fazer alguma consideração final?

Gostaria de repetir, em outras palavras, o que o Prêmio Nobel Dr. Alan Mac Diarmid nos disse em seu pronunciamento de abertura do MACRO'2006, no Rio de Janeiro: que de nada adiantam belíssimos e imponentes prédios e laboratórios, com equipamentos sofisticados de última geração, se não existirem as pessoas dentro delas que pensem, trabalhem e façam a diferença. Assim, nesta oportunidade gostaria de agradecer a todos os professores, pesquisadores, alunos de pós-graduação e de graduação, que participaram dos projetos de pesquisa, diretamente e indiretamente dos trabalhos específicos sobre o papel sintético ecológico. Além dos meus sinceros agradecimentos aos alunos de IC, bolsistas ou voluntários, agradeço com um forte abraço aos que dedicaram a sua formação de pós-graduação especificamente na pesquisa sobre o papel sintético ecológico: Drs. Oswaldo J. Danella Jr., Amélia S. F. e Santos e Janaina R. V. Borges; MSc's Cristiano R. de Santi, Rodrigo F. Ravazi e Ana Carolina Corrêa; e Profa. Ruth M. C. Santana. Agradeço também ao prof. Jose Augusto M. Agnelli, meu primeiro orientador e ao químico Antonio Carlos Rosalini (Carlinhos), meus amigos e participantes de um dos grandes projetos no tema. Agradeço em especial ao prof. Silvio Manrich, esposo, amigo e colega de profissão, participante de dois grandes projetos nesse tema, pelo apoio incondicional de sempre, tanto contribuindo nas discussões técnico-científicas quanto emprestando seu ombro reconfortante nos momentos mais difíceis de desenvolvimento deste trabalho (em que chorei...literalmente...).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    2009
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