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Relações de gênero, possessão e sexualidade

Gender relations, possession and sexuality

Rapports de genre, possession et sexualité

Resumos

Este trabalho busca analisar as relações de gênero, tal como são concebidas nos cultos afro-brasileiros, notadamente no candomblé. Analisa estas concepções na articulação que possuem com os ritos de possessão e trata da diferença que estes apresentam entre as vertentes religiosas constitutivas do campo afro. Busca compreender como os papéis de gênero na família-de-santo se desdobram na relação que o candomblé mantém com a sexualidade e com o espaço que lhe é concedido na prática cotidiana dos terreiros.


The article explores gender relations as conceptualized by AfroBrazilian religious cults, especially candomblé. It analy?es these conceptions in their articulations with rites of possession and looks at the differences between such rites as practiced by different types ot" Afro-Brazilian reíigions. The objective is to arrive at an understanding of how gender roles within Úvzfam (lia - de - san to develop in candomblé's relation to sexuality and to the space it is assigned within daily practice at terreiros.


Ce travail s'efforce d'analyserles rapports de genre tels qu'il sont conçus dans les cuites afro-brésiliens, notamment dans ie Candomblé. II analyse ces conceptíons dans leur articulation avec les rites de possession et traite des différences que ces demiers présentent dans chacun des courants religieux qui constiluent le domaine Afro. L'auteur tente de comprendre comment, dans chaque "famille-de-saint", les roles li és au genre se répercutent sur les rapports que le Candomblé entretient avec la sexualité et avec Tespace qui lui est concédé dans la pratique quotidienne des terreiros.


Relações de gênero, possessão e sexualidade

Gender relations, possession and sexuality

Rapports de genre, possession et sexualité

Patrícia Birman

Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Este trabalho busca analisar as relações de gênero, tal como são concebidas nos cultos afro-brasileiros, notadamente no candomblé. Analisa estas concepções na articulação que possuem com os ritos de possessão e trata da diferença que estes apresentam entre as vertentes religiosas constitutivas do campo afro. Busca compreender como os papéis de gênero na família-de-santo se desdobram na relação que o candomblé mantém com a sexualidade e com o espaço que lhe é concedido na prática cotidiana dos terreiros.

ABSTRACT

The article explores gender relations as conceptualized by AfroBrazilian religious cults, especially candomblé. It analy?es these conceptions in their articulations with rites of possession and looks at the differences between such rites as practiced by different types ot" Afro-Brazilian reíigions. The objective is to arrive at an understanding of how gender roles within Úvzfam (lia - de - san to develop in candomblé's relation to sexuality and to the space it is assigned within daily practice at terreiros.

RESUME

Ce travail s'efforce d'analyserles rapports de genre tels qu'il sont conçus dans les cuites afro-brésiliens, notamment dans ie Candomblé. II analyse ces conceptíons dans leur articulation avec les rites de possession et traite des différences que ces demiers présentent dans chacun des courants religieux qui constiluent le domaine Afro. L'auteur tente de comprendre comment, dans chaque "famille-de-saint", les roles li és au genre se répercutent sur les rapports que le Candomblé entretient avec la sexualité et avec Tespace qui lui est concédé dans la pratique quotidienne des terreiros.

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1 Este texto apresenta, de forma condensada, os argumentos que desenvolvi no meu trabalho de tese (BIRMAN P., "Fazer estilo, criando gêneros". Tese de doutorado Rio de Janeiro, P PG AS/M use a Nacional, 1988).

2 JOÃO DO RIO, Aí religiões no Rio. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1976.

3 Muito menos estáemjogo a idéia de um campo onde se encontram 'opções' de crença entre sujeitos livre-contrastantes que, em nome de suas consciências, as realizam. A idéia de 'crença', como a tradição cristã nos acostumou a compreender, dificulta a percepção 'nativa' das distinções e segmentações do campo religioso. Para problematizar esta noção ver, POUILLON J., "Remarques sude verbecroire", in IZARM. e SMITH P. (orgs.), Lafunction symbolique, Paris, Gallimard, 1979; NEEDHAM R., Beliet, language and experience. Oxford, Basil Blackwell, 1972; DUARTE L.F., "Pluralidade religiosa nas sociedades complexas e 'religiosidade' das classes trabalhadoras urbanas", in Boletim do Museu Nacional. Antropologia, 41,1983; e BIRMAN P., Modos periféricos de crenças. Rio de Janeiro, ISER, 1991.

4 No seu estudo precursor sobre sexualidade na sociedade brasileira, Peter Fry contrapôs dois grandes modelos. Um deles, o chamado modelo hierárquico, distingue no caso do sexo masculino dois gêneros inconfundíveis, o do 'homem' e o da 'bicha' ,através do papel sexual atribuído a cada um deles. Modelo amplamente dominante nas camadas populares, sofre pouca concorrência com outro, de matriz igualitária, no qual não cabe distinguir os gêneros através do papel sexual na relação entre dois homens: ambos seriam igualmente 'homos~ sexuais'. É o primeiro modelo que alimenta a discussão no candomblé. [Cf. FRY P., Para inglês ver. Rio, Zahar, 1982].

5 Apesar de pouco mencionado, um fenômeno interessante diz respeito ao lugar concedido ao candomble pela sociedade num sentido bem específico: este alimenta com termos provenientes da linguagem do santo, africana e nagô as metáforas de caráter sexual em uso freqüente por certos grupos sociais -não são poucos os termos que designam, adjetivam, destacam personagens e modos de ação diversos que emergem nos espaços periféricos da sociedade. Talvez fosse útil imaginar que a presença da linguagem religiosa africana é mais extensa do que o nosso conhecimento permite entrever, servindo como um dos meios para efetivar comentários jocosos sobre e entre as pessoas que freqüentam os circuitos periféricos dos travestis, michês, prostitutas etc, onde a temàtização de papéis sexuais se faz intensamente presente (cf. PERLONGHER N., O negócio do michê. A prostituição viril. São Paulo, Brasiliense, 1987). Essa suposição nos envia ao movimento inverso àquela inicialmente aventada: o sistema religioso fornecendo sentido para relações que se encontram fora dele e que podem ser tematizadas por seu intermédio. É possível, pois, indagar sobre o lugar que o candomblé fornece à sexualidade, diante de tantas associações que se fazem nesse sentido.

6 GOLDMAN M., "A construção ritual da pessoa", in MOURA C.E.M. (org.j. Candomblé. Desvendando identidades. São Paulo, EMW Editores, 1987.

7 Idem.

8 O s traços psicológicos e a correspondência que possuem com os elementos constitutivos dos orixás são minuciosamente descritos por Lépine (LÉPINE C., Bandeiras de Alaira, organizado por Carlos Eugênio Marcondes de Moura, 1982).

9 Cf. ZIEGLER J., Os vivos e a mone, Rio de Janeiro, Zahar, 1977; ORTlZ R., "A morte e sua sombra," in MARTINS J.S. (org.), A morte e os mortos. São Paulo, Hucitec, 1983.

10 FRY P., Para inglês ver, op. cit

11 LANDES R., A cidade das mulheres. Rio, Civilização Brasileira, 1947.

12 Agradeço a Maria Lina Leão Teixeira essa informação que precisa as categorias religiosas envolvidas.

13 Ver o texto de András Zempleni, "Possession et sacrifice", in Le temps de la réflexion, Paris, Gallimard, 1984, sobre a relação entre possessão e sacrifício.

14 Paia uma descrição e uma análise cuidadosas, numa outra perspectiva, da organização dos terreiros como família-de-santo, ver COSTA LIMA V., Família de santos dos candomblés e nagô da Bahia, Salvador, 1977, mimeo.

15 A idéia de um continuum entre os pólos masculino e feminino fornecendo pequenas diferenciações entre os gêneros foi trabalhada numa mesmadireção por MaÍia Lina Teixeira, "Transas de um povo de santo: um estudo sobre identidades sexuais" (dissertação de mestrado, IPCSIUFRJ, 1986) e Rita Laura Segatto, "Inventando a natureza: família, sexo e gênero no xangô de Recife," inAnuário Antropol6gico 85. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1986. Ambas buscaram associar a cada um dos pólos qualidades provenientes da identificação do indivíduo com os seus orixás -quanto mais santos homens, mais masculina, quanto mais santas mulheres, mais feminina. Este argumento, no meu modo de entender, não dá conta do papel atribuído àpossessão, mas permite que se valorize essas aproximações e afastamentos dos estatutos de gênero, que socialmente se apresentam mais nítidos e claramente configurados.

16 O trabalho de Maria Lina Teixeira desenvolve de forma minuciosa e sugestiva essa dimensão ao mesmo tempo sexual e artística dos adés (LEÃO TEIXEIRA M.L., "Transas de um povo de santo: um estudo sobre identidades sexuais". Dissertação de mestrado, IFCS/UERJ, 1986).

17 Ver toda a bibliografia 'clássica' sobre o candomblé, iwtadamente a obra de Roger Basti de, Estudos afro-brasileiros (São Paulo, Perspectiva, 1973) e O candomblé da Bahia (São Paulo, Cia. Editora Nacional. 1978); Edson Carneiro e Nunes Pereira, A casa das minas (Petrópolis, Vozes. 1979).

18 Ovfdio de Abreu Filho, "Dona Beija: análise de um mito," in FRANCHETTO B., CAVALCANTI ML. e HEILBORN M. L. (orgs.), Perpectivas antropológicas <kt mulher 3 (Rio de Janeiro, Zahar, 1983) foi quem desenvolveu esse argumento em relaç ão às identidades masculina e feminina no seu trabalho sobre o mito de Dona Beija, que como prostituta apresenta essas mesmas características.

  • 1 Este texto apresenta, de forma condensada, os argumentos que desenvolvi no meu trabalho de tese (BIRMAN P., "Fazer estilo, criando gêneros". Tese de doutorado Rio de Janeiro, P PG AS/M use a Nacional, 1988). 2 JOÃO DO RIO, Aí religiões no Rio. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1976.
  • 3 Muito menos estáemjogo a idéia de um campo onde se encontram 'opções' de crença entre sujeitos livre-contrastantes que, em nome de suas consciências, as realizam. A idéia de 'crença', como a tradição cristã nos acostumou a compreender, dificulta a percepção 'nativa' das distinções e segmentações do campo religioso. Para problematizar esta noção ver, POUILLON J., "Remarques sude verbecroire", in IZARM. e SMITH P. (orgs.), Lafunction symbolique, Paris, Gallimard, 1979; NEEDHAM R., Beliet, language and experience. Oxford, Basil Blackwell, 1972; DUARTE L.F., "Pluralidade religiosa nas sociedades complexas e 'religiosidade' das classes trabalhadoras urbanas", in Boletim do Museu Nacional. Antropologia, 41,1983; e BIRMAN P., Modos periféricos de crenças. Rio de Janeiro, ISER, 1991. 4 No seu estudo precursor sobre sexualidade na sociedade brasileira, Peter Fry contrapôs dois grandes modelos. Um deles, o chamado modelo hierárquico, distingue no caso do sexo masculino dois gêneros inconfundíveis, o do 'homem' e o da 'bicha' ,através do papel sexual atribuído a cada um deles. Modelo amplamente dominante nas camadas populares, sofre pouca concorrência com outro, de matriz igualitária, no qual não cabe distinguir os gêneros através do papel sexual na relação entre dois homens: ambos seriam igualmente 'homos~ sexuais'. É o primeiro modelo que alimenta a discussão no candomblé. [Cf. FRY P., Para inglês ver. Rio, Zahar, 1982]. 5 Apesar de pouco mencionado, um fenômeno interessante diz respeito ao lugar concedido ao candomble pela sociedade num sentido bem específico: este alimenta com termos provenientes da linguagem do santo, africana e nagô as metáforas de caráter sexual em uso freqüente por certos grupos sociais -não são poucos os termos que designam, adjetivam, destacam personagens e modos de ação diversos que emergem nos espaços periféricos da sociedade. Talvez fosse útil imaginar que a presença da linguagem religiosa africana é mais extensa do que o nosso conhecimento permite entrever, servindo como um dos meios para efetivar comentários jocosos sobre e entre as pessoas que freqüentam os circuitos periféricos dos travestis, michês, prostitutas etc, onde a temàtização de papéis sexuais se faz intensamente presente (cf. PERLONGHER N., O negócio do michê. A prostituição viril. São Paulo, Brasiliense, 1987). Essa suposição nos envia ao movimento inverso àquela inicialmente aventada: o sistema religioso fornecendo sentido para relações que se encontram fora dele e que podem ser tematizadas por seu intermédio. É possível, pois, indagar sobre o lugar que o candomblé fornece à sexualidade, diante de tantas associações que se fazem nesse sentido. 6 GOLDMAN M., "A construção ritual da pessoa", in MOURA C.E.M. (org.j. Candomblé. Desvendando identidades. São Paulo, EMW Editores, 1987.
  • 7 Idem. 8 O s traços psicológicos e a correspondência que possuem com os elementos constitutivos dos orixás são minuciosamente descritos por Lépine (LÉPINE C., Bandeiras de Alaira, organizado por Carlos Eugênio Marcondes de Moura, 1982).
  • 9 Cf. ZIEGLER J., Os vivos e a mone, Rio de Janeiro, Zahar, 1977; ORTlZ R., "A morte e sua sombra," in MARTINS J.S. (org.), A morte e os mortos. São Paulo, Hucitec, 1983. 10 FRY P., Para inglês ver, op. cit 11 LANDES R., A cidade das mulheres. Rio, Civilização Brasileira, 1947.
  • 12 Agradeço a Maria Lina Leão Teixeira essa informação que precisa as categorias religiosas envolvidas. 13 Ver o texto de András Zempleni, "Possession et sacrifice", in Le temps de la réflexion, Paris, Gallimard, 1984,
  • sobre a relação entre possessão e sacrifício. 14 Paia uma descrição e uma análise cuidadosas, numa outra perspectiva, da organização dos terreiros como família-de-santo, ver COSTA LIMA V., Família de santos dos candomblés e nagô da Bahia, Salvador, 1977, mimeo.
  • 15 A idéia de um continuum entre os pólos masculino e feminino fornecendo pequenas diferenciações entre os gêneros foi trabalhada numa mesmadireção por MaÍia Lina Teixeira, "Transas de um povo de santo: um estudo sobre identidades sexuais" (dissertação de mestrado, IPCSIUFRJ, 1986) e Rita Laura Segatto, "Inventando a natureza: família, sexo e gênero no xangô de Recife," inAnuário Antropol6gico 85. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1986. Ambas buscaram associar a cada um dos pólos qualidades provenientes da identificação do indivíduo com os seus orixás -quanto mais santos homens, mais masculina, quanto mais santas mulheres, mais feminina. Este argumento, no meu modo de entender, não dá conta do papel atribuído àpossessão, mas permite que se valorize essas aproximações e afastamentos dos estatutos de gênero, que socialmente se apresentam mais nítidos e claramente configurados. 16 O trabalho de Maria Lina Teixeira desenvolve de forma minuciosa e sugestiva essa dimensão ao mesmo tempo sexual e artística dos adés (LEÃO TEIXEIRA M.L., "Transas de um povo de santo: um estudo sobre identidades sexuais". Dissertação de mestrado, IFCS/UERJ, 1986). 17 Ver toda a bibliografia 'clássica' sobre o candomblé, iwtadamente a obra de Roger Basti de, Estudos afro-brasileiros (São Paulo, Perspectiva, 1973) e O candomblé
  • da Bahia (São Paulo, Cia. Editora Nacional. 1978);
  • Edson Carneiro e Nunes Pereira, A casa das minas (Petrópolis, Vozes. 1979).
  • 18 Ovfdio de Abreu Filho, "Dona Beija: análise de um mito," in FRANCHETTO B., CAVALCANTI ML. e HEILBORN M. L. (orgs.), Perpectivas antropológicas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2011
  • Data do Fascículo
    1991
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